Esse foi o bairro que conheci, então é daqui que eu gosto. Eu sempre mostro a primeira casa em que moramos: “Foi nessa que eu morei.” Já está diferente, não está mais como era, mas ainda está lá. Era uma casa que tinha claridade, o sol entrava... Era o que nos esquentava, pois, ...Continuar leitura
resumo
Roseane sempre trabalhou, desde muito novinha, e seu sonho era ser professora. Veio do nordeste para São Paulo, estranhou o clima frio e na escola estranharam o seu sotaque, mas ela não desistiu de estudar. Trabalhou de faxineira até que conseguiu realizar o maior sonho da sua vida. Foi educadora do C. C. A. Tijolinho e agora está como gerente.
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Vou ser professora
data (ou período): Ano 2018 Imagem de:Roseane Maria da Costa Camara
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Vou ser professora
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Depoimento de Roseane Maria Camara
Entrevistado por Fernando Bellini e Rayssa Vitória
São Paulo, dia 09/08/2018
Entrevista ZN-HV03
Realização: Museu da Pessoa
P/1 - Qual seu nome, o local onde você nasceu e o nome do bairro onde você mora?
R - Me chamo Roseane Maria da Costa Camara. Nasci na...Continuar leitura
Depoimento de Roseane Maria Camara
Entrevistado por Fernando Bellini e Rayssa Vitória
São Paulo, dia 09/08/2018
Entrevista ZN-HV03
Realização: Museu da Pessoa
P/1 - Qual seu nome, o local onde você nasceu e o nome do bairro onde você mora?
R - Me chamo Roseane Maria da Costa Camara. Nasci na Cidade do Cabo, Pernambuco. Morei cinco anos no Morro Grande e hoje moro na Vila Zat há mais de 17.
P/1 - Você veio com quantos anos para São Paulo?
R - 15 anos.
P/1 - O que você mais gostava de fazer quando era criança?
R - O que eu mais gostava de fazer era brincar com os meus irmãos. Porque como tinha três meninas e um menino, eu gostava muito de brincar. A gente aprontava muito naquele quintal em Pernambuco.
P/1 - O que aprontavam?
R - Não tem aqueles barris grandões? Os quintais lá são grandes. A gente entrava e o outro ficava empurrando até sair rolando dentro do barril.
P/1 - O que seus pais faziam?
R - Minha mãe era enfermeira e meu pai era açougueiro.
P/2 - Que lembranças você tem da sua mãe?
R - A lembrança que eu tenho é de ela sempre trabalhando muito e a gente ficando com outras pessoas. E a lembrança que eu tenho é que todo domingo ela levava a gente à praia. Do meu pai eu tenho pouca lembrança, porque ele morreu quando eu tinha 11 anos.
P/1 - Quais eram os principais costumes da sua família?
R - Nossa família sempre gostou de se reunir, fazer almoços... e eu acredito que eu peguei esse costume deles. Eu gosto muito de reunir a família na minha casa. Sempre que eu posso eu faço almoço. O almoço de páscoa é na minha casa, natal... sempre faço na minha casa.
P/1 - O que você lembra mais da sua casa lá onde você nasceu?
R - O que eu me lembro mais é do quintal, que era muito grande.
P/1 - Sente falta?
R - Sim. Do espaço...
P/1 - Hoje ainda tem esse espaço?
R - Não. Hoje já existem muros altos lá onde eu moro. A minha casa tem um muro muito alto.
P/1 - E a sua juventude aqui em São Paulo?
R - Foi boa.
P/1 - Boa como?
R - Quando eu cheguei aqui em São Paulo, o primeiro ano eu repeti, porque a gente veio em julho. Lá o ensino era bastante atrasado em vista do de São Paulo. Então no primeiro ano eu repeti de ano. Eu estudei na escola chamada Clodomiro Carneiro, que vocês conhecem muito bem. O diretor era o seu Francisco – ele era bravo. Eu repeti a sexta série, mas no outro ano eu já fui fazer a sexta série à noite, porque eu arrumei um trabalho. Meu primeiro emprego foi no supermercado ali na Itaberaba. Se chamava Supermercado Peri, que hoje é chamado de Supermercado da Freguesia do Ó. Eu trabalhei pouco lá, mas trabalhei. Consegui esse emprego com 15 anos. Então estudava de noite e trabalhava de dia.
P/1 - Fazia o que?
R - Eu entrei para trabalhar na padaria. O pessoal pedia e eu entregava o pão e o leite.
P/1 - Seu primeiro namorado foi aqui em São Paulo?
R - Não.
P/1 - Foi onde?
R - Lá em Pernambuco quando eu tinha 13 anos.
P/1 - E ele?
R - 18. Minha mãe era moderna, porque já deixou eu namorar com 13 anos.
P/1 - Lembra do nome dele?
R - Lembro.
P/1 - Tem saudades?
R - Não.
P/2 - E como foi esse encontro para começar a namorar?
R - Ele gostava muito da nossa família, então ele foi chegando na família e aos poucos foi conquistando, tanto que minha mãe deixou eu namorar. Então, nosso namoro terminou porque eu vim para cá e ele ficou.
P/1 - É casada? Tem filhos?
R - Hoje eu sou separada. Tenho dois filhos.
P/1 - Moram com você?
R - Somente a minha filha. Meu filho casou e foi morar na casa dele.
P/1 - Tem neto?
R - Tenho um.
P/1 - O que é ser avó?
R - Ser avó é voltar no tempo. É como se a gente fosse a mãe. A gente cuida, protege, se preocupa... às vezes muito mais do que o pai e a mãe.
P/1 - Qual a lembrança mais forte que você tem da escola?
R - Lembrança que eu tenho da escola é que quando eu era pequena eu tinha uma dificuldade tremenda de ir para escola, porque eu chorava muito, muito, muito. Chorava para ir para escola.
P/2 - Por que, você lembra?
R - Não... eu lembro, porque eu não queria ficar na escola.
P/2 - Você lembra como era a escola?
R - A escola era pequena. Não era assim uma escola igual hoje, umas escolas grandonas, cheias de salas... não tinha muitas salas. Lá no nordeste era tipo uma escola particular que minha mãe pagava. Não era escola pública. Mas eu chorava para ir para escola. Dei bastante trabalho para ela.
P/2 - Você não gostava da escola.
R - Não.
P/1 - Você fez que série no Clodomiro?
R - A sexta de julho até o final de ano, repeti e depois a sétima e oitava. Depois eu fui para o Augusto Ribeiro de Carvalho. Também estudava de noite e trabalhava de dia.
P/1 - Hoje a senhora é formada em?
R - Eu sou pedagoga com pós-graduação em psicopedagogia e tenho outra pós-graduação em gestão em projetos sociais.
P/1 - Há quanto tempo a senhora mora aqui no bairro?
R - Desde 1978.
P/1 - E como era o bairro antigamente?
R - Antigamente era tranquilo. A gente ia pras quermesse das igrejas... não era perigoso. Bastante tranquilo, não tinha assalto igual tem hoje.
P/2 - Vou voltar um pouco, antes de vir para o bairro: você falou que na sua infância sua mãe levava vocês à praia uma vez por semana.
R - Só no domingo.
P/2 - Como eram essas idas à praia? Se puder contar, descrever como era...
R - Era um dia agradável. Porque a gente levantava todo mundo cedo, minha mãe já deixava o almoço pronto e a gente ia para praia de ônibus. Quando a gente voltava, o almoço já estava pronto. Ai todo mundo tomava banho, almoçava...
P/2 - E na praia, como era?
R - Na praia era bastante divertido, porque eu sempre gostei de praia.
P/2 - Mas conta um pouco... assim, chegou na praia. Se você pudesse contar como era, o que acontecia em detalhes.
R - A gente gostava muito de brincar na areia. Todo mundo ainda era pequeno, meus irmãos também. A gente gostava muito de brincar na areia e minha mãe tinha muita preocupação. Como ela estava muito cansada muitas vezes, porque ela trabalhava de dia e de noite, a preocupação dela era manter a gente sempre perto. Nunca a gente saia de perto dela. Preocupação e a gente se afogar... então a gente sabia que tinha que brincar próximo dela. Então a gente não desobedecia.
P/2 - Gostava do mar.
R - Sempre gostei muito do mar. Acho que por conta da infância mesmo.
P/2 - Alguma vez aconteceu alguma coisa que até hoje você lembra?
R - Aconteceu. Veio uma onda e eu fiquei procurando o chão e não achei; fiquei em desespero. Acho que era para eu não gostar nunca mais de praia, mas eu continuo gostando. Achei que eu ia me afogar, mas foi só uma onda que me derrubou e eu demorei a levantar.
P/2 - Vou voltar mais um pouquinho: você disse que tinha esse namorado. Você se apaixonou por ele?
R - Sim.
P/2 - E como era o namoro naquela época?
R - Era muito simples. Somente ficar na casa, só na hora de ir embora que ia lá no portão, dava um beijinho e pronto. Só isso. Namoro era assim: pegar na mão. Todo sábado e domingo ele ia para lá e pronto, já estava namorando. O compromisso dele era ir para lá e eu me arrumava para esperar o namorado.
P/2 - Quando você veio para cá – daqui a pouco eu vou perguntar do bairro. Qual foi sua reação quando chegou aqui em São Paulo?
R - Eu fiquei bastante envergonhada, porque eu vim com o sotaque de lá, falava ‘‘oxente’’, ‘‘oxê’’, aí os meninos davam risada da gente, mesmo porque a gente não tinha agasalho, blusa de frio. A gente ia para escola de sandália, porque lá no nordeste é quente. Nossa roupa não era de rio. A gente ia para escola e os meninos riam da gente. Quando a professora falava o nosso nome os meninos já davam risada. Quando falávamos presente, então... todo mundo caía na risada. Aí a gente ficava bastante envergonhada, mas eu não desisti de ir para escola.
P/2 - E chegando na cidade... vocês vieram como de lá?
R - A gente veio de ônibus. Minha mãe veio primeiro com o meu padrasto, ele arrumou um emprego e ela foi buscar a gente lá. A gente veio de ônibus somente com a roupa.
P/2 - E como foi essa viagem?
R - Três dias dentro do ônibus, mas foi bom. Para gente era uma festa.
P/2 - Você lembra de um lugar que você passou assim e que foi marcante?
R - Naquela época... não. Que a vontade era de chegar. A gente tinha muita vontade de chegar para conhecer São Paulo.
P/2 - Por que vocês vieram?
R - Meu padrasto veio para arrumar trabalho e minha mãe saiu do trabalho dela lá e veio para cá para ficar junto com ele. Era minha mãe, meu padrasto e três irmãs e um irmão.
P/2 - E quando você chegou em São Paulo, qual foi tua impressão?
R - Eu achava tudo muito longe. Porque lá em Pernambuco era tudo muito perto, tudo pequeno. E aqui era tudo muito longe, grande...
P/1 - Seu padrasto sempre foi gente boa com você?
R - Foi. Cuidava da gente como se fosse os filhos dele.
P/1 - Ele é vivo ainda?
R - Sim. Só que eu não tenho mais contato com ele.
P/1 - Ele mora em São Paulo.
R - Sim.
P/2 - E sua mãe?
R - Minha mãe é viva, está aposentada. Hoje ela fica mais na praia do que aqui em São Paulo, porque ela gosta muito da praia. Ela se sente bem. Então ela está lá. Lá ela fica melhor de saúde, então fica lá. Ela tem uma casa na praia. Aqui em São Paulo acredito que a gente conseguiu vencer na vida. Tem muita gente que não consegue. A gente conseguiu comprar uma casa, um carro... só não estudou quem não quis, porque quem quis estudou. Minha mãe conseguiu comprar uma casa na praia, que era o sonho dela. Ela conseguiu comprar também um terreno lá em Pernambuco que é na praia, que era o sonho dela. Então minha mãe realizou quase todos os sonhos dela eu acho. Acho, não. Tenho certeza.
P/2 - Trabalhando sempre.
R - Trabalhando sempre como enfermeira.
P/1 - Você sempre se inspirou na sua mãe?
R - Para trabalhar, sim. Porque eu sempre gostei muito de trabalhar. Eu não consigo me ver sem trabalhar. Eu não sei, acho que fico maluca.
P/1 - E quando se aposentar?
R - Não sei. Não quero me aposentar não. Quem disse que eu quero? Quero trabalhar mais uns cinco anos, porque acho que eu estou bem ainda para trabalhar.
P/1 - Como era o bairro antigamente aqui? É Morro Grande, não é?
R - Sim. O bairro do Morro Grande era um bairro muito tranquilo. Domingo a gente ia para feira ali na Cruz das Almas; em julho a gente ia na quermesse; minha mãe deixava e a gente com as colegas... não tinha problema nenhum. Domingo a tarde a gente ia lá para cima pra aquela igrejinha onde hoje não se pode mais ir. Mas a gente ia para lá. Porque era um lugar bom aqui no Morro Grande. Não tinha perigo, não tinha problema... a gente ia para lá no domingo.
P/1 - Já tinha o cineminha ou não?
R - Tinha. Todo mundo só conhece como cineminha, não sei se tem outro nome pra aquele lugar. Mas o seu Júlio disse que lá foi uma fábrica. Há quem diga que lá foi uma fábrica há muito tempo atrás.
P/1 - Sente falta dessa época?
R - Não. Acho que foi bem aproveitada.
P/2 - Como foi aproveitada? O que você fazia e gostava muito?
R - Eu trabalhava e estudava muito, mas também passeava muito. Íamos para praia aqui, para Aparecida do Norte... a gente passeava bastante. Meu padrasto conseguiu comprar uma casa e um carro. Então a gente tinha como passear, não ficava só trabalhando e estudando. Passeávamos muito.
P/2 - Teve algum passeio desses que ficou marcado?
R - Quando eu casei, fui com minha mãe e meu padrasto para o Rio de Janeiro, fomos passear lá e conhecer as praias.
P/2 - Com seu marido?
R - Sim.
P/2 - Os quatro?
R - Meu padrasto, minha mãe, eu e meu marido.
P/2 - Conta um pouco dessa viagem....
P/1 - Conta um pouco de como foi a viagem para o Rio de Janeiro.
R - A gente foi de carro, numa Brasília bege. O primeiro carro que meu padrasto comprou foi um Fusca, e um dia a gente foi para Aparecida do Norte e a gente ficou na estrada. O Fusca deixou a gente na mão. Quebrou a correia e meu padrasto teve que esperar o dia amanhecer para poder comprar outra e virmos embora. Agora, para o Rio de Janeiro...
P/2 - Vocês ficaram na estrada a noite toda?
R - A gente voltou para Aparecida do Norte e meu padrasto foi comprar a peça para gente poder vir embora. Agora, para o Rio de Janeiro eu já era casada na época e foi minha primeira viagem depois de casada. Fomos para casa da minha tia lá em Campo Grande. Foi uma viagem boa, fomos conhecer a praia do Rio de Janeiro... já que minha tia estava lá, aproveitamos e fomos passear, conhecer a praia. Para você ver o quanto nossa família gosta de praia. Só se fala em praia.
P/2 - Foi romântico?
R - Não muito, porque eu estava com minha mãe e meu padrasto. Foi muito não. Mas foi bom.
P/1 - Lembra o nome da praia?
R - Não consigo me lembrar.
P/2 - Qual a diferença da praia do Rio para Pernambuco? Você sentiu diferença?
R - Sim. Nas praias de Pernambuco as águas são muito cristalinas, a gente consegue ver o pé. E nas praias nem do Rio de Janeiro nem daqui são tão limpas.
P/1 - O que mudou no bairro desde a época que a senhora vive aqui?
R - Acredito que o que mudou no bairro... a escola já tinha. O que mudou no bairro foi as UBS. Porque acho que naquela época não tinha. Biblioteca eu lembro que já tinha... UBS eu não lembro se já tinha.
P/1 - Era tudo asfaltado na época? Tinha enchente...
R - Quando eu vim para cá o Morro Grande já era asfaltado. Agora, a Vila Zat não era. Era barro quando a gente foi morar lá.
P/2 - As casas mudaram muito?
R - As casas mudaram muito.
P/2 - O que mudou?
R - Mudou porque hoje as casas estão bonitas, e naquela época era tudo muito simples.
P/2 - Isso no Morro Grande?
R - No Morro Grande e na Vila Zat também. Mudou muito.
P/1 - O que a senhora acha do bairro em que mora hoje?
R - Eu gosto do bairro. Eu só sinto falta no nosso bairro de não ter praça; não tem espaço pras crianças brincarem. Tem o parque da área verde... mas praça não tem próximo, só o parque da área verde.
P/1 - Tem algum fato marcante que aconteceu aqui no bairro e que a senhora não esquece?
R - Se tem, não estou conseguindo me lembrar.
P/1 - Bom ou ruim.
R - Estou puxando pela memória...
P/2 - Com você mesma.... quando mudou já era casada?
R - Não.
P/2 - Então vamos lembrar de quando você conheceu seu marido. Como foi?
R - Quando eu conheci meu marido eu estava noiva de outro. Aí eu fui trabalhar numa empresa e lá eu conheci ele. Aí, eu não queria casar, ele que ficava forçando a barra para casar. Tanto que ele comprou todos os móveis e eu não queria casar com ele, porque eu... acho que não estava apaixonada o suficiente por ele para casar. Aí quando eu conheci meu marido, logo terminei o noivado com ele. Isso foi um fato importante na minha vida, porque as famílias não aceitaram muito – nem a minha e nem a dele. Porque as famílias queriam que casasse, mas eu não queria e fui forte o suficiente para dizer: “não, não vou casar”. E não casei. Ele vendeu todas as coisas, foi embora para Rondônia e eu fiquei lá trabalhando. Depois de dois anos eu casei com o meu marido.
P/1 - A senhora tinha quantos anos?
R - Acho que eu tinha uns 18, 19...
P/2 - Quando você casou tinha 18?
R - Não. Eu casei com 21.
P/2 - Quando rompeu com o outro...
R - Eu rompi com o outro, demorei dois anos e casei com ele.
P/1 - A mãe da senhora aceitava?
R - No começo não. Todo mundo ficou contra, tanto minha família quanto a dele. Mas depois não tinha como não aceitar.
P/2 - Como você tomou coragem? Conta um pouco.
R - Foi bastante difícil tomar essa decisão. Porque envolvia as famílias – a dele e a minha. Estava todo mundo esperando o casamento. Uma história meio complicada, não queria estar na minha pele. Foi bastante difícil, mas eu fui forte e tomei a decisão. Disse: “não vou casar”, e não casei.
P/2 - Já estava tudo pronto para o casamento?
R - Da parte dele. Da minha, não. Ele comprou todos os móveis... eu não comprei nada. Porque acho que eu não tinha essa intenção de casar, mas ele ficava forçando a barra falando que queria casar para ir embora, viajar... ainda mais quando ele falou que ia embora e eu ia ter que ir com ele que eu não quis casar mesmo. Ele me assustou.
P/2 - E como foi seu casamento? Teve uma cerimônia, alguma coisa, ou não?
R - Meu casamento foi uma cerimônia simples, mas teve. Eu casei no cartório aqui da Freguesia do Ó, casei na igreja da Vila Zat. Foi uma cerimônia simples, porém foi muito bom.
P/1 - Trabalha no bairro?
R - Eu sempre trabalhei fora do bairro. O trabalho mais perto do bairro que eu tive foi aqui na Itaberaba. Sempre trabalhei longe. Trabalhei na Itaberaba, depois fui para Santa Marina, Lapa, Paulista... nunca trabalhei perto.
P/1 - E hoje trabalha no bairro?
R - Há 20 anos eu trabalho aqui no bairro.
P/1 - O que você faz e onde você trabalha?
R - E trabalho no ONG Tijolinho há 20 anos. Eu entrei aqui dia primeiro de setembro de 1998. Mês que vem faz 20 anos. Vocês querem que eu conte um pouquinho de como eu entrei, como foi, quando foi?
P/2 - Todo o caminho até hoje.
R - Quando eu era criança... vocês não perguntaram mas eu vou dizer: eu tinha o sonho de ser professora. Só que para ser professora eu precisava estudar o magistério de manhã e eu não podia estudar de manhã, porque minha família dependia do meu trabalho. Eu não trabalhava para mim. Meu trabalho era para ajudar em casa. Todo mundo trabalhava para ajudar em casa. A gente não trabalhava porque queria e o dinheiro era só nosso. Minha mãe dava uma parte do dinheiro para gente, porque a gente era menor de idade, e uma parte ia para ajudar em casa. Então, se eu fosse estudar o magistério eu tinha que estudar de manhã, e eu não podia. Tinha que estudar de noite para trabalhar de dia. Então, esse sonho foi adiado, ficou guardado. Porque quando eu era criança eu já sabia o que eu queria ser, ou quando eu era adolescente, com os meus 15, 16 anos. Eu já sabia o que eu queria ser. Se não nunca iria estudar magistério. Então, eu adiei esse sonho. Fiz o ensino médio normal, casei, comprei um carro – um Fusca -, tirei a carta; mas eu não conseguia dirigir o fusca, porque eu era medrosa. Então eu vendi o carro e casei. Depois de dois anos de casada eu tive minha primeira filha e mesmo com ela eu continuei trabalhando. Só que depois eu engravidei do meu segundo filho, aí eu já não conseguia mais trabalhar, porque ele chorava muito. Chorava de dia e de noite. Então ninguém ia conseguir olhar aquela criança, aí eu saí do emprego. Fiquei cinco anos sem trabalhar, fiquei fora do mercado de trabalho somente cuidando dos meus filhos e da casa. Com cinco anos ele já estava melhor e a minha filha já era mais velha que ele – ele tinha cinco e ela oito. Aí ela já conseguia ficar com ele para eu poder trabalhar. Eu arrumei emprego numa escola e passei dois anos lá. Eu entrava as 11 e saia às 7, então deixava a comida deles pronta. Eles chegavam de perua e ficavam trancados em casa até sete e meia, quando eu chegava em casa. Aí eu servia o jantar para eles. Eu deixava tudo pronto, porque eu entrava 11 horas na escola. Aí, voltei para o mercado de trabalho, consegui esse emprego na escola, fiquei dois anos lá. Só que lá eu ganhava pouco e precisava ganhar melhor. Aí eu falei para minha vizinha se ela não sabia onde estava precisando de pessoas para trabalhar, aí ela falou: “vou falar com a Marina?”, sabe a Marina? Também é minha vizinha. Só que eu não tinha amizade com ela e dona Maria que falou com ela: “Marina, onde você trabalha não tem uma vaga, a Rose está desesperada. Ela ganha pouco...”. Naquela época eu ganhava 140 na escola. Aqui eu ia ganhar 340. Aí Marina fez minha indicação, eu vim aqui, conversei com a Saba, preenchi a ficha e ela falou que eu ia começar a trabalhar. Voltei lá na escola – porque eu estava trabalhando quando arrumei trabalho aqui. Voltei lá e falei para o diretor da minha escola que eu tinha arrumado um emprego e ia sair de lá. Aí ele falou que não, que eu precisava trabalhar e que ele veio aqui falar com ela, porque vai que eu pedia a conta e depois ela não me pegava? Eu ia ficar desempregada. Ele veio aqui. A Saba chegava nove horas, ele a esperou e falou com ela: “mas a senhora vai mesmo dar emprego para ela? E se ela sair de lá e fica desempregada?”, Saba falou: “não, pode ficar tranquilo que ela vai trabalhar aqui”. Lá na escola, de certa forma, era tranquilo. Só na hora do intervalo que era um pouco mais agitado porque era muita criança. Mas quando eu entrei aqui eu falei: “meu Deus, eu não vou conseguir trabalhar aqui”. Os meninos eram muito agressivos, tiravam sangue um do outro. Quando olhei aquilo eu falei: “meu Deus, eu não vou conseguir trabalhar aqui”. Mas aí foi passando o tempo, eu fui me acostumando, me adaptando... aí eu fui ficando. Na realidade eu entrei aqui como auxiliar de limpeza. Lavava os banheiros. Passou um tempo e eu falei que queria ir para sala, porque eu tinha ensino médio e para ser educador... se chamava de monitor naquela época. Para ser monitor eu precisava só do ensino médio, aí a Saba falou: “vou te dar uma chance, vou te colocar na sala, mas você sabe. Se não der certo não tem volta”. Aí eu falei: “tá bom”, e fui para sala. Passei muitos anos na sala.
P/2 - Como foi a primeira vez que você entrou na sala? O que você fez, qual foi sua sensação?
R - Eu trazia comigo a sensação de dar aula para os meninos. Na realidade eu queria ensinar para eles. Mas eu sabia que aqui a gente não podia ensinar. Mas naquela época ainda podia, porque tinha um reforço escolar na nossa grade. Aí eu falei: “aqui é o lugar certo para mim. Aqui mesmo que eu vou ficar”. E fui ficando. Só que em 2009... eu fiquei de 1998 até 2009. Em 2009 eu percebi que se eu não fosse estudar eu não dava conta da turma. Porque as necessidades das crianças vão aumentando. A gente precisa dar carinho, atenção, mas temos que dar bronca quando precisa. E não dá sem ferramentas, sem saber direito como lidar com eles. Eu senti a necessidade... eu tinha a certeza de que eles vinham para cá porque eles olhavam na gente e esperavam alguma coisa. Como eu queria suprir a necessidade deles, fui para faculdade. Fiz minha matricula e estudei de 2009 até 2012, quando me formei. Em 2013 eu fiz pós-graduação em psicopedagogia, passei mais um ano estudando. Passei quatro anos estudando. No tempo que me formei eu passei pouco tempo com eles, mas ainda deu tempo de pôr em prática o que aprendi na faculdade. Muita coisa que aprendi na faculdade eu consegui botar em prática, mas logo eu passei para gerência. Porque surgiu a vaga e a Saba, como gerente do serviço naquela época, falou: “você aceita o desafio?”, eu falei: “aceito”, aí ela falou: “mas você sabe, né? Não tem volta. Se não der certo é rua”. Falei: “desafio aceito. Aceito o desafio desde que você me ajude”. Aí estou aí até hoje, desde 2013 como gerente do serviço. Procuro levantar todos os dias de manhã e fazer meu melhor. E mesmo com problemas, porque às vezes a gente tem problemas. Mas eu acredito que quando a gente põe o pé do portão para dentro, de certa forma pomos uma máscara. Porque afinal de contas os meninos esperam da gente alguma coisa que seja um olhar, uma palavra... que seja: “o que você tem? O que aconteceu? A gente está aqui e te ajuda”, porque às vezes eles vêm para cá meio triste, chateado. E aqui a gente tem esse olhar. Acredito que nosso ponto forte nessa organização é que a gente acolhe muito bem as crianças. Olhamos no olho, damos autonomia para eles. A gente dá voz para eles, os escutamos e damos bronca neles quando precisa. E é isso.
P/1 - Qual foi a maior diferença para você que estava numa escola e hoje trabalha numa ONG?
R - Na escola o contato com as crianças era muito distante, mesmo porque era muita criança. Aqui não: a gente olha carinha por carinha de manhã; carinha por carinha de tarde. Quando a criança não está vindo eu sinto falta, falo: “Lucia, fulano não está vindo; Lucia, tem uma criança da sua sala que não está vindo; Lucia, senta com as crianças e cobra deles a frequência. Precisa cobrar deles a frequência”. Falo bastante com eles sobre isso, principalmente os maiores. Os maiores vêm porque eles querem. Os menos não, a mãe fala para vim; a mãe põe na perua para vi, ou traz aqui os menos. Mas os maiores vêm porque eles querem. Porque eles podem, de dez anos... eu achei que minha filha com oito anos já tinha condição de cuidar do meu filho de cinco. Então as mães hoje acham que com dez já pode ficar em casa sozinho. Eles só vêm se eles querem e se eles buscam alguma coisa aqui. E acho que se eles vêm, é porque esperam alguma da gente. Eles buscam alguma coisa na gente. Nem que seja um carinho, atenção, puxão de orelha, bronca... acredito que é isso.
P/2 - Quando ainda em sala de aula você trabalhava com reforço.
R - Trabalhava.
P/2 - E lembra se teve alguma situação que até hoje quando você lembra dessa época ela vem na sua memória? Alguma história de algum aluno... algum acontecimento de quando você era professora.
R - Eu lembro de uma história, só não consigo me lembrar direito do nome da criança. Mas a criança pedia muito para ir ao banheiro. Toda hora – esqueci o nome dela, era uma branquinha... na primeira vez que eu peguei a sala eram as crianças de seis a nove. Então eram os menores. E ela gostava muito de ir para o banheiro. Aí um dia ela me pediu para ir e eu não deixei, aí ela foi no cantinho da sala e fez xixi. Eu fiquei muito chocada comigo, falei: “poxa vida”... às vezes, na maioria ela queria passear, mas naquele momento ela queria ir no banheiro. Mas eu não tinha como adivinhar que ela queria passear ou ir no banheiro. E eu não deixei. Ela foi no cantinho da sala e fez xixi. Aí a gente foi lá, arrumou um short, trocou ela e eu expliquei para mãe dela: “ela gosta muito, pede muito para ir ao banheiro toda hora. E nesse dia eu falei que não; ela foi no cantinho da sala e fez xixi”.
P/2 - Você lembra de alguma história que você falou: “nossa, consegui”.
R - Lembro. Teve uma época que estava muito difícil trabalhar com os meninos. Estava muito difícil, por quê? Eu estava estudando, já tinha um pouco de ferramenta para trabalhar com eles e eu trabalhava bem com eles. Eu fiz os meninos daqui fazerem um coral, cantar Tim Maia... já fiz muita coisa com eles. Fiz fazerem arte ao som de aquarela... fiz muita coisa legal com eles. Teve uma época que eu estava sentido muita dificuldade de trabalhar com eles e sentei com todo mundo, fiz uma roda de conversa e contei minha história de vida para eles. Aí eles ficaram todos pensativos... aí depois eles foram desenhar. Cada um desenhou uma coisa. Um me desenhou grávida... e depois eu pedi para eles falarem. Aí depois dessa atividade eles deram uma maneirada no comportamento. Ficou mais tranquilo. Aí eu percebi que uma simples roda de conversa, uma simples história que eu contei para eles, que era a história da minha vida e como vir do nordeste para cá, quando eu cheguei; como conseguimos estudar; comprar uma casa, aí de certa forma eles se acalmaram. Não sei se eles sentiram o drama: “coitada dela. Eu fico aí matando essa véia e essa coitada já está acabada”. Porque quando eu fui estudar eu já tinha 48 anos.
P/2 - E sua história sensibilizou eles.
R - Sim. Eles fizeram bastante desenho legal, me fizeram grávida... foi muito bacana. E eu não sabia que uma ferramenta simples dessa poderia acalmar a turma. Porque hoje em dia a sala é com 30 crianças, mas na época era 42. E a gente tinha que fazer o melhor com o que tinha. Se era reciclagem, o melhor que íamos fazer era com reciclagem. Não tinha material abundante como tem hoje. Pedimos e está na mão. Minha preocupação é dar ferramenta para as meninas trabalharem. Hoje, graças a Deus, estamos numa condição muito melhor do que a minha em sala. Hoje temos direito a um oficineiro, coisa que antigamente a gente mesmo tinha que fazer. Como que eu fazia aula de esporte se eu não sabia as regras do futsal? E os meninos queriam que a gente soubesse e a gente não sabia. Aí o que eu fazia: eu pegava os meninos que estava em escolinha e que sabiam as regras e botava eles para apitar o jogo e dava tudo certo. No final saía todo mundo contente. Hoje não, estamos em outra condição. Hoje temos um oficineiro de esporte, um de informática... o que de certa forma alivia um pouco a sala. Porque vem 15 crianças para aula de informática; a educadora fica com menos 15 crianças na sala. Agora, naquela época eram quatro horas com 40, 41, 42 direto. Só a gente segunda, terça, quarta, quinta e sexta. Então era só a gente. Hoje em dia as coisas deram uma melhorada.
P/1 - Qual foi a maior dificuldade que você encontrou em sair de auxiliar de limpeza para educadora numa sala de aula?
R - Minha maior dificuldade foi conseguir perceber qual era a verdadeira necessidade daquelas crianças. Porque eu acredito que antes eles poderiam até vir aqui por um prato de comida. Mas hoje eles não vêm aqui para um prato de comida, eles vêm em busca de algo muito além disso. Porque um prato de comida a maioria das pessoas tem em casa hoje. Antigamente a gente até podia dizer que eles vêm por conta da comida, mas hoje não. Então, como eles vêm em busca de outra coisa, a gente tinha que descobrir o que era a coisa que eles precisavam. Minha maior dificuldade foi essa, porque eu não entendia muito bem eles.
P/2 - Vou aproveitar a pergunta do P/1 - e como gerente, qual o maior desafio seu? Teve algum momento marcante?
R - Teve. Em 2013, logo quando eu entrei, foi a renovação do convênio em que a gente tem que escrever o plano de trabalho. O que é difícil e eu só tinha a experiência da sala. Se mandasse fazer uma atividade com os meninos, num instante eu pensava. Eu ficava em casa, chegava tarde da noite da faculdade e ainda ia fazer o jantar. Porque eu trabalhava o dia inteiro aqui, chegava em casa e ia para faculdade. Quando eu chegava 11 horas da noite eu ia fazer o jantar. Aí, quando estava fazendo o jantar eu já ficava pensando na atividade do outro dia. Porque como as coisas estavam muito frescas na minha cabeça na faculdade, era muito fácil. Porque eu aprendia na faculdade e punha em prática no outro dia. Minha maior dificuldade quando eu passei para gerência foi me desligar das crianças da sala. Porque eu ficava na minha sala, mas qualquer coisinha que acontecia eu já corria para ver o que houve. Porque eu acredito que os educadores são o coração dessa organização. Não que ninguém seja tão importante, mas os educadores são o coração da organização. Porque é neles que as crianças e os jovens depositam toda a expectativa. Eles que têm que estar de bom humor todo dia; eles que têm que fazer seu melhor com o que tem; se tem um menino danado, é com aquele que você tem que fazer seu melhor. Tem tímido, tem tudo. Então, nossos desafios são esses. Minha maior dificuldade quando eu fui para a gerência foi me distanciar dos meninos da sala. Porque um gritinho que eles davam lá eu corria para ver o que houve. Eu achava que eles não estavam sendo bem cuidados como eu cuidava.
P/2 - E hoje?
R - Hoje eu acredito que o maior desafio nosso é manter as crianças após os dez, 11, 12 anos. A gente procurar mesmo o que eles gostam; como alcançar essa faixa etária. Porque a gente vê que as salas... a sala da Sandra está lotada todo dia. A da Lúcia tem dia que dá uma caída e eu fico mais em cima da turma dela. Fico mais cobrando deles. Porque igual eu falei para vocês: eles vêm se quiserem. A mãe não vai obrigar mais porque já se vira. “Fica aí sozinho e já se vira, não tem problema. Não vai botar fogo na casa”. Mas eles precisam estar aqui, porque se não estão aqui, estão na rua, vulneráveis. Mesmo se estiver em casa, também está vulnerável.
P/1 - Sente falta da sala de aula?
R - Eu dou muito palpite nas formas de trabalhar; dou bastante ideia para elas. Eu sinto falta de fazer um trabalho com eles. Gostaria mais de ter um tempo para me dedicar a eles, fazer algumas atividades pontuais... se bem que a gente faz. A cada dois meses a gente faz uma avaliação com eles. Não é uma avaliação eles e o papel; a gente interfere, fala... “lembra disso; lembra daquilo; vocês têm que falar, porque se não falar não tem como a gente melhorar. E nossa intenção com essa avaliação é melhorar. Prestar um serviço de qualidade para vocês”. Uma vez que temos que desenvolver habilidades neles, o protagonismo... eles têm que ser autores da história.
P/1 - Qual o aspecto mais positivo de ser educadora, na sua opinião?
R - Ser formador de opiniões.
P/1 - E negativo?
R - Não consigo ver nada de negativo em ser um educador.
P/1 - E o aspecto positivo de ser uma gerente?
R - Porque um educador, você pensa que não, mas aprende com eles. Aprende muito. A gente aprende vocês. Pensa que não, mas aprendemos.
P/2 - Você contou como professora da sala. E como gerente, um acontecimento marcante, que te impressionou. Muito alegre, ou muito triste... com os jovens ou com os educadores, enquanto gerente.
R - Um acontecimento muito marcante foi que veio uma criança para o CCA que foi violentada em casa. Ela passou só três dias com a gente, três dias frequentando o CCA e depois ela foi abrigada. Isso me deixou muito frustrada, impotente. Porque a gente viu o caso, pegamos o caso e ele saiu da nossa... ela foi abrigada. A mãe perdeu a guarda. Ela estava num abrigo porque a mãe era conivente.
P/2 - E caso feliz? Ou coisas que acontecem...
R - Um momento importante foi quando a gente... ainda quando era orientadora, mas isso marcou bastante a minha história na sala. Era minha turma. Eles escreveram uma música. A gente ia daqui para o Fazendinha a pé uma vez por semana, de manhã e à tarde com 60, 80 crianças. E todo mundo ia e voltava de boa. Não sei se vocês conhecem o Fazendinha, mas é ali na Brasilândia. Aí, nessas caminhadas para o Criança Esperança os meninos fizeram uma música. Aí eles escreveram a música, cada um junto um pedacinho. E nessa música eles falaram de todos os funcionários, não deixou passar ninguém. Aí, lá no Criança Esperança tem um estúdio de gravação e eles gravaram um CD, o grupo. E na hora que fomos escutar o CD eles ficaram muito decepcionados, porque eles não gostaram do que ouviram. Assim como eu fiquei decepcionada com o vídeo. Eu sabia que eles iam fazer um vídeo, mas eu não sabia que eles iam colocar no Youtube. Quando eu vi eu falei que podia ser melhorado, e acho que foi a mesma coisa que eles sentiram. Eles não gostaram do que ouviram. Porque não tinha... tinha o pessoal do Criança Esperança que deu um apoio, mas não foi o suficiente para eles. Eles acharam que não ficou boa a voz deles no CD. Aí eu falei: “poxa vida. Um dia nesta organização eu queria colocar lá, queria que tivesse aula de música, instrumentos musicais, percussão... para eles nunca mais ficarem frustrados com o serviço deles”. Eles ficaram muito frustrados. Não gostaram do CD.
P/2 - E você está conseguindo alcançar essa meta?
R - Por enquanto, não. Mas não deixou de ser sonho, ainda pode ser realizado.
P/1 - E qual o aspecto positivo de ser gerente de uma ONG? Era o que você queria alcançar?
R - Na realidade o que eu queria alcançar mesmo era ser professora. E acho que eu fui professora durante muito tempo, mas ser gerente eu acho que a expectativa boa é a gente saber que podemos contribuir com nossa experiência. Contribuir muito na formação das crianças, apesar de que não ficamos tanto com eles. Mas de certa forma eu contribuo pelos bastidores na hora do planejamento, na hora de fazer as atividades eu dou meus palpites...
P/2 - Quando você vai fazer essa conversa com eles dessa formação, você leva tua experiência. O que é mais importante que você passa para eles da tua experiência?
R - Eu sempre passo para eles, que eles reclamam às vezes das crianças que é isso, aquilo... eu falei: “vocês têm que ter um olhar. Porque aquela criança é do jeito dela. Ela deve ter alguma coisa que ela goste, porque não é possível”, trabalhar com uma criança e falar: “mas aquele menino não quer nada”, eu falei: “quer sim. Procura lá que uma hora você vai achar alguma coisa que ele goste, porque não é possível”. Eu falo para elas: a gente está aqui para fazer a diferença na vida deles. Então nós que temos que trazer. Eu cobro muito delas pesquisar, procurar, elaborar atividades prazerosas... porque é isso que eles precisam. É isso que eles precisam aqui. Eles precisam se sentir úteis. Eles precisam ter a autonomia aqui. E temos conseguido isso de certa forma, porque uma vez por semana tem aula de dança e de artesanato. Eles podem escolher onde querem ficar. Então, eles têm autonomia aqui, eles têm voz. Eles têm a caixa de sugestões lá em cima, em que eles falam o que está bom e o que não está, o que precisa ser melhorado... eles dão opinião do professor de esporte. No final da avaliação, a cada dois meses a gente faz e tabula, mostra para os educadores.
P/2 - Até que idade? Quantos anos eles têm?
R - Temos de 6 a 14 anos e 11 meses. Mas com 14 anos a gente já percebeu que não conseguimos segurar mais eles. Então conversamos com a Renata e... a maioria dos que descem vai ficando. Não sai.
P/1 - Teve algum momento que você... quando recebeu a proposta de ser gerente, de cuidar de crianças e adolescentes e ter que cuidar de adultos e ter que gerenciar... você pensou alguma vez em não querer ser gerente? Falar: “será que é isso que eu quero?”. Passou na sua cabeça em algum momento?
R - Eu tive muito medo. Tive bastante medo, mas na hora eu não pensei. Dei logo a resposta de que aceitava o desafio.
P/1 - E hoje está sendo prazeroso?
R - Sim.
P/1 - Quais as vantagens em trabalhar no bairro onde você mora?
R - A vantagem é que logo estou em casa. Se eu sair daqui cinco horas, 5:20 estou em casa.
P/1 - Não tem trânsito.
R - Sete minutos daqui para minha casa.
P/1 - Você trocaria seu bairro para morar em outro?
R - Não.
P/1 - Por quê?
R - Porque é aqui que eu me reconheço.
P/1 - O que tem nesse bairro que te atrai, te deixa mais Roseane?
R - A identificação que eu tenho com esse bairro é que foi o bairro que eu conheci quando eu cheguei em São Paulo. Então é aqui que eu gosto. Quando eu passo na primeira casa que eu morei aqui em São Paulo, eu falo para o seu Julio: “Seu Julio, foi nessa aqui que eu morei”. A casa já está diferente, não está mais como era quando a gente morava, mas a casa ainda está lá. E eu sempre mostro para o seu Júlio a primeira casa em que moramos aqui em São Paulo.
P/1 - O que é mais marcante nessa casa que você morou?
R - Era uma casa que tinha claridade, o sol entrava... era o que esquentava a gente no frio, quando chegamos e não tínhamos roupa de frio. A gente ficava procurando o sol para se esquentar.
P/2 - Brincava na rua?
R - Não. Nesse tempo não, a gente já tinha 15 anos.
P/1 - Por que não?
R - Porque precisávamos trabalhar. Já tínhamos aquela consciência de ter que trabalhar para ajudar em casa.
P/1 - Morava de aluguel?
R - Aluguel.
P/1 - Passou fome?
R - Não. Quando chegamos aqui em São Paulo meu padrasto comprou tudo: geladeira, mesa, cama, cadeira... só não tinha fogão. Aí passamos uns dias sem fogão. A gente comia o pão da padaria e o leite frio. Passou uma semana acho.
P/2 - Você falou que assim, com 15 anos... eu imaginei alguns irmãos brincando na rua, mas isso não aconteceu.
R - Não.
P/2 - E para se divertir aqui no bairro o que vocês faziam, mais adolescente, jovem? Antes de casar.
R - Não. A gente só ia para essa igrejinha no domingo. Trabalhava, estudava à noite e no domingo ia para igrejinha.
P/2 - Tinha alguma coisa interessante que acontecia além de rezar na igreja?
R - Não era uma igreja, era um espaço assim...
P/2 - É uma igreja abandonada.
R - Era uma igreja abandonada. Na realidade era um cinema abandonado, não sei porque colocaram o nome de igrejinha, não é, Rayssa?
P/2 - Tem também o cinema.
R - Então, lá não é que era uma igreja. Era um espação assim, um descampado para grandão. Uma área aberta assim... aí a gente ia para lá.
P/2 - E fazia o que?
R - Ficava lá, passava a tarde, depois vinha para casa. Foi o primeiro lugar, quando viemos do nordeste, que tínhamos para ir domingo a tarde. Ai a gente ia para lá.
P/1 - Tem alguma coisa que tinha no bairro e hoje não tem e você sente falta?
R - Não.
P/1 - Quermesse...
R - Quermesse tinha, hoje não tem mais, é verdade. Hoje tem o funk lá no Iraque.
P/1 - E as quermesses, tinha em todos os cantos?
R - Sim.
P/1 - Qual era a melhor aqui do bairro?
R - Eu ia sempre na Rua 2 que o pessoal fala, a rua da feira. A gente sempre ia lá porque era mais perto.
P/2 - Como era essa quermesse?
R - Tinha as barracas, música...
P/2 - Em que época tinha essas quermesses?
R - Em 79.
P/2 - Mas em toda época do ano?
R - Só na festa junina. Julho e julho tinha festa junina e a gente ia.
P/1 - E quais são as coisas mais importantes para você hoje?
R - Acho que são meus filhos, meu neto...
P/1 - Você realizou todos os seus sonhos?
R - Não. Ainda tenho sonho para realizar.
P/1 - Pode falar qual.
R - Posso. Eu moro com minha mãe. Ela tem seis casas, então cada filho tem sua casa. Mas eu ainda tenho o sonho de comprar uma casa.
P/2 - Você falou que se separou.
R - Sim.
P/2 - Muito cedo?
R - Não, eu fiquei 30 anos casada.
P/2 - Eu queria saber um pouco mais daqui da região, sabe? Porque o Fernando perguntou várias coisas, mas tem alguma coisa aqui da região que você acha interessante contar, como era e que a gente não perguntou? Você falou que passa na casa e tem aquela emoção. Alguma outra coisa aqui do bairro que ele falou... o que você gosta tanto, se identifica...
R - Antes aqui na rua do Mangue tinha enchente. Qualquer chuvinha que dava tinha enchente e enchia a creche e tudo. Era um transtorno. Hoje isso melhorou. Eles canalizaram o córrego e hoje não tem mais enchente.
P/2 - Você viu alguma vez alguma cena que te impactou?
R - Sim. A creche ficou debaixo d’água.
P/2 - Muitas vezes?
R - Dos anos que estou aqui eu vi algumas vezes isso acontecer.
P/2 - Mais alguma coisa que você acha importante falar desse bairro que você gosta tanto? Por que você gosta tanto daqui?
R - Eu gosto daqui porque... onde eu moro mesmo é tranquilo. Todo mundo sai para trabalhar, voltamos e está tudo tranquilo. Ninguém mexe em nada... às vezes a gente sai e chega tarde também, tudo tranquilo. É a tranquilidade do bairro mesmo.
P/2 - E sua história está aqui.
R - Minha história está aqui, parte dela.
P/2 - E a outra parte?
R - Está lá no nordeste.
P/2 - Tem alguma coisa que você queira contar e que a gente não te perguntou?
P/1 - Quer responder alguma pergunta que não fizemos?
R - Não... acho que vocês foram bem.
P/1 - E como foi contar sua história.
R - A gente faz uma viagem no tempo. Botar em prática as lembranças.
P/2 - Qual a sensação de voltar no tempo?
R - É bom contar nossa história. Já é a segunda vez que conto, mas é bom. Acho que é bom as pessoas saberem também, assim como também deveríamos nos interessar pela história dos outros amigos também. E às vezes a gente não tem nem tempo. Olha quanto tempo demandou para contar tudo isso para vocês...
P/2 - E a gente ia continuar aqui te ouvindo se você quiser.
R - Não, mas estou aqui. Se quiserem perguntar, podem perguntar.
P/2 - Se você contar de alguma coisa que não tenhamos perguntado, é isso que eu quis dizer.
R - Rayssa, quer perguntar alguma coisa? Nada?
P/2 - Ficou curiosa?
R - Tem alguma coisa que você queria saber que eu não expliquei direito? Pode perguntar. Não quer saber como eu paguei a faculdade? Não quer saber? Foi difícil pagar.
P/3 - Vocês são crentes, católico?
R - Eu vou na igreja crente.
P/3 - Toda a família?
R - Não. Mas a maioria vai.
P/2 - E como você pagou a faculdade?
R - Foi difícil pagar. Fiquei quatro anos sem comprar roupa e sapato.
P/2 - Você tinha os filhos já.
R - Tinha. Primeiro, eu ajudei minha filha a pagar a faculdade dela. Ela fez enfermagem e foi trabalhar. Aí quando ela já estava no último ano da faculdade eu fui fazer a minha. Porque aí não precisava mais ajudar ela, porque já estava encaminhada. Era o último ano e estava trabalhando.
P/2 - Eu fiquei com vontade de perguntar uma coisa, não sei se vou conseguir expressar. Você falou: “eu contei minha história para os meus alunos e eles ficaram diferentes depois que contei”. O que de mais significativo você contou para eles? E que talvez não tenha contado para gente.
R - Eu contei desde que eu vim para cá até eu ir para faculdade. Contei que eu tinha o sonho de ser professora, mas que não podia estudar e agora estava tendo a condição... que eu formei minha filha primeiro para depois estudar...
P/2 - Essa foi uma história marcante. Essa busca. Quer falar mais alguma coisa sobre isso? Já vamos encerrar.
R - Não, já falei tudo o que tinha que falar.
P/2 - Então é isso. Foi ótimo, obrigada.
R - De nada.
P/1 - Obrigado, foi muito bom mesmo.Recolher
Título: Chegando a São Paulo
Data: 09/08/2018
Local de produção: Brasil / São Paulo / São Paulo
Entrevistador: Bellini Fernando Personagem: Roseane Maria da Costa Camara Entrevistador: Rayssa Vitória Autor: Museu da Pessoahistórias que você pode se interessar
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