Santa Cruz do Rio Pardo - Projeto Todo Lugar Tem uma História Para Contar
Depoente Aparecido de Jesus Ribeiro
Entrevistador Eliana Neves Pedro Ferreira e Márcia Trezza
18 do dez de 2018
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P/1 - Aparecido, seu nome completo, idade e data de nascimento.
R - Meu nome é Aparecido de Jesus Ri...Continuar leitura
Santa Cruz do Rio Pardo - Projeto Todo Lugar Tem uma História Para Contar
Depoente Aparecido de Jesus Ribeiro
Entrevistador Eliana Neves Pedro Ferreira e Márcia Trezza
18 do dez de 2018
SCRPHV010
P/1 - Aparecido, seu nome completo, idade e data de nascimento.
R - Meu nome é Aparecido de Jesus Ribeiro. Minha de nascimento é 27 do dez de 78.
P/1- Aparecido, eu gostaria do seu nome, de onde que vem o seu apelido como Cidinho.
R - O nome foi a minha mãe quem deu. Esse apelido...
P/1- Desde a infância?
R - ...desde a infância. Desde de pequenininho.
P/1- Como era o Cidinho como criança?
R - Bem arteiro e bagunceiro.
P/1- Quais eram suas artes preferidas?
R - Matar os passarinhos. Caçar de estilingue, pescar. Às vezes pegava aqueles peixes bem pequenininhos, arrancava a cabeça deles. Essas eram as duas artes.
P/1- Cidinho, você sempre morou por aqui?
R - Toda a vida. A vida inteirinha.
P/1- No seu José ou na Divineia?
R - Na Divineia.
P/1- O que você lembra sobre a sua infância lá?
R - Na minha infância, do que eu lembro, é que as coisas eram bem mais difíceis. Eu tinha de sair 18h e às 19h voltar porque o pai era muito rigoroso e não deixava sair. É uma das coisas que eu lembro bem, recordo, mas graças a Deus, para mim, isso foi ótimo.
P/1- De travessura sua, fora matar passarinho e essas coisas, quais eram as outras que você fazia com os seus amigos?
R - Com os meus amigos nada, mas as minhas travessuras era namorar escondido, porque o pai da minha esposa era muito bravo, então eu tinha de namorar escondido. Acho que isso era a travessura mais arriscada que eu fazia.
P/1- Você frequentou a escola?
R - Frequentei a escola.
P/1- Como você era como aluno, como escola, com um professor, que você tenha uma recordação gostosa, que lembrou, que sempre lembra com carinho, às vezes, até hoje?
R - Eu tive muitos professores, mas a que eu mais lembro é ali do Marisa Henrilson, a dona Antônia Brasque. Dela eu me lembro bem.
P/1- Era uma professora.
R - Professora.
P/1- Qual lembrança você tem dela?
R - Era uma pessoa muito prestativa. Ela se preocupava muito comigo. No primeiro dia de aula que eu fui na escola, eu não tinha chinelo para ir. Ela me deu um par de chinelo. Lembro disso até hoje. Isso está guardado na minha memória, no meu coração. É uma pessoa que eu admiro muito e tenho muito de agradecer a ela.
P/1- Sobre sua infância ainda, do que você mais gostava? Como era a sua relação com a sua mãe, com o seu pai? Você era um menino calmo, era um menino bravo, era um menino que acatava o seu pai para chamar a atenção ou não? Como era o Cidinho como filho?
R - O Cidinho, como filho, era muito obediente. Nunca dei trabalho para o meu pai. Às vezes apanhava, mas era travessura, coisinha simples. Às vezes mandava tomar banho, eu não ia, saía correndo para continuar brincando. Isso eram as travessuras que eu tinha com meu pai e minha mãe. Nunca fui de dar trabalho não.
P/1- E como marido? Você casou cedo?
R - Casei cedo, com 18 anos.
P/1- Quantos filhos você teve desse relacionamento?
R - Tenho três e está vindo a quarta, agora, que é a menininha.
P/1- Eu vou voltar só um pouquinho ao seu pai e à sua mãe: se você fosse descrever seu pai e sua mãe, como eles eram com você, alguma coisa que eles faziam, que você lembra bem?
R - Uma coisa que eu lembro bem é que quando eu era criança, que morava com meus pais, é quando íamos para o sítio. Ele sempre me levava para andar a cavalo. Recordo bem do meu pai. A minha mãe já era bastante preocupada comigo. Sempre preocupada. Às vezes saía um pouquinho e: "cadê ele, cadê o menino?". Essas são as lembranças que eu tenho.
P/1- Continuando, então. Você vai ter a sua quarta filha?
R - A quarta, agora. Uma menininha.
P/1- Eu queria que você me descrevesse como é o Cidinho como pai.
R - O Cidinho como pai é um pai como qualquer outro. Um pai prestativo, amoroso. Sempre preocupado. Às vezes passa os filhos na frente. Às vezes eu tenho alguma coisa para fazer e deixo para depois e faço o deles primeiro. Eu sou um pai amoroso, bastante afetivo. Acho que no dia a dia vou aprendendo mais ainda.
P/1- Você é autônomo, não é? Eu queria saber como você é como pessoa. O Cidinho amigo, uma lembrança que você tem desde o seu casamento, com relação aos seus filhos, uma parte importante. Você poderia contar alguma coisa importante que aconteceu dentro dessa sua vida de casado, sua? Uma felicidade ou uma tristeza ou um arrependimento de ter cometido? Porque nós cometemos erros.
R - Com certeza.
P/1- Eu gostaria que você contasse alguma história que ficou muito marcada de você como marido ou como pai.
R - Eu acho que a maior tristeza que teve na minha vida foi quando eu e minha esposa ficamos separados, uns dias. Coisa de casal, sabe? Não tenho vergonha de falar porque acho que temos de ser abertos e transparentes. Uma coisa que aconteceu comigo, que foi para eu enxergar a riqueza que eu tenho ao meu redor. Eu estava com cabeça de moleque, balada, festa. Só que graças ao bom Deus eu acordei antes e enxerguei a riqueza que eu tinha ao meu redor. Graças ao Bom Pai, hoje eu estou junto da minha família.
P/1- Com relação ao Carnaval, o que é ele para você?
R - No meu pensar, é um meio de me aproximar mais dos meus amigos. Antigamente eu gostava muito de Carnaval. Em toda a vida participei na parte de tamborim. Para mim, eu vejo que é uma parte de me aproximar mais dos amigos.
P/1- Posso perguntar? Qual foi a primeira vez que você participou da bateria?
R - Da bateria? Já faz muito tempo.
P/1- Conta como foi. Você lembra do primeiro dia que você entrou (inint) [00:07:21].
R - Lembro.
P/1- Então conta.
R - Eu só não lembro da idade que eu tinha, mas faz muito tempo. Lembro que a primeira vez era, se não me engano, o Jarbinha mesmo, o Jarbas, que organizava o tamborim. Ele deu um tamborim para mim. Ficou olhando meio que de rabo de olho, assim, falou: "acho que não vai ter futuro, não", mas de repente, no dia a dia, fui ensaiando e até que me saí bem no tamborim. Acho que isso é uma recordação que eu nunca vou esquecer.
P/1- Mas por que você acha que ele falou isso?
R - Acho que ele deu uma olhadinha e falou: "acho que esse aí"... não sei, acho que é, às vezes, a intuição nossa. Eu pensei: "será que ele não foi com a minha cara?", mas eu acho que estava enganado, viu?
P/1- E conta, assim. Você ensaiou e (no dia) [00:08:06].
R - No final estava tudo 100%. Bem afinadinho. Acho que naquela época tinha uns dez meninos, todos em um nível só. Fizemos a apresentação. Pelo que me lembro, saímos lá do antigo bombeiro, hoje, a DEFS, e descemos até o correio, tocando. Foi a coisa mais linda do mundo. É uma coisa que eu jamais esqueço, do nosso carnaval.
P/1- E era uma escola de samba, um bloco?
R - Tinham vários blocos. Do tamborim, bateria, ala das baianas, tinha bastante bloco. Nessa época a avenida lotava de gente.
P/1- E a emoção? Qual é a de você descer uma avenida?
R - A emoção é sempre grande. Eu já estou até meio acostumado com essas emoções de carnaval, de corrida de (boi) [00:08:48] essas coisas. Eu estou sempre participando e já é normal.
P/1- Eu gostaria de saber sobre amigos. Quais são seus amigos? Você tem algum amigo em especial? Aquele amigo que você nunca esqueceu, aquele amigo que na hora que você precisou estava lá? Quem são? Quais são? O que eles significam para você?
R - Primeiramente, meu melhor amigo é Deus, mas eu tenho vários amigos. O Jarbas, o Joãozinho, o Zezinho. Tenho vários amigos, mas um amigo que faz falta para mim - que faleceu há pouco tempo, de acidente de moto, sabe - e é uma pessoa para a qual eu tiro o chapéu e que peço a Deus que no lugar que esteja Deus dê muito conforto e muita paz e agradeço a Deus por tê-lo colocado no meu caminho, que é uma pessoa em que toda a vida, que eu contei, precisei, ele estava do meu lado.
P/1- O que ele significou para você?
R - Para mim, significou uma amizade muito forte, de nível de irmão. Para mim, representou isso. Ele era um cara que, sem palavras. Não tenho nem comentário a respeito dele.
P/1- Teve alguma situação que você pode contar para nós, em que aconteceu alguma coisa e que mostra essa amizade dele, sua?
R - Já teve. Ele passou por um tratamento de quimioterapia. Nós trabalhávamos no frigorífico juntos. Um dia eu cheguei, ele estava no cantinho, amuado, quieto, mas nós sabemos. Nós percebemos. Quando temos amizade demais, intimidade, nós percebemos. Olhei nele. Eu o chamava de Primo. Falei: "Primo, o que está acontecendo?". Ele falou: "nada não, Primo". Eu insisti duas, três vezes. Disse: "você não está legal". Ele foi se abrindo: "Primo, estou com muita dor. Descobri que tenho de fazer quimioterapia". Sentamos, conversamos. Ele chorou, assim, no meu ombro. Eu lembro até hoje de uma palavra que eu disse para ele: "Primo, Deus sabe o que faz. O que tem de acontecer, acontece. Vamos entregar na mão de Deus. E nós, aqui, eu dou força para você". Lembro até hoje disso. É uma coisa que também marcou para mim.
P/1- Como foi? O que você sentiu na hora? Tudo bem, nós falarmos é uma coisa, mas você sentiu medo de perder ele?
R - Senti, porque a morte ninguém prevê, mas eu tive medo. Ele também tinha medo e falava para mim. Mas fazer o quê? Acho que cada um tem sua hora, seu dia. O que eu pude fazer para ele em vida eu fiz. O confortei muito. Até hoje eu peço para Deus que ele esteja em um bom lugar e eu acredito que lá de cima ele também está olhando por mim.
P/1- Você falou sobre a corrida de boia. O que ela significa para você? Aventura? Você gosta? Como foi descer o primeiro dia a corrida de boia?
R - Para mim, era uma aventura, mas com o passar dos anos foi se tornando uma rotina. Todo ano que eu ia, ganhava um trofeuzinho. Fui acostumando. Para mim é muito importante, é muito legal. Tem vários fatores que marcam nossa vida. Um desses é a corrida de boia também.
P/1- O que é a corrida de boia? Explica para nós o que é.
R - Todo ano tem um evento. Juntam umas 100, 150 pessoas. A prefeitura faz uma inscrição e coloca troféus de premiação. Vamos lá no Salto do Dourado, no Rio Pardo - acredito que dá uns quatro ou cinco quilômetros para cima. Chegando lá, eles tem um apito. Eles dão um apito e todo mundo pula na água. É por categoria. Tem o livre, equipe, mirim, veterano. Por equipe, os que forem chegando vai somando pontuação.
P/1- Mas você nada ou vai com boia?
R - Com a boia. Sempre com a boia porque a distância é muito longa. Era com boia.
P/1- Você já passou algum apuro com relação a isso, dentro do rio?
R - Passei.
P/1- Pode contar?
R - Posso. Nós estávamos descendo. Geralmente, na beirada do rio tem galhada. Eu não consegui sair e a boia rodou embaixo de um paradão. Enrosquei no arranha gato. A boia virou e foram uns três, quatro minutos de aperto, mas eu superei e continuei descendo, só que nesse ano não ganhei nada não. Fiquei enroscado nos galhos.
P/1- Quando a boia virou deu medo.
R - Deu medo, porque ela ficou por cima. Nós vamos lá embaixo e até voltar... mas graças a Deus não foi nada demais não. Foi uma coisinha tranquila.
P/1- Hoje você tem uma bicicletaria. Nós sabemos que geralmente muita criança vai nela. Geralmente, algumas delas não tem dinheiro para arrumar a bicicleta e pede.
R - Pede.
P/1- Como você age vendo isso sendo que, às vezes, você poderia ser a mesma criança no passado: "tio, você arruma para mim?".
R - Eu arrumo. Sabe por que eu arrumo? Quando eu era criança, nunca tive uma bicicleta. Não tenho vergonha de falar, não. Nunca tive mesmo. Nunca tive. Eu já dei muitas bicicletas mesmo. Ali, para o Frei Chico, muitas crianças aqui, debaixo. Às vezes uma criança chega para colar um pneu, não tem dinheiro. Eu vou lá e colo. Não vou ficar nem mais rico, nem mais pobre. Para mim é uma emoção ver aquela criança feliz. Antes de ontem, aconteceu: o pessoal do Paraguai está aqui na cidade. Ficam ali fazendo malabarismo no sinal e chegou para comprar uma bicicleta. Ele falou meio enrolado, eu não entendendo nada, mas fui (inint) [00:14:51]. "Precisava comprar uma bicicleta. Você tem uma?"; "tenho". Joguei bem baixinho mesmo. "Quanto você vende?"; "70 reais". Ele falou: "eu tenho aqui 45 reais. Você vende para mim?"; "vendo"; "eu vou deixar os 45 e depois eu venho trazer o resto e busco a bicicleta". Eu falei: "não, pode levar a bicicleta". Só que eu vi que ele estava trabalhando também. É o meio de vida dele. Eu sou fácil de me comover. Eu falei para ele: "já está certo. Não precisa me dar mais nada". Eu vi que ele estava lutando com a vida. Peguei a bicicleta. Ele levou embora feliz. Foi embora, eu fiquei feliz. Isso, para mim, é muito fundamental. Se eu posso ajudar as crianças, ajudo muito, ajudo mesmo. Não importa de onde vem essa bicicleta. Às vezes passa o caminhão de ferro velho, eu compro. Eu passo uma tinta, troco um freio, um cabo, deixo certinho, mas eu vejo a alegria em uma criança. Isso eu posso falar que sempre estou fazendo.
P/1- Você teve uma bicicleta ainda criança?
R - Não, quando eu era criança não.
P/1- E depois você teve, adulto, antes de abrir a oficina?
R - Tive. Aí sim, mas depois já de marmanjo, porque quando era criança não tive.
P/1- E qual foi a sua reação quando você conseguiu ter a sua?
R - Eu acho que é a emoção de qualquer pessoa. É felicidade. É a mesma coisa de nós comprarmos um carro. A minha felicidade de ter conseguido uma bicicleta, mesmo que ela seja velhinha, para mim era uma emoção e tanto.
P/1- Assim, você consegue descrever o que significa você andar de bicicleta, a sensação?
R - Consigo.
P/1- Para você, é lógico.
R - Pra mim, eu acredito que mesmo se nós estivermos bem preparados fisicamente, é um lazer muito gostoso, em que nós nos divertimos. Nós conhecemos as pessoas em cima de uma bicicleta. É um meio fácil de se deslocar para um lado e para o outro. Eu acredito que é uma coisa muito gostosa.
P/1- Você conhece pessoas em cima de bicicleta? Como assim?
R - Conheço. Às vezes vamos de um bairro para outro. Às vezes estamos andando, nós nem conhecemos. O pessoal nos cumprimenta, nós cumprimentamos. Acho que isso também é legal lembrar.
P/1- Teve alguma história assim que, andando de bicicleta, que você lembra que aconteceu? Alguma situação, assim?
R - Teve uma história legal. Eu lembro que na primeira vez que eu estava andando de bicicleta - eu já tinha a oficina, a bicicletaria. Eu acho que estava lá no Vila 80. Fui dar uma volta, fui jogar bola. Eu estava subindo, lá no Vila 80 tem um campo do Baque. A mulher da esquina me chamou e falou assim: "viu, você que é o Cidinho?"; "sou". Poxa vida, eu nem conheço ela, ela me conhece. "Eu tenho três bicicletas pequenininhas. Você quer buscar?"; "vou buscar"; "você pode vender"; "não, eu não vou vender. Eu vou fazer uma doação. A senhora me deu. Vou ajeitar ela e vou dar para uma criança que precisa". Essa é uma coisa que eu me recordo muito também.
P/1- Bem distante e já estava te conhecendo.
R - Bem distante. Na verdade, todo mundo conhece esse Cidinho. O Cidinho é bem conhecido, viu.
P/1- Sobre o Cidinho: Cidinho, como é que você se recorda - você tem sua mãe e seu pai vivos?
R - Tenho.
P/1- Vivos?
R - Vivos.
P/1- Como é a relação sua, hoje em dia, com seus pais? Porque, às vezes, na infância, nós damos trabalho. Como é o Cidinho agora, perante os pais?
R - Na parte do meu pai - meu pai mora mais próximo a mim, há uns 100 metros de casa -, todo dia ele passa na bicicletaria. Ele vai me ver. À noite, antes de ele ir dormir, mais ou menos umas 19h30, 20h, eu vou na casa dele, todo dia. Ele já é de idade. Todo dia eu vou lá ver como ele está, vou lá dar a bênção para ele e já vou embora feliz. A minha mãe mora do outro lado da cidade. É um pouco mais longe, mas toda semana eu vou vê-la também. Meu relacionamento com minha mãe e meu pai é ótimo.
P/1- Eles são separados?
R - São separados.
P/1- Quando eles se separaram, qual foi a sua reação?
R - Nós sentimos, sabe? Porque eu já não era mais criança. Já era bem adulto. Nós ficamos tristes, mas fazer o quê? Não deu, não deu. Não adianta ficar no dia a dia. Às vezes acontece uma coisa pior. É melhor se separar do que ficar brigando no dia a dia.
P/1- A sua reação foi boa?
R - Não foi boa, sabe? Eu queria que eles estivessem juntos até hoje, mas se não deu certo, fazer o quê? Eu tive de aceitar.
P/1- Irmãos?
P/1- Você tem irmãos?
R - Tenho irmãos, irmãs.
P/1- Vocês são em quantos?
R - Somos em cinco irmãos. Três irmãos e duas irmãs.
P/1- E como era a convivência de vocês quando crianças? O que vocês faziam?
R - Nós brincávamos muito. Eu e meus irmãos éramos muito unidos. Saíamos para a escola, os três. Se brigava com um, brigava com os três. Nossa relação era ótima. Sempre estávamos os três juntos. Até mesmo as duas irmãs, porque uma é adotiva, mas, para mim, está no coração como verdadeira. Nosso relacionamento, nossa vivência, era ótima.
P/1- Você lembra de algumas coisas que vocês faziam, assim, juntos, além de ir para a escola juntos?
R - Lembro. Às vezes nós fugíamos do pai com a mãe. Lá no Vila 80 tinha um chamado Poção, um riozinho. Nós fugíamos, íamos lá nadar. À tarde, apanhávamos os três. Disso não tem como esquecer.
P/1- E mesmo apanhando vocês continuavam?
R - Nós voltávamos. Era coisa de moleque, não tinha jeito. A nossa diversão era isso. Era brincar de guerrinha, esconde-esconde, ir lá para esse chamado Poção. Eram as coisas que nós fazíamos.
P/1- E as irmãs? Era superprotetor?
R - Com certeza. Ali não tinha gavião rodeando. Falava: "fica longe porque esse pedaço de (mapa) [00:21:20] é nosso", mas ao contrário disso sempre tivemos relação boa com as irmãs, sempre protegendo. Qualquer irmão protege uma irmã.
P/1- Elas são mais novas?
R - Uma é um pouco mais velha do que eu e a outra já é mais nova. Os outros irmãos são todos mais novos.
P/1- Seus irmãos meninos são mais novos que você?
R - Mais novos. Eu sou o mais velho, já.
P/1- Sobre as suas irmãs, como foi a sua reação, como você era superprotetor, em saber que elas tinham feito alguma coisa de errado ou alguém fez alguma coisa, bateu, brigou com ela? Como você era como irmão para defender elas? Você chegava brigando?
R - Não.
P/1- Ou discutia e não chegava tirando satisfação sobre namorado, alguma cosia? Sempre fica sabendo.
R - Não, nunca fui não. A minha postura sempre foi de homem. Mesmo moleque, mas de homem. Chegava, conversava, procurava saber a razão primeiro, porque nós temos de ouvir os dois lados. O lado dela e o lado do outro. Então, já briguei bastante por causa dela e apanhei também, mas sempre protegi e tinha de ouvir os dois lados.
P/1- Você lembra de uma vez para contar para nós como foi?
R - Lembro de uma vez que nós estudávamos no Mario José Rios e ela matou aula. Ela, com a menino, fugiram e foram na ponte nova. Na ponte nova tem tipo uma passarela, por baixo. Tinha um triozinho e eu falei: "não está na escola, vou procurar". E fui. Chamei meu outro irmão e fomos. Achamos. Descemos a pista lá da (Elisorge) [00:22:59]. Achamos ela. Foi na época que eu ainda apanhei do moleque. Ele era maior, mas busquei. Acho que é uma história que nós não esquecemos.
P/1- Hoje, como elas vem você? Como você é com elas? É a mesma proteção, continua do mesmo jeito? Às vezes vem reclamar alguma coisa ou conversar, na conversa acaba falando alguma coisa que acontece? Elas ainda tem esse vínculo com você de conversar, de falar alguma coisa que acontece?
R - Tem, tem sim. Minhas irmãs são bastante prestativas também. No dia a dia, quase todo dia, tem uma que passa na oficina para saber como eu estou. Passa ali, nós conversamos uns 20 minutos todo dia, colocamos os pingos nos is. Mas hoje a vivência é diferente também. Já estamos mais adultos, mais maduros. Só muda que nós ficamos mais velhos. Do contrário a infância parece estar ali, próxima.
P/1- E da época que você morava aqui na Divineia, quando garoto, eu queria saber, assim: antigamente não era Divineia, era Taturana.
R - Taturana.
P/1- Como era morar na Taturana? Você já sofreu alguma discriminação na escola ou na sociedade, em si, pelo fato de morar na Taturana?
R - Na verdade, eu nunca nem dei pelota. Os outros falavam de um lado, saía do outro. Gente que não presta tem em todo lugar. Português, claro. Eu nunca liguei. Graças a Deus, na escola, nunca tive problema. Eu tenho muito orgulho de ter nascido e sido criado ali. Para mim, se eu tivesse nascido dentro de um palácio seria a mesma coisa dali. Não tenho de falar nada. Nunca ninguém me maltratou, me ofendeu, porque se falar alguma coisa do lugar que eu moro eu vou me defender e vou defender o lugar que eu moro também.
P/1- Você nunca sofreu discriminação pelo lugar.
R - Não, nunca.
P/1- Deixa eu perguntar. Você falou que defende o lugar em que você mora. Como era o lugar, a Divineia, quando você era criança?
R - Era bem diferente.
P/1- Conta como era.
R - Na época não tinha água, não tinha força. Nós não tínhamos televisão. O único que tinha televisão era o finado seu Gumercindo, que morava aqui na esquina do CRAS. Dava umas 18h - naquela época tinha novela -, nós, toda a molecada, ele abria toda a janela, nós sentávamos para o lado de fora e ficávamos assistindo. Essa é uma coisa que eu acho que nós não esquecemos também. Depois de uns dez anos é que nós conseguimos ter uma televisão a bateria ainda. Tinha de carregar a bateria para ligar a televisão.
P/1- Porque ainda não tinha luz.
R - Não tinha energia.
P/1- Depois de dez anos, mais ou menos.
R - É, porque eu já morava ali, eu era criança. Demorou para depois ter energia, água. Mas para mim era a mesma coisa se tivesse força e água desde o começo, porque eu era criança. O que eu me diverti, o que eu passei na minha vida, foram só coisas boas.
P/1- Como é que vocês se divertiam lá, além do que você já contou? Tinha alguma coisa que vocês gostavam muito de fazer lá nessa comunidade?
R - Tinha.
P/1- O quê?
R - Coisa que nós gostávamos de fazer, a molecada, era a época de pipa e atravessar o rio. Podia estar o frio que fosse, pulava no rio, ia lá, buscava a pipa e voltava para trás. Às vezes largava a cueca lá do outro lado e vinha embora pelado ainda. Essas são coisas que nós não esquecemos.
P/1- E não era perigoso?
R - Era perigoso, mas, moleque. Para moleque existe perigo? Eu acho que não existe. Era perigoso, a mãe ficava brava, às vezes batia, mas no outro dia estávamos atravessando o rio de novo para buscar pipa.
P/1- Teve alguma história de pipa, bacana, assim, para você, que aconteceu com você?
R - Teve.
P/1- Então conta.
R - Teve uma história. Acho que, se não me engano, era a época de junho. Ainda estava frio. Nós atravessamos o rio para pegar a pipa. Uma pipa xadrez. Eu lembro até hoje que enroscou em um galho. Eu subi correndo na frente da molecada, na hora que eu fui catar, o que tinha no galho? Não. Tinha um cacho de marimbondo. Caí com marimbondo e tudo. Cheguei em casa todo roxo. O que aconteceu? Apanhei da minha mãe, ainda. Mas é uma história que nós temos de lembrar e nunca esquecemos.
P/1- E a pipa? O que aconteceu com ela?
R - Nem vi pipa. Estava todo dolorido. Tinha esquecido até da pipa.
P/1- E nessas travessias do rio você já perdeu alguém? Geralmente, quando nós somos muito novos, perdemos. Um ou outro está nadando, dá uma cãibra, alguma coisa. Aconteceu alguma vez com algum dos amigos de vocês, que você teve de voltar para socorrê-lo?
R - Já aconteceu. Até mesmo comigo também, de dar cãibra. Por causa do frio, era muito cedo. Nós íamos atravessar o rio, pulava sem roupa, sem nada. Na hora de voltar, o corpo começava a tremer. Era quando dava cãibra.
P/1- Já passou apurado?
R - Já passei apurado, com a água no pescoço ainda.
P/1- E aí? O que você fez?
R - Na época, andava eu e Marcelo. Filho do finado João Nervoso, o Marcelão. Nós atravessamos o rio aqui na prainha, para baixo do barracão da Divineia. Nós atravessamos e na hora de voltar começou a dar cãibra. A sorte que ele foi e conseguiu trazer uma boia. Tinha uma boia do outro lado do rio. Ele levou e nós atravessamos, mas eu passei apurado aquele dia.
P/1- Quem é o João Nervoso? Por que ele tem esse nome?
R - O João Nervoso é uma pessoa que todos que conheceram e quem não conhece queria conhecê-lo, porque era o palhaço da Divineia. Como se diz, era um cara alegre, divertido, um cara prestativo. Se doava por todos. Ele chegava em época de festa e ia arrecadar alimento. Ele divertia todo mundo, alegrava as crianças e o João Nervoso, além de palhaço, ainda era locutor de rádio. Ele tinha a rádio Itamaracá. Quando tinha jogo aqui na Vila, quando estávamos jogando, ele radiava o jogo, fazia comentários. O João Nervoso que nós conhecemos é um cara que jamais será esquecido.
P/1- Por que esse nome? Você sabe? Porque era tão alegre e era João Nervoso?
R - Isso eu não posso responder, porque eu não sei. De nervoso não tinha nada, viu. Era calmo até demais.
P/1- Ainda existe essa rádio?
R - Não. É que, na época, eles montaram uma cabine para cima do campo, da Vila e colocaram uma telha lá. Colocaram lá uma caixa de som, uns aparelhos e montaram a rádio Itamaracá. Uma rádio pirata, só no dia de domingo. Essa rádio ficou muito conhecida, todos os lugares que ia. Às vezes íamos jogar bola 100 quilômetros para trás, assim, longe. Ele ia com a rádio e os caras já estavam esperando. "Cadê a rádio?"; "e a rádio?"; "está chegando". Era bem conhecida. Esse era o João Nervoso.
P/1- Dando continuidade ainda ao João Nervoso: nós fizemos um trabalho sobre o Fala Vila e agora vamos entrar no teatro. Qual é a sua sensação de representá-lo nesse teatro?
R - Para mim é uma coisa muito gratificante, uma emoção muito grande, sabe? Porque eu sempre tive o sonho do teatro. Acho que essa é uma oportunidade muito grande, que eu estou segurando. Segurei com as duas mãos e quero fazer o máximo, de melhor meu, para representar o João Nervoso, pela pessoa que ele foi, que ele sempre será. Para mim é uma emoção sem limite. Não tenho nem como falar dessa emoção, para mim.
P/1- As pessoas que o conheceram, que sabem como ele é, depois de você representá-lo, o que mais você quer adquirir do que isso? Do que ele ser, você quer se espelhar nele ou fazer uma melhora dele para ele nunca ser esquecido aqui na Vila?
R - Eu acho que nós fazermos uma melhora dele será impossível, porque isso é só ele mesmo, mas eu penso por mim. O que eu puder fazer de melhor para sempre lembrar o João Nervoso, eu vou fazer porque ele é uma pessoa que será eternamente lembrada por todos nós. Uma pessoa que até onde ele está, com Deus, está alegrando Deus pelo jeito dele, pela maneira de ele ser, pela alegria que ele traz no sorriso. Nós olhávamos no rosto dele e não víamos tristeza. Só alegria.
P/1- E o seu sonho?
R - Meu sonho, desde criança, era fazer teatro. Mas como as coisas eram mais difíceis, eu nunca tive a oportunidade, mas se um dia eu tiver a oportunidade vou segurar ela. Vou aproveitar. Tenho certeza de que não vou decepcionar ninguém, mas nós estamos aqui. Se um dia surgir uma oportunidade - já surgiu - de representar o João Nervoso em uma peça de teatro já é a realização de um sonho de criança.
P/1- Vocês já começaram os ensaios?
R - Começamos. Fizemos um dia de ensaio.
P/1- E como é que foi esse dia?
R - Demos bastante risada, nos divertimos. Foi legal. Muito legal mesmo. Acredito que daqui para frente será mais legal ainda, a cada ensaio.
P/1- Era. Você sempre quis fazer teatro.
R - Sempre.
P/1- E agora você está fazendo.
R - Estou fazendo.
P/1- Tem diferença do que você imaginou?
R - Não. Porque, sei lá, às vezes eles falam que tem pessoas que nascem com o dom. Eu estou achando que nasci com esse dom de ser palhaço e fazer teatro, porque eu sou uma pessoa assim, simples. Transparente. Não tenho vergonha de falar. Se eu tiver errado, abaixo a cabeça, mas se eu estiver certo continuo falando. É senhor, senhora, bom dia, boa tarde. Então, acho que o importante é isso. Acho que em uma peça vamos acostumando, vamos fazendo mais amizade e ficando mais legal a cada dia que ensaiamos. Isso eu acho que já é uma rotina também.
P/1- Cidinho, perante a essa peça de teatro você acha que vai te trazer algo em especial fazendo essa peça? Trazer algo em especial fazendo esse personagem? O que vai trazer de importante para a sua vida isso?
R - De importante já é interpretar o João Nervoso. Acho que isso é importante, mas já é também a realização de um sonho de conhecer as pessoas aqui do CRAS. Pessoas voluntárias em ajudar no teatro. Conhecendo mais pessoas no elenco, conhecendo o pessoal da Vila, sabe? Para mim isso é uma coisa sem explicação. É muito legal, sabe? São coisas novas que estão acontecendo na vida, coisas muito boas.
P/1- Você falou da Vila, não é? Você contou como era a Vila, como você desde sempre, nasceu lá.
R - Nasci.
P/1- E agora, como você descreve a Vila?
R - É uma Vila modernizada, porque tudo hoje em dia está modernizado. É uma Vila com asfalto, iluminação, internet, barracão de associação, campo de futebol, é uma Vila estruturada. Hoje nós podemos dar para as nossas crianças um conforto maior. Isso é o que eu posso descrever, que é uma geração diferente, uma Vila modificada.
P/1- E a convivência, como era, como é? Alguma história que mostra a diferença.
R - A diferença é que antigamente existiam mais pessoas antigas. Com o passar do tempo essas pessoas vão falecendo, nós vamos conhecendo as crianças que vão crescendo, amadurecendo, ficando de idade. As histórias são sempre as mesmas. Todas as pessoas do bem. Como se diz: é uma vivência muito maravilhosa.
P/1- A convivência.
R - Convivência.
P/1- Você tem alguma história que aconteceu na Vila e que mostra isso, da convivência bacana?
R - Tenho. Tenho, a respeito do café da manhã. Quando nós fizemos a nova associação de moradores, não tínhamos o café da manhã. Nós sentamos, conversei com o resto do pessoal da associação. Falei: "olha, gente, estou com um projetinho aqui, só que nós temos de conversar. Como somos um grupo, todos tem de decidir. Vamos voltar a fazer o café da manhã das crianças?". Conversamos, tudo. "E as doações?"; "não tem problema. Eu vou atrás". Fui atrás do chocolate, do leite, do pão, da manteiga e aí voltamos a fazer o café da manhã das crianças. Começamos com umas 30 crianças. Hoje temos mais de 100 crianças. Isso é uma história desses tempos que é boa de eu lembrar e contar, porque eu vejo uma criança na rua e ela me fala: "vai ter café domingo?"; "você vai no café da manhã?". Isso, para mim, é uma alegria que não tem preço.
P/1- É de domingo?
R - Domingo de manhã.
P/1- E tem alguma situação desse café da manhã que também te deixou uma lembrança, assim? Alguma coisa que aconteceu quando vocês começaram a fazer?
R - Teve um dia, uns três ou quatro meses que começamos, nós não esperávamos que ia ter um tanto de criança. De repente, chegamos lá e o leite dava, mas o pão não dava. O que fizemos? Corremos de um lado, corremos de outro, cortamos o pão no meio e conseguimos sair dessa, mas foi um dia apertado. Acho que a única vez que passamos apurados foi nisso.
P/1- Mas no fim deu para todo mundo.
R - Graças a Deus. As crianças, os adultos. Porque lá não vai só criança, vai adulto também. Acho que a porta do café da manhã é aberta para todos. Se chega um adulto, come, se chega uma criança, come. Eu acho que ali é assim.
P/1- O que você acha que devia melhorar aqui na Vila?
R - De melhorar, olha, acho que nesse momento não teria muita sugestão de melhorar, não. Porque hoje, graças a Deus, a estrutura e o apoio que nós temos, nós estamos no céu - como se diz no português claro, pelas coisas que nós temos. Mas eu, se eu pudesse pedir e falar para alguém, eu falaria para essas pessoas que tem condições, que tem uma maneira de vida melhor, uma estrutura melhor, de ajudar as crianças da comunidade, porque tem muitas crianças que às vezes não tem um chinelinho para por no pé, para ir no café da manhã de domingo e tem muitas pessoas, muitos empresários nas nossas cidades que poderiam ajudar. Eu peço, se um dia alguém ver ou ouvir isso, que toque no seu coração, que seja lá de um real, dez, cinco reais, mas que ajude com um par de chinelo, alguma coisa, eu acho que isso seria importante e de melhoria para nós.
P/1- Você tem alguma história triste para contar de alguma criança ou alguma coisa assim que foi pedir uma ajuda e que você não pode ajudar e que ficou marcado em você?
R - Não. Nesse fato não. Nunca teve, porque todas as vezes que alguma criança chegou em mim, graças ao Bom Pai eu consegui atender ela, fazer a sua vontade, deixá-la contente, dar risada e feliz.
P/1- Uma situação marcante para o outro lado, em que você viveu uma situação, assim, que quando você fala do café da manhã você lembra? Tipo uma situação. Você falou que sempre que pode ajuda e tal. Tem uma história, assim, que você lembra sempre?
R - Tem uma história que ela não é legal. Não vou nem falar o nome do lugar, mas vou falar de uma coisa que aconteceu. No começo eu saí de mercado, de padaria, pedindo doação para fazermos o café da manhã. Eu cheguei em um estabelecimento. Cheguei no dono, conversei, falei bom dia para ele, tudo. Peguei na mão dele. Expliquei a situação, falei o que estava acontecendo, que nós íamos começar o café da manhã. Ele falou: "infelizmente eu não posso ajudar nem com um centavo". Falei: "tudo bem. Deus abençoe". Peguei na mão dele, fui embora. É uma coisa que, sabe, graças a Deus, Deus preparou coisas boas. Nós já estamos indo para dois anos com o café da manhã. Acho que são coisas que acontecem e nós temos de estar preparados para ouvir o sim e ouvir o não também.
P/1- Você já ouviu bastante não?
R - Já ouvi muitos não. Já cheguei no próprio café da manhã. Às vezes eu chegava e o cara falava: "não posso ajudar". Mas eu virava as costas e falava: "eu vou conseguir". Às vezes, quando eu não conseguia, eu falava para a minha esposa: "vamos no mercado, nós temos de comprar 15 litros de leite". Íamos lá, comprávamos a caixa de leite. Faço isso de coração. Quando precisar eu vou fazer. Enquanto eu tiver força eu vou fazer porque a alegria mais grandiosa do mundo é vermos uma criança feliz. Você vê aquele rostinho mostrando o dente, todo cheinho. Aquela expressão de felicidade. Acho que isso é importante. Não é dinheiro, não é nada. O importante é isso. É a aquela emoção de uma criança.
P/1- E você falou que é casado, tem os filhos.
R - Sou casado.
P/1- E como é que foi, assim, o encontro com essa pessoa que você casou? Como você conheceu ela?
R - Com a minha esposa? Foi aqui no baile, quando o CRAS tinha baile.
P/1- Conta como foi.
R - Eu era bem moleque na época. Acho que eu tinha uns 17 anos e ela tinha 13. Nós começávamos a brincar lá na vila, porque eram tudo molecada e meninada. Nós começamos a brincar e ela vinha no baile com a mãe e o pai dela. Eu vinha, comecei a olhar. Eu falei: "já vai dar buchicho". Começamos a trocar recadinho, porque naquela época de baile as bandas anunciavam recadinhos. Vamos supor: "o Cidinho mandou um oi para a Tânia", sabe? Era assim. Nós começamos a nos conhecer, namorando escondido - porque o pai dela era bravo. Até que um dia o pai dela falou que queria me conhecer. Falei: "meu Deus do céu, e agora?".
P/1- Como é que ele descobriu?
R - Porque contaram para ele. Aí eu falei: "não, vou". Fui na casa dele, conversei tudo. Ele falou: "é assim, assim e assado".
P/1- O que ele falou? Conta.
R - Falou assim: "namorar, vai namorar aqui. Sentado aqui, eu aqui, ela aqui". Era desse jeito. Só que com o passar do tempo foi pegando confiança. Ele viu que eu era uma pessoa responsável. Sempre fui. Começamos a namorar, passou um tempo. Eu fui para perto de Campinas jogar bola em um time. Fui treinar lá, fazer teste. Fui para lá, fiquei dois meses. Ela ligou, descobriu que estava grávida. Abandonei tudo. Estava tudo pronto. Estava vindo embora. Eu falei: "não tem problema. Coisa que tem de acontecer na nossa vida acontece". Vim embora. Graças a Deus, até hoje estamos juntos. Já faz mais de 20 anos que estamos juntos. É uma coisa muito legal do meu casamento. Coisa boa que eu tenho para contar também.
P/1- Você lembra se chegou a acontecer o sogro no meio, você de um lado, ela de outro, de vocês namorarem assim?
R - Era só segurando na mão. O namoro era mão com mão. Mas antigamente era assim. Para mim essa é uma história muito gostosa de contar. Não tenho vergonha de contar não, porque coisas boas nós temos de contar, tem de aparecer. Para mim foi uma coisa que também marcou na minha vida. E o homem era bravo.
P/1- E você na sala com ela e ele sentado.
R - Sentado assistindo televisão. Não tinha jeito de fugir. A hora que ia embora, tchau, pardal e ia embora.
P/1- Você falou do barracão. Você frequentava bastante, o barracão?
R - Frequentava bastante. Todo sábado.
P/1- Os bailes? Como que era naquela época?
R - Aqui era lotado. Lotava de gente. Era muita gente. Assim, no fundo, tinha o palco. Tinha aquela escadinha, os banheiros dos lados. Era muito legal, tinha muita gente mesmo, todo final de semana.
P/1- Mas como é que eram os rapazes da época? Como eles se comportavam no barracão com dança, como que era? A música que tocava, como que era?
R - Na minha época era mais forró. A rapaziada vinha para dançar. Era para divertir. Não tinha, assim, muita briga. Acontecia, às vezes, uma briga do pessoal da estação com a nossa turma, aqui. Mas aí acho que era de adolescente, rapaziada. Todo lugar tinha, mas era muito legal.
P/1- Por que as brigas da estação?
R - Às vezes porque nós queríamos dançar com as meninas lá de cima e eles não deixavam. Era onde saía uma confusão, mas era simples. Daqui um pouco já normalizava tudo. Era tudo amigo.
P/1- E você falou que tocava forró. Tocava mais alguma coisa?
R - Tocava forró, lenta, valsa. Porque, assim, na verdade, uma banda é completa e tinha todo tipo de música. Ali o pessoal dançava valsa, vanerão, forró, grudadinho e era onde saíam os puxões de orelha.
P/1- Você dançava bastante.
R - Dançava nada. Não sabia nem dançar. Só dançava lenta e olha lá. A primeira vez eu fui tentar e não dava para mim, não. Aí só dançava a lenta mesmo.
P/1- E como era a lenta?
R - Era grudadinho.
P/1- Um para lá, dois para cá e só.
R - Não, grudava lá e ficava chacoalhando o corpo só e pronto. Não tinha esse negócio de para lá e para cá, não.
P/1- E como você vê a diferença daquela época para a diferença de hoje, dos jovens de hoje?
R - Hoje a diferença é grande. Nem tem mais aqueles bailinhos de forró. Só tem terceira idade. Na verdade, os jovens de hoje a linha deles é funk. É bem diferente da nossa. É que nós temos de respeitar. A geração deles hoje é um funk e nós temos de respeitar, desde que seja decente, temos de respeitar. Mas para mim, na minha época, não tinha esse negócio de funk não. Era forró, valsa. Só batidão mesmo.
P/1- Vocês querem perguntar, meninas?
P/1- Eu queria saber. Você falou dos bailes. Como era a sua preparação para o baile? Ficava pensando que roupa ia colocar? Como é que era essa preparação até chegar o baile? Tinha bilheteria? Entrada? Pagava, não pagava? Como é que é?
R - Foi bom chegar nesse ponto. No meu jeito mesmo, eu já preparava desde quinta-feira. Eu falava para a minha mãe: "deixa uma calça no jeito, uma camisa". Sempre tinha roupa especial. O duro é quando chovia aqui embaixo. Era tênis branco, era barro. Às vezes saía, nossa. Colocava sacolinha no pé, o barro estava grudado. Chegava, tirava a sacolinha e o tênis todo sujo. Mas tinha bilheteria. Era tudo legal. Tinha bilheteria, eram comprados os ingressos. Eu acho que na época era de cinco a dez reais cada ingresso. Era tudo pago. Homem era cinco e mulher era três. Era bem organizado. Era legal. Era bem aproveitado o final de semana.
P/1- E quando você casou ainda tinha o baile?
R - Tinha, só que aí já não vinha mais. Já não tinha jeito. Era muito legal. O clube dos 20 também. Uma coisa que eu acho deve ser lembrada. Era tipo uma danceteria. Todo final de semana, sábado e domingo nós íamos.
P/1- Onde que era?
R - Era lá na associação comercial agora, no centro, ali.
P/1- E vocês entravam no baile. Como é que era para escolher aquela moça para dançar a lenta? Como é que era?
R - Escolher não. Tinha de ficar olhando até que ela desse uma moralzinha para nós e nós chegávamos. Mas se chegasse de sopetão tomava um puxão de orelha, porque, às vezes, estava acompanhada pelo pai, não sabia se estava com o namorado. Nós esperávamos. Quando ela dava um sorrisinho podia investir porque estava na dança certa
P/1- O clube dos 20 era o quê?
R - Era uma danceteria.
P/1- Sim, mas era diferente do baile em que?
R - Era diferente sim porque era mais música de jovens. Era tipo o estilo funk hoje. Nessa época era mais balada.
P/1- Vocês iam também.
R - Ia. Não perdia um final de semana. Todo final de semana estava lá.
P/1- As meninas eram as mesmas que iam em um baile e em outro?
R - Eram. Porque Santa Cruz, na verdade, agora que cresceu. Antigamente era menos população. O que vinha era o pessoal da estação, Vila Saúde e São José. Ali encontrava e ficavam sempre as mesmas pessoas.
P/1- Você falou que tinham os meninos da estação, daqui.
R - E do Vila 80.
P/1- Como era a relação entre esses grupos?
R - No começo, há uns cinco anos atrás, quando começamos ir no Clube dos 20 era bem pesado, bem tenso. Nós não podíamos passar da água para lá porque lenha em nós. Eles vinham para cá e lenha neles. E no Vila 80, eles lenha em nós. Batiam em nós. Só que aí foi passando. A cada cinco anos o povo foi conscientizando. Tudo foi fazendo amizade, viu que não era daquele jeito, viu que estava tudo errado. É igual hoje. Hoje, todo mundo vem para cá e vai para lá, vai lá do outro lado, vem do outro lado. Acho que hoje é tudo normalizado. O povo se conscientizou que vida é para viver e não é para brigar.
P/1- A briga era por que? Você sabe, você lembra?
R - De ciúme das meninas. As meninas vinham para cá, nós queríamos crescer o olho. Apanhava, batia. Era por isso.
P/1- Seu primeiro emprego, Cidinho? No que você trabalhou?
R - No meu primeiro emprego trabalhei em um posto de gasolina ali na frente da prefeitura. Chamava-se Flor de Acácia o posto. Trabalhava no lavador, com um japonês. Na verdade, o primeiro emprego foi de engraxate. Nós tínhamos a Associação para o Bem-Estar do Menor, que era a ABEM. Nós íamos lá, ficávamos até o horário de ir para a escola. Íamos para a escola. Nós almoçávamos lá, trabalhávamos na horta, fazíamos tapete, bordávamos, trabalhávamos com porco, essas coisas. Aí comecei a engraxar. Um dia eu fui nesse posto e o japonês perguntou para mim: "você não quer trabalhar aqui?". Esse foi o meu primeiro emprego.
P/1- Tem alguma história que possa ser contada sobre o seu patrão, como é que ele era? Por quanto tempo você ficou lá?
R - Eu fiquei acho que por uns cinco anos trabalhando, ajudando ele. Na época ele ainda me deu o apelido de piazinho para mim, de piá. "Piá, faz isso". Acabei trabalhando com ele por muito tempo. Ele sempre me levava na casa dele, me tratava muito bem, dava roupa para mim. Acho que é uma coisa boa que eu tenho de lembrar dele também.
P/1- E depois você foi mudando de trabalho.
R - Aí fui mudando de trabalho. Aí depois que eu casei fui trabalhar com o meu sogro, de carpinteiro. Acho que trabalhei por uns dez anos de carpinteiro.
P/1- E você sabia fazer alguma coisa na época?
R - Não.
P/1- E hoje?
R - Hoje eu sei. Hoje eu tenho várias profissões. Aprendi a trabalhar de carpinteiro e comecei a trabalhar no condomínio.
P/1- Mas como carpinteiro, que foi o que eu perguntei, se você já sabia alguma coisa.
R - Não.
P/1- Você aprendeu tudo.
R - Eu aprendi tudo. Aprendi com o meu sogro.
P/1- Teve alguma situação, quando você estava aprendendo, que te (inint) [00:52:43] por algum motivo?
R - Teve. Ele me pediu para cortar uma viga, uma peça de madeira e eu medi no chão, eu tinha de ter medido no alto. Cortei, chegou lá em cima e o que aconteceu? Mais curta. Fiquei, fiquei. Graças a Deus nós demos um jeito, mas foi uma coisa que eu fiquei com a pulga atrás da orelha.
P/1- Mas por que acontece isso? Você sabe?
R - Porque a medida tem de ser no local e não fora dele. Lá em cima o diâmetro da parede dá uma metragem e embaixo dá diferença. Foi isso que aconteceu.
P/1- Você tinha de ter medido em cima.
R - Em cima.
P/1- Mas aí faltou um pedaço.
R - Faltou um pedaço. Nós demos jeito e arrumamos. Mas eu tive várias profissões. Depois eu comecei a trabalhar no condomínio, de jardineiro. Ali eu fiz curso de piscina. Não ficava só na casa da patroa. Ia fazer entrega para ela também. Depois, de lá da casa dela, como jardineiro, eu ia para a fazenda também, mexer com gado, trator. Tudo isso, trabalhando com ela. Aí depois saí e fui para o frigorífico. Aprendi a profissão de ser magarefe.
P/1- O que é isso?
R - Magarefe é quem faz a esfola do boi. Quem tira o couro do boi depois dele abatido, tira o couro dele para serra de carcaça, para lavar o boi e ir para a geladeira. Depois eu abri a bicicletaria.
P/1- O que você podia falar dessa profissão de fazer isso, o que você pode contar?
R - De frigorífico?
P/1- É, mas dessa parte que eu até perguntei o que é esse trabalho.
R - De magarefe?
P/1- É, magarefe. Como é que chega o boi, o que você tem de fazer? É uma sabedoria que nós não conhecemos.
R - Na verdade, o boi desce desde o curral. Já tem uma pessoa tocando ele. Ele passa em um corredor, jogando água, lavando ele. Ele vai entrar no solpão, onde será abatido. Lá já tem o cara que mata o boi. Chama marreteiro. Ele te uma pistola de ar na mão. Ele aperta em cima da nuca do boi e o boi cai no solpão. Ele penduram o boi no PA, vai subindo, deixa de ponta-cabeça. O cara abre a frente dele, sangra. Eu estou lá em cima, em uma plataforma de três metros de altura, esperando o cara terminar, embaixo. Terminou embaixo, o boi já está em um PA. Nós viramos ele, cortamos o pé, tiramos o couro da parte de cima, faz a parte de baixo e manda para baixo e assim vai, até chegar na geladeira ele cortado e picado, pronto.
P/1- Cada um vai fazendo uma parte.
R - Cada um tem uma função.
P/1- A sua era tirar.
R - Tirar a parte da esfola, o couro do boi. Já tomei coice, me cortei, tive acidente grave nessa parte de frigorífico, sabe?
P/1- Como é que foi esse acidente?
R - Nesse acidente já era mais ou menos umas 19h. Faltavam ainda, acredito, umas 120 novilhas. Umas vaquinhas pequenas. Nós, na pressa de vir embora, às vezes, na época, não tinha muito EPI. Acaba se tornando um risco maior. Nós, naquela preocupação de ir embora, com fome, cansado, em um momento de descuido meu, na hora que eu fui quebrar o pé do boi, o boi virou no PA. A faca passou no pulso. Isso deu uma lesão grave, cortei todos os tendões do pulso. Fiquei quatro anos afastado, feio, com 30% de força na mão, mas graças a Deus estou com a mão no lugar. Voltei a trabalhar na mesma função, mas foi um acidente que eu achei que da maneira que os outros falam, cortou o pulso, morre. Eu falei: "estou morto dez vezes", porque da maneira que eu vi o meu braço.
P/1- Você já vivenciou algum outro tipo de acidente que você não teve como ajudar algum amigo, alguma coisa assim, dentro do frigorífico?
R - Dentro do frigorífico?
P/1- É que vocês lidam com faca, não é?
R - Com faca.
P/1- É muito perigoso.
R - Foi muito pouco, porque os que eu presenciei todos eu ajudei a socorrer. Mesmo assim, um colega meu da mesma plataforma, na parte de cima, ele se cortou. O que aconteceu: fui de imediato. Tirei o meu cinto - porque nós trabalhamos no alto - peguei a mão, grudei no braço dele onde estava vazando sangue, assim, apertei e ali o outro cara com ele no colo - nós temos um degrau para descer, mais ou menos, de um metro e meio. Desci, caindo de ponta-cabeça, mas não soltei de braço, porque se eu solto ia esgotar o menino e ia morrer ali. Nisso, saímos. Tinha um pecuarista no frigorífico que levou para matar o boi. Colocamos no carro dele. Um cara que eu também tiro o chapéu, porque naquela situação ele colocou o menino dentro do carro dele, sangue para todos os lados. Levamos na UPA e isso então é um acidente que eu presenciei também. Foi grave. Mas hoje, graças a Deus, o menino está bem. Mas já presenciei vários acidentes graves.
P/1- Quando você fala que tomou coice, por quê? Quando dá a marretada, ele morre.
R - Porque, na verdade, o boi é de três a cinco minutos para ele morrer. Então, do solpão até onde nós trabalhamos não dá nem um minuto. O que acontecia: era na hora que íamos fazer isso. Para tirar o couro do pé dele, ele pum na faca e tum, batia. Às vezes até furava, cortava avental. Mas depois de uns tempos para cá foi mudando, fomos tendo EPIs. Já tinha avental malha de aço, mangote. Já foi evitando mais acidente, mas sempre dava coice, porque ele não morre na hora.
P/1- O que é EPI?
R - EPI são os protetores. Uma luva anticorte, um mangote de proteção de malha de aço, um avental, um capacete, um fone protetor de ouvido. Isso é um EPI.
P/1- Vocês trabalhavam sem nada disso.
R - Antigamente não tinha, mas depois de uns cinco anos para cá a fiscalização pegou em cima e tinha que trabalhar. Se não trabalhasse do jeito deles não tinha emprego.
P/1- Aí veio a bicicletaria, não é?
P/1- Isso.
P/1- Como é que você abriu? Como foi essa mudança?
P/1- Qual foi o seu desejo? Foi desejo de mudar? A necessidade de mudar? O que foi que te levou a abrir uma bicicletaria?
R - Na verdade, não foi desejo. Foi insistência. Na época era o Alexandre, do seu Oscar, que tinha a bicicletaria aqui na esquina. Ele parou, porque se formou advogado. Foi embora para Ourinhos e vendeu as coisas para o Ico, que mora na esquina de cima, do lanche da Juliana. Ele ofereceu essas ferramentas para mim. Falei: "não quero, não tenho vocação para isso". Passou um ano. Ele ofereceu de novo para mim. Eu falei: "caramba. Ofereceu para mim. Acho que é para eu mexer". Fui. Na época eu não tinha todo o dinheiro. Peguei um rádio de carro, dei um pouco de dinheiro para ele e peguei essas ferramentas. Fui e conversei com o dono desse prédio, até hoje, onde estou. Estava com tudo caindo o reboco, sujo, passei uma tinta, pintei. Dei uma ajeitadinha, coloquei as ferramentas e comecei. E graças a Deus. Ele preparou essa oficina para mim em um bom momento. Hoje o que eu tenho é de lá. Tenho de agradecer muito a Ele. Já vai fazer dez anos que eu estou ali e estou muito feliz.
P/1- Você nunca tinha pensado que você queria ter uma mecânica, trabalhar com bicicleta?
R - Jamais pensava. Jamais. Foi uma coisa que eu aprendi de sopetão, sozinho.
P/1- Teve uma história aí que você não conseguia montar.
R - Teve várias histórias. Na verdade, a primeira bicicleta que eu fui alinhar um aro - um aro tem vários raios. Tem de puxar um para a direita e um para a esquerda e eu nunca tinha montado, nunca tinha alinhado. Eu falei: "bom, vou mandar bala para a direita". Na hora que eu terminei, o aro era aqui e estava lá na parede. Falei: "meu Deus, e agora?". Não tive vergonha não. Fui lá na bicicletaria, no centro e falei para o rapaz: "olha, estou começando agora. Você pode me orientar?". Ele foi lá, mostrou para mim, falou do jeito que era e fui pegando o jeito, mas passei um perrengue. Deixei na esquina. Virava de um lado e estava do outro.
P/1- Essa mudança do frigorífico para a bicicletaria, você pediu a conta do frigorífico? Como foi esse trâmite?
R - Não. Na verdade eu não pedi a conta. Eu trabalhei durante esses dez anos no frigorífico e na bicicletaria. Eu pegava às 5h no frigorífico e ia até às 13h. Ia em casa, às vezes nem almoçava. Passava uma água no corpo e subia para a bicicletaria. Ficava até às 20h, 21h durante esse tempo. Agora faz pouco tempo que eu saí do frigorífico porque agora estão dispensando e não matando mais boi, mas eu fiquei durante esse tempo de frigorífico nesses dois serviços. E ainda sem contar que eu ia fazer um jardinzinho, limpar uma piscina, fazer um outro serviço, colocar uma lâmpada. Fiquei nesse lenga-lenga, mas era cansativo. Mas graças a Deus, hoje o que eu tenho, tenho de agradecer muito a Deus por eu ter conseguido essas coisas, sabe? Foi esforçado, mas valeu à pena.
P/1- Não estão mais matando os bois?
R - Hoje não, parou.
P/1- Por quê?
R - Porque agora só vai exportar miúdo e desossar. Já estão comprando o boi limpo em peça para desossar, porque dizem eles que está muito cara a arroba do boi. Por isso, parou e já dispensou mais 30 e poucos funcionários.
P/1- Aqui, não é?
R - Aqui. Só está desossando.
P/1- Entendi.
P/1- E agora você está feliz ou não com a bicicletaria?
R - Eu sempre estive feliz. Se eu falar que eu nunca estive feliz, estou mentindo. Sempre estive feliz, porque aquilo ali é uma coisinha simples. Quem vai lá, fala: "nossa, uma coisinha simples", mas, para mim, é uma estrutura enorme porque é dali que eu tiro o meu sustento, é dali que eu encho a minha lata de arroz, minha lata de feijão, o litro de leite para o meu filho. Então eu estou muito feliz. Agora eu estou montando outro comércio também. Uma fabriquinha de chinelos também. Eu penso sempre de pés no chão, não estacionar em um lugar só. Pensando no próximo. Com a fabriquinha, posso dar um emprego a mais. Posso ajudar uma família a mais. É nisso que eu estou pensando.
P/1- Tem mais alguma coisa?
P/1- Você quer falar alguma coisa em relação aos seus filhos?
R - Não. Eu quero agradecer a Deus por ter dado essa família que eu tenho, meus filhos. Ter dado a oportunidade de minha esposa estar grávida, de estar vindo essa menina. Quero agradecer a Deus também por ter essa esposa que eu tenho, a família que eu tenho, as pessoas ao redor, vocês, em geral. Eu quero agradecer a Deus pela saúde que eu tenho e, enfim, é isso o que eu tenho de agradecer. Hoje eu posso falar que sou um homem completo. Não, assim, financeiramente, mas em geral, em tudo, em saúde, em amizade. Hoje posso falar que estou em paz comigo mesmo.
P/1- Muito bem. E o que você achou de contar a sua história?
R - Legal, uma coisa diferente. Sabe? Acho que hoje eu nem vou dormir direito, sabe? Às vezes nós falamos e eu não tenho vergonha de contar, mas na hora que eu cheguei, estava meio assim, sabe, não com vergonha, mas com o coração meio acelerado, porque não existe, assim, a primeira vez em que a pessoa não está acelerada. Eu acho que, assim, para mim foi muito legal. Eu tenho de agradecer muito a vocês por darem a oportunidade de eu contar a minha vida e é isso.
P/1- Tem alguma coisa que nós não te perguntamos e que você queria contar e não te perguntamos?
R - Eu acho que não. Se vocês tiverem alguma coisa para perguntar, pode perguntar.
P/1- Eu vou fazer uma pergunta. O senhor tem algum sonho na vida?
P/1- Além de tudo que o senhor já conquistou.
Várias vozes: (inint) [01:05:13].
P/1- Alguma coisa que você almeja ainda tentar alguma coisa?
P/1- Não digo nem o almejar no financeiro, como o senhor falou.
P/1- Mas como pessoa.
P/1- Um sonho.
R - Eu tenho um sonho. Eu tenho um sonho de um dia eu poder comprar uma caminhonetinha, nem que seja simplesinha. Até hoje não tive oportunidade, porque temos os gastos, ainda mais quando está vindo uma criança, que nós temos de deixar as coisas de lado e preparar para ela, porque ela tem de ser bem recebida, bem tratada, não pode deixar faltar nada. Mas eu tenho fé em Deus de que um dia eu vou conseguir realizar esse sonho. Para que? Ter a minha caminhonetinha, uma festa de fim de ano, uma festa de Natal, por exemplo, pegar a caminhonetinha, encher ela de brinquedinho, nem que seja de um real, e levar para as crianças. Esse é um sonho que eu tenho. Às vezes eu falo com a minha esposa. É um sonho que até hoje eu não consegui realizar, mas eu vou conseguir. Tenho fé em Deus de que vou chegar lá, ainda.
P/1- Então está bom. Muito bom. Obrigada, viu?
R - De nada, eu que agradeço. Eu acho que é uma coisinha simples, mas...
P/1- Não.
[01:06:28]Recolher