Eu nasci no município mais pobre do Rio Grande do Sul, e até uma certa época, ele era o município mais pobre do Brasil. Talvez pelas dificuldades que a gente tinha na época, parece que eu sempre estava sozinho. Não sei, eu brincava muito sozinho, apesar de ter outros quatro irmãos. Tenho pouc...Continuar leitura
Eu nasci no município mais pobre do Rio Grande do Sul, e até uma certa época, ele era o município mais pobre do Brasil. Talvez pelas dificuldades que a gente tinha na época, parece que eu sempre estava sozinho. Não sei, eu brincava muito sozinho, apesar de ter outros quatro irmãos. Tenho poucas recordações de estar brincando com todos eles. Talvez porque meu pai, na época, fazia muitas coisas. Além de trabalhar na roça, ele trabalhava com marcenaria, ferraria, ele fazia carroça, arado de boi, fazia todos esses acessórios para a agricultura, voltado para a agricultura familiar. Acredito que na infância estivesse muito junto a ele, trabalhando, ajudando desde pequeno. Apesar de ter um rio muito grande próximo de casa, que era o rio Uruguai, eu lembro de poucas vezes de ter ido a esse rio pescar ou brincar.
Geralmente, as brincadeiras que eu fazia pareciam querer imitar ele, fazer roda d’água; tinha um pequeno córrego, muito pequeno, bem do lado da ferraria do meu pai, eu me recordo que eu fazia umas rodinhas d’água lá, montava e ia ver funcionando. Até me lembro uma vez que eu fui querer brincar, fazer alguma coisa numa das máquinas dele, e tive um acidente forte, grande, no joelho. Eu queria fazer sem barulho, eu fui lá e mexi e deu um baita corte no joelho. Eu sai pulando, sem chorar, até ir na minha mãe; ela chegou e passou um monte de banho no joelho. Mas assim, eram brincadeiras relacionadas ao trabalho, porque meu pai fazia essas carroças, arados, então sempre foi muito mais nesse sentido, e por incrível que pareça, isso determinou muito o que eu sou hoje, entender bastante sobre roça, ter iniciativa de fazer as coisas. Acho que apesar de eu ter brincado pouco, isso me ajudou muito, facilitou as coisas. Sinceramente, eu não acho difícil fazer as coisas de um modo geral. Pode demorar um pouquinho, mas para mim, tudo é… não vou dizer que tudo é fácil, mas penso de uma forma para não se tornar difícil.
Às vezes eu fico pensando. Eu não sei, até comentei com os meus irmãos. Imagino que há um tempo atrás, algo deve ter acontecido, numa idade que não me lembro hoje, mas que tenha afetado um pouco a minha relação com a minha mãe. Eu me dou superbem com ela, sempre, mas alguma coisa aconteceu, algo que afetou a minha relação com ela, só que eu não sei, porque ela… a nossa relação foi… eu diria assim, até os 14, 15 anos, nossa relação foi bem complicada, e não é que eu fosse uma pessoa arteira, não é isso. Eu acho que talvez deva ter visto alguma coisa que não a agradou, porque ela sempre me batia muito. Realmente parou depois que eu cresci, ela viu que não podia mais fazer tal coisa. Eu sempre achava assim, que ela sempre fazia alguma coisa comigo e por quê? Eu não fiz nada. Complicado.
Nunca vou me esquecer, a mãe costurava e eu fui mexer na máquina de costura dela, e isso, com certeza, eu tinha uns quatro anos de idade. Fui mexer na máquina de costura e a agulha atravessou a unha assim e voltou (risos). Me lembro de coisas boas também. Eu era pequeninho e minha vó por parte de pai morava próximo de nós, eu adorava ir na casa dela pra tomar sopa. Eu adorava sopa, então, eu chegava na escada, e lembro disso, uma vez, já na escada, meio que subindo com as mãos, ajudando, eu dizia pra vó: “Sopa, vó. Sopa, vó”, em qualquer horário do dia (risos).
Durante a adolescência, acho que todos os jovens querem se tornar... não vou dizer rebeldes, mas autossuficientes, no sentido econômico, e como eu falei, toda nossa vida foi bem difícil, apesar de que o pai sempre… naquela época, só ele trabalhava fora, no caso, na roça ou fazendo as
carroças dele, mas ele tinha que sustentar toda família, né? Então, eu acho que chegou um momento da gente querer saltar fora, não no sentido de saltar fora, mas querer talvez ajudar, querer ir trabalhar. Eu consegui começar a trabalhar com 14 anos, hoje, tem que ter mais de 18, não é? Uma das primeiras coisas que eu fiz fora… aliás, quando nós saímos de Vicente Dutra e nos mudamos para Frederico Westphalen, também próximo, norte do Rio Grande do Sul, aí eu comecei a fazer horta, ao redor de casa, e o que a gente colhia já saía vendendo nas casas. Nós só ficamos um ano nessa cidade e nos mudamos para Panambi, um município mais… não era grande, era pequena a cidade, hoje tem uns 40 mil habitantes, mas na época era uma das cidades mais desenvolvidas do Rio Grande do Sul, questão de indústria. Foi em 1981, eu tinha uns 12 anos de idade mais ou menos.
Nessa época ainda estávamos vivendo uma Ditadura Militar, mas não sei por que cargas d’água, meu pai, minha mãe, pelo que eu me lembro, nunca conversaram sobre a situação econômica do país... Não me lembro de ter escutado alguma coisa nesse sentido, mas desde pequeno, eu particularmente, sentia as dificuldades que as pessoas estavam, que a nossa família estava, e uma coisa que é interessante, quando eu era pequeno, eu pensava: “quando eu fizer 18 anos, quero ir para o quartel e quero chegar a ser General para um dia ser presidente do Brasil para mudar essa situação que nós estamos!” Sei lá, quase 15, 16 anos da minha vida foram no período da Ditadura Militar.
Então, na adolescência, eu comecei a frequentar a Pastoral da Juventude Popular, lá em Panambi, foi bem numa época que ainda daria para dizer assim que os movimentos sociais, de um modo geral, estavam em expansão. Ali em 85, 86, 87, esse período foi fundamental para a minha vida, para a minha construção, porque foi nesse período que eu entendi melhor esses problemas sociais. Eu dou graças a Deus por ter vivido um período relativamente grande dentro da Igreja Católica, tive uma participação ativa por um período, até final de 1999. Depois acabei me distanciando porque eu acho que o desenvolvimento do meu conhecimento foi muito acelerado num período, uns três anos, mais ou menos, e eu comecei a entender o funcionamento interno, principalmente lá naquela cidade em que eu estava, Panambi, onde a gente chegou à conclusão de que quem dominava a Igreja, apesar de que na época, tinham uns freis muito bons, e de repente eles foram substituídos, por uma imposição de empresários, todo mundo sabe disso, e que eles saíram e retrocedeu tudo, a Pastoral da Juventude, que era um dos municípios, que era o maior do Estado, onde conseguia realmente chamar a juventude, acabou… sumiu isso hoje.
Nós nos mudamos para muitas cidades, eu rodei bastante e tive reprovação, uma, duas vezes, principalmente por, acredito, ter que trocar de cidade. Acho que foram umas três ou quatro reprovações, não me lembro. A gente ficava um ano numa cidade e já ia para outra, reiniciar tudo de novo, e até mesmo quando você sai de uma cidadezinha relativamente pequena e vai para uma outra igual, como foi Frederico Westphalen, já é totalmente diferente. O meu pai trabalhou esse um ano em que eu estudei em colégio particular, lá em Frederico Westphalen, meu pai trabalhava lá, ia fazer o serviço de jardinagem para pagar a mensalidade, no caso. Mas foi aí, o primeiro ano em que eu bombei, foi bem puxado, era bem puxado o processo de educação nessa escola. Então…
Mas em 85, em Panambi, eu estava na sexta série, eu comecei a fazer… eu fiz dois anos de Senai Mecânica Geral e terminei em 89, em seguida eu comecei a fazer um curso técnico em Mecânica, mas fiquei só um ano, porque no início de 90, janeiro de 1990, eu fui convidado para participar do Movimento Sem Terra. Aí eu fui, larguei tudo, literalmente. Um amigo me convidou num dia e no outro dia eu me mandei, peguei a minha mochila, minhas roupas e fui para um acampamento em Cruz Alta.
Eu fiquei uns dois anos nesse trabalho dentro do Movimento e eu acho que foi um momento de formação, eu acho que foi também… após esse período em que eu estava na Pastoral da Juventude, foi uma formação também teórica, porque eu comecei a ler muito, e teve um amigo meu - tive muita sorte de ter conhecido essa pessoa em Cruz Alta - que ele me orientava nesse processo: “Primeiro, você vai ler esse livro, leia aquele…”, e para mim, para entender bem como é que deu todo esse processo de concentração da terra, origem do estado, família, todas essas coisas, foi muito bom. Então, li muito, por um ano e meio ali, nesse primeiro período em que eu estava dentro do Movimento, para mim foi fundamental. Eu acho que eu aprendi muito mais do que quando eu fiz… cursei, mas não cheguei a concluir Filosofia, mas esse um ano e meio, com a orientação do meu amigo, eu acho que eu aprendi muito mais do que dentro da faculdade. Foi algo direcionado e acho que fundamental.
O curso de Filosofia entrou na minha vida bem depois, foi em 2007. Mas nesse período em que eu estava no Movimento, eu entrei em 1990, eu ajudei na organização interna de acampamentos, organização do acampamento antes das famílias irem para o acampamento, que a gente chamava isso do processo de articulação, que é ir atrás de pessoas que voltariam para a terra. A gente fazia várias reuniões, não era necessariamente um trabalho de convencimento, mas de esclarecimento do quê que seria a reforma agrária, porque já existe uma lei de reforma agrária muito antiga que dá essa possibilidade de as pessoas voltarem para a terra.
Então, a gente fazia esse trabalho de conversa com essas pessoas, famílias, por alguns meses, e também como e de que maneira se daria a organização dentro do acampamento. Quando eu fui acampar, o acampamento tinha em torno de cinco mil pessoas, cinco mil pessoas era maior do que a cidade onde eu nasci, então, tinha toda uma estrutura organizativa, quando uma família ia para o acampamento, ela já tinha que saber que tinha uma estrutura lhe aguardando, e ela já ia sabendo se ia participar da equipe de educação, da higiene, saúde, segurança, religião, esportes… As pessoas já iam preparadas. E quando chegava lá, já tinha a equipe que sabia que ia ter que descobrir o melhor local para fazer os banheiros, onde é que iam ter os núcleos, e, geralmente, os núcleos eram por regiões, de onde as pessoas vieram, aglomeravam famílias de determinada região, cinco, seis municípios, o pessoal se concentrava em um núcleo. Nosso acampamento tinha 50 e poucos núcleos. Você aprendia um jeito novo de conviver, de se relacionar, de autogestão daquela minicidade.
Dentro do acampamento também, é incrível, o dia que você chega no acampamento, você fica… parece assim, um vazio dentro de você, vê uma coisa totalmente diferente, você fica pensando: será que eu vou aguentar ficar aqui? Porque, realmente, é diferente do cotidiano que você tinha antes, né? E para muitas ou grande parte das pessoas que vão acampar, que vão apara a luta, para a terra, elas só vão porque é a melhor alternativa que elas têm. Ela vai, com certeza, estar melhor num acampamento do que quando ela estava em casa. No mínimo ela vai ter três refeições por dia, o filho dela, se for pequeno, vai estudar, nem que seja com as nossas escolas itinerantes, então, apesar de estar debaixo de uma lona preta, ela vai ter o mínimo de qualidade de vida e perspectivas, ela vai voltar a sonhar. Então acho que é isso, quando eu fui para o Movimento, eu fui nessa expectativa de voltar a sonhar. O Movimento hoje, na verdade desde aquela época, consegue proporcionar, vamos dizer assim: O Altamir tem condições de ser dirigente, o Altamir vai ajudar a coordenar tal equipe ou vai estudar, isso é uma coisa que é interessantíssima dentro do Movimento, a possibilidade de você estudar, seja terminar um ensino médio ou um ensino superior. Na minha época, não tinha isso ainda, em 1990, tinham os cursos internos, mas a área de formação política, filosófica, nossos formadores eram os nossos colegas mesmo, isso, hoje, eu tenho uma certa crítica sobre a forma como isso acontece, que é totalmente diferente.
De qualquer maneira, eu, sinceramente, dou muitas graças por ter ido para o Movimento Sem Terra já naquela época, e numa época em que eu ainda era jovem, sem medo. Os meus pais ficaram com muito medo e era numa época muito mais complicada, época em que a repressão era maior, a violência por parte do Estado... ela sempre foi grande, e atua de formas diferentes. Eu diria que foi pior porque talvez ela não esteja batendo muito como antes, mas a forma mais ideológica, nos meios de comunicação, acho que essa é uma das grandes violências que nos controla de um modo geral, a sociedade de um modo geral, para não ir para rua, não ir lutar por um pedaço de terra.
Eu nasci na roça, minha mãe, meu pai, todos eles nasceram e se criaram na roça. Eu sempre tive essa vontade de ser agricultor, mesmo no período em que moramos na cidade, eu sempre lidava com horta, lidei com horta, ia vender na rua as coisas mesmo. Quando eu morava na cidade, com os meus 13, 14 anos, eu ia ajudar a limpar soja naquela época, não se usava o hand up, então tinha um grupo de amigos jovens, a gente era contratado e ia limpar soja. Então, eu sempre… quando eu comecei a trabalhar, em vez de por exemplo, uma tia me questionou uma vez: “Por que você vem para cá? Por que não vai para a praia com os seus amigos?”; eu sempre ia visitar um tio que morava na roça, chegava na época das férias escolares, no outro dia, eu ia para o meu tio. Então, eu sempre tive vontade de voltar para a roça. A gente vai assumindo algumas tarefas e essas tarefas, às vezes, podem te engolir ou você pode tomar gosto; eu acho que todas as tarefas nos movimentos populares de um modo geral, especialmente, dentro do Movimento Sem Terra, elas são muito importantes, mas eu acho que chega um momento em que a gente quer fazer aquilo que mais gosta, e no meu caso, é trabalhar na terra.
Quando eu vim para São Paulo no final de 2012, eu vim para uma tarefa que era ajudar na comercialização dos produtos das nossas cooperativas e assentamentos para alimentação escolar. Eu esperava ficar só uns dois anos nessa tarefa e já estou há seis anos. E é uma tarefa muito cansativa! Eu não me sinto um vendedor, nem um representante comercial, eu me sinto um articulador, uma pessoa que vai facilitar o escoamento da produção dos nossos assentados. Então, se o meu trabalho não tá rendendo, eu fico muito preocupado, muito estressado, na verdade, não é porque eu tenho metas, eu sempre disse isso, eu não quero metas, e eu acho que eu tenho que entender que a gente tem que ajudar a escoar a produção dos nossos assentados. Eu comecei ajudando a comercialização do arroz orgânico dos assentamentos do Rio Grande do Sul, aí começou o leite em pó, aí suco de uva também. Feijão… os processos de comercialização aqui em São Paulo, no Estado de São Paulo, Rio, Minas, Goiás, Bahia foram se expandindo cada vez mais, e nossas cooperativas também… é interessante que elas também estão crescendo. E com isso, nosso escritório já tem várias pessoas trabalhando. Quando eu comecei, eu vim para substituir uma pessoa que tinha iniciado esse trabalho, eu comecei sozinho, hoje, eu tenho sete pessoas trabalhando só nessa atividade.
Mas eu estou parando, do ano passado para cá, eu trabalho mais ou menos uma semana por mês com as atividades, para acompanhar mais algumas prefeituras principais e construir uma relação mais afetiva, eu diria assim, não é uma relação de vendedor, se torna, às vezes, até uma relação de amizade com algumas entidades ou prefeituras. Eu ajudei, vi as nossas cooperativas crescerem bastante e eu vi a produção deles aumentar, senti todas as dificuldades, os momentos, seja quando o governo libera ou diminui o imposto da importação do arroz, o imposto da importação do leite em pó, afeta diretamente as nossas cooperativas e afeta o nosso estado de espirito, também. Então, hoje eu tô tendo que fazer um pouco de terapia para poder melhorar, porque realmente, a gente chega a um nível de estresse muito grande, muita dor física. Eu achava que estava com algum problema de saúde e era só estresse mesmo.
Quando eu entrei no Movimento em 1990, eu fiz parte da primeira equipe para ajudar nas cooperativas dentro do MST. Começou a surgir uns primeiros grupos coletivos para trabalhar na terra de maneira totalmente coletiva na região de Cruz Alta, no Rio Grande do Sul, em 1989. Depois, em 91, 92, surgiram novas cooperativas em novos assentamentos na grande Porto Alegre; até 95 ali era a regional mais pobre do Rio Grande do Sul das regionais dos assentamentos. Então, quando começou em 97, por ali, a forma de produção do arroz era convencional, os nossos assentados que produziam arroz convencional estavam estagnados. Na produção convencional é assim, ano após ano, vai diminuindo a produção e vai aumentando os custos. Chegou um momento em que todos estavam quebrados, e na região de Porto Alegre, e na parte sul do Rio Grande do Sul, você só consegue plantar arroz, raras são as áreas onde você vai conseguir plantar um pouco de mandioca, um pouco de milho, e têm os canos para a horta, porque é muita planície. Então, o pessoal estava falindo, literalmente. E deu a casualidade deles terem a brilhante ideia de começar a produzir arroz orgânico. Atualmente, a regional mais bem desenvolvida é no Rio Grande do Sul, a regional dos assentados. Ali tem em torno de duas mil famílias que produzem arroz, só numa das cooperativas, e quando eu comecei em 2011 a ajudar mais diretamente essa cooperativa do arroz, lá de Eldorado do Sul, a COTAP no processo de comercialização, para eles era uma novidade porque não tinham pessoas… Eu também não era uma pessoa qualificada, mas já trabalhava com articulação para venda, para alimentação escolar, então quando eu fui para Porto Alegre, fui fazer esse trabalho para a cooperativa e um ano depois que me falaram: “Você vai para São Paulo e vai ajudar lá”. Então, interessante, eu tive a oportunidade de acompanhar todo esse avanço da produção dentro dos nossos assentamentos. Eu me recordo uma vez em que o Movimento teve uma campanha a nível nacional para os nossos assentados diversificarem a produção e daí o que aconteceu? Os nossos assentados até conseguiram, muitos conseguiram isso, diversificar a produção, mas eles não tinham para onde vender. Então, por exemplo, se você tem soja, milho, trigo, que no caso do Rio Grande do Sul, você vai ter de vender, talvez o preço não seja legal, mas quando você diversifica a produção, e foi bem num período em que economicamente, o Brasil… a população de um modo geral, não estava nada bem, não conseguia consumir muito. E hoje já é o contrário, você pode diversificar o que for possível que você vai vender. É isso que o movimento está conseguindo fazer, montar uma organização em cadeias produtivas, que no caso, uma das grandes cadeias produtivas do Movimento foi o arroz, aí veio a cadeia produtiva do leite em pó, hoje também são milhares de famílias, mas
vou falar mais pelo Rio Grande do Sul, que eu conheço melhor, em que as nossas cooperativas se estruturaram para fazer o recolhimento, desde a organização da produção, manejo do gado, das vacas leiteiras, assistência técnica, tudo, o recolhimento do leite, a industrialização e comercialização. O Movimento domina principalmente a cadeia produtiva do arroz, o Movimento Sem Terra controla 100%, desde a produção da semente, armazenagem, classificação do grão, processo de preparo do solo, assistência técnica, armazenagem, industrialização e transporte, é 100% nosso. E hoje, o Movimento Sem Terra detém a tecnologia, todo conhecimento do caso da produção do arroz orgânico, nenhum outro tem da forma que nós controlamos hoje. Acho que daria para tirar o chapéu para o Movimento, o que ele conseguiu fazer, nem o grande Agronegócio hoje, ele não detém esse conhecimento. Por exemplo, hoje, nós também estamos na produção de suco de uva, o Movimento também tem a agroindústria mais moderna da América Latina e vai levar anos para outros chegarem igual a nós. O Movimento também controla assistência técnica partindo também para a produção exclusiva de uvas orgânicas, onde já boa parte já é.
E no caso do leite em pó, voltando, eu acho que é uma coisa muito interessante, eu nunca vou me esquecer uma vez, há uns sete, oito anos atrás... tem uma rota de recolhimento de leite nos assentamentos lá no interior do Rio Grande do Sul, se eu não me engano, em Alegrete, que é uma das rotas que mais dá prejuízo a nível mensal. Na época, dava em torno de 30 mil reais mensais só aquela rota, mas a cooperativa, essa COTAP, ela continuou recolhendo leite, porque era a única alternativa de renda daquelas pessoas, pois os assentamentos são muito distantes das cidades, e por 70, 80 quilômetros de Alegrete e hoje, se eu não me engano, é a segunda cidade em extensão territorial no brasil. Então, os assentamentos ficam muito longe das cidades. As empresas tradicionais que recolhem leite, elas não vão fazer essas rotas, então o Movimento não pode fazer isso: “Não vou recolher o leite lá daquele assentamento”, porque certamente seria muito complicado. Também acho que por questões ideológicas, realmente ajudar os assentados, essa organização interna é fundamental.
Eu sempre pensei comigo mesmo: “O quê que eu vou fazer para contribuir para a mudança?”. Tem muitas pessoas que talvez vão pensar: “Vou ser candidato a alguma coisa”. Quando eu era pequeno, eu até pensei dessa forma, mas cheguei à conclusão de que eu tenho que ter ações diárias, seja como agricultor, produzindo de forma agroecológica e também realizando uma forma de comercialização diferente. E eu pensei: “Eu me encaixo nisso, falo muito, gosto de conversar muito, consigo me relacionar com uma certa facilidade com certas pessoas”. Então isso foi muito bom, foi fácil fazer esse trabalho de comercialização. O lado positivo disso é que você viaja muito, conhece muitos lugares, o que é bom, tem muitas experiências. Eu geralmente quando faço alguma viagem longa, eu gosto de ir visitar os assentamentos, têm assentamentos em todo o Brasil, e um dos melhores lugares, o que eu mais adorei ir foi em Sobradinho, na Bahia. Fui, coincidentemente, bem no dia em que a seleção brasileira ia jogar, eu nunca fui muito de futebol, então eu pensei: “Vou deixar os meus colegas irem e vou pegar o carro e vou conhecer uns assentamentos”. Que experiência maravilhosa foi conhecer as pessoas totalmente diferentes, daria para dizer assim, do Rio Grande do Sul. E uma coisa que eu aprendi que é viajando que a gente muda os conceitos e acaba com alguns preconceitos. Eu achei muito bom ter ido a Bahia e ter conhecido as pessoas e como realmente elas trabalham lá e com as dificuldades. Acho que isso que é interessante.
Eu gosto de fazer isso e também de mostrar para essas pessoas que têm possibilidades para elas também, se elas produzirem, elas vão conseguir comercializar. E eu sempre vi e deu certo e tá melhorando para as nossas cooperativas esse acesso ao PNAE, a alimentação escolar foi decisiva para boa parte das nossas cooperativas, hoje, o arroz, eu diria que 60% dele vai para o PNAE. Agora acabou a formação de estoque através da CONAB, mas o arroz nosso, nossa cooperativa ia para tribos indígenas, Mato Grosso, Amazônia, então hoje, sinceramente, mais ou menos um ano para cá, que eu saiba, o governo já não comprou mais, que era boa parte que se produzia ainda por formação de estoque e aí, foi reduzindo, reduzindo e agora acabou e então, nós tivemos que aumentar a equipe de representantes comerciais das nossas cooperativas para poder canalizar toda essa produção, no caso, para o PNAE ou exportação que também já está aumentando bastante, principalmente, Venezuela, Oriente Médio, até mesmo a China está querendo comprar nosso arroz orgânico, que hoje é o maior produtor de arroz do mundo.
Existe uma contradição muito grande que eu observei agora com essas mudanças políticas que é interessante, o Estado mais à direita, eles são muito legalistas, eles fazem as coisas acontecerem, então, hoje as compras para alimentação escolar são muito maiores, é incrível. Nós nunca conseguimos vender, por exemplo, para o governo do Estado de São Paulo, agora, foi assinado o contrato, faz uns 15 dias de venda de 2.700 mil quilos de arroz. Então, várias prefeituras que não compravam estão tendo que comprar senão, tem que devolver o dinheiro para o governo federal, tem algumas que a gente sabe que enrolam e não compram, o caso aqui de São José dos Campos, os caras são muito complicados, mas esperamos que continuem, a alimentação escolar hoje é a nosso principal local de escoamento da produção. Seja para o arroz, leite em pó, agora o nosso pessoal tá se organizando para a cadeia produtiva do feijão, então vão ter uma demanda boa para comercialização. O café, que começamos no ano passado, já se organizou a cadeia produtiva do café e eles chegaram a um nível para poder exportá-lo, é uma qualidade muito boa, nosso café está indo principalmente para Forças Armadas: Marinha, Exército. Aeronáutica, universidades federais, que são os que mais compram.
Eu fico muito feliz por se tratar do trabalho da nossa equipe. E lembrando que a nossa equipe conseguiu ser o que é hoje graças também a uma outra cooperativa, a Mondragón, que é do País Basco, que é a maior
cooperativa do mundo, e eles nos dão assessoria para entender os processos, procedimentos, botar no papel, o que a gente no início era muito… vou dizer, amador. Nós tínhamos muita vontade de fazer as coisas, de fazer as coisas acontecerem, mas não tínhamos procedimentos, estava muito dentro da minha cabeça e talvez, de algumas cooperativas. Com a colaboração deles, foram mais de dois anos de assessoria deles, conseguimos qualificar nosso trabalho, e muito. A Mondragón para nós… e não só na área da comercialização, eles ajudaram também a estruturar lá nas cooperativas, guiar os procedimentos lá na cooperativa, porque na cooperativa, os caras acham que é só botar o arroz em cima do caminhão, e não é isso, tem o antes e o depois. É uma série de procedimentos que tem que ser levados em consideração. E esse trabalho ajudou a qualificar várias cooperativas nossas. Acredito que essa melhora na nossa qualificação ajudou a expandir muito as nossas vendas. E consequentemente, os nossos assentados chegam… eu sei que em um ano, nós quase dobramos a área de produção orgânico. Nós estamos em 2019, se eu não me engano, de 2017 para 2018 dobrou a produção, nós estávamos em torno de 12 mil toneladas de arroz orgânico, pulou para… mais do que dobrou, 28 mil toneladas de arroz orgânico. Então, o reflexo do nosso trabalho… até esse dia, o nosso colega lá na cooperativa estava falando que dá muito ânimo para os assentados. A nossa cooperativa, diferente das cooperativas tradicionais, ela paga mais pelo arroz produzido para os assentados, porque com certeza, ela ganha mais quando vende, ela tem um valor maior quando vende, então, nosso foco hoje não é vender para o mercado convencional, porque vender para o mercado convencional, você entrou na mesma bola, no mesmo trilho e você vai fortalecer o mercado convencional. Eu acho que esse é um dos nossos trabalhos, ter esse entendimento de que realmente nós temos que construir uma alternativa de comercialização e não é você se voltando para o mercado convencional. O PNAE é uma delas.
Desde que eu vim para São Paulo, eu tentei dar muita ênfase, apesar de serem pequenas vendas, mas as vendas para os grupos de consumo que são muitos que tem no Brasil, então tinha um grupo lá em Fortaleza, no Piauí, Goiânia, Pará, então assim, era pouca coisa, mas eu corria atrás de transportadora, pegava o carro, às vezes cabia tudo no carro, a gente levava para a transportadora e ia lá para Belém do Pará. E vai até hoje ainda cada vez mais. Eu acho que tem uma forma de fazer com que os nossos alimentos cheguem direto ao consumidor final. Eu acho que isso é fundamental. Eu acho que o Movimento Sem Terra, ele ainda tem que avançar bastante nisso e, principalmente, com que os nossos assentados consumam o nosso arroz orgânico.
Quando começamos a comercializar para uma prefeitura nova, por exemplo, Goiânia, se você mora lá em Goiânia, vai facilitar, encomenda dez quilos de arroz, a cooperativa vai mandar junto no caminhão quando vai fazer essa entrega lá, ou Brasília, qualquer outro lugar. Então, eu sempre procurei fomentar isso na cooperativa. Para ela valorizar isso. Porque com o tempo, essas pessoas, esses grupos de consumo, eles são divulgadores, são a melhor forma de divulgar nossa produção, toda a nossa história de luta, porque quando vai um pacote de arroz, vai uma história aí de 30 anos, ou mais. Então, o que não é apenas uma safra e sim, desde que quando aquela família foi acampar, quando ela estava produzindo arroz convencional, estava indo à falência, estava quebrando e que ela mudou e então…
Eu nunca fui muito de planejar, digamos, o futuro: “Eu quero fazer isso esse ano, ano que vem vou fazer isso e daqui dez anos quero ter isso”, nunca fui, eu sempre pensei positivo e que vai tudo dar certo, e que nada me faltará. Então, quando eu vim para São Paulo, vim na expectativa realmente de conhecer mais e contribuir no processo de comercialização, mas foi no segundo ano já, eu pensei assim: “Estou gostando de ficar por aqui, vou ver se fico realmente por aqui”. Aí, eu participei de um acampamento que teve aqui no Município de
Lagoinha e fiquei lá acampado também, apesar de que eu tinha sido assentado no Rio Grande do Sul, em Santa Maria, Rio Grande do Sul, mas eu vim para cá, mesmo estando assentado, eu fui liberado para fazer esse trabalho, daí, eu fiquei lá acampado e continuava fazendo o trabalho, minhas viagens, finais de semana, geralmente eu estava em São Paulo, eu ia para o acampamento. Um dia, quando o INCRA foi lá para fazer o nosso cadastro, eu fui conversando com o cara do INCRA, e eu disse: “Olha, cara, eu já sou assentado no Rio Grande do Sul, mas eu quero outro lote aqui”, “Olha, você vai ter que ir lá no INCRA em São Paulo, porque você não tem necessidade de fazer cadastro, tua situação é outra”. Uns dias depois, eu fui no INCRA e o cara lá, um dos diretores do INCRA no desenrolar da conversa disse assim: “Tem um gaúcho em São José dos Campos que quer voltar para o Rio Grande do Sul”, aí o superintendente do INCRA concordou que nós fizéssemos a troca de lotes, a permuta; no outro dia eu já vim para São José dos Campos e fui lá conversar com essa pessoa. isso foi numa terça-feira, e no sábado, eu já estava me mudando para esse lote, no assentamento Nova Esperança.
Então, foi uma coisa muito rápida, muita sorte também e eu diria que, sinceramente, eu estou num dos melhores lugares do Brasil para se trabalhar na agricultura, principalmente por causa do clima, não é muito quente, não é muito frio, tanto que a brachiaria tá gostando mais daqui do que na África, brachiaria é bonitinha o ano inteiro. Você vai para o interior de São Paulo, a brachiaria já não consegue sobreviver, vai para Goiás, Minas, também não, e aqui, no Vale do Paraíba é uma maravilha. Eu diria que é um dos melhores lugares do Brasil, com certeza. E eu sempre, desde quando eu vim para São Paulo, eu sempre gostei muito dos grupos de consumo. E sempre que a gente fazia as entregas, às vezes, fazia algumas entregas além da venda, a gente ia lá, conhecia alguns grupos. E quando eu já estava assentado aqui em São José, eu conheci uma pessoa de Santo André que eles tinham num grupo de consumo, e era um grupo de consumo totalmente diferente, que é o CSA – Comunidade que Sustenta a Agricultura. E eu conversando, um dia eles falaram: “Altamir, você não quer produzir para nós?”, aí que eu fui conhecer melhor o CSA, e nós aceitamos o desafio e começamos a produzir para esse grupo de consumo. No início, até foi um pouco engraçado, porque com o CSA é uma situação totalmente diferente de você fazer feira ou entrega, por exemplo, de cesta de produtos, porque como o CSA vai te financiar, você vai começar do zero, então os dois primeiros meses, três meses, você não tem nada para entregar, mas eles estão te financiando. Então, como às vezes, demora para cair a ficha, né, como realmente funciona um grupo de CSA. Mas o início foi interessante pra gente realmente entender que você tem que começar a produzir, vai plantar, você já começa a receber no primeiro mês, apesar de você não entregar nada. Eu fiquei um ano e pouco com esse grupo de CSA lá, só que para nós, ficava um pouco longe para fazer as entregas, nós fazíamos entregas quinzenais lá e ida e volta dá 320 quilômetros, então deu uma casualidade que uma vez eu conheci uma pessoa aqui em São José dos Campos, que ela queria comprar uns alimentos para uma pequena creche, frutas principalmente, só que em boa parte dos nossos assentamentos, nós temos essa dificuldade de produção de frutas, de um tempinho pra cá, está começando a melhorar, então a conversa não rolou muito nessa linha da comercialização para essa creche, pequena escola aí. E daí ela me perguntou: “O que você faz no assentamento? Como é que você comercializa?”, eu falei que eu estava entregando para esse grupo de CSA de Santo André, eu coloquei mais ou menos o funcionamento do CSA, daí a Fernanda disse assim: “Vamos criar um CSA aqui em São José” (risos). Isso que é interessante do grupo de CSA, você tem que ter essa sorte muito grande de conhecer alguém que seja esse estopim, que vai fazer a coisa andar. Apesar de que outras pessoas anteriormente quiseram criar o CSA, mas não ia, não ia, e a Fernanda Moura, ela foi essa pessoa, e em poucos meses, nós já estávamos entregando os alimentos para esse grupo de CSA. Começou em torno de 20 pessoas, coagricultores, e assim eu parei de entregar em Santo André, passamos para um outro agricultor de um outro assentamento mais próximo, lá da grande São Paulo.
Então começamos aqui, começamos com 20, hoje nós estamos com 34 coagricultores, e só para entender um pouco o funcionamento do CSA, a gente no caso, é escolhido um agricultor e a gente elabora um orçamento, esse orçamento deu em torno de 70 mil reais anual, e nesse orçamento a gente inclui tudo que a gente vai gastar em um ano para produzir e para entregar para eles. A princípio, numa determinada área, digamos, um hectare de terra. Esse orçamento foi transformado em cotas, hoje é 170 reais, mensalmente, até o dia 20 todos os coagricultores fazem o deposito, e a gente faz uma entrega semanal de alimentos, e com certeza, alimentos da época sempre, e daí, nesse grupo de CSA tem pessoas que são responsáveis pelo financeiro, eles controlam a nossa conta bancaria, eles têm senha, têm tudo, acesso total e controlam quem não pagou, tem uma pessoa responsável para ver porque a pessoa não pagou, se está com algum problema, alguma coisa assim. Este é o grupo Coração, que nós chamamos, que ajuda a pensar o todo do nosso grupo CSA, de criar equipes de comunicação, ou também equipes de trabalho no sentido dos mutirões. Hoje, nós temos os trabalhos tipo, nas quartas-feiras de manhã e sábados dia todo, sempre tem gente lá ajudando a limpar canteiro, plantar mudinhas, ajudar a colher, preparar ali para a entrega e também, daí, tem o mutirão que vai todo mundo. Nessas quartas e sábados, são pessoas que se disponibilizam: uma vez por mês no sábado eu vou lá. Mas tem mais o mutirão.
É uma mudança totalmente diferente esse processo, porque a pessoa em primeiro lugar, não sabe o que ela vai receber de alimentos no domingo, porque às vezes, até nem eu não sei, principalmente esse ano, esse verão tá sendo… nós estamos sendo muito castigados, muita chuva, períodos do dia muito nublados, então dificulta muito a nossa produção. A nossa sorte, agora, são as bananas, está tendo banana, nós podíamos ter muito mais banana, dois anos e meio atrás, nós já tínhamos plantado em torno de 500 pés de banana, estávamos implantando o sistema agroflorestal, logo após duas geadas, foi um dos anos mais frios desde que cheguei em São Paulo, deu duas geadas, daí como tem muita brachiaria, brachiaria é muito bonitinha sequinha, muito vento, alguém tocou fogo na beira da estrada e queimou tudo. Não teve como ficar nem ao redor de casa. A gente teve que, literalmente, iniciar do zero. Dois anos e meio atrás, replantar, começar a plantar tudo. E a gente começou a fazer um pouco diferente, plantar módulos de mais ou menos 500 metros quadrados; a gente tá no terceiro modulo agora, por incrível que pareça, apesar de aparentemente ser pequeno, um modulo de 500 metros quadrados, no primeiro ano nós conseguimos tirar uma renda de dois mil reais mensais nesses 500 metros quadrados. Então hoje, como ele já está mais avançado, por exemplo, esse primeiro modulo, nós conseguimos só plantar no meio do sistema agroflorestal inhame, coisas que gostam mais de sombra ou açafrão, e agora esse ano já começou com as bananas, dois módulos já estão produzindo bananas. O período de inverno é o melhor período pra nós produzirmos aqui, apesar de que, como no ano passado, ficou se eu não me engano, quatro meses sem chover, mas foi excelente para a produção, nós temos muita sorte em ter água para irrigação, nós conseguimos irrigar, então a produção no inverno é muito boa aqui.
Sinceramente, eu me sinto um agricultor, eu e a minha companheira Thais, de uma certa forma, tranquilos, por ter esse grupo CSA. Isso que eu digo sempre, tem que pensar positivo, fazer as coisas com muita vontade, se você fizer com pouca vontade, tem a grande probabilidade de você se machucar, machucar fisicamente ou machucar o coração. Eu sempre fui muito positivo e, sinceramente, dou graças por ter conhecido essas pessoas e ter rapidamente criado um círculo de amizade muito grande aqui em São José dos Campos, pessoas maravilhosas, que não apenas querem consumir produtos orgânicos, acho que a maior preocupação delas é a convivência entre elas, essas novas relações, e até mesmo os coagricultores aumentaram, entre eles nesse círculo de amizade, não foi só a minha com eles, mas entre eles também, de entender, por exemplo, uma coagricultura nossa, que nós estamos fazendo uma entrega do nosso grupo de consumo junto com a feira, onde nós começamos a participar nesse ano de 2019, uma feira no Parque Vicentino Aranha, e eu acho que foi muito positivo para as pessoas entenderem: “O Altamir não tá me trazendo salsinha, por que ele não tá me trazendo salsinha?”. Uma coagricultora até foi nas outras bancas ver, daí ela voltou e perguntou: “Altamir, por que que não encontro salsinha?”, e ela foi entender que o clima não está propício nesse ano, nem para quiabo, jiló, que são culturas de verão. Então, as pessoas começaram a entender melhor que ela não está indo só lá em casa hoje, o fato dela acompanhar o processo de comercialização dos outros agricultores, ela entende melhor as nossas dificuldades, e também pelo fato de ir lá em casa ajudar a plantar, elas começam a entender que realmente o clima influência muito e também as faz entender que eu não acho muito esforço físico, eu adoro trabalhar na roça. Vou queimar uma figurinha. Um dos primeiros mutirões que tivemos lá em casa, nós fomos preparar os berços, que não são covas, não estamos enterrando ninguém, são berços para plantar abóboras cabotiá, principalmente, e daí começamos e naquele dia estava muito quente, um dos coagricultores perguntou assim: “Altamir, será que vamos fazer uns 30 berços?” , “Não, cara, nós vamos fazer uns 600 berços”, isso ele perguntou no segundo berço, né? Então, quando uma pessoa sai de uma rotina e vai para uma outra, a gente entende que não é fácil, mesmo para mim, vou fazer alguma outra coisa que é diferente, a gente vai sofrer. Então, eles também começaram a entender melhor esse processo, as dificuldades que tem na produção de modo geral, que a gente tem dificuldade para acessar equipamentos, que são caros, e eu acho que eles veem essa necessidade e com eles eu consigo ter essa facilidade de poder acessar esses equipamentos. Agora, a gente tá nessa expectativa de conseguir comprar uns equipamentos nesses dias, e com certeza, apesar de que será um financiamento particular nosso, mas com certeza, a renda vinda do CSA vai nos ajudar a ter essa tranquilidade de poder pagar o financiamento.
Hoje, eu compreendo a dificuldade que tem a maioria dos nossos assentados, a nível de Brasil, principalmente quanto mais você vai para o norte, a dificuldade é maior ainda, ou assentamentos que às vezes estão longe de grandes centros, tem uma cidade pequenininha. Às vezes, numa cidade pequenininha, tu tens dois mil assentados, vai produzir o que para vender ali? Você vai ter que trabalhar com leite ou grãos, porque assim você consegue vender para indústria, ou você tem uma organização, uma boa organização entre os assentados para criar uma grande cooperativa, e assim você produz feijão e nós temos a cooperativa que vai beneficiar, vai embalar. E uma coisa que eu observei indo para o norte é a dificuldade que as pessoas têm de se associarem. Isso foi induzido na minha avaliação, a não associação, a não cooperação, eu acho que é conversa pra boi dormir essa história: a região sul tem uma origem mais europeia que trouxe o cooperativismo… tudo bem, mas eu acho que ainda mesmo assim, foi induzido: essa região vai receber mais recursos… hoje, é só fazer uma pesquisa no IBGE, se eu não me engano, que em torno de 62% dos recursos para agricultura familiar vai só para três Estados: Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. A Bahia é o Estado que mais tem agricultura familiar e é um dos Estados que menos recebe recursos, que menos tem repasses para agricultura. Então, você começa a notar por aí que realmente não é interesse do Estado brasileiro incentivar associações ou agricultura familiar pelo norte do Brasil. Quando você vai para o interior da Bahia… eu não diria hoje. Hoje está bem mais avançado, mas alguns anos atrás, poucos anos, cinco, seis anos atrás, principalmente em Minas, Goiás, Bahia, a dificuldade era muito grande.
Acho que o entendimento do Movimento, da importância da organização para comercialização, a Feira Nacional da Reforma Agrária, tornou um pouco mais visível os nossos assentamentos e também deu um pouquinho de coragem a mais para os nossos assentados, porque na Feira Nacional da Reforma Agrária vem gente do interior do Pará, vem gente do interior do Maranhão, Goiás, de Rondônia, então isso… a partir da Feira Nacional começaram a ter muitas feiras estaduais da reforma agrária. A última que eu fui em Salvador, eu fiquei assombrado, daria para dizer assim, fiquei muito feliz de ver tanta produção. Mas mesmo assim faltam pessoas para ajudar a articular a comercialização, principalmente para o PNAE, não é difícil esse trabalho, mas temos que ter pessoas, no mínimo teria que ter uma pessoa por regional, dos nossos assentamentos a nível de Brasil, tem os Estados e tem as regionais e são muitas regionais, então tem que ter essas pessoas, e eu acho que um dos papéis, e eu questiono isso entre nós, na comercialização, é de nós virmos a ajudar a construir essas pessoas para fazerem esse trabalho da comercialização, principalmente dos hortifrutis, que nessas cidades menores, com assentamentos mais distantes, elas teriam condições de vender para o PNAE, para alimentação escolar, que seria hoje, uma das melhores possibilidades.
Na minha concepção, feira é uma forma convencional de comercialização, ela existe a mais de dois, três, cinco mil anos. Você não tem a garantia de venda, você vai numa feira e pode voltar com boa parte, ou senão, tudo. Se chover demais durante a feira, tem grande possibilidade de você voltar com todas as coisas para casa. O consumidor não tem esse entendimento de que independente dele ir ou não ir fazer a feira, eu vou plantar. E com o CSA, com os grupos de consumo, as pessoas já têm uma relação mais intima e têm essa preocupação de: o meu agricultor lá, o que ele vai fazer com a produção? Eu acho que os grupos de consumo têm que vivenciar um processo de evolução, ter esse entendimento de que se ele realmente não… vamos dizer assim, ele tem que ajudar a compartilhar os riscos, ele tem que compartilhar os riscos.
Particularmente, não gosto de esconder o que eu penso. Eu sou contra as lojas do MST porque elas estão reproduzindo um modelo convencional de comercialização, claro, divulga a marca com certeza, nossa produção, mostra a nossa porta de entrada, digamos, para os assentamentos, não vou tirar… O problema é que um armazém do campo, uma loja da reforma agrária, no momento em que o nosso alimento entra lá dentro, por exemplo, eu vou levar um alface lá, no mínimo, ele vai ter que botar 40% em cima, porque tem uma carga tributária, tem pessoas que lá trabalham, tem que pagar aluguel… eu acho que é papel dos movimentos sociais, de um modo geral, construir alternativas de comercialização. Então, seria a mesma coisa, por exemplo, e é nossa intensão lá em casa, construir uma casa de farinha, para não dizer agroindústria, uma casa de farinha, onde nós podemos fazer melado, açúcar mascavo, farinha de mandioca, processar outros alimentos, higienização após entrega desses alimentos, mas não é minha intensão registrar essa casa de farinha porque eu tenho certeza de que, também no mínimo 40% do custo total, eu vou ter que passar o custo para um outro ente. Então, não é intensão nossa registrar. Podemos ter limitações no processo de comercialização? Podemos. Mas a princípio, nós não vamos fazer isso. Eu só poderia vir a fazer esse processo de registro a partir do momento em que eu conseguisse trazer mais agricultores assentados: vamos administrar coletivamente, aí tudo bem. Agora, individualmente, não tem como eu fazer isso, porque é muito caro você manter um contador, por exemplo, teria que registrar funcionários, tudo, então a gente… e a gente quer construir parcerias. Em síntese, o papel do movimento social é construir alternativas de comercialização, não reproduzir. Não vou dizer que está de todo errado, porque tem os seus lados positivos, estão lá os alimentos produzidos por assentados ou pela agricultura familiar de um modo geral, mas eu acho que paralelo a isso, teria que focar nessas alternativas. Com certeza, alguns vão ficar bravos comigo (risos).
Atualmente, eu produzo no meu lote com a minha esposa. Tenho filhos, mas eles ficaram no Rio Grande do Sul, eles já são grandinhos, eles moram sozinhos. Minha filha está terminando Pedagogia, ela quer ser professora, acho que o ano que vem, este ano, ela está se formando. E o meu filho trabalha numa indústria e também está fazendo Química. Nenhum seguiu a agricultura familiar, eles têm o círculo de amizades deles, quiseram ficar por lá. Também nunca me questionaram: “Por que você tá aí?”, eu acho que de certa forma, eu tive o apoio deles, né? Com certa frequência eles vêm me visitar ou eu vou lá. Então, muita alegria de ter eles em minha vida, eles são umas pessoas maravilhosas.
Olha, interessante, no Sul, eu vivia também da agricultura, a gente tinha um entendimento bem diferente, vamos dizer assim, você produz para você comer, tem a tua horta, tem todos os seus animais, até as relações são um pouco diferentes do que eu observo aqui. Eu sofri muito quando eu vim para São Paulo nesse sentido, principalmente, quando eu vim para o assentamento. As pessoas… os agricultores aqui não se visitam muito, e lá era a coisa mais natural do mundo no sábado de manhã já estar pronto uma cuca, um bolo, uma calça virada… ia chegar alguém, você não precisava combinar as visitas (risos). Então, eu estranhei muito isso aqui, e até hoje, a relação maior nossa acaba sendo mais com os coagricultores do CSA do que entre nós assentados. Porque as pessoas não gostam de se visitar, é incrível aqui. Eu ainda acabei cedendo, porque eu ia muito visitar alguns assentados, que a gente mais se relacionava e hoje… talvez até por causa da produção aumentando, a gente está se fechando um pouco mais. Mas eu sinto muita falta dessas relações. Tá começando a faltar oxigênio no cérebro.
No meu dia a dia, eu sempre fico me imaginando e falando para a minha esposa: “O que a gente vai fazer realmente?”, “Isso que a gente tá fazendo ajuda a contribuir para mudanças?” Então, procuro focar nisso. Politicamente, a gente está vendo o que está acontecendo no país e no mundo... esse controle por parte dos Estados Unidos... A gente acaba realmente ficando um pouco desorientado, preocupado, e com umas incertezas muito grandes. Eu também fico preocupado porque as outras pessoas, os outros assentados, eu não consigo entender, alguns não conseguem sentir essa realidade, como boa parte da população não consegue sentir essa realidade que nós estamos vivendo. Aí, você conversa com eles e você realmente vê que eles não conseguem entender. Interessante que até nessa semana, conversando com a minha companheira sobre alguns jovens estudantes, a gente frequenta muito esses lugares, universidades, e a
gente acaba escutando as conversas e nesse meio, pelo menos, eu ainda fico bastante animado porque elas não estão falando de qualquer coisa, esses jovens mesmo, tipo 17, 18 anos, estão tendo uma compreensão bem interessante, um posicionamento que era diferente de alguns anos atrás, os jovens de 15, 20 anos atrás eram totalmente diferentes dos de hoje. Eu acho que eles não estão tão alienados.
E eu tive muita sorte na minha juventude de ter vivido um momento em especial que foi esse período da abertura da Ditadura Militar, ali, até 1989, 1990, foi maravilhoso para mim. Eu gostaria de que muitos jovens tivessem vivido um período semelhante, pois com certeza teriam uma concepção de mundo totalmente diferente, uma experiência de luta, que eu acho que é isso que está faltando, não só para população de um modo geral, mas principalmente para os nossos assentados, porque eu acho que é no processo de luta que você se constrói, você entende realmente um Estado opressor, porque toda essa superestrutura que basicamente existe para controlar a população de um modo geral. Eu fico muito na expectativa, e essa ida para o norte ajudou a abrir meus horizontes, de entender, de conhecer pessoas que realmente acreditam que a mudança vai acontecer e que ela é, acho, parte do pensamento positivo, que não basta você só lutar, também tem que ter o pensamento positivo, essa é uma energia muito grande, que ajuda as coisas a fluírem.
São várias coisas que aconteceram na minha vida, eu não esperava, sonhava até, quando eu era pequeno, eu pensava assim: “No máximo, eu vou terminar o primeiro grau, até a oitava série”. Eu pensava que universidade não era para mim. E hoje, a gente vê que as coisas são diferentes, que pode ser muito bom. Então, eu não imaginava estar aqui, foi uma coisa inesperada, muito positiva, muito boa. Gratidão.Recolher