Museu da Pessoa

Escola, minha segunda casa

autoria: Museu da Pessoa personagem: Maria Helena dos Santos Gobçalves

Dez Anos da Fundação Gol de Letra
Entrevista de Maria Helena dos Santos Gonçalves
Entrevistada por Nádia Lopes
São Paulo, 20/06/2009
Realização Museu da Pessoa
Entrevista FGL_HV005
Transcrito por Guilherme Pereira de Carvalho
Revisado por Ligia Furlan

P/1 – Boa tarde. Para começar, eu gostaria que você dissesse seu nome completo, local e data de nascimento.

R – ¬Maria Helena de Santos Gonçalves. Nasci em São Paulo, mesmo.

P/1 – Quando?

R – Em dois de agosto de 1980.

P/1 – Qual o nome dos seus pais?

R – Minha mãe, Ana Maria Cesário Dos Santos Gonçalves, e o meu pai, Antônio Carlos Gonçalves.

P/1 – Você sabe se os seus pais são de São Paulo, mesmo?

R – São. Só que meu pai é do interior de São Paulo, uma cidade chamada Monte Alto.

P/1 – Sua mãe é de São Paulo, mesmo? E eles são daquele lugar que você mora, da Vila...

R – Vila Albertina. Eu que fui pra Vila Rosa. Minha mãe sempre viveu lá, desde que era fazenda mesmo. Onde minha mãe mora, o nome é Fazendinha, porque era uma fazenda lá e tal. Meu pai veio depois, eu não sei exatamente como é que ele foi parar lá (risos).

P/1 – ¬Mas eles se conheceram na Fazendinha?

R – Sim. Eu acho que foi num casamento, que eles se conheceram.

P/1 – Você já perguntou essa historia pra sua mãe?

R – Eu não sei como, minha mãe conhecia uma prima dele, e eles estavam num casamento na Igreja de São Pedro, que é uma igreja que também é tradicional do Tremembé – que é tudo naquela região, né. Fazendinha, Vila Albertina, Tremembé, é tudo vizinho –, eles se conheceram na igreja, minha mãe disse que olhou pro meu pai e falou: “vou casar com esse homem”, e casou mesmo.

P/1 ¬– Gente! Amor a primeira vista...

R – O meu pai, eu não sei o lado da história dele.

P/1 – Puxa, legal isso! E assim, qual é a atividade dos seus pais?

R – Minha mãe é professora também, só que ela é de Ensino Infantil, ela trabalha numa creche. Hoje ela está readaptada, mas sempre trabalhou com educação. O meu pai está aposentado, trabalhou muitos anos numa empresa que tinha lá na Vila Albertina, que era a Univel, que depois foi comprada pela Valeo. Quando foi comprada pela Valeo ele ainda ficou um tempo depois de aposentado, e depois mandaram ele embora.

P/1 – E o que fazia essa empresa?

R – Ela é metalúrgica.

P/1 – E você sabe o que ele fazia na fábrica?

R – Ele era mecânico de manutenção.

P/1 – E aí ele conseguiu se aposentar?

R – Ele se aposentou, ficou um tempo trabalhando ainda na Valeo, depois foi mandado embora e ficou... Agora está parado.

P/1 – E você tem irmãos?

R – Tenho um irmão mais novo.

P/1 – Um só? Só você e ele?

R – Sim.

P/1 – E qual o nome do seu irmão?

R – Paulo Roberto.

P/1 – Quantos anos ele tem?

R – Vinte e quatro.

P/1 – E o que ele faz da vida, o seu irmão?

R – Ele é técnico de som, trabalha com montagens de teatro.

P/1 ¬– E você lembra, assim – agora falando um pouquinho da sua infância mesmo –, da sua casa, quando você era criança? Porque era lá na Vila Albertina, né?

R – É, eu sempre morei na mesma casa, nunca mudei. Eu mudei só depois de adulta.

P/1 – E como era a sua casa? Como você descreveria sua casa?

R ¬– Ah, é uma casa média, que estava sempre em reforma. A minha infância inteira, ficou em reforma. Nos primeiros anos de infância a casa só era construída embaixo, então eu dormia num quarto com meu irmão. O quarto do lado era o quarto da minha mãe e do meu pai, depois tinha uma sala, a cozinha, um banheiro em cada ponta e um quintal, assim, em volta. E com muitas plantas, muitos bichos, meu pai sempre gostou muito de planta e de bicho. A gente criou de tudo.

P/1 – Animais de estimação?

R – É, cachorro e gato, sempre tivemos bastante. Mas também tivemos codorna, passarinho, peixe. Acho que só não tivemos coelho e aqueles camundonguinhos, rato.

P/1 – Hamster?

R – Hamster. Porque a gente sempre teve gato, né? Só. Ah, e a gente teve tartaruga, também (risos).

P/1 – Nossa! E como é que era com a vizinhança? As casas eram próximas? Como era o bairro?

R ¬– Do lado era a casa do meu avô. O meu avô, acho que fundou aquele pedaço. Não sei exatamente como ele comprou lá, ou como ele foi morar lá, mas eu acho que quando ele se mudou pra lá, só tinha a casa dele na rua, naquela rua. Depois...

P/1 – Como era o nome do seu avô?

R – Meu avô se chamava Jacinto, ele já é falecido.

P/1 – E sua avó?

R – Também. A minha avó faleceu antes dele.

P/1 – E qual era o nome da sua avó?

R – Era Maria.

P/1 – Mas você chegou a conviver, então, com seus avós?

R – Com meu avô. Com a minha vó não, porque ela morreu quando eu tinha três anos.

P/1 – E das histórias que o seu avô contava, ele contava histórias ali da região pra você?

R – Quem contava mais era a minha mãe. Que não tinha água encanada na infância dela, que ela pegava água do poço; era bem rural, mesmo. Onde hoje é o McDonald’s, lá no cruzamento da Maria Amália com a Cantareira – que é bem urbanizado, já, né –, ela morava numa casa que ela via a boiada passar, via cavalo, era bem rural mesmo, bem rústico.

P/1 – Quando você era criança, já estava mais urbanizado?

R – Sim, já estava mais urbanizado, asfaltado (risos), água encanada, tudo bonitinho.

P/1 – E ainda quando era criança, como era o dia-a-dia na sua casa, como era o cotidiano? Seu pai saia pra trabalhar, sua mãe? Como era isso?

R – Ah, acho que era um cotidiano normal. Acho que meu pai saía primeiro. É, eu estudei um bom tempo de manhã, então eu acordava cedinho também, me arrumava, ia pra escola. Tinha um amiguinho que morava perto, que passava na minha casa, me pegava, a gente caminhava e ia pra casa de uma outra coleguinha, pegava essa coleguinha e ia pra escola. No tempo que eu já era um pouquinho maior pra ir pra escola a pé, antes eu ia de perua, de ônibus escolar.

P/1 – E a sua mãe? Ela trabalhava também... Assim, saía cedinho?

R – Minha mãe sempre trabalhou meio período. Teve épocas que eu lembro que eu ia trabalhar com ela. Acho que eu estudava, por exemplo, de manhã, e ia pra escola onde ela estava dando aula à tarde. Ficava, passava à tarde na escola com ela. Teve épocas que, quando eu era criança, bem criança mesmo, eu sempre estava na escola onde ela estava dando aula.

P/1 – Você conviveu com esse ambiente.

R – É, sempre. Desde sempre eu estava metida em escola.

P/1 – E como era, assim, você tinha umas coleguinhas na rua?

R – Eu não tinha muitas coleguinhas na rua, não. Eu tinha mais colegas na escola. Minha mãe não gostava muito que eu convivesse com as meninas da rua, a minha mãe era meio implicante, sabe? Eu tinha mais amigas na escola mesmo, que elas ficavam mais pra dentro da Vila Albertina. É como se eu morasse na ponta, e elas mais pra dentro do bairro.

P/1 – As meninas?

R – É, as meninas, minha amigas.

P/1 – Então tinha até certa distância, mesmo, espacial, no caso? Você não chegou a pegar... Não tinha uma integração, na rua?

R – Na minha rua, não. Meu irmão é que foi mais sortudo nesse sentido, porque meus pais eram mais liberais com ele, então ele brincava com os meninos da rua, meninos da idade dele, maiores, menores, ele circulava mais pelo bairro, ia a outras ruas. Eu ficava mais em casa.

P/1 – E aí você lembra quando você entrou na escola? Com quantos anos você entrou na escola? Você fez prezinho?

R – Eu sempre fiquei nas escolas que a minha mãe trabalhava. Dava aula e eu ficava, isso na Educação Infantil. Então fiquei nas escolas do bairro.

P/1 – Você lembra o nome dessa escola? A primeira escola que você estudou?

R – Não lembro, acho que era Tia Nara. Mas isso aí eu era muito pequena, se não foi a primeira, umas das primeiras escolas que minha mãe trabalhou.

P/1 – E dessa época que você começou a estudar, o que você guarda de lembranças?

R – Ah, dessa época da Tia Nara, eu não lembro, era muito pequena. Lembro de uma escola que era mais afastada do bairro, se chamava Aquarela, que hoje é uma casa... Acho que é residencial lá, não é mais escola, não é mais nada.

P/1 – Você fazia o que lá? O Ensino Fundamental, no caso?

R – Não, Fundamental fiz na escola que eu dou aula hoje, no Arnaldo. Eu estudei lá da primeira até a oitava série, no Arnaldo Barreto. Depois saí do Arnaldo e fui estudar em Santana, porque naquela época o governo determinava pra onde você ia. Não sei que critério eles adotavam, mas todo mundo da minha escola foi pra escolas perto, e eu e mais duas amigas fomos pra uma escola que é do lado do Metrô Santana, que pra gente era longe e não tinha ninguém que a gente conhecesse.

P/1 – Nossa, e como é que você se locomovia?

R – Ônibus, ônibus.

P/1 – E você ia sozinha? Sua mãe deixava você pegar o ônibus sozinha?

R ¬– É, aí já não tinha mais como, né? Eu já tinha 15 anos, aí eu ia com essa minha amiga, no começo, depois ela mudou pra noite. Aí eu passei a ir sozinha.

P/1 – E da escola, assim, você tinha uma matéria preferida?

R – Ah, eu gostava da escola desde pequena, porque era como se fosse minha segunda casa. Como eu estava sempre no trabalho da minha mãe, sempre convivendo com aquela coisa de criança perto, e os brinquedos que tinha na escola, e os livros que tinha na escola, então, pra mim, era um espaço muito familiar, muito tranquilo. Por exemplo, quando eu fui pro Arnaldo, que era uma escola onde minha mãe não ia estar, eu queria já... “Quando é que eu posso começar? Posso começar amanhã?” “Não, amanhã ainda não, vai começar...”, aí deram uma data e tal. Então eu sempre gostei de ir pra escola, sempre, tanto que a minha mãe achava que era um castigo pra mim, não ir pra escola. Não era, né? Ficar de folga eu não achava ruim, mas eu gostava muito de ir pra escola.

P/1 – E a área que você gostava mesmo, era essa coisa de ler, era isso?

P/1 – Olha, até o ensino médio eu gostava de todas as matérias, até de matemática. Eu não entendia por que é que eu estava aprendendo aquilo, eu questionava por que eu tinha que aprender gráfico, pra que aquilo iria servir, nunca ninguém sabia me explicar, mas até de matemática eu gostava.

R – E você teve um professor predileto?

P/1 – Ah, eu tive vários professores marcantes. O último professor marcante foi no Ensino Médio, que era um de história. Acho que ele, pensando hoje, não tinha muita experiência e dar aula pra adolescente. Talvez ele estivesse com medo, porque ele já chegou, no primeiro dia, dizendo que odiava dar aula pra adolescente, que ele não gostava, de que ninguém ia aprender nada com ele, que ele nunca tinha dado um dez na vida dele... Acho que ele estava se protegendo. Sei que, naquele momento, eu fiquei com raiva dele, falei: “ah, ninguém tira dez com você? Você vai ver só”. E é assim, eu lembro que a matéria dele era feudalismo, naquele primeiro bimestre, eu era muito boa nisso, ensinei pra sala inteira, porque eu tinha essa coisa de ensinar desde criança, de tirar as dúvidas dos colegas, de ajudar a fazer trabalho. Expliquei pra todo mundo a matéria, ajudei todo mundo, mas eu fui a única que tirou nota boa.

P/1 – Você lembra o nome dele?

R – Era Marcelo.

P/1 – Você sempre teve esse lance de estar ajudando os colegas e tal; mas quando você era pequeninha, você já brincava de escolinha?

R – Já, desde sempre.

P/1 – E tinha o estímulo da sua mãe, por parte da sua mãe e seu pai, pra que você seguisse essa área?

R – Pelo contrário, eles não queriam. “Ah, porque professor ganha mal, porque é difícil, é uma profissão sacrificada...”. As minhas tias também são professoras, é uma família de professoras, então eu ouvia muita reclamação de aluno, de diretor, de colegas. Nos domingos, quando a gente ia visitar as tias, histórias dos alunos, cresci ouvindo essas coisas, então era totalmente desaconselhável ser professora.

P/1 – E dessa época da escola, então, que você já está até um pouquinho maior, o que você guarda? Tem alguma história que você guarde até hoje dessa época, um caso que tenha acontecido?

R – Ai, tem muita história, agora, pra lembrar uma em especial...

P/1 ¬¬– O que você lembrar...

R – Olha, eu tinha... Isso no Arnaldo, né? Eu tinha um grupo de amigos, esse que vinha me buscar e depois a gente ia buscar outra amiga, e a gente era meio excluída assim, por causa dessa coisa de Educação Física. A gente não era boa em esportes, de jeito nenhum, e sempre éramos dos últimos a serem escolhidos para o time, sempre sofria com as aulas de Educação Física. Eu lembro que o professor chamava Fernando e, pra mim, ele era gigante, tinha uma voz forte e horrível, ameaçadora. Até que um dia, a gente falou assim: “sabe de uma coisa? A gente não vai mais ficar por último pra ser escolhido, nós mesmos vamos montar nosso time de voleibol!” A gente pegou, assim, os piores – entre aspas –, montamos um time e... Nossa, a gente foi muito feliz. A gente jogou, se divertiu, porque era um terror. E ainda nessa coisa de ser ruim de Educação Física, o que aconteceu? Uma vez, na sexta série, a gente entrou numa sexta série que tinha uma aluna repetente. O nome dela era Fabiana, e o apelido era “Maluca”. Ela era a melhor jogadora da escola, de futebol. Como eu era muito boa aluna e ela não era uma boa aluna, a gente fez um trato: ela me colocava no time dela sempre, não precisava mais ficar de última pra ser escolhida. Eu ficava no gol, olhando pras nuvens, olhando pros dedos, assim, porque a bola nunca chegava do outro lado, porque ela era muito boa. E eu ajudava ela nas matérias. Essa, assim, foi a melhor parte de Educação Física.

P/1 – E esse segredo nunca foi...

R – Não, era... Todo mundo da sala sabia.

P/1 – O outro time não sabia?

R – Sabia, todo mundo sabia.

P/1 – Está certo. E assim, como é que você resolveu escolher a área que você... Essa da educação, quando você saiu do colégio?

R – Foi muito por acaso. Chegou no terceiro ano do médio, eu não tinha a menor ideia do que ia fazer. Já tinha feito teste vocacional, que falava um monte de coisa diferente, porque os meus interesses eram muitos. Então eu queria fazer psicologia, história, geografia, letras, direito, e não sabia como ia escolher. Aí eu falei assim pro meu pai: “bom, vou prestar um simulado no Etapa, vou ganhar uma bolsa, ano que vem eu faço cursinho e aí eu tenho mais um ano para decidir o que eu vou fazer”. Só que eu queira prestar o vestibular. Prestei pra letras, português, e eu passei. Então eu entrei na faculdade assim: saí do médio, entrei na faculdade, sem ter aquele ano pra pensar. Aí fiquei na Faculdade de Letras.

P/1 ¬– Quando

você fez a faculdade, em que ano?

R – Eu entrei em 1998.

P/1 – Aí você fez direto, você conseguiu? Não ficou de DP [dependência], nada disso?

R – Nada. Letras era... Não era tranquilo, porque a faculdade exige muito, mesmo eu estudando à noite...

P/1 – Onde você estudava?

R – Na USP [Universidade de São Paulo]. Eu fui estudar à noite, e era... Mesmo à noite era bem puxado, mas era uma coisa que era muito tranquila pra mim, que era ler e escrever. A questão de dar aula depois, eu ia pensar depois. Só que conforme o tempo foi passando, que eu ia recebendo aquele monte de teoria, de linguística, de literatura, eu ficava pensando: “pra que eu vou usar isso? Pra que eu vou usar isso? É pra eu ensinar isso? Como é que eu vou ensinar isso pra alguém?”. Essas questões começaram a surgir, e nisso, dessas questões começarem a surgir... Era aquela época de procurar estágio, e na minha área, que era português, não tinha estágio, era só pra quem fazia inglês, que tinha. E eu acabei indo pra Fundação, entrando na Fundação.

P/1 – Espera só um pouquinho que a gente entra na Fundação. Porque olha só: você vem da periferia, estudou escola pública e vai direto pra faculdade. Olhando essa história, como você avalia isso?

R – Eu acho que eu sempre fui muito decidida, então eu não sabia que faculdade que ia fazer, mas eu sabia que eu ia fazer faculdade. Eu sabia que meu pai não ia poder pagar uma faculdade, então eu sabia que eu ia fazer USP. Então já sabendo isso, que eu ia fazer USP e que eu ia ter que estudar, eu era uma boa aluna, acho que eu corri atrás. Nos últimos anos eu fiquei estudando matemática, o que não adiantou nada (risos), porque fiz o mínimo das coisas... E foi assim, eu não tive dificuldade, porque...

P/1 – Como é que você se sentiu, quando você passou no vestibular?

R – Ah, vencedora, lógico, foi uma realização!

P/1 – E como é que foi isso pra família, pros amigos?

R – Ah, ficou todo mundo muito feliz. Meu pai ficou muito orgulhoso, porque ele ia pagar um ano de cursinho, que não ia ser fácil pra ele. Saber que eu já tinha passado assim, sem nem fazer, ficaram muito orgulhosos, muito felizes.

P/1 – E você lembra o primeiro dia que você chegou na faculdade?

R – Bom, como eu sempre estudei em escola pública, que era aquela coisa de não ter carteira suficientes, de não ter uma manutenção no prédio adequada e tal, quando eu cheguei no prédio da Letras, eu vi a mesma coisa. Quando cheguei lá vi as escadas quebradas... O prédio da Letras parece um prédio de escola pública, normal. Mas mesmo assim eu fiquei muito feliz, muito orgulhosa de estar lá, muito. Só que assim, os primeiros anos era como estudar numa escola pública mesmo: não tinha carteira suficiente, as salas eram “lotadaças”. No começo eu não estava trabalhando, eu conseguia chegar na hora, mas quando eu comecei a trabalhar, comecei a chegar atrasada, eu já tinha que assistir aula em pé, ou sentada perto do professor, no chão, ou sentada meio na porta, meio pra dentro e meio pra fora da sala. Então foi escola pública de novo.

P/1 – E você fez um grupo de amigos, assim, na faculdade?

R – Fiz.

P/1 – Como foi isso, vocês saíam?

R – Eu nunca fui muito de sair. Eu comecei a sair só depois, quando eu fiquei independente. Porque os meus pais foram muitos chatos na minha criação, então eu não saia muito mesmo. Na faculdade, eu não fiquei indo em festa, morava muito longe. Demorava uma hora e meia pra voltar, porque o ônibus corria muito, senão eram duas horas, duas horas e meia pra chegar até a USP. Era bem longe pra mim.

P/1 – Como é que você fazia pra ir?

R – Pegava o Horto, que a gente chama de “morto” (risos), porque demora muito tempo pra chegar...

P/1 – E logo que você começou a estudar, você não estava trabalhando ainda, né? Você começou a trabalhar quando começo a estudar, foi nesse período?

R – Quando eu entrei na faculdade, estava trabalhando num escritório de contabilidade.

P/1 – Quando você começou a trabalhar, então? O primeiro emprego?

R – Então, foi esse. Acho que era de uma amiga da minha mãe que indicou. Aí eu fui pra um escritório de contabilidade, bem perto de casa.

P/1 – Aí você estava ainda no colégio?

R – Acho que no final do colégio. Era um trabalho de digitar só, uma coisa bem estúpida. Mas foi legal, assim, (risos) porque ganhava muito pouco, mas achava muito ótimo, porque estava trabalhando.

P/1 – Foi, assim... Quando você teve o primeiro salário? Você lembra o que você fez com o seu primeiro salário?

R – Não, não tenho ideia. Nossa, mas eu achava muito bom.

P/1 – Você ficou quanto tempo?

R – Eu fiquei pouco tempo, acho que uns três, quatro meses depois que entrei na faculdade, eu já sai.

P/1 – Aí depois você se dedicou ao estudo mesmo?

R – É. E não tinha estágio, aí que eu tive que me dedicar mesmo aos estudos, né? (risos).

P/1 – Ah, foi daí que você falou que você foi pra Fundação? Mas você já tinha ouvido falar da Fundação?

R – Não.

P/1 – Mesmo você morando no bairro, próximo de onde ela foi estabelecida, você não tinha ouvido falar?

R – Não. Era a “Escola do Raí”, mas não tinha chegado até mim essa informação.

P/1 – Quando foi instalado, não tinha um comentário lá na região?

R – Então, tem uma questão geográfica aí, que é assim: a Fundação fica no topo do morro, e a minha casa ficava no pé do morro. Eu não fazia esse caminho, quem fazia esse caminho, muito, eram os meus pais.

Minha mãe, que trabalhava na creche, que era metade do caminho, e o meu pai, que trabalhava na Valeo, que era uma firma que todo mundo descia, muito no meio da Vila Albertina. Eles conheciam, eles conhecem todo mundo; eu não, não tenho a mesma circulação pelo bairro que eles.

P/1 – Então você não chegou a ouvir falar: “está vindo um negocio novo aqui na região!”, você não chegou a ouvir isso?

R – Não, nada

P/1 – Sua mãe, seu pai também não comentaram nada?

R – Nada, nem sabia que existia.

P/1 – E como chegou até você?

R – Então, na época que eu estava procurando estágio, de novo, uma amiga da minha mãe falou: “ah, lá na ‘Escola do Raí’ estão precisando de professor.” Aí minha mãe falou: “ah, então vamos lá”. Ela me pegou, a gente foi. Foi a primeira vez que eu fui. Conversei eu não lembro com quem na época, acho que a pessoa já nem está mais lá. Fiz uma redação, escrevi uma redação sobre Educação, a importância de ler e de escrever.

P/1 – Era um tema livre?

R – Acho que era a importância da leitura e da escrita, uma coisa assim. Fiz a redação e depois me chamaram. Na época era o CENPEC [Centro de Estudos e Pesquisa em Educação, Cultura e Ação Comunitária] que estava assessorando a parte de Leitura e Escrita. Eu assisti uma... Acho que foi uma palestra que teve desse tema mesmo, de Leitura e Escrita, e depois eu fui trabalhar, fui ser estagiária.

P/1 – Foi rápido, então?

R – Foi bem rápido.

P/1 – Isso foi em que ano, mesmo?

R – Foi em 2000.

P/1 – No início do ano?

R – Acho que abril ou maio. Acho que maio.

P/1 – Recente né, porque se foi inaugurado em 1999, foi logo em seguida.

R – Foi.

P/1 – E você já entrou direto, assim, pra ser professora, lá?

R – Pra ser estagiária. Aí tinha uma pessoa formada em pedagogia, que se chamava Cibele, era super novinha também, que era professora de Leitura e Escrita de todas as crianças, dos dois períodos: manhã e tarde.

P/1 – E em que horário você fazia o estágio?

R – Começava às sete e meia e saía, acho que, cinco horas, pra poder chegar na faculdade a tempo.

P/1 – E como é que foi a experiência, como era o seu trabalho? Você ficava lá só olhando, você ficava com as crianças?

R – No começo eu ficava só olhando, porque eu não sabia o que eu tinha que fazer. Então eu fui trabalhar lá e me apresentaram pra: “ah, essa aqui é a Cibele, essa aqui é a Helena...”. Legal muito bem, eu fui pra sala e... Não sei, fiquei lá olhando, observando. Eu anotava, fazia registro da aula. Eu fiquei bem perdida, não sabia exatamente... Nunca tinha trabalhado. Nem sabia o que era ONG, nem sabia o que era educação de terceiro setor, não tinha nem ideia do que eu estava fazendo ali.

P /1 – Você achou alguma coisa diferente no jeito de dar aula, do que estava rolando ali? Porque você tinha uma experiência de conviver em escola.

R – Ah, foi um choque, porque... A começar pelas crianças. Eu lembro que pela primeira vez que eu olhei pra elas, eu tive medo, porque elas tinham uma expressão meio carregada, assim, pra mim. Eram crianças que tinham, não sei, cara de carente, não sei explicar direito. Mas foi uma impressão forte, que eu tive. E eu achava que eu não ia conseguir conversar direito com eles, porque a minha linguagem era linguagem da faculdade, aquele monte de teoria que eu estava aprendendo, e a linguagem deles era totalmente outra, eu achava que ia ser difícil a comunicação ali. Mas as crianças da Fundação, desde o começo, elas têm muito a questão do afeto. Então primeiro elas achavam estranho uma pessoa tão quietinha ali na sala, anotando, mas aí elas foram se aproximando, foram fazendo amizade comigo. Não eu que fui fazendo amizade com elas, elas que fizeram amizade comigo. Elas foram...

P/1 – Você se lembra da primeira abordagem?

R – Não lembro, faz muito tempo. Mas iam me puxando, porque não tinha nada organizado, como tem hoje. Hoje tem uma grade de horários, tem um horário com as atividades de recreação. Antes era uma coisa espalhada, assim. Dava o horário do lanche e as crianças iam fazer o que? Elas ficavam correndo, uns jogavam futebol, e as crianças me puxavam pra ir brincar com elas, aí eu ia brincar com as crianças.

P/1 – Ah, deixa eu entender: então logo que você entrou... Porque você pegou o inicio, então as crianças chegavam às sete e meia. E como era o dia delas?

R – Eles tinham assim, Leitura e Escrita, Artes, assim, aula tinha... Por exemplo, era turma A, B e C, não eram tantas turmas como tem hoje. Acho que umas 30, 35 crianças por turma, e não tinham tantos professores. Eu lembro que, quando eu entrei, foi o último dia da professora de dança. Eu entrei na despedida da professora de dança, aí já não tinha mais Dança na grade. Pouco tempo depois, já não tinha mais os professores de teatro. Era a Casa de Teatro no começo, depois já não tinha mais os professores de teatro. Aí sobrou o professor de Música e a professora de Artes. Isso eu estou falando dos arte-educadores, porque Leitura e Escrita sempre teve.

P/1 – Então Dança tinha saído da grade e Teatro...

R – Depois o Teatro. Aí tinha os professores de Música...

P/1 – Mas tinha acontecido alguma coisa?

R – Eu acho que, naquela época, era muito desorganizada, a coisa.

P/1 – Isso foi em 2000, mesmo?

R – Dois mil. Eu acho que arte-educador, às vezes, ele tem uma ideia de trabalho, e quando chegava na Fundação, acho que tinha muita coisa pra ser construída ali. E as pessoas, não sei se elas estavam preparadas pra estar naquele lugar. Acho que até hoje, pra você trabalhar lá, você tem que ter certa preparação, não é fácil.

P/1 – Você, inclusive, quando estava começando, qual era essa dificuldade inicial que você sentia?

R – A questão dos alunos, das crianças. Te falei que eu fiquei com um pouco de medo no começo? Então, eles têm muito de testar, acho que sim. Quando eu era estagiária, não estava como educadora, eles não tinham o desafio, a questão do desafio, do enfrentamento, do bater de frente, da violência, não tinha essa questão comigo. Quando eu passei de estagiária observadora pra estagiária atuante, como educadora, aí teve.

P/1 – Você ficou quanto tempo como estagiária observadora?

R – Acho que no primeiro ano. Esse primeiro ano eu fiquei mais... Observando. Quando, conforme eu fui tomando mais familiaridade com o espaço, fui organizando o espaço, trazendo livros que eu gostava, lendo os livros para as crianças, ajudando a montar atividade, a colocar as coisas na parede na época de exposição, a dar ideias... Mas pra dar aulas mesmo, só depois que a Cibele e a Vera – que foram as pedagogas, no comecinho – saíram.

P/1 – Elas saíram e você assumiu?

R – Tive que assumir.

P/1 – Isso foi quando?

R – 2001.

P/1 – E você se lembra quando você assumiu, ficou preocupada? Você já estava preparada?

R – Eu fiquei muito tempo observando, e observei muitos educadores, mas na hora que você assume uma turma, é bem diferente. Pra começar, eles têm mesmo essa questão do enfrentamento.

P/1 – Você se lembra de algum caso?

R – Ah, tive vários casos (risos). Eu lembro de uma vez, eu estava como monitora de Artes Plásticas – porque eu não fiquei só na Leitura e Escrita, fiquei também na parte de Artes Plásticas – o menino falava assim: “por que a gente tem que ficar aqui? Você não é a nossa professora, a nossa professora é a Mônica, a Mônica foi embora, o que você está fazendo aqui?” Te questionar desse jeito. Eu lembro que respirei fundo e falei: “olha, eu também sinto falta da Mônica, eu também gostaria que ela estivesse aqui, mas ela não está mais, estou eu. E tanto eu estou sentindo falta dela, quanto você está sentindo falta dela também. A gente vai ter que, juntos, superar isso aí”

Foi... Deu certo. Mas tiveram vários enfrentamentos.

P/1 – Boa resposta...

R – É. Eu já saí de lá chorando e a criança te mandando pra aquele lugar. De entrar em briga de criança... No começo era bastante violenta a coisa lá, eu acho. Depois foi acalmando, acalmando. Acho que era uma estrutura muito nova, e uma coisa que estava sendo construída. As pessoas estavam entrando nos seus lugares, os projetos estavam começando a se estruturarem. Depois que estruturou uma equipe, estruturou um projeto, estruturou uma linha de trabalho, as crianças foram ficando mais calmas.

P/1 – E como que é essa sua atividade? Porque você é professora de Leitura e Escrita, então, né? Como é que é essa sua atividade?

R – A rotina, você quer saber?

P/1 – É, isso.

R – Então, eu chego às sete e meia, coloco uma música... Porque eles nunca chegam às sete e meia, em ponto. Eles vão chegando, aí tem alguns jogos lá no armário, tem jogo do palitinho e tal, eles jogam... É um tempo também pra eles lerem os gibis, os livros e o jornal que tem lá. Depois de um tempo, assim, de uns 20 minutos, eu começo a aula ou começo com uma conversa, perguntando do fim de semana, ou perguntando de alguma coisa que tenha acontecido na Fundação dias atrás, ou eu falo de alguma matéria do jornal, assim. Para os menores eu falo da “Folhinha”, para os maiores eu falo do “Folhateen”, ou a gente conversa, comenta alguma coisa, depois começa a aula.

P/1 – E como é a aula?

R – Bom, tem os projetos, pra cada turma é uma aula diferente. Os menores têm uns projetos de contação de histórias.

P/1 – O nome do projeto é contação de história?

R – Não, acho que não tem nome deste projeto. Projeto geral é o Projeto Circo, um nome gigante que uma criança inventou, que é uma coisa do tipo: “Senhoras e Senhores, bem vindos à Fundação Gol de Letra”, alguma coisa assim, o título do projeto. Mas cada turma tem um trabalho diferente dentro desse projeto. Então a turma um e dois é de contação de histórias, com personagens de circo, por causa do projeto... Tem desde assistir vídeos com contação de histórias, quanto eu ler pra eles, quanto eu dar alguns elementos pra eles contarem uma história, então passa por várias atividades de contação, ou de leitura, ou de produção de histórias. Esses são os menores, tem uma turma...

P/1 – “Menores”, que você fala, é de que idade?

R – De sete a dez, vamos supor. Tem uma turma intermediária, turma três. O projeto deles é de oralidade, então nesse primeiro semestre a gente trabalhou com adivinhas. Eu lia muitas adivinhas pra eles, eles criaram adivinhas...

P/1 – O que é adivinhas?

R – “O que é o que é”.

P/1 – Ah, tá. Eles inventavam também?

R – Inventavam. Passamos por piadas, então eu pesquisei algumas piadas, eles leram, contaram, descreveram os personagens de circo também, porque fazia parte, assistiram o vídeo do Cirque du Soleil, pra saber o que cada artista de circo fazia. A turma quatro é um projeto com teatro. Tem uma coisa que é interdisciplinaridade, a gente trabalha sempre com, por exemplo, Leitura e Escrita e Artes Plásticas, Leitura e Escrita e Informática, quanto mais áreas trabalharem juntos, melhor. A gente tenta fazer o trabalho assim. E a turma quatro, um projeto de incentivo à leitura, a gente pegou Monteiro Lobato. Segundo semestre vai ter os personagens no circo, por causa do projeto também. Então eu leio, faço uma leitura compartilhada de Monteiro Lobato. Eu faço um narrador, algum aluno faz um personagem, outro faz outro personagem, lendo. Tem descrição de personagem, criação de história, contação de histórias, essas coisas sempre permeiam todas as turmas. A turma cinco, que já são adolescentes de 13 anos, 12 e 13 anos, eles fazem um blog. Só que a gente teve uma dificuldade técnica esse ano. Seria um projeto com Informática, só que a Informática está trabalhando com um projeto de robótica, então eu não consigo usar informática.

P/1 – Conciliar o tema, né?

R – Só que só tem um computador, então, por aula, dois alunos, mais ou menos, vão lá e postam alguma coisa que a gente esteja conversando, ou algum filme que a gente esteja vendo. Eu leio o diário de Anne Frank pra eles, que tem a ver com diário e relato, essas coisas que a gente está vendo. E os maiores a gente trabalha com leituras de reportagens e notícias, relatos e escritos.

P/1 – E como é que você sente esse trabalho, assim, o retorno pra você?

R – Ah, eu gosto muito, porque é um trabalho muito criativo. Não tem um livro pra seguir, não tem uma apostila, ninguém chega pra mim e fala: “você tem que trabalhar desse jeito, você tem que chegar nesse resultado, tem que seguir esses passos”, não é assim. Existe um planejamento, que é uma prévia.

P/1 – E como é, assim, esse “antes”?

R – O antes é uma discussão muito grande com os educadores, de qual tema vai ser...

P/1 – Por ano, isso é por ano?

R – Por ano, todo ano. Se reúne, se colocam vários temas, se defende cada tema, vota, discute mais, discute mais um pouco... Os educadores lá são muito... Todo mundo é muito criativo. Tem muita liderança, e as discussões saem mesmo. Então, depois de muita discussão, de muitos ajustes, a gente chega a um tema, “esse vai ser o tema anual”. Depois do tema anual, aí vai mais discussão, mais elaboração coletiva pra chegar: “qual é o objetivo da gente nisso?”, “quais os valores que a gente vai trabalhar?”. Porque a linha de trabalho da Fundação – e por isso que melhorou muito a questão da violência e tal –, a gente não fica focada no que o aluno tem que aprender e reproduzir, que nem nas escolas. É a parte cognitiva, mas é a parte afetiva também, a parte moral também. Então o que a gente quer que eles aprendam?
A superação, a gente quer que eles melhorem a autoestima, tem solidariedade, cooperação, tem vários, vários valores que a gente trabalha dentro dos projetos. A gente tem uma discussão de quais a gente vai trabalhar naquele tema específico. Depois disso, a gente vai... E tudo isso a gente vai pensando, pesquisando. A gente tem uma coisa assim de chegar em um de Artes Plásticas e falar: “ah, então, eu pensei em trabalhar isso e isso e isso”, “aí, que bom!”, e tal, “eu pensei nisso e nisso”. A gente vai pensando num trabalho meio junto. Tem gente que é mais apressada, que já vem com o trabalho, assim, que “quero fazer isso e isso e isso”, alguns vão comprando outros, vão: “não, a gente podia fazer assim...” Então tudo uma coisa bem política, que demora um tempo de elaboração.

P/1 – Isso é uma área da Gol de Letra, então?

R – É a parte pedagógica.

P/1 – A área pedagógica? Porque tem a área social e a área pedagógica?

R – Isso.

P/1 – Eu tenho a sensação, então, que a grande preocupação de vocês, pra poder trazer esses valores, é despertar a vontade deles quererem aprender as coisas, né?

R – Ah, isso é uma das coisas, né? É muito importante, ninguém trabalha de um jeito só. Por isso que eu digo, é preciso até um preparo pra trabalhar lá; você precisa ser muito flexível, tem que aceitar que o que você planejou, às vezes não vai dar certo; você tem que ter uma coisa de não levar para o pessoal, porque às vezes o aluno é agressivo com você e você tem que saber que a criança não está fazendo aquilo porque ela tem um sentimento contra você e ela quer te enfrentar, aquilo faz parte da historia da criança. Ou é uma reação da criança a alguma coisa que está acontecendo na casa dela, ou na comunidade em que ela vive, que ela traz isso pra você. Então você tem que saber separar, o que é muito difícil. Por isso que eu falo que não é fácil. Ao longo desse tempo que eu estou lá, eu vi muita gente entrando e muita gente saindo.

P/1 – Assim, professores?

R – É, muitos educadores entrando e saindo por causa disso.

P/1 – De não aguentar, mesmo?

R – É. Um trabalho que demanda muito do seu emocional, eu acho.

P/1 – Agora, pra uma pessoa que... Assim, você mora mais ou menos nas proximidades, teve uma experiência com escola pública ¬– mãe, né, você vivenciou isso. Você acha que essa construção da Maria Helena – porque foi uma construção –, pode ter ajudado você a atuar lá?

R – Ah, sim, dos dois lados. A carga familiar que eu tive, as vivências na escola, o gosto por aprender, o gosto por ensinar, o gosto pela leitura, de um lado e todas as experiências que eu tive na Fundação, as crianças que eu fiz amizade, os educadores. Eu vi muita gente boa trabalhando, tudo isso me formou, com certeza.

P/1 – E assim, deixa eu voltar um pouco. Bom, mesmo você tendo entrado em 2000, você tem uma ideia da história da construção dessa área pedagógica? Eles começaram logo com Leitura e Escrita ou teve alguma coisa antes?

R – Desde o começo teve Leitura e Escrita. Acho que as áreas que sempre tiveram: Leitura e Escrita, Educação Física e Artes Plásticas. Essas foram as únicas que permaneceram do começo até agora. As outras tiveram mudanças, entrada e saída, sumiram um tempo da grade, depois voltaram...

P/1 – Isso é o Virando o Jogo, no caso?

R – É o Virando o Jogo. Eu faço parte do Virando o Jogo.

P/1 – Deixa eu só entender então, o Virando o Jogo é um projeto?

R – É um programa.





P/1 – É um programa. Dentro desse programa tem essas atividades? É assim que funciona?

R – Isso. É, então, o Programa Virando o Jogo atende de sete a quatorze [anos], isso estava desde o começo. No começo tinha a intenção de atender crianças de seis a zero. Queriam construir uma creche onde está lá o pessoal do Museu da Pessoa, aquele prédio foi... Era um sonho que fosse uma creche. E pensaram também no começo de ter um projeto de jovens. O de creche não teve perna mesmo pra fazer, não deu. O de jovens teve e tem ainda.

P/1 – Você lembra quando começou o de jovens?

R – Bom, no começo, foi um projeto que se chamava a Turma da Vila, que eram os jovens da comunidade. Tinham algumas atividades, as oficinas, acho que de fim de semana, com alguns arte-educadores. E ao mesmo tempo eles começaram a trabalhar na biblioteca, a biblioteca também sempre existiu. Antes de mim, tem a Silvânia, que eu acho que deve ser alguns meses mais antiga que eu, que começou como voluntária. Ela é da comunidade, está desde o começo da biblioteca, ela também tem bastante história pra contar. E eles começaram a trabalhar na biblioteca, atendendo crianças, fazendo o que hoje é a mediação de leitura. Começaram com um projeto de incentivo à leitura com as crianças. Da Turma da Vila, que era esse grupo de jovens, foi pra uma coisa chamada Cara da Vila, que acho que isso deve ter sido 2001, 2002, com um coordenador que se chamava... Me fugiu...

P/1 – Nelson?

R – Nelson. Que aí ele começou a estruturar melhor o programa de jovens. Ele que começou a organizar melhor essa parte, que isso virou o FAC, que tem hoje.

P/1 – Ele chegou a sair depois. Teve algum problema?

R – Bom, é aquilo que eu te falei, das estruturações e reestruturações. A Fundação, durante bastante tempo, esteve em construção e reconstrução, coisas que começavam e terminavam. Coordenações que entravam com certa linha de trabalho, uma certa ideia, e logo em seguida vinha outra pessoa, com outra visão. Demorou pra Fundação achar uma pessoa que fosse a pessoa certa pra coordenação, eu acho.

P/1 – E quem é a coordenação hoje?

R – Hoje é a Patrícia. Ela foi professora de Leitura e Escrita, eu fui estagiária dela. Ela entrou em 2001. Antes dela teve a... Era uma japonesa, que agora eu esqueci o nome...

P/1 – A Célia?

R – A Célia. Ela que começou com a parte social, não tinha parte social. Quando o Nelson entrou, ela foi começar a área social. Era ela e ela (risos). Aí ela começou a juntar as mulheres da comunidade, começou o começo do que hoje é a área social da Fundação.

P/1 – Muito bom. Bom de saber, porque a gente está começando a ir atrás das pessoas...

R – É, a Célia também tem muita coisa. Antes dela teve... Ah, eu estou esquecendo o nome das pessoas. Vou ver se eu lembro. Lembro da fisionomia, mas o nome agora eu estou esquecendo. Teve uma coordenadora antes do Nelson e antes da Célia.

P/1 – A Sônia?

R – Não. A Sônia London eu acho que era uma espécie de assessora, ela não ficava na Fundação. Ela, acho, ajudava a estruturar as coisas, mas no papel. Teve uma outra pessoa...

P/1 – A Edi?

R – A Edi veio depois. A Edi entrou acho que em 2000, como professora de Leitura e Escrita, eu também fui estagiária dela (risos).

P/1 – A Zélia?

R – Ah, a Célia...

P/1 – Zélia Cavalcante?

R – A Zélia também era pessoa de pensar e colocar as coisas no papel, mas ela não atuava diretamente. E a Zélia ajudou muito a estruturar a Leitura e Escrita. Ela tinha ligação com a Escola da Vila.

P/1 – E quando você fala em estruturar a Leitura e Escrita, como é que você vê isso? Você falou que antes era uma coisa, depois mudou. Você pegou essa mudança? Você sentiu essa mudança?

R – Sim.

P/1 – Como foi essa mudança?

R – Quando eu entrei não tinha uma coisa assim “vocês vão trabalhar com projetos, esses projetos vão ser anuais, vão ter temas”, não tinha isso. Tinham duas formadas em pedagogia, recém-formadas em pedagogia, tinha a Zélia. Como ela vinha com toda a experiência da Escola da Vila, ela às vezes dava uma assessoria. O Cenpec [O Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária] dava uma assessoria pra orientar a gente pra projetos, e tinha uma outra pessoa que fazia uma formação com a gente de Leitura e Escrita, nesse sentido. Mas não era uma coisa formal, formalizada como é hoje.

P/1 – Era mais solto?

R – Era solto. A gente fazia, sempre fez em Leitura e Escrita, era uma coisa interdisciplinar com Artes Plásticas, porque a gente está no mesmo espaço físico, vamos dizer, no mesmo andar, então sempre teve uma amizade entre as pessoas, sempre se conversou: “Vamos fazer um livro?”, “legal, vocês fazem a história, a gente faz a ilustração.” “Eu vou contar uma história, vocês não querem trabalhar os personagens?” Sempre teve esse negócio. Mas não era uma coisa de, “esse ano o projeto vai ser tal, mas por causa disso, disso e disso”, isso foi um crescimento, um amadurecimento. Eu escrevi, ajudei a escrever vários projetos de Leitura e Escrita. Cada ano mudava uma coisa aqui, uma coisa ali, uma coisa acolá. De dois, três anos pra cá, o planejamento de Leitura e Escrita é do mesmo formato. O objetivo geral, os objetivos específicos, são os mesmos. Vão mudando os gêneros conforme a gente vai planejando.

P/1 – As temáticas, né, no caso?

R – É.

P/1 – E de todas as temáticas, qual foi a mais marcante pra você? Qual você acha que mais conseguiu envolver os alunos?

R – Ai, eu sou tão suspeita pra falar, porque todas eu trabalhei com tanto... Eu me envolvi tanto que eu não sei como dizer qual que eu gostei mais. Eu gosto mais de circo porque é a que eu estou fazendo agora, mas eu gostei muito de São Paulo, ano passado. Ano retrasado, eu gostei muito dos índios, da Cultura Indígena, o Projeto África-Brasil. Se você perguntar pras crianças: “Qual o projeto que você mais gostou?”, ela vai citar os últimos que ela lembra, mas eu acho que ela também não vai saber qual ela gostou mais.

R – Mas em termos de resultados, você acha que eles são mais ou menos equilibrados? Não teve um que teve, assim, emplacado mais? Não teve isso?

P/1 – Talvez São Paulo tenha emplacado menos, porque eu acho que era uma questão... Como é uma coisa construída pelos educadores, tem projeto que tem mais identificação de algumas pessoas e menos identificação. São Paulo, chegou numa época que professor de teatro falava assim: “ah, mas esse projeto está cinza e frio como a cidade” (risos). “Não, eu não acho que está assim”. Aí ficou uma coisa meio... O Projeto África foi muito colorido, com muito ritmo, então foi bem legal; o Cultura Indígena foi muito bom também, porque eles viram vídeo, foi uma cultura bem diferente pra eles, músicas muito diferentes, acho que foi muito bem feito também.

P/1 – Por ano, né, que vocês...

R – Por ano.

P/1 – Ah, tá. Então o do ano passado foi São Paulo, que você disse?

R – Não, foi Cultura Indígena. O outro ano é que foi São Paulo.

P/1 – Esse negócio desses projeto, sempre teve? Quando que eles começaram a existir?

R – O projeto do jeito que ele é hoje... Acho que o primeiro foi o África... Não, foi o Cultura Nordestina. Então deixa eu contar: Circo, esse ano, ano passado Cultura Indígena, o retrasado São Paulo, o anterior África e o primeiro foi o Cultura Nordestina.

P/1 – Ah, então é o quinto ano, no caso?

R – Quinto ano. Começou com o professor de artes e o professor de música falando: “Vamos fazer um grande espetáculo, que junte todas as áreas?” “Ah, vamos, vamos fazer.” E foi aí que começou a se estruturar. Então não vai ter o projeto de Leitura e Escrita e Arte, que a Mônica falava que eram os casamentos, porque ela fazia a escrita dos projetos pra financiamento. Ela vendia o projeto assim: Projeto Mudando a História é Leitura e Escrita, Artes Plásticas e Informática. Então essas três vão trabalhar um projeto que elas vão pensar. Mudançação, Música, Teatro e Dança, esses três vão trabalhar, vão pensar o que eles vão fazer, então era assim, divididinho. Até que eles resolveram fazer uma coisa que todo mundo participasse, aí virou um tema só. Mesmo que ainda fazia, eu acredito, pra conseguir financiamento. É um tema só.

R – E você achou mais legal pra trabalhar?

P/1 – Ah, é muito mais significativo para as crianças, porque elas ouvem circo de diferentes maneiras, com diferentes pessoas. Numa área ela vai ouvir falar da família circense, na outra ela vai ver um Cirque du Soleil, na outra vai desenhar os artistas do circo... Então ela vai fazendo as ligações entre as áreas, o conhecimento, é muito mais legal.

R – Legal, legal. E assim, desse tempo que você está na Gol de Letra, o que você poderia dizer que foram os principais marcos, que você viu ali de transformação da Gol de Letra, no geral?

P/1 – Eu acho... As pessoas da equipe, as mudanças das pessoas da equipe foram definitivas para mudanças de rumo. Então meu primeiro ano lá, eu era estagiária da Cibele, trabalhava com a Cibele, com a Vera e com a Mônica, que era Leitura e Escrita e Artes Plásticas. A Vera trabalhava com a Mônica. A Mônica era uma educadora de Artes Plásticas e tal. Quando elas saíram e entrou a Edi, pra mim foi um choque. Fiquei... Porque você vai criando laços afetivos muito fortes lá. Não sei se é pela vivência que a gente tem com as crianças, se é por a gente ter o mesmo objetivo e passar essas chateações com crianças que te enfrentam e passar alegrias com crianças que te acolhem e saber das histórias das crianças, você vai criando uma ligação forte com as pessoas. Então como era o meu primeiro ano lá, eu acho que eu estava muito... Eu era muito jovem também. Não sei, eu criei um laço muito forte com essas três pessoas, e quando elas saíram, nossa, fiquei arrasada. Eu não tinha mais vontade de trabalhar lá. Quando a Edi veio... E ela veio pra trabalhar comigo, numa época eu rejeitei, não queria ser estagiária dela, achava que ela era de um jeito muito diferente. Não era tão diferente, depois eu aprendi muito com ela. Isso já foi uma primeira mudança. Começou a estruturar mais o projeto da Leitura e Escrita. Algumas coisas que eu faço, até hoje, eu aprendi naquela época com a Edi. Quando entrou o Nelson, que eu acho que ele teve uma leitura de: “Nossa, esse programa é muito caro! Vamos dividir as turmas” – que era A B e C –, “agora não vai ser A, B e C! Vai ser A1, A2; B1, B2...”. Aí começou a mudar, dividiu as turmas – que eram de 30 – no meio. Não eram mais... Não lembro, acho que eram 100 crianças, não sei. Vamos supor que eram 80 crianças: “Agora vamos atender 120 por período!” Então entrou um monte de criança. Antes não tinha uma área social pra ver direito a data de nascimento da criança. Ela tinha que sair com 14, mas ficava... O Vanderlei, por exemplo, ficou até uns 15, 16, porque não tinha ninguém pra falar: “Olha amigo, agora você vai pra outro programa, porque...”. Não tinha, então começou a ter. Começou a ter a saída das crianças aos 14 anos, a entrada aos sete, as coisas foram entrando nos seus eixos. Ah, isso foi uma segunda mudança, o Nelson. Depois teve a maior bagunça, saiu a Monica, de Artes. Foi outra mudança. Entrou na época o Marcos, que foi outro professor de artes que passou. Já teve outra mudança no rumo do trabalho, ele trouxe outros elementos pro trabalho de Artes Plásticas, outra maneira de trabalhar com a Leitura e Escrita. Era um homem... Porque a gente sempre trabalhou com mulheres ali. Então tiveram outras questões, outra mudança. Quando saiu o Nelson, já não foi um choque pra mim. Entrou outra coordenação, que tinha outra maneira de ver as coisas, que organizou de outro jeito. Então já foi outra passagem. Tiveram várias passagens. Então cada pessoa que entrou mudou um pouquinho.

P/1 – Então essas mudanças estão muito associadas a essas mudanças de equipe? Cada uma traz uma bagagem diferente?

R – É. E agora sim, eu acho que desses cinco anos, de cinco anos pra cá, a Fundação é uma estrutura. Antes ela era uma coisa meio moldável, sabe? A pessoa ia entrando, ia transformando do jeito dela. Acho que agora a pessoa entra e ou ela é flexível e se adapta a essa estrutura, ou ela acaba saindo, porque as coisas já estão meio determinadas. O que não é ruim, porque...

P/1 – Dá certa estabilidade...

R – É, é mais estabilidade pra atuar, só que continua demandando muita questão afetiva nossa.

P/1 – Fala um pouquinho sobre isso, porque, realmente, você tem que se dar muito pras crianças. E já teve algum caso de você sair impactada? “Puxa vida”, você acaba até se envolvendo...

R – Nossa, tantas vezes! A gente sabe das histórias das crianças, e tem das histórias das mais tristes. Tem criança que você fala: “puxa, eu quero adotar essa criança, não pode?” E, assim, eu já vi coisas muito tristes. Como eu estou há muito tempo... Crianças assim: tem o Brendo, por exemplo, pra citar um caso. Era um menino terrível. Ele era fortinho, assim, mas era aquele menino que te enfrentava, que não queria fazer nada, que batia nos outros, que andava em cima da mesa, que se você bobeasse, ele jogava coisa em cima de você, ele ficava nervoso, ele surtava. Eu lembro que eu sentava no chão, segurava ele assim e ele se debatia. Fazia o maior esforço físico pra segurar o moleque, pra ele não sair batendo em todo mundo e tal. Esse menino passou pela Fundação, saiu, foi pro Rio de Janeiro. Hoje ele voltou. Aí você vê que: “puxa, aquele trabalho que a gente começou quando ele era criança, talvez se ele tivesse continuado, talvez fosse diferente agora, né?” Você vê que esse menino está perdido. Alguns que foram presos, outros que foram mortos... Tem vários assim que...

P/1 – Esse é um caso ruim. Mas tem casos bons também...

R – Tem casos bons. Tem aluno que... Tem uma, a Thais França, por exemplo. Foi minha aluna, agora ela faz USP. Tem uns que foram pra outra ONG, que é o Criar, e agora estão atuando. Tem alguns que trabalham no supermercado, e tem família, tem uma vida estabilizada. São pessoas com conhecimento, são pessoas diferentes, que fazem diferença na comunidade. Mas os casos ruins, a gente fica muito impactada, porque a gente quer que todo mundo que passe por lá fique ótimo. A gente quer salvar todo mundo, mas não dá, nem é essa a proposta.

P/1 – Aliás, teve uma coisa, teve um acidente né? Não chegou a acontecer isso, que foi até citado, um menino que foi atropelado? Outro que...

R – Então, era eu a educadora que estava com o menino que caiu.

P/1 – Ai meu Deus, como foi isso?

R – Foi péssimo!

P/1 – Porque foi um passeio, né?

R – Foi um passeio. Esse menino não era meu aluno, era aluno da professora da tarde, e era bagunceiro, daqueles meninos que você tem que falar mil vezes e tal. Nesse passeio ele não estava dando trabalho, quem estava dando trabalho era outro. Então eu falei pra minha estagiária ¬– que hoje eu tenho estagiária –: “Você fica do lado dele, você vai andar de mão dada com ele!” E esse menino não, esse menino estava tranquilo. E era pra terminar o passeio, eles estavam tomando lanche. Uma parte estava olhando a feira do MASP, aí vi que eles estavam meio assim, sem muita coisa pra fazer, e a gente não pode deixar criança, adolescente muito à toa né? Fui procurar a educadora, a outra educadora, pra chamar o ônibus. Eu não achei. Esse menino, ele estava fazendo umas gracinhas, de andar naquele... Que hoje tem bastante mato ali, tipo um jardinzinho. Tem o parapeito ali do mirante e tem um jardinzinho. Ele ficava andando ali, dizendo assim: “fotografa que eu vou fingir que eu vou cair, fotografa que eu vou fingir que eu vou cair!” Eu falei: “não, acabou, tia, acabou, não tem mais espaço na máquina”, os amigos dele falando assim: “sai daí que logo logo o segurança vai vir brigar com você”, “para com essas brincadeiras, que não tem graça”. O menino saiu, aí ele... Não sei, até hoje eu não sei o que se passou na cabeça desse menino. Não sei de verdade se ele sabia o que ele estava fazendo, se ele sabia que aquilo era alto. Não sei realmente o que se passou pela cabeça daquele ser. Sei que ele falou pra mim: “Eu vou correr, eu vou pular!”, eu falei: “Não, você não vai correr e não vai pular!” Daí ele correu e pulou aquele parapeito. Só que não tinha como ele parar. Se ele tinha corrido e pulado, ele estava com muito impulso, não tinha como frear. Aí ele foi direto pro chão. Aí eu fiquei parada, tipo: “Não acredito que ele fez isso...”

P/1 – Ninguém acreditou, né?

R – Eu fiquei assim... Até que alguém falou assim: “Helena, você tem que ir lá ver o que aconteceu”. Eu falei: “não acredito”. Fui lá, alguém chamou o resgate, alguém avisou... Saí correndo falando assim: “Luís Felipe caiu, Luís Felipe caiu!” Luís Felipe era o menino que, na semana anterior, saiu da Fundação e foi atropelado na frente da Fundação. Eu falava: “O Luís Felipe caiu!”, era o Luís Guilherme, eu associando com outro menino. Aí entramos na ambulância, uma parte voltou pra Fundação, a gente foi até o hospital, mas não teve jeito. Uma coisa nossa terrível, horrível.

P/1 – Um impacto, né?

R – Nossa, péssimo. A gente fechou a Fundação um tempo, eu e a outra educadora. A gente ficou fazendo terapia um tempão, conversando com psiquiatra, psicólogo, fomos a grupo de oração. Eu ficava me perguntando: “Caramba, o que o meu anjo da guarda estava fazendo nesse momento, que eu não tive nenhum sinal de que isso ia acontecer, pra eu poder impedir? Por que eu não – eu estava meio longe – por que que eu não joguei a minha mochila nele? Por que que eu não tive nenhuma reação pra impedir?” Foi tão rápido e tão inusitado... Você não vai imaginar que uma criança, um adolescente de 13, 14 anos vai sair correndo e pular do parapeito, assim, do nada, de repente. Aí teve uma questão muito delicada com a família. Essa mãe, ela é evangélica, ela contou que ela tinha sonhado que ele ia ao passeio dirigindo o ônibus e na volta ele não estava no ônibus, e alguém falava: “ai, ele que escolheu não voltar”. Então ela teve um sonho assim e contou pra gente, né? Mas foi bem difícil.

P/1 – Isso teve algum problema pra Gol de Letra lá na região, esse caso?

R – Eu acho que não, não, porque foi... A gente deu bastante apoio pra família, fez tudo que podia fazer.

P/1 – É, tem coisa que nossa... Essa idade realmente é complicada.

R – É. Eu só fiquei um pouco mais aliviada quando o psiquiatra virou pra mim e falou assim: “Olha, eu trabalho com isso, eu dou alta pras pessoas que tentaram se matar algum dia. Eu dou alta pra pessoa, achando que ela está ótima, ela atravessa a rua e se joga da ponte.” Aí eu falei: “Bom, então realmente eu não tinha como prever. Se ele não tem como prever, então eu não tinha, na hora, como prever.”

P/1 – Você falou desse apoio que você teve com terapia e tudo. Existe, então, sempre na Gol, uma preocupação de estar sempre acompanhando também os educadores com formação, como se fosse uma reciclagem? Existe esse acompanhamento?

R – Tem. A gente tem formação mesmo, pedagógica, a gente tem duas vezes por ano, que chama capacitação. Uma vai acontecer agora em julho, antes das crianças virem. A gente vai uma semana antes pra ver palestras, pra discutir questões pedagógicas. E uma é em janeiro, também. É sempre uma semana antes das crianças. Agora, a gente não tem um psicólogo lá pra cuidar da nossa cabeça quando a gente ouve as histórias que a gente ouve. Acho que a gente tem uma questão muito de um ajudar o outro. Eu tive experiências ruins na Leitura e Escrita, eu tenho... A gente tem reuniões terça e quarta, no horário de socialização, que é o horário do recreio deles, né, vamos supor. Eu conto pros educadores o que aconteceu, aí eles ouvem, dão ideias. Quando alguém explode, sempre tem alguém pra acolher esse que explodiu, pra falar: “calma”. E quando tem briga entre os dois, sempre tem alguém que tá de fora... A gente tem a cultura de paz há pouco tempo, mas essa cultura de paz entre os educadores sempre teve um pouco de mediação de conflito.

P/1 – A cultura de paz é um projeto?

R – É uma das linhas de trabalho.

P/1 – Linha de trabalho? Como é a Cultura de Paz, ela começou faz pouco tempo?

R – Acho que ano passado. Mariane Feijó, que tem esse trabalho de Mediação de Conflito e Cultura de Paz com a PUC [Pontifícia Universidade Católica], ela foi chamada. Acho que a Mônica assistiu alguma palestra, alguma coisa nesse sentido. Ela achou que era uma coisa que tinha que ser implantada na Fundação, ela trouxe a Mariane Feijó e ela faz uma formação com a gente. Formação continuada, está sempre indo e discutindo temas. O nosso planejamento ela está presente pra dizer o que o projeto da gente tem a ver com temas de valor de Cultura de Paz.

P/1 – Mas a ideia é, assim, estar envolvendo inicialmente os educadores, é isso? E passar isso pras crianças?

R – Sim. Do mesmo jeito que a gente uma preocupação de fazer o projeto funcionar, a gente tem a preocupação de fazer a Cultura de Paz funcionar. Às vezes, a gente tem aulas diferentes, que envolvem todo mundo. Por exemplo, a gente teve, há pouco tempo atrás, a Gincana Circense, mas a gente já teve o Dia da Paz, em que todo mundo parou as atividades que a gente geralmente faz pra assistir um filme, pra ter uma discussão. A gente já representou uma historinha pra gente, pediu pra eles darem um final. Eu que não tenho preparo nenhum de teatro, já tive que atuar lá de formiguinha (risos). Era uma história que a gente criou assim, de conflito. A gente congelava a cena e perguntava para as crianças “e agora, o que ela vai fazer?”.

P/1 – Você se lembra dessa historinha?

R – Ah, eram formiguinhas. Tinha uma formiga chefe que era muito folgada e muito autoritária, tinha uma formiguinha que aceitava fazer tudo direitinho e tinha uma formiguinha revoltada com o patrão. Essa formiguinha que era revoltada com o patrão, ela também era muito folgada com as outras formiguinhas, e ela maltratava uma formiguinha, maltratava a formiguinha, maltratava a formiguinha até que a outra formiguinha, que era sempre pacífica, toma uma atitude super agressiva. Aí a gente parava a cena e perguntava: “o que tem que acontecer agora? Como elas vão resolver isso?” Aí a criançada tinha que...

P/1 – Debatia?

R – É. Isso foi um dos trabalhos, mas a gente já fez outros nesse sentido.

P/1 – Existe uma preocupação de também passar isso pra comunidade?

R – A comunidade é um pouco mais difícil, e começa pelos pais, né? Tem as reuniões com os pais. Nas reuniões com os pais também já foram feitas dinâmicas nesse sentido, de trabalhar com valores e tal. Essa parte eu não acompanho muito, que é a parte do social. Mas eu sei mais ou menos isso, que já foram representantes da PUC, os estagiários, conversar sobre mediação de conflitos. Já tem um plantão de mediação de conflitos, então. Já aconteceu de mães e pais se encontrarem naquele espaço pra ter um mediador ouvindo cada lado da questão e sugerir que eles entrem num acordo.

P/1 – Entendi. Então isso aí é a área social, que cobre essa parte. Legal isso. E assim, você que dá aula, então, em escola pública, como é que você vê? Porque a Gol de Letra tem a preocupação de ser uma complementação escolar. Você sente isso, você sente muita diferença, a experiência que você tem na Gol te ajuda na escola?

R – Olha, a escola e a Fundação ainda é um tema pra Fundação resolver e a escola resolver também. Eu vejo que é bem distante. Ela é distante geograficamente, as escolas da Fundação. Não há uma comunicação adequada entre a Fundação e a escola, e é muito diferente a linha de trabalho da Fundação e da escola. Eu não vim da escola pra Fundação, eu fui da Fundação pra escola. Eu já estava na Fundação há quatro anos quando fui concursada e fui pra escola pública. E eu levei um choque muito grande, porque com quatro anos de Fundação, já tinha um super vínculo com as crianças, de chegar e falar bom dia, de ser ouvida, de ser respeitada, da criança ter um afeto, de te abraçar e te contar o que aconteceu de fim de semana. E quando eu cheguei na escola, eles não queriam. Primeiro que eles não falam, até hoje, “boa tarde” pra você. Eu chego falando boa tarde, mas eles não te ouvem, porque eles estão fazendo bagunça. Não me ouviam de jeito nenhum. Eu, muito novinha, tinha substituído uma professora, porque o estado faz umas coisas muito nada a ver, né? Entrei no meio do ano, tirou a professora, não avisou, não falou nada com as crianças. Em um dia surge uma professora que não é a professora que eles estavam tendo aula, ninguém explica por que, ninguém sabe quanto tempo essa pessoa vai ficar lá dando aula. Então nossa, foi bem difícil. E as turmas muito grandes, porque aí já era uma época que a Fundação tinha 20 alunos cada turma. Uma turma muito grande, que não tinha vínculo nenhum comigo, que não estava nem um pouco a fim de me ouvir. Então foi uma luta. Esses primeiros anos de estado foram uma luta. E estado não tem uma equipe pedagógica, isso pra mim é a coisa mais complicada e difícil, porque a gente faz reunião, mas a gente fala, fala, fala e não chega em lugar nenhum. Porque cada um pensa de um jeito, cada um faz de um jeito e não tem ninguém pra unir as ideias. Na Fundação tem uma coordenação, e tem uma linha pedagógica muito clara. A gente trabalha com projetos, a gente tem um tema anual, esse tema anual tem um objetivo geral, cada área tem uma parte pra cumprir nesse tema geral. Tem alguém que lê seu planejamento e fala “olha, muito legal isso, olha isso aqui a gente pode mudar”, tem alguém que te dá um retorno do que você está fazendo, você tem reuniões pra trocar questões pedagógicas com os educadores. Na escola não tem. Então, pra começar, isso. Eu, se sou professora de português e está indo tudo bem comigo, ótimo, e dane-se você que é de matemática (risos). Então tem uma equipe pedagógica. A questão do acolhimento dos professores na escola com os alunos é muito diferente. Então eles, eu acho que eles não vêem a criança no todo, como a gente vê. Não sabem onde a criança mora, não sabem da história de vida daquela criança, não está a fim de saber, não tem como saber. Não tem tempo de conversar com a criança, mesmo se quisesse, não tem tempo, não tem uma estrutura pra você fazer mediação de conflito entre crianças, nem se você quisesse. Então eu acho que a escola está na pré-história, e a Fundação, em termos de educação, está lá na frente, e é dificílimo juntar. Porque, por exemplo, tem uma escolha de criança. A gente escolheu a criança tal pra ir pra França. A escola fala “mas como vai mandar essa pessoa pra França, esse menino que não assiste aula, que é assim, assim, assim e assim? Ele não merece ir pra França.” Ou então fala assim: “Esse bagunceiro devia sair da Fundação, por que esse menino está na Fundação e aquele ali não?” Não tem visão social nenhuma, não tem.

P/1 – Uma coisinha: você falou da mediação de conflitos. Assim, digamos, como é que você leva essa mediação de conflitos, isso que você aprendeu, o que significa na prática isso? Você teve as palestras, teve a formação em cima disso, né? Isso é pra você levar no dia a dia? Então assim, tem uma confusão na sua turminha, como você age?

R – Bom, primeiro a gente tenta acalmar os ânimos. A gente faz o que eu acho que é o principal da mediação de conflitos: você pede para uma criança falar a história dela e todo mundo tem que parar pra ouvir a versão dela. Depois você pede pra outra criança contar a versão dela e você vai tentando fazer uma ligação entre o que uma criança fala e a outra está falando. “Então você está dizendo que você se sentiu assim quando ele fez isso?” “Você está ouvindo como ele se sentiu?” “E você, como se sentiu quando ele fez isso?” Então tentar expor os sentimentos, o que está por trás daquela briga, pra tentar fazer as pessoas conversarem, pra tentar entrar num acordo.

P/1 – Na verdade você está educando eles, pra levar isso depois pro dia a dia deles.

R – É, esse é o objetivo maior.

P/1 – Deixa eu perguntar agora o seguinte: das atividades que a Gol de Letra, no geral, tem promovido, tipo o Dia da Diferença. Você chegou a acompanhar a primeira vez que aconteceu esse evento?

R – Nossa, faz muito tempo.

P/1 – Porque parece que é muito importante isso...

R – Na verdade, nos últimos anos eu me afastei, porque no começo, com uma equipe menor, a gente tinha mesmo que entrar em todas as atividades, participar mais e tal. Isso faz bastante tempo, eu lembro de ter ajudado de alguma maneira. Não sei te dizer agora como. Ter trabalhado pra coisa acontecer... Agora, com uma equipe maior, com uma divisão entre pedagógica e social, a gente tem tanta coisa pra fazer, o social tem tanta coisa pra fazer, que a gente acaba não participando de algumas ações.

P/1 – Mas tem algum evento, assim, marcante? Algum aniversário, teve o tal Dia da Faxina, não teve um negócio desse? Você lembra disso?

R – Lembro. Então, a gente tinha muito problema com pichação, com criança que não cuidava dos espaços da Fundação, e a gente resolveu promover o Dia da Faxina. Aí marcamos um dia que a criança... Era opcional, a gente não obrigou ninguém a vir, mas tinha que vir com uma roupinha diferente, mais velhinha. E todo mundo pôs a mão na massa pra tirar a pichação lá do lápis, esfregar a parede. Cada um... Eles adoraram, gastaram muito, muito material de limpeza, mas eu acho que ajudou bastante a questão de “esse espaço é meu, então eu tenho que cuidar dele também.”

P/1 – E isso teve uma continuidade, esse trabalho?

R – Não teve mais, só que...

P/1 – Mas foi preservado, o que foi feito?

R – É, acho que ficou no inconsciente das crianças. Tem uma coisa também, quando você entra num lugar que é limpo, que não é pichado, que é conservado, quebra uma coisa e é reposta, você não se sente à vontade de sair quebrando as coisas todas, porque quando você sai quebrando as coisas todas, sempre tem alguém que fala “não querido, você vai consertar, seu pai vai ter que arcar com uma parte disso, da reposição desse vidro”. Quer dizer, não acontece de quebrar um vidro, né? Teve uma época de esvaziar extintor, já não tem mais a questão de esvaziar extintor como tinha.

P/1 – Ah, teve muito isso?

R – Teve. No começo, quando colocaram lá, nossa! E pra criança entender que ela não podia esvaziar aquilo, nossa, demorou muito tempo. Educação, os processos são lentos, né? Mas a gente não tem uma questão só de falar “você não vai fazer isso!” O trabalho da Fundação é: “você não pode fazer, por causa disso, disso e disso. Se você fizer assim, vai ter essa conseqüência”, eu acho que assim a gente vai educando as crianças.

P/1 – Uma outra coisa, que você tinha falado anteriormente, que tem que ficar de olho na idade dele, pra eles passarem de uma fase pra outra, de uma turma pra outra. E como é que é isso, quando ele tem que sair? Porque parece que... Ele vive sete anos ali, cresce ali...

R – Isso.

P/1 – É um negócio meio difícil de falar com ele sobre isso?

R – Olha, como eles ficam sete anos, eu acho que eles vão enjoando do programa. Então a gente começou a ter, há alguns anos atrás, muito desinteresse na turma seis. Não só desinteresse, muito problema. Muito enfrentamento, muito conflito com o educador, muita falta, muito desestímulo. Aí a gente ficou durante muito tempo quebrando a cabeça, “o que a gente vai fazer com essa turma?” “Ah, vamos fazer um projeto diferente”, “que projeto diferente?” A gente se desdobrou em mil, a tudo que a gente tinha de ideia criativa, de aula diferente a gente usou. Planejamento compartilhado? “Tá, a gente tem esse objetivo: nós temos que escrever uma história, esse é o objetivo final.” “Pra gente fazer isso quais são as etapas que temos que fazer? Que aula a gente vai fazer hoje pra chegar nesse objetivo?” Fizemos de tudo, até que a gente chegou numa conclusão de que adolescente é um ser que, às vezes, ele não quer mesmo fazer aquilo. Tem o tempo dele de fazer nada, aquele tempo de ficar com aquela cara de nada, olhando pro teto, ou de não ter mais o mesmo interesse de ouvir a Helena falar de Leitura e Escrita ou de... Sabe? Aí a gente foi adequando a grade deles. Agora eles não vão mais os cinco dias, eles vão três dias. Não tem mais todas as atividades, mas tem oficina. Se ele sentir falta, por exemplo, do professor de teatro, ou da aula de teatro, ele pode fazer uma oficina de teatro, mas ele que escolheu. Não é que ele vai ter que fazer teatro, capoeira, dança. Ele escolheu a oficina de dança, ele escolheu o teatro. Mas durante um tempo, tinha uma pessoa, que era o Wellington, era um jovem – agora ele tem mais ou menos a minha idade, não é tão jovem assim –, da comunidade, ele organizava o Dia da Despedida. Ele arranjava um filme, fazia um campeonato. Era uma manhã ou uma tarde, ou um dia inteiro que se passava, só turma seis, os educadores e os funcionários. E almoçavam pra fazer essa despedida. De uns anos pra cá...Quando ele saiu, perdeu isso. Agora a gente está retomando, então o ano passado a gente planejou uma festa pra fazer... Tem um passeio sempre, um passeio especial, um Play Center, ou, não um passeio, mas uma atividade bem diferente. Já fizemos um acantonamento, então já passaram a noite na Fundação, com brincadeiras, com dança, pediram pizza, dormiram lá no prédio da Fundação. Ano passado teve a festa, esse ano eu não sei o que vai acontecer, estão pensando num acampamento mesmo, fora. Tem algum marco de passagem. E a gente começou a se preocupar e, como tem o Programa de Jovens, o que eles iam fazer logo em seguida, então de uns anos pra cá, também... Chega na turma seis, ele pode assistir as aulas do Programa de Jovens, é só ele completar 14 anos.

P/1 – Ele pode até continuar?

R – É. Ele não fica no Virando o Jogo e fica no Programa de Jovens, pra fazer essa transição.

P/1 – Que seria o FAC?

R – É, o FAC.

P/1 – O FAC você não acompanha, né?

R – Não, porque ou é à noite, ou é de fim de semana, não é no horário do Virando o Jogo.

P/1 – Deixa eu aproveitar o que você está falando aí: essa coisa de você atuar na Gol de Letra, você entrou como estagiária e agora é professora?

R – É, fui lá pra trabalhar, não aproveitei nada (risos).

P/1 – E o seu irmão foi pra lá também. Como foi essa ida dele? Foi de livre e espontânea vontade ou você chegou pra ele e...

R – Ah, totalmente livre e espontânea vontade. Eu só falei que tinha e ele foi atrás. Meu irmão adora música, então ele foi fazer oficina de música, e foi uma experiência muito legal, porque ele pegou uma fase muito boa do FAC. Eles gravaram, fizeram uma banda na oficina de música, gravaram um CD. Nossa, foi muito legal! Não sei por que eles não deram continuidade na banda, porque nossa, foi um trabalho muito bacana.

P/1 – E ele já saiu de lá ou continua ligado?

R – Não, saiu.

P/1 – Porque o FAC é um período, também?

R – É um período. Depois, ainda com as ligações que a Fundação tem ¬– a Fundação tem uma ligação, ou tinha, não sei, com o Projeto Criar, de parceria, de amizade –: “olha, tem inscrições pro Projeto Criar e tal.” Então ele entrou em uma das primeiras turmas e fez a parte de áudio. Ele saiu da música, do FAC, passou um tempinho e prestou Criar, fez a formação de áudio e hoje ele técnico de áudio.

P/1 – Ah, então serviu muito pra ele?

R – Sim.

P/1 – Nossa, interessante. Agora a gente está quase fechando mesmo. Maria Helena, é o seguinte: desse seu período de vivência na Gol de Letra, o que você poderia dizer que você aprendeu?

R – Nossa, eu aprendi a ser educadora. Teve a formação na faculdade, que é uma formação técnica, que me ajuda mais a pesquisar coisas do que propriamente a dar aula, mas dar aula mesmo, ser professora, ser educadora, eu aprendi na Fundação. Seria uma profissional totalmente diferente se eu não tivesse tido essa formação. Porque, imagina: eu fui, por dois anos, estagiária. Nesses dois anos eu vi duas pessoas, educadoras de Leitura e Escrita, que era a minha área; mas eu vi trabalho de Artes Plásticas, Teatro, Música, Dança, vendo esses arte-educadores trabalharem, planejarem aula, falarem sobre o trabalho deles. Eu acho que não existe alguém que tenha a formação que eu tenho.

P/1 – Então a gente pode fazer uma diferenciação entre professor ou educador?

R – Pra mim isso é muito claro. Se você conversar com a Carol, que é a minha colega de Leitura e Escrita da tarde, ela vai falar que não, mas ela é professora pedagoga. O pedagogo é educador e ponto. Mas quando você é professor de fundamental dois ou de médio numa escola publica, e é educadora na Fundação Gol de Letra, tem uma diferença gritante.

P/1 – Como é que você colocaria essa diferença?

R – O professor chega na aula, tem uma matéria pra dar, ele dá aquela matéria, dá a prova, o aluno passou ou não passou, é problema dele, vamos pro ano seguinte. O educador não tem essa avaliação classificatória do tipo, “você é aluno de A, você é aluno de E, você é bom, você é ruim”, não! Existe uma questão de... Uma avaliação sim, mas é uma avaliação da criança no todo, é você ensinar a criança no todo. Eu não preocupo se ele está escrevendo ortograficamente perfeito, mas se ele, como que ele... Ele está gostando mesmo de ler? Qual foi a história que ele gostou mais? Será que ele tem um repertório de histórias, de livros, de poemas? Será que ele gosta de ler em voz alta? Será que faz diferença pra ele a história que eu estou lendo? Quando eu vou procurar um livro na biblioteca, tanto pra ler na escola quanto pra ler na Fundação, eu não pego um livro qualquer, eu pego um livro que eu amei, porque eu quero que meu aluno ame. Isso é um olhar de educador, não é um olhar de professor.

P/1 – E assim, quando você pensa num livro... Se você está começando hoje, que livro você começaria? Qual o primeiro livro que você pensa em dar pra uma criança, em ler com ela?

R – Eu sempre leio do Ricardo Azevedo, um... Fugiu o nome. Ah, “Contos de Enganar a Morte”, porque eles amam histórias de terror. Porque eu leio em partes, vou dividindo a história nos clímax das histórias. Então eles ficam assim: “Ãh? Você não vai contar o resto?” “Não, isso vai ficar pra outra aula”. E isso vai criando um interesse na criança que é muito legal. Mas fora esse, tem vários livros que eu gosto de ler para eles. De poema, de adivinha... Esse é um dos que eu mais gosto de ler pra eles.

P/1 – Assim, se você pudesse traduzir a Gol de Letra em algumas palavras, como você traduziria?

R – A primeira, Educação; a segunda, Comunidade; a terceira, Formação, Formação de indivíduos. Acho que é isso, né? Não tem como resumir mais.

P/1 – E o que a Gol significa pra você?

R – É o trabalho que eu mais gosto, porque... Eu já falei né? É um trabalho que eu posso ser criativa. Eu que penso em qual livro, quando, como, de acordo com aquela turma, com aquele aluno. Se eu chego na aula, eu planejei escrever uma história, mas meus alunos não estão com cara de que vão escrever uma história, eu mudo, eu vou brincar, eu vou cantar, vou criar uma história oral, vou... Enfim, eu posso mudar o planejamento. Ninguém vai ficar cobrando que os alunos não aprenderam esses itens aqui.

P/1 – Beleza. Bom, a gente está fechando mesmo. A gente está fazendo esse trabalho de resgate da história da Gol de Letra. Como é que você vê a importância desse trabalho que está sendo realizado? Esse aqui, que a gente está, de resgate da memória.

R – A esse do livro? Ah, é muito importante! Porque a Fundação faz dez anos, ou fez dez anos, acho que é hora de registrar. Eu sempre fiquei preocupada com essa coisa do registro da história. Não sei se é porque eu estou há muito tempo, mas, assim, eu sempre guardei os cadernos de registros, e fotos, e coisas assim, porque eu sempre pensei: “puxa, não vai ter um, sei lá, um arquivo, nunca? Ninguém vai fazer um... Ninguém vai juntar todas essas fotos dessas crianças e fazer um banco de dados, alguma coisa assim?” Eu sempre fiquei preocupada com isso.

P/1 – Ai, Maria Helena, então você tem que visitar lá a Fernanda, que é a estagiária, ela está organizando o acervo de fotos e a gente não está conseguindo identificar muita coisa pra poder organizar. Qualquer hora você dá uma passadinha lá.

R – Tá bom.

P/1 – Você sabe qual salinha, né?

R – Sei.

P/1 – Bom, tem alguma coisa assim que eu não tenha te estimulado a falar? Que você gostaria de deixar registrado?

R – Ah, eu acho que não. Na verdade podia falar e falar e falar sobre a Fundação um tempão, né? Mas eu acho que as coisas principais e importantes foram ditas, foram perguntadas.

P/1 – O que você achou de dar essa entrevista?

R – Ah, eu gosto de falar da Fundação, eu gosto bastante.

P/1 – Você se sentiu bem?

R – Sim!

P/1 – Ah, então é isso. A gente agradece o seu depoimento.

R – Está certo.