Depoimento de Ed Carlos Silva Nascimento
Entrevistado por Deise Soares e Maria Eulália Borges
São Paulo, 4 de setembro de 2018
Entrevista ZN-HV04
Realização: Museu da Pessoa
P/1 - Qual o seu nome?
R - Edcarlos Silva Nascimento.
P/1 - Onde você nasceu?
R - Zona Norte, São Paulo, Carandiru.
P/1 - Qual é o nome dos seus pais?
R - Berenice Moreira da Silva, José Carlos Luz Nascimento.
P/1 - Você tem irmãos?
R - Tenho uma, Sandra.
P/1 - O que vocês gostavam de fazer juntos?
R - Nós nos divertíamos muito na comunidade. Com o tempo, tivemos que nos separar, a comunidade andava muito pesada, aí vivi mais aqui com os amigos e ela voltou para a casa dos tios. Aí depois que ela completou 22 anos, ela voltou para a comunidade, ficou um pouco mais sossegada.
P/2 - Mas ela se separou de você por causa da comunidade ou porque os teus pais não tinham condição de criar todo mundo?
R - Isso mesmo. Uma parte disso, o meu pai nos largou pequenos, com cinco ou seis anos de idade, e na comunidade estava tendo muito roubo, vamos dizer, no português declarado, muito estupro, então, por a minha irmã ser bonita, ser cobiçada, ela teve que sair da comunidade. Aí com isso ela voltou para a casa dos parentes, aí depois de um tempo que melhorou a comunidade, que entraram umas famílias para arrumar mais, aí ela voltou.
P/2 - E o que vocês costumavam fazer juntos? Você com seus pais, a sua irmã.
R - A minha mãe levava muito para o parque, a escola também tinha alguns brinquedos que deixava lá no final de semana aberto, nós entravamos lá também.
P/1 - Qual a lembrança que você tem da escola, se tem algum professor que te marcou?
R - Tem sim. Tem a professora Raimunda, que teve muita paciência comigo, que eu não fui boa pessoa, eu era muito violento na minha época de infância, e com isso consegui, ela com muita paciência. Não acabou os estudos completamente, ela vinha em casa me procurar, falar com os meus pais, mais com a minha mãe, aí era bem isso, era a paciência da professora mesmo comigo.
P/2 - Mas na tua infância, você ia para a escola e você brincava muito na comunidade, o que você mais lembra dessa época, o que vocês faziam?
R - Sem estar com a minha irmã eu me juntava com os outros meninos, nós brincávamos de polícia e ladrão. Moleque que tinha em comunidade, não tem jeito. E é difícil comunidade ter um policial, então, era mais ser ladrão. E com isso, aquela brincadeira de esconde-esconde, bolinha, peão, pipa, era o que nós mais gostávamos.
P/2 - Nessas brincadeiras todas, você lembra de um dia marcante que aconteceu alguma coisa?
R - Foi marcante mesmo, porque nós estávamos brincando de polícia e ladrão e nessa época eu estava fazendo o Depatri, aí nós entramos para brincar lá dentro, até, então, estava com uma semana. Acho que no sexto dia, entraram os caras lá. Nós estávamos no corredor e vieram um monte de cara e nos pegaram, falaram que a gente ia ser preso porque nós invadimos lá dentro. Isso foi um dia marcante, que deu medo mesmo.
P/1 - Conta um pouco, descreve um pouco a cena assim, como é que foi.
R - Nós estávamos no corredor, como é lá o Depatri, aí nós começamos a ouvir um barulho, eles começaram a imitar uns bichos. Todos moleques pequenos, nós começamos a ouvir, ‘‘o que é isso, cara?’‘. Aí um olhou para o outro, quando bem espera, estão todos em cima. Aí nos seguraram, colocaram em uma sala e começaram a botar medo em nós, com madeira, que ia bater em nós. Aí nós: ‘‘mas nós não quebramos nada, nós estamos aqui só brincando de polícia e ladrão’‘. Aí ele perguntou: ‘‘quem são os ladrões?’‘. Aí nessa hora todo mundo falou: ‘‘não tem ladrão aqui’‘. Virou todo mundo polícia. Aí eles conversaram conosco: ‘‘vocês não podem fazer isso, nós estávamos vendo vocês na câmera, uma semana, vocês são muito folgados, vocês conseguem abrir tudo o que nós fechamos’‘. Aí nós falamos: ‘‘você está ligado, nós aprendemos com a comunidade, não esquecemos, não é?’‘. Aí eles nos colocaram para fora e nunca mais entramos.
P/1 - Que lugar era esse?
R - Depatri, aqui na Zaki Narchi mesmo, aqui do lado.
P/1 - Era um departamento?
R - De polícia aqui, o DEIC.
P/1 - Quais lembranças que você tem do bairro, da sua infância, como era o bairro?
Antigamente nós podíamos ver a mata, a chuva vindo, o sereno, porque agora virou tipo uma cidade de pedra, só prédios, então, não vê mais nada. Então, uma lembrança boa, que era ver a chuva vindo e nós jogávamos bola, aí nós falávamos: ‘‘vai rápido que a chuva está vindo’‘. Aí quando chegava aqui perto, em cima do Carandiru, nós já parávamos o futebol e corria para os barracos.
R - Tem várias maneiras. Aí outra lembrança, que marcou muito, foi o do Carandiru também, que quando eu cheguei aqui eu vi essa cidade de pedra, que era o Carandiru, não entendia muito, eu era pequeno, aí com o tempo eu fui entendo porque vinham para cá, porque eu tinha três tios, minha mãe veio tomar conta aqui dos barracos. E a região era muito limitada de emprego, não tinha um emprego para o povo, e com isso tinha a feira da detenção, com as famílias que vinham visitar os presos, que começaram a montar uma barraquinha para vender doce, salgado, lanche, essas coisas.
P/1 - Essa lembrança que você tem do Carandiru, você diz que tem três tios que foram presos, você chegou a entrar para visitá-los ou você só ficava do lado de fora, fazendo a venda para ajudar nas despesas?
R - Isso. Minha mãe ficava na barraca, quando ia visitar eles, minha mãe ia como a irmã deles e as mulheres também iam, eu ficava mais nas barracas, mas eu era pequeno, quem ficavam também eram os parentes, que ficavam lá. E até hoje tenho os três tios aí, um está doido, dois estão normais. E outra lembrança foi o massacre, que marcou muito a nossa região, que foi uma coisa que ninguém esperava porque a metade que está no filme, não foi totalmente verdade, mas eles conseguiram fazer, porque na hora que jogaram as facas, nós vimos. Mas os caras já estavam entrando dando tiro, depois que os presos viram mesmo que estava morrendo muita gente, eles pediram paz, que não queria mais briga, mas não adiantou, não. Os caras entraram e começaram a fuzilar mesmo, porque eu morava no morro, meu barraco era alto e com isso eu vi, era muralha mesmo. Os cachorros que o policial soltava brigavam com preso, caia da muralha. Policial mirando reto para o ladrão lá dentro. Tinha ladrão que estava até na janela com o pano branco, pedindo socorro, paz, com o pano branco, e os caras puxavam ele para fora da janela e eu ouvia só o barulho do tiro depois. E uma história que eu tenho para falar é dos meus tios, que eles falaram para mim que eles tiveram que se molhar mesmo de sangue. E deram sorte porque os policiais entravam com os cachorros e também com as espingardas com faca, aquelas facas. Meu tio deu sorte, porque viu espetar dois do lado dele e não espetou ele. E quem tivesse vivo, os caras matavam também, então, foi uma lembrança muito ruim também essa parte.
P/2 - Explica melhor essa parte, que quem não viu não entende direito.
R - Que os presos lá dentro da detenção se fingiam de mortos, porque eles estão vindo matando, então, os que já estavam mortos, eles pegavam o sangue dessas pessoas, se melecavam e ficavam deitados, colocavam até outro corpo em cima, dois ou três corpos em cima para não morrer também, porque eles vieram para acabar mesmo com os presos. Com isso, meus tios deram sorte, se melaram de sangue, se esconderam debaixo de corpo e deu sorte. Porque foi na sorte mesmo, imagina espetar duas pessoas, eles está ali e não ser espetado. O cachorro sair cheirando para ver se estava vivo e não identificar que ele estava vivo. Então, esses dois me falam muita coisa e eu aprendi muito com isso.
P/1 - Fora o massacre do Carandiru, os seus tios contavam como era a vida na detenção?
R - É assim: os que têm família, (até que dá para lidar bem) [00:08:05]; os que vem de longe, não tem família, sofrem, porque tem que trabalhar até para os presos, trabalhar lá dentro, para você comer, beber, ter uma roupa, mas tem gente que não tinha nem roupa. Meus tios falavam: ‘‘me traga uma roupa a mais para um colega que chegou que está sem nada’‘. Tinhas casos que as famílias não podiam visitar porque não tinha dinheiro, não tinha condições de vir para cá. A detenção foi feita, como agora, está sendo no interior e no Amazonas, eles estão fazendo detenções para lá. E lá também vai ser como se fosse aqui, as famílias vão estar longe, mas vão ter que se mudar para lá, vão ter que ir para lá para ficar perto dos parentes, e é disso que acontecem as favelas, que acontece as comunidades, que eles estão invadindo os espaços.
P/1 - Além dessas vindas a participar da vida da família quando vinham visitar os teus tios no Carandiru, o que mais você lembra na sua juventude? Por exemplo as namoradas, os amigos.
R - Os parentes que vinham aqui na comunidade ou no Carandiru?
P/1 - Em tudo. A tua vida. Além do Carandiru, a sua vida no dia a dia, o que você fazia quando você era jovem?
R - Eu fui moleque de rua, eu vivi um bom tempo na rua, na Sé, cheirando cola. Já pedi no farol, nas casas porque quando o meu pai nos largou, passamos necessidade, muita mesmo, porque era a minha tia, as minhas duas tias, o outro meu tio não tinha mulher, aliás tinha, mas não quis saber mais dele. Aí era eu, minha mãe, minha irmã, nós três, e mais duas tias, então, a região não tinha muito emprego, era mais mato, essa época era o Eldorado, não tinha nem shopping ainda, nem Lar Center.
P/1 - Aqui?
R - Aqui na região, onde que é agora o Center Norte, não tinha ainda, era só o Eldorado e estavam construindo o Lar Center ainda, o Center Norte foi um dos últimos a ser construído. Aí com isso, a região era muito difícil para ter emprego, então, com isso eu comecei a roubar. Comecei a roubar, usar droga. E assim, os meus roubos era mais coisas trazer para dentro de casa. Como aqui tinha uma lanchonete no Tietê, nós roubávamos muito elas, e não tinha dinheiro, nós roubávamos pão. Trazia pão para casa, tomava café, almoçava, era tipo desse jeito mesmo. Também tinha o Pão de Açúcar, que ele também é antigo para caramba, eles jogavam muitas coisas boas no lixo, de carne a fruta, aí nós pegávamos. Eram famílias e famílias lá esperando o carrinho de lixo para jogar, para nós pegarmos, trazia muita coisa para casa para comer porque não tinha emprego, meus parentes também não acabaram os estudos, a maioria dos meus parentes são todos analfabetos mesmo, até hoje também não se interessaram a correr atrás. A minha vivência foi muito triste porque eu não tive o meu pai. Quando eu comecei a ir para a escola, dia dos pais, sempre olhava para a porta, não entrava; entrava pai de todo mundo, não entrava. Então, com isso, eu me revoltava muito. Eu fui expulso de três escolas, não gostava de ir para a escola porque eu me sentia sozinho, me sentia excluído e com isso brigava muito. E com o tempo, crescendo, eu comecei a ver que a minha raiva e minha revolta com a vida, eu comecei a ver o outro lado porque tinha um rapazinho, ele era gordinho e os moleques zoavam ele muito, só que ele é uma pessoa boa e eu não brigava com moleque que era bom, eu brigava com moleque folgado mesmo, ‘‘você é bom? Vamos ver nós dois’‘. Eu tinha até um apelido lá no colégio de ‘‘pavilhão nove’‘, por causa do Carandiru, nós morávamos aqui e eu tinha esse apelido. Isso aí eu tinha o que, eu acho que era uns 14, 13 anos. Então, eu comecei a ver os moleques bagunçar muito ele, aí eu comecei a pegar as dores. Comecei a pegar as dores, bater em todo mundo, brigar, aí eu fui expulso, aí eu ia na porta, para não deixar ninguém bater nele. Aí minha mãe conversou com a diretora, chorou, até hoje eu não esqueço. Chorou, pediu por favor porque ela tinha que trabalhar e eu era muito atentado, Jesus. Aí com isso, comecei a ser amigo desse garoto. Eu não tinha roupa naquela época também, eu usava era o Kichute, cortava um pouquinho as travas, o Bamba, nós chamávamos de Bamba Cabeção. O Montreal era um dos chiques, o Le Coq era chique naquela época. Então, eu via todo mundo bem arrumado, só que eu roubava para usar droga, que eu cheirava cola, aí eu não me vestia. Aí com o tempo eu comecei a ver outra visão, comecei a ajudar esse rapaz. Aí certo dia ele desceu comigo, ‘‘vamos até ali com o meu pai, quer te conhecer’‘. Eu falei: ‘‘mano, para com isso’‘. Aí quando chegamos lá, o pai dele trouxe três ou quatro sacolas de roupas, tênis, e me deu, falou: ‘‘esse é seu. Muito obrigado por ajudar o meu filho, ele me falou o que está acontecendo, eu já vejo você há uns dias, isso aqui é para você’‘. Eu falei: ‘‘mano, para com isso’‘. Falou: ‘‘É seu, pode pegar’‘. Quando eu fui ver, só roupa nova, aí eu falei: ‘‘nossa, mano’‘. Aí eu fiz uma amizade legal com esse rapaz, ele é lá da Vila Maria. Aí depois que eu fui expulso pela segunda vez da escola, aí eu perdi o vínculo com ele e nunca mais vi ele.
P/1 - E você foi a segunda vez expulso, o que aconteceu?
R - Briga. Nossa, eu era muito briguento, imagina um cara briguento que achava que podia tudo. Aí depois que tomou um couro, eu vi que dói. Mas não parei, não. Aí eu tinha muito vício, só usava cola. Aí a minha mãe arrumou esse padrasto meu, que eu tenho que falar que foi um pai, o seu Zé, onde ele esteja, obrigado por tudo mesmo, porque foi ele que me tirou dessa vida. Eu era um garoto que vivia noiado, sumia uma semana, duas semanas, cheio de cola, chegava em casa quebrando tudo, minha mãe me arrebentava. Ele falou: ‘‘para de bater nele, Berenice’‘. Me pegou, falou: ‘‘vem aqui, vai tomar um banho, descansa, depois vamos conversar, está bem?’‘. Acabei dormindo. Aí no outro dia, ele me chamou: ‘‘vem aqui, Edcarlos. A rua vai te dar isso, mas a família vai te dar tudo isso. E outra, eu não consigo mais ver a sua mãe batendo em você. Como você vive muito na rua, você vai ter que escolher, ou aqui dentro, que tem tudo, ou a rua, que eu acho que você não vai viver muito’‘. Aí eu chorei, bati a cabeça para pensar, falei: ‘‘seu Zé, então, me tranca, me tranca porque eu não consigo ficar sem usar droga’‘. Ele me trancou num quarto, aí com o tempo eu comecei a quebrar tudo, aí ele até me amarrou, a minha perna, o meu braço, até certa distância da porta. Eu era ruim mesmo, eu estava em abstinência de droga, eu estava a milhão mesmo, eu era magro. Aí consegui ficar uns dois ou três meses dentro de casa, aí me soltaram, começaram a me ajudar mais ainda. Aí falou: ‘‘quer trabalhar, Ed?’‘. Eu falei: ‘‘quero, quero sim, quero ver como que é esse lado’‘. Mas eu pergunto: ‘‘quanto eu vou receber?’‘, logo de cara. Ele falou: ‘‘calma, você nem chegou lá para saber o que você quer’‘. ‘‘Vou trabalhar de graça?’‘, ‘‘calma, se pelo menos ele te pagar pouco, a roupa e o alimento eu te dou, está bem?’‘. Ele me colocou numa borracharia. Comecei a gostar da coisa. Eu ganhava pouquinho, mas ele me dava umas roupas, comecei a melhorar um pouquinho as minhas roupas, aí fui trabalhar aqui no Carandiru, de vender pipoca. Como eu era pequeno, outra lembrança boa, e chata, porque eu era pequeno e tinha um banquinho, então, tinha os bailes aqui em cima, samba, os birinights, que era pagode e reggae, rap, black. Aí os colegas da comunidade passavam e metiam a mão no meu carrinho de pipoca e pegavam. Eu ficava com raiva, era pequeno, mas quando chegava na comunidade eles me davam um dinheiro, que era do movimento, eu falava: ‘‘pô, vocês zoaram a minha pipoca’‘. ‘‘Toma aí’‘, vamos dizer, hoje, 50 reais. Como eles são do movimento, tinham dinheiro, me davam. Aí eu fui trabalhando, fui para o Shopping Interlagos também, trabalhei no negócio de mini buggy. Lá conheci umas pessoas erradas, perdi o emprego, eu mentia que eu ia para o trabalho e não ia, aí eu aprendi a fumar maconha, aí eu não ia trabalhar, mas mentia, até um dia que o gerente ligou para casa. Ele ligou para casa, ‘‘como assim, sai todo dia de manhã aqui e não vai?’‘, ‘‘então, ele não está aqui, vou te mandar até uma foto. Não está aqui, está todo mundo aqui’‘. Aí cheguei em casa, achando que estava tudo bem, minha mãe me quebrou de novo, ‘‘você está de brincadeira’‘. Aí eu fui, desabafei de novo, ela falou: ‘‘porque você não me falou isso antes?’‘. Eu falei: ‘‘desculpa, fiquei fraco’‘. Aí beleza, me tirou de lá, fiquei um bom tempo desempregado, aí eu arrumei a pizzaria, aqui na Zaki Narchi também, o cara também me ajudou muito. Aí ele teve que ir embora da região, aí eu fiquei um bom tempo desempregado. Com isso, eu comecei a ver que na comunidade muita gente estava precisando de muita coisa, como um pacote de arroz, uma muleta, uma cadeira de rodas. Eu fiz muita amizade também, aí eu comecei a pedir isso. Aí eu vi uns amigos fazendo projetos sociais lá dentro, que muitos já morreram, que Deus os abençoes. E assim, comecei a ver que a comunidade parou, não tinha mais nada.
P/2 - Antes de você vir para cá, nesse momento, você falou que o pessoal do movimento pegava as pipocas e depois te devolviam.
R - Davam o dinheiro.
P/2 - Que movimento era esse?
R - O crime, o tráfico.
P/2 - Você estava contando como era aqui, só fala um pouco desse lugar como era. Você disse que tinha bastante natureza, mas o que eram essas casas, que nem você estava contando antes, e como acontecia esse movimento do tráfico? Contar um pouco como era a vida da comunidade.
R - A comunidade são os espaços invadidos, que vão vindo pessoas por causa de aluguel, por causa de acontecer alguma coisa em outro local, viu aquele espaço, fala com algum líder comunitário, aí ele cede o espaço e com isso, se só tem moradores e não tem nada, alguém do movimento vai colocar o movimento ali. Sempre vai surgir porque o desemprego é a preocupação de um pai dentro de casa. Foi procurar emprego e não conseguiu, chegou em casa, ‘‘pai, um leite, um Danone, uma bala’‘, você não tem. Aí você passa em várias regiões, você vê, lógico, aquela pessoa se dedicou e montou o seu comércio, não está errado, mas viu ele num patamar acima dele. A sua cabeça começa a ficar preocupada, fala: ‘‘eu estou procurando emprego pelo lado bom, não estou conseguindo, eu vou tentar esse lado aqui’‘. É acreditado, sempre o primeiro roubo dá certo, 90% dá certo, então, quer dizer, se roubou a primeira vez, você gostou. Deu certo a segunda? Você vai continuar. Então, conosco não tinha nada disso, mas implantaram isso, por quê? Por causa do desemprego, uma pessoa que vem, ‘‘dá para nós montarmos o movimento aqui, muitos fumam maconha, cheiram pó, então, vamos vender que também dá dinheiro’‘. E com isso eles contratam os moradores da comunidade, como se fosse uma empresa mesmo, e pagam, pagam semanal, nem mensal. É um valor que você fala: ‘‘eu vou trabalhar para ganhar isso num mês? Aqui eu vou ganhar em uma semana’‘. Mas também tem o outro lado que é a lei. Se colocou coisa errada, a lei vai chegar até você, e com isso, você pode pegar anos lá dentro e, num modo de ver, piora as coisas. Se já estava ruim em casa, você está preso, está todo mundo precisando, imagina agora como a sua mulher vai sair para arrumar emprego e deixar as suas filhas em casa sem ninguém? Então, uma parte dessa vivência foi a minha mãe também tomar conta de barracos para as mulheres irem arrumar emprego, porque os maridos foram presos por causa do movimento.
P/1 - Seus tios, foi assim que aconteceu?
R - Foi. Um dos meus tios, esse que está doido, foi assim, ele morava na Vila Industrial, ele tinha um bar com sinuca, só um cercadinho com a porta aberta. Só que lá sempre ficava os caras conversando em cima da sinuca, nisso os policiais entraram, os caras falaram ‘‘olha, os caras estão invadindo’‘, correram e deixaram a bolsa de droga lá. Só que como fizeram barulho, meu tio: ‘‘caramba, deixa eu ir lá falar com eles’‘. No momento que ele abriu a porta, aí ligou a luz, os caras estão vindo, olharam para ele, então, estavam vendo ele, assim ele falou para nós antes de ficar doido. Quando ele menos espera, o cara meteu (inint) [00:20:52] debaixo da sinuca, viu aquele pacote de droga, falou: ‘‘é seu’‘. Ele: ‘‘não, não é meu’‘. Até discutir, até falar que não é, ficou no Carandiru, nove anos. Você entendeu? Um pegou 12 anos e assim por diante. Então, quer dizer, um foi injusto, os dois não, os dois meus tios porque assaltaram mesmo, assaltavam muito mesmo. E aí, minha mãe tomando conta dos barracos, o movimento cresceu muito na comunidade e também estava começando muito estupro, como eu estava falando agora da minha irmã. Minha irmã teve que ir embora. Aí chegaram umas três famílias, com um monte de homens, aí começaram a saber quem eram os caras que estavam roubando barraco, estuprando mulher, causando, começaram a eliminar. Igual eu falo também, a Cidade de Deus é um pouco da Zaki Narchi, porque antigamente era churrasco de galinha, que deu aquele tiroteio todo que vocês viram lá. Eu lembro pouco da minha comunidade, porque se abrir a porta, você via dois ou três no chão mortos. Tinha semana que você não abria a porta. Quando começaram a invadir a comunidade, começaram a invadir aqui por trás primeiro. Quando começaram a invadir a avenida, o meu primeiro barraco foi depois da ponte, então, os caras sempre passavam correndo com arma e dando tiro. Tinha dia que o nosso barraco estava cheio de buraco, nós dormíamos no chão. Graças a Deus mesmo, eu tenho que falar, que nós não pegamos nenhum tiro, porque falando assim parece brincadeira, mas não. Quando você via de manhã o sol batendo nos buracos, aí você botava fé que o negócio acontecia mesmo.
P/2 - E assim, você fala que vendia pipoca, que você foi usuário de drogas, mas você fez parte desse movimento em algum momento da sua vida?
R - Fui. Fui por muito tempo parte, menti muito para a minha família também, falava que eu arrumei emprego. Antigamente eram três campos que tinha na comunidade e ali era muito movimento. Então, eles traziam muito eletro, do tempo do Jumbo-eletro, no tempo de umas lojas antigas, eles traziam três, quatro caminhões e falava: ‘‘comunidade, tem televisão, vem aqui negociar’‘. Então, a minha família não tinha muito essa vivência de roubos, de ver isso. Mas eu não, eu era muito envolvido, mentia para eles que eu estava trabalhando e ficava no movimento, trabalhei um bom tempo no movimento. Aí depois que os caras começaram a invadir, os policiais começaram a pegar pesado, eu me afastei um pouco também. Aí um colega meu me arrumou para trabalhar nos Correios, fiquei trabalhando nove anos nos Correios e assim, parecia uma coisa incrível, tinha 20 funcionários, todos foram roubados menos eu. Ali pelo Brás, da Santa Rita, porque eu também já conhecia os colegas porque eu era da comunidade, então, eu ia com Sedex, ia buscar mercadoria, os caras, ‘‘aí, negão’‘, ‘‘beleza’‘. Aí falavam: ‘‘por que você não foi roubado, você passou por aquela rua?’‘. Eu falei: ‘‘então, quem está lá eu conheço, não sai da minha quebrada, vai me roubar, está doido? Se me roubar eu volto e pego ele’‘. Eu nunca fui flor que se cheire também, já fiz muita merda na minha vida. Nunca fui roubado, aí com isso fiquei nove anos no correio. Aí o sacana do meu patrão sonegou falência, perdi os nove anos.
P/2 - Como é?
R - Os Correios era franquia, aí, então, ele sonegou falência, aí não consegui nem o fundo de garantia, nada, fiquei nove anos sem nada. Aí voltei para o movimento.
P/1 - Antes ainda do movimento, teve algum episódio assim que você lembra? Porque você vai contando como foi toda essa tua trajetória, mas teve algum momento marcante de você atuando no movimento? Alguma coisa que aconteceu.
R - Tipo assim, eu também roubava casas, por eu ser magrinho, eu era um dos primeiros a entrar. Nossa, qualquer janelinha, qualquer coisa de alumínio era fácil de entortar. Eu, por ser magrinho, eu entrava e pegava a família, conversava, abria a porta, os outros entravam. Legal, até, então, estava indo bem. Aí certo dia, aqui para cima, pegamos uma casa, aí nessa casa que nós pegamos, pulamos o muro, até, então, as famílias e tal. Mas antes disso, lá dentro da casa, meus amigos queriam o cofre, aí já começaram a querer agredir e eu sempre fui um cara de dialogar, conversar. Eu falei: ‘‘já deram a fita, nos deixa ir embora, só dá o negócio’‘. Aí falou que ia me bater. ‘‘Não agride as vítimas’‘, conversando. Aí nesse dia pegamos tudinho, pulamos o muro. Na hora que pulo o muro, os policiais estavam lá embaixo. ‘‘Para’‘, aí não paramos, corremos. As balas (juncavam) [00:25:39] no ouvido, batiam no muro, e eu falava: ‘‘Jesus, me tire dessa que eu não quero voltar’‘. E correndo. Nessa hora você vê Deus, aí você corre, corre porque a bala pegou fogo. Aí entramos dentro de uma mata que tinha aquelas tubulações de esgoto. Andando pela tubulação de esgoto, passava rato, passava merda. Helicóptero atrás de nós, eu acho que eu estava com 22 anos. Foi depois que eu fui liberado do exército, acho que mais ou menos 20 anos. Aí eu dentro do esgoto, chegamos numa tubulação assim, tinha quatro tubulações para nós escolher um lado para ir. Aí falei: ‘‘seja o que Deus quiser, cada um vai para o seu lado, vamos ver o que dá’‘. Aí fui, os três amigos foram presos e eu não fui. Aí teve um outro assalto, também residência, mesma coisa. As vítimas todas já certinhas, amarradas já, no canto delas. Meus amigos também querendo agredir e eu conversando, ‘‘não’‘, mas expliquei um pouco da minha vida para eles também, dialogando. Fomos presos, deu errado, nos rendemos. Chegamos na delegacia, aí as vítimas, para nos reconhecer, olharam e falaram: ‘‘aquele rapazinho ali não, conheço ele não’‘. Aí foi uma coisa que eu falei que Deus está do meu lado. Tem hora que eu falo ‘‘olha pelos meus amigos aí’‘, que tem amigos meus que estão saindo da cadeia agora, pegaram oito, nove anos de cadeia, dez anos, estão lá ainda. Só tenho a agradecer porque a vida não foi fácil.
P/1 - Em que momento da sua vida você fez a opção de mudar, sair desse mundo que você estava e veio para um mundo das coisas, entre aspas, normais?
R - Foi assim: meu padrasto viu a minha situação e também ele trouxe cinco filhos de Minas pra casa. Aí lá na comunidade sempre tem lava-rápidos, essas coisas, aí ele comprou um espacinho. Aí ele falou: ‘‘pessoal, vou comprar todo o maquinário para vocês para vocês montarem um lava-rápido, já está montado, o espaço tudo montado, é do rapaz lá’‘. Só que quando entra pessoas novas, o comércio cai muito, mas caiu de mais. Nós ficamos de quatro a cinco meses sem ter um carro para lavar. Sem ter um carro para lavar, acordava direitinho, no horário, como se fosse uma empresa. Acordava 8:00 da manhã, saía 5:00 da tarde, hora de almoço, tudo certinho. Foram uns quatro ou cinco meses. Meu mano que trabalha aqui, que é o Celso, que me ajudou muito também a liberar essa angústia, porque ele também tinha muita amizade também, tinha uns amigos com carro, nós começamos a lavar carro de graça para mostrar o nosso trabalho. Aí começou a levantar o lava-rápido, ficamos mais ou menos uns quatro anos no lava-rápido. Aí eu vi que eu consigo ajudar as pessoas também, porque eu estava ganhando bem ali no lava-rápido, eu já ajudava em alguma coisa, pelos (voos) [00:28:44], pelas minhas coisas erradas, ajudava. O pessoal: ‘‘ô, Ed, acabou o meu gás, me ajuda aí’‘. Eu: ‘‘não vou mandar o dinheiro, vou mandar o botijão lá, está bem?’‘. Aí vinha uma senhora, remédio. Conheci o pessoal da região. Aí teve uma eleição, resumindo, teve uma eleição lá. Aí nunca nem participei de eleição nenhuma lá dentro. Já tinha uns projetos que era a quermesse e uma escolinha de futebol que não era muito assim, com horário certinho, era aleatório. Aí teve a eleição, mas sabendo eu quis participar e começou a ir morador lá. Foram cinco moradores no decorrer do dia, dez moradores, 15, quando chegou mais ou menos umas 2:30 da tarde, foram uns 100 moradores lá. ‘‘Ed, você tem que se eleger, você tem que entrar porque os mesmos que estão aí só estão nos sacaneando’‘. Aí eu falei: ‘‘gente, como que é esse negócio de eleição?’‘. ‘‘É o que você já faz, você tem uma escolinha ali, você sabendo, você sempre ajuda com alguma coisa que você pode também’‘. Eu falei: ‘‘o meu lava-rápido está indo bem, eu vou ajudando’‘. Beleza, só que quando eu cheguei no centro comunitário para me apresentar, tiveram uns dois que foram arrogantes comigo. Eu falei: ‘‘olha, como é o negócio da eleição aí?’‘. Eles acharam que era uma piada, ‘‘para que você quer saber? Você não se envolve em nada’‘. Aí eu falei: ‘‘como é que é?’‘, eu falei, ‘‘a questão não é se envolver, a questão é fazer. Querendo ou não, eu acho que eu faço alguma coisa aí’‘. ‘‘Ele faz, sim’‘, lá atrás, um monte de gente gritando. Aí eu falei: ‘‘pela sua arrogância, eu quero entrar. Como entra nesse negócio aí, como é que é? Coloca o meu nome aí’‘. Aí o outro arregalou os olhos, viu um monte de pessoa a favor de mim. Falei: ‘‘está vendo isso aqui? Eu não estou à toa, não, eu estava trabalhando, nem sabia disso aqui, agora eu vou entrar, cara, pela sua arrogância’‘. ‘‘Não, Ed, já está os quatro, para que você quer?’‘. ‘‘Eu vou entrar, mano, eu posso entrar?’‘. ‘‘Poder, você pode’‘. ‘‘Então, está bem, coloca o meu nome aí’‘. Aí eles tiveram que parar tudo e fazer como se fosse eleitor mesmo, saía aí entregando papelzinho, ‘‘votem em mim, vou bater de frente com os antigos’‘. Aí fiz um monte de papelzinho e saí, quase um mês. Aí teve a data direitinho, aquele pânico, falei: ‘‘será que esse negócio vai dar certo?’‘. Está na internet tudo isso aí, está lá internet que eu ganhei, tudo direitinho. No dia teve fila e no começo só tinha o nome dos quatro e nenhum quadradinho do meu. Foi a pior coisa que eu fiz. Aí daqui a pouco começou o quadradinho: Ed, Ed, Ed. Está até na internet lá. Enchi umas quatro barreiras de quadradinhos, ganhei deles. Aí o pessoal ficou orgulhoso também, comecei a ajudar mesmo a comunidade, com saneamento básico, porque o nosso esgoto era entupido, não cortavam mato. E por que esse povo começou a nos ajudar? Porque eu tinha um lava-rápido, aí os fiscais das empresas: ‘‘eu tenho uma moto, dá um trato para mim?’‘. ‘‘Lógico que eu dou, cara, traz aí’‘. ‘‘Corta a grama para mim lá’‘, aí eles traziam os caras para cortar a grama, trazia as peruas, lavava as peruas, lavava os caminhões, tudo de graça, para a comunidade ser arrumada. Pintaram guia, arrumaram guia, arrumaram os esgotos, só o telhado e pintura que não fizeram nada disso, iluminação também não. Aí eu vi que deu resultado, fiquei quatro anos como presidente da comunidade, eu sou um representante, um líder comunitário ainda, mas o único eleito mesmo fui eu, pela habitação, prefeitura, a saúde, a UBS estava lá, RG, morador, tudo direitinho. Fiquei meus quatro anos, aí tiveram uns problemas lá porque não é fácil tomar conta de comunidade, aí eu saí, continuei no meu lava-rápido.
P/2 - Você fala isso, toda essa parte da sua vida, a comunidade já era o Cingapura, não eram mais os barracos de madeira?
R - Isso.
P/2 - Já era o Cingapura.
R - Bem lembrado. Antes de chegar o Cingapura, a Erundina tentou fazer as casinhas para nós, porque ela tinha um plano lá de casinhas. Só que comunidade é aquilo, nesse espaço aqui, bem dizer, cabe 20 famílias, porque cada família faz uns fechadinhos porque não tem como a pessoa pagar um aluguel caro, então, ali ela não está pagando até melhorar e arrumar um cantinho melhor. Então, quando começou a fazer essas casinhas, ela viu que apareceu muito morador. Vamos dizer que era 5 mil, apareceram 10 mil, então, as casinhas não deram. E também ela se queimou conosco, porque ela fez um buraco tão grande lá dentro e quando choveu virou uma piscina. Até então, ‘‘uma piscina’‘, só que ninguém entendeu que tem criança na comunidade, o que aconteceu? Duas crianças: chegaram na beirada, escorregaram e caíram. Até hoje eu não esqueço, eu estava na avenida, eu até me arrepio, porque foi uma cena. E eu era novo nessa época, não era tão velho. Nós estávamos na avenida, chegou uma senhora gritando: ‘‘corre aqui’‘. ‘‘O que foi?’‘, ‘‘duas criancinhas caíram dentro da água’‘. Quando chegamos lá, estavam boiando as duas criancinhas, sem nada. Eu não sei nadar, mas os amigos pularam, me jogaram para o lado, aí eu puxei, subi. Aí chegaram uns moradores lá, começaram a fazer. Ali, quando eu falo que é Deus, foi mão de Deus, gente, porque elas já estavam lá sem nada, estavam só assim já, boiando. Foi feito respiração boca a boca, bateu. Aí voltou uma, depois voltou a outra, catou e foi para o hospital, que tem o PS Santana aqui, graças a Deus tem esse PS perto. Levaram as duas crianças. Como foi em fim de semana, lá vem eles na segunda-feira falar conosco, aí teve aquela encrenca. Aí botamos eles para correr, aí o projeto dela parou, vieram uns caminhões tampar os buracos com entulho, porque foi uma coisa muito grave que aconteceu.
P/2 - O Buraco era para fazer as casas?
R - Então, nós não entendemos ainda esse buraco, era muito fundo porque eu não acho que precisa para bater estaca, não, se for para bater estaca eu acho que era uma coisa reta. Então, até hoje, como eu era muito pequeno, eu lembro disso. Aí primeiro foi isso aí, eram os barracos, aí veio para as casinhas, que foi a época da Erundina, aí depois veio o Maluf, que o primeiro projeto social de Cingapura foi o da Zaki Narchi, o primeiro modelo, e foi isso.
P/2 - Não chegou a construir as casas então? Foi direto para o Cingapura?
R - Isso, estava tudo certinho. Bem lembrado. O morro não era construído nada de barraco, o morro era carros, que jogavam ali, que tinha uma família que tomava conta aqui da região, e colocava carros batidos, comprava carros batidos e colocava lá em cima. Aí com a Erundina, ela montou o alojamento em cima do morro, só que a favela só cresceu. Não conseguiu fazer as casinhas, tampou o buraco, ficou em linha reta, teve mais invasão ali em cima. Aí começou a invadir do morro, dentro da Zaki Narchi, aí veio o Maluf. Aí o Maluf veio, fez alojamento numa área que era do shopping, aí ficou o alojamento da Erundina no morro, dentro da Zaki Narchi, ali onde que são os prédios, ficou atrás do shopping onde era a feira e agora onde que são os galpões da escola de samba, também ficaram as casinhas do Cingapura também. Então, o Maluf removeu tudo para lá e trouxe o Cingapura para dentro da comunidade, aí foi que começou a acabar tudinho os alojamentos.
P/1 - Ed, você comentou que no Carandiru tinham as barracas que as pessoas colocavam. Você notou diferença na comunidade depois da demolição do Carandiru?
R - A nossa comunidade é muito mal falada. O Carandiru ajudava pelos comércios que tinha, porque era muita gente, era muita gente querendo, vamos dizer, alugar roupas. Vou falar um pouco de mim, eu tentei entrar no Carandiru depois de maior, eu fui com uma calça creme e dentro do presídio é caqui. Eu passei o segundo portão, no terceiro portão o cara falou: ‘‘rapaz, te avisaram sobre você?’‘. Eu falei: ‘‘não, como assim?’‘. ‘‘Olha, sua calça está igualzinha à dos caras aqui, não é a cor, mas se sumir algum preso, e nós saber, e ver você com essa calça, vamos contar todos, se faltar um você vai ficar’‘. Eu já tinha passado do segundo portão. Aí eu falei: ‘‘o quê?’‘. Aí eu saí, então, eu não consegui ter essa vivência dentro do Carandiru. Então, eram muitas barracas e dava um recurso bom. Olhar carro. Fim de semana era uma beleza, era muito carro. Olhar carro, as barraquinhas, mas emprego não tinha, eram poucos empregos em Santana, no Tietê também. Porque quando eu cheguei aqui, isso eu não me esqueço, tinha só o Tietê construído ainda.
P/1 - Rodoviária?
R - É, só a rodoviária Tietê, estava construindo ainda, já estava interligando o Carandiru, só que as portas não estavam abertas ainda, o metrô passava reto, que era para Santana. Aí depois que montou, abriu as portas, as portas estavam feitas, mas não abriram. Aí depois abriram o Carandiru, inauguraram, isso eu lembro. No Carandiru também, favorecia os colegas, porque os muros do antigo Carandiru eram um pouco menor e com isso tinham os plantões limpos e os plantões sujos. O que eram os plantões sujos? Quando tem polícia. O plantão limpo, quando não tem polícia. Nós fazíamos pipas, grandonas, para descer droga aqui para dentro. Tinha uns colegas que tinham o braço bom, faziam umas bolas, jogavam por cima do muro. Ou os presos empinavam pipa, desciam lá, nós sabíamos qual a cor da pipa, amarrava alguma coisinha para eles usar aqui dentro e ganhar dinheiro, subia pipa. Eram uns pipões, com a linha grossa, era um giro do dinheiro, não tinha como. A pessoa falava: ‘‘olha, eu vou te dar aqui 50 reais só para jogar aqui agora’‘. Eu tenho um amigo, o Urso e os irmãos dele que tinham o braço bom, forte, jogava, ultrapassava, aí ele começou a pegar uma clientela, porque ele era mais forte, ele ganhou.
P/1 - Ed, e não tinha policiamento?
R - Não, era policiamento assim, a viatura passava pela região do Carandiru, dos pavilhões, mas é como eu falei, plantão limpo, plantão sujo.
P/2 - Mas era uma coisa planejada ou não?
R - Era. Era porque todo mundo ganhava, não tem esse negócio que o policial não sabe, ninguém vai deixar um setor vazio sabendo que ali é perigoso. Todo mundo ganhava, é a real.
P/1 - Mudando um pouco de assunto. Em que momento você casou, que época da sua vida você conheceu a sua esposa?
R - Eu casei com 22 anos. O pai dela não gostava de negro, não gosta de negro, está vivo ainda, não sei porque não morre. Eu estava nos Correios nessa época, não estava mais no movimento. Não, fazia o movimento, mas estava trabalhando, ficava longe. Aí ela mora no Jardim Brasil, morava, peguei ela com 14, 15 anos, eu estava com 17, 18 anos essa época. Aí eu não conseguia ir na casa dela, porque o pai dela não gostava de negros, e morando numa comunidade. Eu estava com uma amiga dela; um certo dia, brincando, de repente ouvimos alguns gritos, a amiga dela perguntou: ‘‘O que aconteceu? O que está havendo?’‘. Eu disse: ‘‘É o pai dela querendo bater nela’’, eu falei: ‘’O quê? Não, eu não vou aceitar isso, não’‘. Eu estava trabalhando nessa época; até já bancava ela, eu ganhava um dinheirinho a mais, dava algum dinheiro para ela do transporte e etc. Eu já tinha meu apartamento, por que não? Foi uma loucura rápida, achei que não fosse dar certo, acabou dando. Eu falei que ia, a amiga falou para eu não ir. Bati na porta, ele me perguntou quem eu era e o que queria, eu respondi que era o namorado dela; ele disse: ‘‘Ah, então, é você, o marginalzinho’‘. Eu disse: ‘’olha, eu não te conheço, não tô nem falando com você. Se tocar em mim, o assunto muda’’. Eu falei ‘’Sandra, calma. Me desculpa, dona Cristina, mas eu vim buscar a sua filha. Alessandra: se quiser ir embora comigo é hoje, não pega nem suas coisas, só seu documento. Você sabe que vai ter de tudo meu. Agora, ficar aí apanhando desse cara? É seu pai? Não é seu pai, não’’. Eu disse: ‘‘Olha, para com preconceito com negros, nós moramos em uma comunidade’‘. Aí saí. E disse: ‘’Olha, se quiser ir comigo é agora, se não quiser me esquece’’. Quando estava indo para o ponto de ônibus, ouvi uns gritos, era a minha mulher. Perguntei: ‘’Você vai embora comigo?’’ E ela disse: ‘’Vou’’. Ela veio embora comigo só com a roupa do corpo e os documentos. Cheguei em casa: ‘’mãe, é assim, assim, assim’’; ‘’o quê?’’ e ela aceitou e falou que tudo bem eu ir morar com ela. Depois de duas semanas, o pai pediu para falar com ela, foi até a minha casa. Pensei: ‘‘Ele entra e eu saio’‘. Porque para mim não existe isso: ‘’ah, eu não sou mais racista’’, não, sempre vai ser. Acho que quem mora em comunidade percebe no olhar a falsidade pelo jeito de falar. Se eu sentir que você está falando para mim de uma maneira labiosa, eu percebo; a minha avó me dizia que eu tinha um sexto sentido, pois eu sabia quando a pessoa estava sendo falsa. Diante disso, me afasto; aprendi muito com isso. Se o pai dela vir me pedir desculpa, vou dizer que não precisava. Eu poderia ter feito coisa pior com ele, porque ele me chamou de macaco e ladrão. Portanto, são certas coisas que vem na cabeça. Ele ia em casa e eu saia; quando nasceu minha primeira filha – hoje tem 20 anos – continuei fazendo o mesmo esquema: Ele entra e eu saio, até mesmo no hospital. Ela dizia para mim: “Ed, para com isso’‘. Eu falei: ‘‘Alê, deixa como está, porque eu não vou conseguir olhar para cara dele, e lembrar do que ele falou para mim’‘. Nos casamos, hoje temos 7 filhos, estou com ela há 24 ou 25 anos. Ela também me ajudou muito, deu uma direção na minha vida. O crescimento dos meus 3 filhos mais velhos, eu não estive perto. A minha vida foi em gandaia, em roubo e em assalto. Ela segurou tudo sozinha, foi muito guerreira. Eu já fui um cara muito ruim, fui um cara que só representava para pagar conta; mas ter carinho e atenção, eu não dei para os 3 maiores. Perdi muito esses momentos com eles. Se acontecesse alguma coisa, foi em virtude de mim mesmo; às vezes me questiono se não foi pelo fato do meu pai não estar do meu lado, mas sei que não é assim, porque sou eu quem deve construir a minha vida. Eu não queria aprender o lado bom da vida, acreditava que o lado da gandaia era melhor. Estou com ela até hoje, estamos vivendo.
P/1 - Como você a conheceu?
R - A conheci em um baile, no Berry Night, onde tem pagode. Eu vi aquela fofinha por lá, mas ela namorava também, era um negão alto, quase apanhei dele. Porque naquela época havia muito Black Meet, Lagartixa Cascata, e eu eu dançava também. Eu encontrei com ela aqui, naquela época tinha muito samba e os passinhos. Percebi que estavam me olhando no escuro, quando vi era ela. Pensei logo em entregar o telefone; na verdade, eu não tinha nem telefone, foi o telefone do amigo. Eu falei para o amigo que ia passar o número dele para ela, se ela me ligasse, pedi que ele me passasse, porque eu tinha que ficar com aquela fofinha. Entrei e pedi para ela me ligar. Ela me ligou, fomos em uma pracinha, ela disse que namorava – foi sincera comigo. Ela disse que não estava bem com ele, e que se ela decidisse terminar, ficaria comigo. Estava com ela, um certo dia no salão no segundo piso, o ex namorado dela disse que ia me pegar. Eu disse para ele descer. Eu disse a ele que os dois não estavam mais juntos, então, ele me grudou aqui, nisso todo mundo quis pará-lo. Fomos lá para fora, chegamos lá fora, ele viu que não dava para ele. Eu falei que se ele me acertasse na cara, que eu o ia acertar na bala. Ele disse que também tinha uma arma, eu falei: ‘‘Está certo, você pega a sua e eu pego a minha’‘. Sempre ia com Fusca ou Brasília armado. Ele disse que não, e que ele estava com a dele também lá. Esse dia foi macabro, se um levantasse, seria motivo para atirar. Por isso que digo que Deus tem um propósito na minha vida, porque já passei por muitas situações arriscadas iguais a essas. Lembro e agradeço a Deus. Estou com ela até hoje, graças a Ele.
P/1 - Em que momento da sua vida a biblioteca passou a fazer parte?
R - A biblioteca me ajudou muito, é a minha segunda casa. Independente de um dia sair daqui, será sempre minha segunda casa, porque é uma história muito boa e engraçada. Eu estava dentro de casa, na comunidade, e já pensava em ir assaltar, de repente me aparece um senhor na minha porta com alque toque grande – aqueles de polícia – e uma senhora cheia de corrente, parecia ouro. Olho e falo: ‘’puta, mulher, fodeu. É polícia’’. E eu moro no quinto andar. Eu pensei, juro, em pular do quinto andar; amarrei o lençol e não chegava até ao final. Falei: ‘’filha, vai lá. Se for policial, fala que me separei de você’’ e me escondi de baixo da cama. Se eles entrassem, iam me achar, eu estava em baixo da cama. Falei: ‘’olha, se perguntarem de mim, fala que me separei, sumi no mundo, não tô mais com você’’. Até hoje quando paramos para conversar, damos risadas disso. Ela foi lá: ‘’oi, bom dia’’; ‘’bom dia’’; ‘’quem são vocês?’’; ‘’sou João Conde da biblioteca e essa aqui é a diretora, Magda não sei do quê’’; ‘’Queria conhecer o Ed Carlos, que ele é da comunidade, controla o pessoal e tem uns projetos’’. É que aconteceu uma briga na biblioteca, entre os moradores, foi terrível, e a gente queria conversar com ele e fazer uma parceria’’. Antes eu já tinha vindo até a biblioteca, porque queria aprender a usar a internet – aprender a navegar no Orkut, Facebook, e etc. -; tudo o que sei, aprendi aqui dentro, foram eles que me ajudaram. A minha esposa perguntou se eles realmente não eram policiais, eles disseram que não. Eles perguntaram porque pensamos que eram policiais, ela disse: ‘‘O senhor vem aqui com um alque toque desse tamanho, e a senhora vem com muito outro, quando se vem assim, pensamos que são policiais’‘. Ela disse que não, e me deu um cartãozinho, e pediu para nós visitarmos a biblioteca. Eu questionei mais uma vez, eles disseram que realmente não eram policiais, e me mostrou até o celular. Eu pensei que poderia ser um disfarce; minha esposa me chamou, e eu sai debaixo da cama, ela me mostrou o cartão dela. Então, eu fui até lá e dei bom dia; eles ficaram curiosos porque já havia falado que eu sumi, eu disse: ‘‘O senhor com esse alque toque parecido com o de policial, a senhora está cheia de ouro, pensei que fosse a polícia’‘. Eles negaram; disseram que queria fazer uma parceria, porque aconteceu aquela situação da briga. Eu já havia ido até lá fazer a carteirinha, mas eu fiquei com vergonha porque estava com chinelo e bermuda. Eu falei que ia trocar de roupa para conhecer o espaço e não voltei, porque é muito chique. Ela disse para eu não pensar assim, porque lá é para comunidade, para a região. Eu não fui sozinho, levei uns 15 amigos comigo.
P/1 - Por que você ficou meio assim?
R - Como eu vivia em um mundo escuro, imagine você ver pessoas mortas? Homens degolados porque estupraram. Então, o meu mundo era escuro. Eu já passei por muita coisa, já salvei muito colega para não perder o pescoço. Minha palavra valia muito antigamente – não quero dizer que hoje não vale – em virtude da minha vivência. Eu tinha 9 barracos, quando os caras saíam do Carandiru sem destino, pediam para me procurar porque eu teria um barraco para eles dormirem – tinham chuveiro, um espaço para trocar de roupa. Com isso, eu peguei essa moral, poderia ter acontecido alguma coisa comigo, mas foi Deus quem me tirou. Eu levava droga, eu fazia tudo, pode perguntar quem é das antigas. Eu fui ganhando um conceito.
P/1 - Mas quando você veio aqui, você disse que não ia voltar.
R - Eu já estava com a carteirinha, e vim com uns 15 colegas. Eu entreguei aqui dentro e vi que estava bagunçado, estava havendo muito roubo. Aqui tinha um grupo da Brasilândia que mandava as mulheres irem na fila de banco, quando estavam chegando a sua vez, pediam para a pessoa passar na frente, justificavam que estavam esperando o marido. Antigamente, não tinham aquelas barreiras, então, eu via tudo. As mulheres ligavam para o marido e descreviam como estava a pessoa; os caras saiam daqui para roubar a pessoa. Eu conheci a biblioteca com os voluntários; eu trouxe meus amigos aqui para dentro, Seu João me apresentou o espaço antes de abrir, eu peguei um livro. Eu não gostava de ler, só gostava das figurinhas. Daqui a pouco, pegamos os caras, eles mandavam as mulheres lá para o banco para assaltarem as pessoas – eles saíram daqui em grupo, e faziam senha de banco.
P/1 - Aqui mesmo na biblioteca?
R - Sim, aqui mesmo. Tinham alguns grupinhos por aqui. Haviam brigas direto, os DVD’s daqui eram roubados. DVD’s portáteis também eram roubados, eu já recuperei uns 6 ou 8. Muitos funcionários foram roubados, algumas coisas deles recuperamos também. Com isso, percebi que estava melhorando. Surgiu uma vaga de emprego, fizeram uma reunião com os 15, muitos nunca trabalharam. Eu já parei um pouco com certas coisas, já tinha meus filhos; até que falaram: ‘‘Pessoal, quem quiser trabalhar, dê um passo à frente’‘. Todos deram um passo para trás, só eu que fiquei. Perguntei no que iria trabalhar, pediram para eu ficar aqui como Segurança. Falaram que com um tempo, eu iria aprender a digitar – eu não sabia nada. Esses livros que têm essas coisas, não sabia nem o que era isso. Não sabia nem o que era um HD. Os amigos das antigas que me ensinaram tudo isso, devo agradecer muito a eles. Eu não tive curso, tudo o que aprendi aqui foi na raça e amigos me ajudando; eu sou meio ruinzinho, mas aprendo rápido. Começou a dar certo, até que um dia tive que falar com esse grupo que fazia senha de banco aqui. Chamei para conversar e fomos lá para varanda. Nesse dia, os caras me estranharam, perguntaram quem eu era, disse que o pessoal da biblioteca havia acreditado em mim. Eles me rodearam – na varanda que fica para o lado do metrô, os funcionários ficavam sempre observando por esses lados – e os funcionários acharam que fosse ter briga. Eu falei: ‘‘Ninguém quer empasse na derruba de vocês, não. Só quero que vocês entendam que está chegando, vamos fazer um negócio calmo’‘. Eles me perguntaram como poderia ser calmo se eu estava querendo tirar o pão deles de cada dia. Eu disse que pão de cada dia se faz trabalhando, e que não se deve prejudicar a vida de trabalhadores. Disse que minha vida também já foi daquela forma; eles questionaram dizendo que se ele já conhece a realidade, não deveria atrapalhar. Eu falei que não era isso que queria, só quero seguir os trâmites corretos. Perguntei em que lugar eles moravam, eles disseram que na Brasilândia; eu disse que iria até lá na segunda-feira, e peguei o nome deles. Chamei alguns amigos que tinham mais peso que eu, entrei em contato com o pessoal da Brasilândia, e entramos. Ficamos procurando por eles por lá, só sabíamos o nome, e ninguém conhecia; ficamos lá até às 14h, até que passou um dos caras. Falei para chamar os amigos dele porque queria conversar, eles tiveram medo dos meus amigos porque também tinham peso. Logo, conseguimos retirar esse grupo que fazia senha de banco daqui.
P/1 - Eles ficavam aqui dentro?
R - Sim, ficavam no fundo. Eles só esperavam as mulheres ligarem para ele, que eles saíam daqui e iam roubar por lá. Teve uma época dos atentados da região, em que o PCC estava armando. Aqui foi o único local que o PCC não tocou, e por quê? Porque nós ligamos – chegamos aqui na sala e tocamos no telefone. Isso aqui era do Alckmin, e eles queriam derrubar o Alckmin. Está sentindo o cheiro? Eles estão fumando.
P/1 - Eles queriam derrubar o Alckmin.
R - Sim, eles queriam metralhar isso aqui. Eles estavam derrubando tudo. Eu liguei para o pessoal e pedi que não fizessem isso, pois aqui vem toda a comunidade e as crianças; as crianças ficam no térreo e a base comunitária ficava na ponta – antigamente quando tinha mato, ficava ali na frente. O robozinho deles ia passar e metralhar. Se não pegassem nos caras, poderia pegar em alguém daqui de dentro. Explicamos e conversamos, até que eles não pegaram essa região. A ETEC não foi metralhada, mas metralharam aqui em cima, no Tietê, na Vila Maria, pegaram todas as bases. Então, ajudou muito para eu entrar aqui e contratar o pessoal da comunidade. Já chegou a ter 15 funcionários aqui no atendimento, entre a limpeza e a segurança. A segurança também estava sofrida aqui dentro, porque se eu reclamasse, os caras vinham para cima. Aqui já teve muita briga. Até brincamos que já aconteceu o UFC aqui dentro. Alguns amigos que entraram aqui, muitos não tinham terminado os estudos. Muitos não tinham se qualificado. Lógico que depois entraram algumas amigas qualificadas, mas a maioria dos homens não tinham essa qualificação. Foram para escola, arrumaram outro emprego e não estão mais na vida do crime, vivem com suas famílias. Portanto, a biblioteca ajudou muito, abriu muitas portas. O pessoal nos pegou sem saber de nada. Teve até uma reunião que eles propuseram entrar mais pessoas formadas para cá, eu não tenho nada contra, é evidente que se deve entrar mais formados na biblioteca, mas no momento, diante de tudo que nós trabalhamos, é um outro linguajar. Ela tem um jeito de conversar, eu tenho o meu, todos temos jeitos diferentes de se expressar, e as pessoas devem entender esse caminho. Se não aprendem aqui, aprendem na comunidade. Porque eles entram para comer, para beber alguma coisa, e temos que conversar com elas. É igual aquele ditado que fala que queremos trazer você para nós, e se você não quer, pelo menos foi avisado, depois aguenta as consequências. Então, é um pouco da minha experiência e do quanto a biblioteca me ajudou. Voltei para a escola e melhorei enquanto pai. Porque eu nunca fui convidado para festas de amigos, eles pediam agora para eu ir e levar a família. Eu levava meu pequeno e minha pequena.
P/1 - Essas festas eram aqui?
R - Não, festas na casa de amigos. Sabe, eu era muito excluído, eu não tiro a razão de ninguém. Mas agora eu já tinha esse outro foco, então, muita coisa mudou.
P/1 - Regis, você disse que tem um movimento forte que compete com emprego. E às vezes o que a pessoa vai ganhar trabalhando em um emprego, vai ganhar em uma semana no movimento. De repente essas pessoas – você mesmo disse que conseguiu terminar estudos e trabalhar, não digo você – poderiam ganhar muito mais lá, continuando essa vida no movimento. O que faz a pessoa realmente sair do movimento?
R - Primeiramente, é Deus que vai te ajudar, porque é difícil. Têm muitos garotos que vem aqui que o pai está preso e mãe usa drogas. Chega pela tarde ou pela noite, eles já estão pedindo 1 real para poder inteirar para comprar a droga. É muito difícil, às vezes se ganha 1500 por semana, e uma faxineira com muito custo consegue ganhar seus 800. Se o nosso governo, olhasse um pouco mais, daria para todos ganharem um dinheiro bom.
P/1 - Mas o que faz a pessoa sair? O que é mais forte para você? Vamos falar de você.
R - A minha vivência foi a força da minha família, em me arrumar ocupações e com elas me bancando. As pessoas de idade não têm ninguém para bancá-las, já tem uma família grande, e desempregada. Se você faz um currículo e leva aqui em Santana, os caras falam: ‘’olha’’, não vai falar para você, mas vai falar ‘’mora ali em baixo, não dá pra contratar aqui, não’’. O nosso nome já era feio enquanto morador da comunidade, mas ficou pior depois que chegaram os albergues. Nada contra, cada um sabe da sua situação, e se está ali é porque precisa, porque ninguém vai morar em um canto daqueles sem estar precisando, certo? Os albergues chegaram aqui de um modo muito cheio, muita gente. O pessoal da montagem de antigamente, vinha na comunidade pegar o pessoal para trabalhar. Eu trabalhei 3 anos na montagem ganhando um dinheiro. Vamos supor que meu dia vale 150 em feira de eventos, o deles valem 30 ou 50 – dos albergados. Quer dizer, os albergados estão nos tirando empregos, nós que somos moradores da região. Pessoas que tinham lojas em Santana, hoje tem apenas uma porque esse pessoal está arrumando confusão em Santana. Você vai levar um currículo ali e não é bem visto. A minha filha mora aqui e estava com o endereço da tia dela, que mora em Tatuapé, e só agora está sendo chamada para a entrevista; tem um certo preconceito. Acho que deve ter um olhar melhor, com mais carinho, porque tem as pessoas ruins. Quando você contrata alguém, dá para saber quando ela é boa ou má pessoa para a sua empresa, isso é lógico. Eu saí disso porque tinham pessoas me ajudando, bancando meus filhos. O que me melhorou muito mais, 100% foi a biblioteca.
P/1 - E por que aqui foi diferente?
R - Foi por causa do acolhimento, foi o entender o meu lado, porque quando eu cheguei aqui, muitos nem me davam bom dia, eu não entrava na copa, eu não sentava em nenhum monitor. O Seu João via na câmera e me questionava se eu não ia sair do piso, e eu dizia que não sabia. Ele dizia que aquilo lá também era meu. Ele me apresentou a todos, e com um tempo, os antigos me ajudaram a digitar e a guardar livros. Os amigos das antigas diziam para eu focar só no verde durante um mês – nós temos aqui a verde, a amarela e a lilás. Eu comecei a fazer e a entender a numeração. A partir disso eu fui pulando para o laranja, e etc. Hoje em dia eu até brinco – brinco e brigo – porque às vezes eles me dão um acervo que um outro amigo que tem mais capacidade fez errado; eu conserto, no outro mês está errado de novo. Eu comecei a surtar com os amigos, porque não é justo me dá o errado se o meu está certo. Eu comecei a reivindicar algumas coisas; comecei a mostrar para eles que quaisquer coisas que eles me dão, eu consigo desenvolver.
P/1 - Regis, o que você faz além do seu trabalho na biblioteca? O que você faz no seu dia a dia?
R - Meu dia a dia é com a família, e à noite eu tenho um programa social – uma escolinha de futebol da Zaki Narchi que completou agora 153 meninos, mais 33 meninas – de segunda à sexta, de 19h00 às 21h00. Final de semana é folga, mas como não tenho nada para fazer, pego alguns garotinhos para ficar na quadra porque são muitas crianças. O problema é que os maiores tentam tirá-los, ou aqueles mais folgados tiram os bonzinhos. Tendo um professor ali, dividimos o tempo e o horário para todos se divertirem. Tem um programa social que faço também chamado ‘‘Dia Z’‘, que já tem 7 anos. Tenho também uma quermesse de festa junina, há 19 anos. Mas tudo isso aconteceu em intermédio com os amigos da comunidade e da biblioteca. Porque o ‘‘Dia Z’‘ foi criado com os funcionários daqui – o Gabriel, o Mizael (que saiu) e Paulo. Eu tinha uma ideia com os pais – porque lá tem muito espaço, tem três quadras e o parquinho – porque haviam muitas crianças soltas. Então, eu pensei: ‘‘A comunidade não tem nenhum dia dela’‘; daí escolhemos um nome e fizemos esse dia – o ‘‘Dia Z’‘. Começou a dar certo no primeiro ano, muitos parceiros nos ajudaram, porque financeiramente não temos nada. Pedimos ajuda ao Paulinho, é um cara que nos ajudou muito a crescer em matéria de projetos sociais; fizemos esse trabalho todo, e é um trabalho bom na comunidade. Eu queria também realizar um trabalho com os idosos, que é um pouco mais trabalhoso – até porque precisamos entender a família deles também -; eu quero voltar a trabalhar com eles, pois antigamente fazíamos caminhadas, e entre outras coisas.
P/1 - Sobre o projeto social – a escolinha – qual é o dia da semana que você tem com as crianças e o que já evoluiu desde quando começou – sabemos que tem aproximadamente 1 ano -?
R - A escolinha tem aproximadamente 6 anos, assim como o Dia Z, só que era um pouco aleatório, não havia muito esforço, porque não tinha muito material. Com o Dia Z isso não aconteceu, porque a pessoa já trazia o material e desenvolvia ali; isso já tem um ano certinho, já aumentou para 150 crianças. O que mudou foi a educação, porque se eles estão ali das 19h às 21h00 comigo, eles aprendem; os ensinei a levantar a mão quando quiserem falar comigo, sempre um esperando a vez do outro. Eles não falam palavrão mais, não se batem, e acabou aquelas brincadeiras com o nome de pais – mostrei para eles que os pais trabalhavam e mereciam respeito. Eu debato com eles, mostrando que certas atitudes são feias. Com isso, as escolas começaram a nos procurar; porque o que falta na minha comunidade – e em tantas outras – é o aprendizado da leitura. Outro dia mesmo fiquei em pânico, um menino na faixa de uns 12 anos não sabia ler e nem escrever ‘‘escola’‘, e essa palavra estava escrita no quadro e no caderno. Isso é muito preocupante, estávamos descobrindo várias coisas, e me ponho a questionar: Será que os pais estão vendo isso também? A escola, será que está atenta a isso? Dentro da escolinha, está aparecendo essas coisas. Parou muita coisa mesmo: briga, palavrão e falta de educação. A biblioteca nos deu um espaço no Instituto Tomie Ohtake, fomos três funcionários e eu. Mas eu fui com medo e preocupado, porque eles respeitam mais quem é da comunidade, mas eles aprenderam, e hoje respeitam a todos. Quando eu cheguei lá foi sensacional; eles fizeram a fila, esperaram, entraram, dividiram as turmas e sem bagunçar. Vendo tudo isso, eu filmo e tiro foto; está tudo marcado e guardado, até para mostrar para os pais depois. Público no Facebook para mostrar que as coisas estão andando.
P/1 - A escolinha de futebol?
R - Sim, de futebol.
P/1 - Mas eles ficam quanto tem? À noite? Eles ficam em que horário?
R - Das 19h00 às 21h00, de segunda à sexta. De segunda e quarta são de cinco aos nove anos. De dez anos são de terça e quinta. Sexta-feira é para as meninas.
P/1 - E lá que você está percebendo tudo isso, que alguns não sabem que a leitura está difícil?
R - E aqui também, porque aqui a gente fica e vários locais do piso. Eu estava no infantil esse dia, aí ele foi me procurar: ‘‘tio, escreve para mim um negócio ali’‘, aí eu falei: ‘‘o quê? Fala para mim’‘; ‘‘Ah, a escola’‘; ‘‘Pedro, você não sabe escola? Vem aqui então, escreve escola aqui para mim’‘; ‘‘Eu não sei’‘; ‘‘Pedro, sabe ler?’‘; ‘‘Não aprendi’‘. ‘‘Como assim? Pedro, escola é o E, não sei o quê’‘; ‘‘Tio, eu não sei’‘. Eu fiquei preocupado com ele. Conversando na escolinha com vários garotinhos: ‘‘eu quero que sejam sinceros, levanta a mão quem não sabe ler direito ainda’‘. Mais da metade. Nós pegamos de 40 a 50 crianças por noite. Tempo de frio é 30, 35 crianças, isso é batata, mas tempo bom bate 50 sossegado. Também teve outro caso que eu fui em uma reunião e o pessoal achou que o problema eram nossas crianças. Quando foram ver não eram as crianças, eram os professores que já estão com a cabeça a mil, governo, tudo isso, e não estão tendo aquela atenção com as crianças. Eu estou aprendendo muito com isso. Agora vai ter uma festinha para as crianças, dia 16/09, e quero conversar com os pais. Não sei como entrar nessa linha da escola, mas eu tenho que dar um toque: ‘‘gente, seu filho está com 12 anos e não sabe ler’‘. Em casa, o meu castigo é fazer tabuada, pegar livro: ‘‘escreve aí, vai doer o dedo, vai amassar o seu dedo’‘. Eu já apanhei muito na minha vida, minha mãe me arrebentava.
P/1 - Qual o nome dos seus filhos?
R - Obrigado, hein?
P/1 - Lembra aí, de cada um. São sete. Moram os sete com você?
R - Moram os sete, só que um estava morando com a minha sogra. Ela morreu, que Deus a tenha, me ajudou muito, só que está com o meu sogro, que é o padrasto da minha mulher. Eles pegaram desde pequenininho, por quê? Esse meu pequeno a ajudou a parar de fumar. Ela respirava aqueles balões dentro de casa e estava melhorando. Ela nem conseguia subir até o quinto andar, mas estava subindo, a coitadinha. Vamos lá nos nomes. É Larissa Cristina, Fábio Gabriel, Pedro Henrique, João, Maria Eduarda, Gustavo Henrique e Eduardo.
P/1 - Muito bem. De tudo isso que você já viveu, o que você espera para o seu futuro? Qual o seu sonho de vida?
R - Sou sincero, é preocupante. O meu sonho é grande, de ajudar, sempre ajudar, mas os nossos órgãos públicos não querem dar essa força. Não adianta eu sonhar se lá na frente não tem uma porta para eu entrar. Vou repetir, por morar na comunidade, por ter pouco estudo, é difícil acreditar. Só depende de mim para melhorar, mas para essa geração que está vindo agora, é difícil. Eu fico preocupado porque estou com três filhos procurando emprego. Está difícil. Um já está querendo ficar no movimento, sou sincero. Estou discutindo com ele, estou brigando com ele: ‘‘o que você quer, meu filho, é isso que você quer?’‘ ‘‘Para pai, você sofre para caramba para trabalhar, o que eu quero é isso’‘. ‘‘Meu, para com essa mente, o seu pai nunca teve isso, porque você quer ter isso?’‘ A geração de agora e a mente de agora está um pouco bagunçada porque eles não estão respeitando as famílias, os limites. A sua geração foi uma coisa, a minha foi outra, a deles é outra e a deles está descontrolada, não respeita mais. É preocupante você falar que vai fazer um seguro de vida e seu filho vai pegar esse dinheiro só quando você morrer. Estão matando os pais, estão matando os avós para pegar a herança. De coração, eu desejo mil coisas boas para o meu futuro, para todo mundo. A escola é um exemplo. Estou com dois lá, o pai está preso, a mãe está desempregada, vai nascer o bebê, está sem nada para essa família, são dois filhos na escolinha e uma menina, está vindo o quarto. Eu podia falar só de mim, legal, vou correr atrás, mas se os órgãos públicos se preocupassem mais. A questão não é a pessoa ser presa e ter um benefício do governo, porque é 1 mil e pouco para quem é preso. Poxa, será que esse cara não pode ter um emprego para ele? Igual eu, se eu for preso e se for por criança, eu estou rico. Se é 1 mil e 500 por criança, por mais que eu fique um tempinho lá, um ano, acabou. Então, está difícil porque eles estão construindo mais cadeia. Cadê os empregos que eles falam? Isso é mentira. Esses dias eu fui levar minha mulher para arrumar emprego de gari, para varrer rua. Teve a maior briga, parecia cachorro. Os angolanos, haitianos e brasileiros, por causa de fila. Teve gente que chegou lá 02:00 da manhã, nós chegamos 04:00 da manhã. Já tinha uma fila enorme. Quando amanheceu e o cara falou que ia entregar as fichas, pareciam bichos. Quer dizer, vai virar uma Venezuela? Até quando vamos pensar assim, vamos nos ajeitar? Porque eu posso: ‘‘está legal, precisa de mim, vou pegar meus filhos e vou colocar ali’‘, mas os meus filhos também podem ser induzidos pelos outros.
P/1 - Você está com três procurando emprego.
R - Estou com três. É muito difícil. Será que é legal mentir? Colocar um monte de coisa no currículo? Não é certo.
P/1 - A gente só esqueceu de perguntar. Você saiu da casa que você morava, na comunidade, e vocês mudaram para os prédios. Você foi uma das pessoas da sua família que mudou para o Singapura. Como foi essa mudança? Se puder contar uma história, o dia da mudança.
R - Eu conto, porque foi muito chato isso aí. Os prédios começaram a ser vendidos, não dados para os moradores. Se essa matéria saiu ou não, eu estou aqui para falar até o fim o que aconteceu. (inint) [01:17:02] dos barracos para o alojamento e, de acordo com o cronograma deles, já estávamos na sequência para pegar os prédios. Vamos dizer que era três, quatro meses. Levantava o prédio, tudo bonito. Inaugurou. ‘‘Daqui dois, três meses você vai entrar, está bom?’‘ E não, foi papo de três anos ficando no alojamento. As madeiras dos barracos já estavam até mole. Eram aquelas madeiras fininhas, coisa básica. Tínhamos que pagar uma quantia para pegar o apartamento, uma quantia, e nós tínhamos três barracos aqui no térreo, aqui no chão. O do morro dei para os meus amigos: ‘‘vai lá, mano, tão com família, já’‘. Cada um pegou seu apartamento, mas teve que pagar. ‘‘Para você entrar lá, meu irmão, molha aí, ó, um barãozinho’‘.
P/1 - Quem que cobrava?
R - Os caras que eram responsáveis. Não era gente pequena, não.
P/1 - As pessoas que estavam construindo?
R - Que estavam na linha de frente, em geral. De morador, habitação e prefeitura porque muito prédio foi vendido.
P/1 - Entendi. Quem organizou, a ideia era doar, mas aí teve esse esquema de pagar.
R - Teve.
P/1 - A política pública, não é?
R - É, porque se tirou nós de onde nós estávamos, tem que colocar onde nós estamos, entendeu?
P/1 - Você conseguiu mudar. Como foi essa mudança para você?
R - Boa por morar em uma casa de bloco, ruim para pagar o que eles pedem. Não os 57, não vamos achar nenhum canto com esse valor, mas uma conta de luz chegar 280, uma água, 200, sabendo que você está controlando sua água. Tudo bem, eu tenho um monte de gente em casa, tem que vir esse valor. E a pessoa que tem só ela e o marido? Fim dos anos 80. Então, montou gato. Não tem como você controlar o seu salário desse jeito. Vai gastar 500 reais por mês só de conta de água e luz.
P/1 - É uma conta de água e de luz para o prédio.
R - Não, individual. Vem do seu apartamento tanto e vem da sua água tanto. Só o condomínio que é pago todo mundo junto e 57 também é individual. Eles não querem chegar e ver quanto você gasta, eles querem jogar em cima de nós.
P/1 - Pega tudo e divide igual, não é? Pega a conta inteira e divide igual.
R - Não, tem um relógio para cada um.
P/2 - A única coisa que é dividida é o condomínio mesmo.
R - Só o condomínio.
P/1 - Mas morar em uma casa e depois ir para um prédio teve muita estranheza?
R - Muito estranho, porque tem regras, tem que seguir regras. Comunidade tem regras, mas são muito diferentes. Você está dentro do seu barraco, do seu quintal. O meu barraco era grandão, tinha um quintalzão para estender roupa, aquela cortina, dois cachorros, aquela coisa toda, garagem para dois carros. Eu estava na avenida, aí comprei o barraco de trás, que emendou. Meu barraco era da avenida ao beco de trás. A visão que ficou boa. Ficou boa, mas teve que ser trabalhada, porque com o tempo foi danificado, os cabos de metal foram sendo roubados, as grades. Se você não tirar a favela de você, você nunca vai melhorar. Lixo jogado pela janela, pessoa que tem preguiça de sair com o saquinho e levar até a lixeira. Na moral mesmo, foi muito bom, mas tem certos moradores que não merecem morar ali.
P/1 - Você sair da sua casa de quintal grande, animais, e morar em um prédio, qual foi essa sensação?
R - A sensação que, na hora de dormir, tem que colocar um monte de colchão no chão. É colchão para cá, é colchão para lá e vamos que vamos. Tem dia que eu durmo na sala, durmo no outro quarto e vamos. Lá não tem preguiça não. Na família é todo mundo unido.
P/1 - Muito legal. Quer perguntar alguma coisa?
P/2 - E com a criação do parque, você sentiu alguma diferença na comunidade?
R - Melhorou a visão da região, do entorno. As quadras de esporte, a vivência da natureza, uma coisa diferente para quem viu esse massacre, para quem entrava aqui quando nós jogávamos nos campos, aqui dentro éramos convidados também. Vou falar para você, a vivência era totalmente diferente. Eu cresci nessa região, então, é como eu lhe falei, eu vi a mata, vi o Carandiru, teve comércio, teve a tragédia. Fui crescendo. O que eu falo sempre, se o parque também acolhesse alguns moradores para trabalhar também ajudaria muito, porque tem um preconceito nisso aí. Eu mesmo sou um que entrava aqui no parque para pedir emprego para o povo. Eu empregado, minha família empregada, mas eu me preocupando com amigo que saiu da cadeia, amigo que estava desempregado, e nunca deram uma atenção nisso. Não adianta montar uma empresa lá na comunidade se eu não posso me aproximar dela. Não me leve a mal, meu negócio vai ser roubado. Não adianta, é automático. É aquele par ou ímpar, estou vendo aquele bagulho chique e estou todo ferrado aqui, espera um pouquinho que eu vou pegar quem vai comprar aquilo. É isso, gente, não tem jeito. O Carrefour, o shopping, eles não contratam quem é da Zaki Narchi. Você tem que fazer um currículo e mentir. Vários amigos qualificados, fizeram curso de segurança armado, faculdade, eles não contratam se souber que você é daqui. É por isso que eu fico meio triste também. Você vê muita gente parada lá dentro da comunidade, senhoras vendendo Candida, vassoura, fazendo bolinho, fazendo gelinho para ganhar seu dinheiro, se aqui na região dá para contratar esse povo.
P/1 - Você fala da sua comunidade, das pessoas que estão desempregadas. Você, quando sabe de vagas que é de bibliotecário, você passa para eles?
R - Passo. Coloco até meu nome: ‘’enviar para o Edcarlos’’. Nem são chamados para cá.
P/1 - Não são chamados?
R - Não são chamados. Antigamente, pela ajuda da Sueli, da Vanessa e do seu João, entraram muita gente. Dona Rosane também contratou muita gente nessa época e deu muito certo porque essas pessoas saíram daqui, estão empregadas em outros lugares e ajudou aquele amigo meu a não desviar. Tem cara que tem dez homicídios nas costas e está trabalhando hoje. Tem cara que era o gerente top, ganhavam dez contos por semana no movimento, está trabalhando. Igual nosso amigo urso, ele surtou, mas voltou a trabalhar. Tem que analisar com carinho.
P/1 - Você fala que mudou a visão. Se você conseguisse falar como era o Carandiru para vocês, porque visão, quem não conhece nada, olha de um jeito e olha de outro, mas para você, como era aquele espaço, que vocês iam trabalhar, vender as coisas e depois?
R - Como eu falo sempre, era uma visão escura, de maldade, de preocupação. É igual Tropa de Elite, se você não foi preso, o seu filho vai. Se o seu filho não for, o seu neto vai. Quer dizer, você olha para a (inint) [01:25:36] e fala: ‘‘caramba, eu tenho que arrumar alguma coisa para os meus filhos para não acontecer isso aqui’‘. Levar eles para shopping, para parque, para diversões, para ele entender o lado bonito, o lado bom, o lado de alegria, de abrir o coração. Não o lado fechado. Eu estou com um colega meu aqui: ‘‘esse cara me trai, eu vou dar uma pá de...’‘, assim não, sabe? O lado escuro é esse, é você não ter confiança no seu próximo. Eu entrei aqui como bicho. Eu olhava para os amigos: ‘‘o que que esse louco está me olhando?’‘ Eu era estranhão. Se a região, os pais, o órgão chega até a comunidade: ‘‘não tem emprego? Vou parar uns ônibus ali, vamos para o parque, vamos para o shopping’‘, mostrar esse lado bonito. ‘‘Acabando os estudos você pode estar aqui, você pode estar ali’‘. Todo mundo tem um sonho, ninguém quer ser traficante, ninguém quer ser ladrão, mas é a direção que tem, gente.
P/1 - É a oportunidade.
R - É foda. Você imagina poder ganhar um barão e meio por semana, você ir lá e ganhar 800, um conto. É difícil.
P/1 - Quer perguntar mais alguma coisa?
P/2 - Não.
P/1 - A última pergunta que eu vou fazer. O que você espera para as crianças, claro, primeiro para os seus filhos, e para essas crianças que você está levando para o futebol e que, a gente conversando agora há pouco, você comentando que tem gente já de olho? O que você quer para essas crianças, para todos, para os seus filhos e para essas crianças que participam da escolinha de futebol?
R - Olha, o que depender de mim, eu quero dar uma linha legal para os meus filhos, dar uma direção legal para eles, mas também os pais têm que entender que os filhos deles também têm que ter uma direção. Nós estamos passando para os pais: ‘‘o seu filho foi chamado, leva ele em uma escolinha melhor, leva ele até um clube que eu acho que vai dar resultado’‘, mas tem pai, tem mãe sossegada que prefere estar ali do lado vivendo a vida, o pai prefere estar bebendo uma cerveja e, na escolinha, eles estão vendo que os filhos estão indo para uma linha boa. Todo dia tem uma palestra também, a gente conversa. A gente fala: ‘‘pessoal, o seguinte, vocês estão em uma linha boa, mas se não acabar o estudo, nem para ladrão vocês vão servir, porque hoje em dia tem ladrão que tem que ter inteligência. Não é mais igual antigamente que rapidinho ia ali’‘. Eu falo sempre, eu quero para mim, mas também me preocupo com o outro, porque eu vejo na escolinha: ‘‘ô professor, me dá um abraço’‘ e o moleque dá um abraço forte. ‘‘O que foi?’‘ ‘‘Meu pai brigou hoje e bateu na minha mãe’‘. ‘‘O que foi?’‘ ‘‘Hoje eu não comi’‘. ‘‘Você não comeu?’‘ ‘‘É, está todo mundo desempregado em casa’‘, mas vem para o futebol. Está gerando muita coisa. Nós pegamos pesado para conversar. Tem umas crianças que o pai e a mãe sempre foram usuários de craque, sempre. O Iago é um que surta. Ele já saiu da escolinha umas dez vezes, mas nós o chamamos para não o perder, porque quando o pai dele foi preso, ele foi na cara da polícia: ‘‘eu vou crescer e vou te matar’‘. E o policial falou assim: ‘‘cresce que eu vou te matar também. Se eu não te matar antes, de menor’‘. Isso foi falado dentro da comunidade. Com a escolinha eles estão aprendendo muita coisa. O que eu quero para todos é o que eu quero para os meus filhos também. Eu não quero ver o dia de amanhã e esse moleque (inint) [01:29:31] e se lança. Moleque de 12 anos morrendo. Em menos de um ano já foram quatro, cinco da comunidade. Meninos que não chegaram aos 18 anos. Cadê os pais? Emendando também isso que você falou, os bailes. Tem mãe que levava os filhos para a igreja de mãos dadas, para estudar a Bíblia. Estão no baile. Eles veem a mãe e saem correndo para o meio do público para a mãe não pegar e o moleque fica até às 8:00 da manhã do outro dia louco. Já perdeu aquela criança. Sabe, todas são crianças gente. São crianças. Como eu falo: se um órgão público, instituição, entendem melhor; vamos pegar 20 pessoas, vamos ver se dá certo; vamos contratar melhor. Eu duvido se tem coisa errada ali dentro, é difícil. Essa geração, acho que até uns seis, até uns dez anos vão sofrer.
P/1 - Você foi presidente da associação de moradores do bairro por quatro anos.
R - Isso, o único. Para os outros, eles foram colocados porque, assim, vamos dizer que se passaram quatro anos eu vou colocar a Deise. Passou os quatro anos, eu vou colocar o Eloi. Não teve uma eleição como foi a
minha.
P/1 - Você foi eleito.
R - Fui eleito mesmo. Está tudo certinho na internet. Fui eleito mesmo, votação.
P/1 - Quando você foi presidente da associação, você falou que fez algumas coisas, mas falou rápido. A sua preocupação foi com saneamento.
R - Isso. Aí também vê que muitos idosos estavam precisando de uma muleta, cadeira de rodas, e consegui. Consegui bastante coisa.
P/1 - E quando você, nessa época da associação, você preocupado com a comunidade, teve alguma situação, alguma história que foi importante também naquela época?
R - Foi importante e preocupante porque eles acharam que eu estava querendo empatar o movimento. Porque começaram a passar grades no prédio, fazer divisórias.
P/1 - Quem fez?
R - A habitação e a prefeitura, porque ia ter uma reforma de mentira. Colocaram só grade, cimentaram um pouquinho lá e foram embora. Só que saiu porque quando eu fui eleito eu fiz parceria com a faculdade UNIP. Nisso eles vieram pesado. Vieram para fazer exames, a pintura e a restauração do prédio. A habitação não gostou. Teve uma reunião. Ligaram-me: ‘‘Ed vai ter uma reunião com os moradores, venha aqui na habitação’‘. Eu: ‘‘mas meus amigos não me avisaram, como?’‘. ‘‘Venha que eles não avisaram; estou ligando para eles’‘. Mentira. Cheguei lá na sala, 12 pessoas numa mesa. Sentei lá e ele falou assim: ‘‘você é de...’‘ – começaram a falar todos os meus dados – ‘‘você é de tal, tal; sua mãe é tal, tal; você mora em tal, tal’‘. Eu falei: ‘‘sou isso mesmo’‘. ‘‘Então, Ed, é o seguinte: por que você andou trabalhando com os antigos?’‘. Eu falei: ‘‘como assim?’‘. ‘‘Ed, tem que fazer vista grossa, cara. Você não pode trazer informação para dentro da comunidade. Você trouxe a faculdade UNIP. Ela está pintando, fazendo um monte de coisas. Você não entendeu cara’‘. Eu estou falando que eu vivi isso aí. Lá dentro. E eles falaram: ‘‘mano você tem que entender que tudo o que é para lá tem uma metadinha que é para nós’‘. No jeito deles de falar, entendeu? Aí eu falei: ‘‘como assim?’‘. Eu tinha o meu lava-rápido; ele falou assim: ‘‘ou você anda igual a eles ou vamos ter que cortar você’‘. Eu falei: ‘‘como assim mano?’‘. Eu querendo ser bravo. Eles fizeram todinha a matemática para me ferrar. Aí fizeram: ‘‘o seu lava-rápido tem gato. Logo de começo nós vamos mandar a prefeitura meter uma parede de concreto lá. Você já não vai trabalhar mais. Nós sabemos que você tem filhos; você não vai arrumar emprego’‘, assim, na lata. E outra: ‘‘nós conhecemos a família que comanda lá e não é você’‘. Eu: ‘‘opa, ainda bem que não sou eu’‘. ‘‘Então, vamos ver se eles vão apoiar você’‘. Eu falei: ‘‘vão porque eu sou (inint) [01:33:45] de favela’‘. Depois de dois dias, o telefone toca: ‘‘Ed, compareça em tal lugar’‘. Os caras do movimento me chamaram: ‘‘Mano, você mandou fechar a quebrada? Você está querendo parar com os movimentos?’‘. Eu falei: ‘‘como assim?’‘. Fui, fui com umas ideias feitas. Aí eu tenho que falar assim: ‘‘foi Deus cara, foi Deus’‘. Eu tinha duas agendas – eu marcava tudo, tudo. ‘‘Estava chegando dinheiro para a quebrada; você não está passando aí; comendo churrasquinho segunda-feira’‘. Eu: ‘‘como? Tenho um lava-rápido; eu estava trabalhando, como assim?’‘. ‘‘Não, você foi eleito parça, então, vai dinheiro na sua conta’‘. ‘‘Opa. Não é assim não bonitão. Não é assim não. Como assim dinheiro na minha conta?’‘. Resumindo: foi um debate do caramba. Desci as duas agendas para mostrar de tudo o que o cara do movimento estava falando; e ele não bancava os meus projetos sociais; não bancava nada. Graças a Deus que tinha um no meio do movimento do partido lá que já foi da comunidade; acho que foi Deus que abençoou ele para falar: ‘‘olha irmão, quando a pessoa entra não entra dinheiro na conta de ninguém; é depois de um tempo e o menino está com provas bem eficazes, entendeu?’‘. Foi ela. Está o nome das pessoas aqui. Até de carroceiro que me vende as coisas para fazer algum projeto. Está aqui: carroceiro tal, tal dia, e horário. Vamos lá chamar ele. E aconteceram mesmo coisas muito ruins, entendeu. Mas as coisas boas foi o pessoal ser atendido pela UNIP; exames que estavam parados; encaminhamentos que estavam parados. Vamos dizer que em dois anos que eles ficaram lá, ajudaram muitas pessoas. Eles chamaram, a habitação lá e pediram para se retirar da comunidade.
P/1 - Esse pessoal que te chamou era da prefeitura?
R - Habitação e prefeitura.
P/2 - Você que quis sair da associação?
R - É que você fica quatro anos. Como eu estava como presidente, e aqui me chamou para ser só voluntário. Aí seu João falou que quer trabalhar; eu me apresentei – eu não porque eu não sabia onde ele trabalhava -, mas eu fui o único e tal. Aí: ‘‘Ed, vem vindo e vê se você gosta’‘ e já estava acabando o meu tempo lá na comunidade. Nisso ficou um tempo sem presidente lá e eu comecei a trabalhar aqui registrado. O irmão que é o responsa lá, mandou fazer uma comissão de pessoas; e pediu para eu voltar. Eu falei: ‘‘não quero voltar porque eu estou com a biblioteca lá, trabalhando registradinho; estou indo bem para caramba’‘. Ele falou, no telefone; ele preso, no telefone: ‘‘então escolhe um aí’‘. Eu escolhi também umas mulheres para colocar – elas não quiseram porque é uma bomba segurar aquilo -; aí colocamos um rapaz que está até hoje aí – eu era um dos papéis dele -, só que eu não aceitava certas coisas que aconteciam, que ele falava, porque assim: se as pessoas querem fazer um salário para nós, a gente vai ter que estar desempregado. Se eu estou empregado e se vai entrar alguma verba, vamos nos preocupar com que está precisando. Ele não; já queria fazer um salário para a comissão, que falava que ninguém iria trabalhar de graça. Eu falei: ‘‘você não trabalha aqui? Os 20 não trabalham aqui? Então, eu acho que não é o momento de ter um salário. Vamos nos preocupar com as pessoas, tal’‘. Aí com o tempo ele foi me tirando das reuniões, reuniões, e fez outra papelada. Aí eu parei de participar disso aí com ele. Tiveram algumas discussões e os caras falaram: ‘‘Ed, o que você faz é mais transparente que ele. Uma hora vai dar problema para ele e você não estará perto’‘. Eu falei: ‘‘é isso mesmo. Eu estou longe de você’‘. E foi isso. Eu fiquei os meus quatro anos, saí, comecei a trabalhar aqui; estou indo para nove anos.
P/1 - Nove anos na biblioteca?
P/2 - Olha só, vai fazer dez. Ed, a gente está terminando. O que você achou de contar? Primeiro você quer falar alguma coisa que ninguém perguntou; que você gostaria de contar da sua história? Algum acontecimento?
R - Olha, eu só tenho a agradecer mesmo sabe. Porque para um cara que foi expulso três vezes da escola, não se interessava por nada, sabe, na moral, eu não era para estar aqui hoje não. Eu refleti isso aí, sabe, porque meu pai me largou, eu não tinha uma estrutura; perdi minha irmã, perdi pessoas próximas de mim que me ajudaram muito – em dois anos perdi quatro pessoas -; é isso gente. Eu só tenho a agradecer porque se eu sou esse cara hoje é graças a muita gente aqui. Graças a vocês mesmas, a instituição porque quem sai da cadeia, eu falo: ‘‘mano, você está até hoje trabalhando lá, mano; você está ganhando salário’‘. Se eu trabalhei, eu tenho que esperar um mês para receber cara, não é assim. Eu só tenho a agradecer, na moral mesmo e o que me perguntarem eu tenho que falar só essa palavra: só agradecer.
P/1 - E o que você achou de contar a sua história? Como que você se sentiu contando a sua história?
R - Voltei um pouco no passado. Eu queria até chorar, mas segurei, porque olha, de lembrar sabe, e ver o dia de hoje, eu sou um resistente, sou um sobrevivente, porque olha não foi fácil essa minha época e o que está sendo. Obrigado, não é.
P/1 - Muito bom. Foi você falou que foi Deus, mas você falou porque foi isso, isso e isso.
P/2 - Você sempre tem que se lembrar do que aconteceu.
R - Não, é verdade. Eu tenho que agradecer mesmo a Deus porque não fui um cara fácil. Já passei por muitas coisas, e as lembranças me fortalecem. Não é que me deixa triste. Eu sei, eu tenho que me arrepender de muita coisa eu fiz, tem aí que eu fiz muita coisa errada, mas Deus tem um propósito na minha vida – eu não sei qual é – por ter me livrado de tudo isso, de assalto, distrito, até de doenças; porque uma coisa que eu fico preocupado também é na hora de fazer exames, porque era muito gandaieiro. Então, graças a Deus meus filhos nasceram com saúde, sem nenhum problema; os amigos aqui me ajudaram a voltar para a escola, ajudaram-me a ter redes sociais que eu não tinha – o Gidiã -, eu tenho um Instagram, eu tenho um WhatsApp, tenho um Facebook.
P/1 - Você falou que você sempre tem que pensar.
R - Eu tenho sempre que pensar o meu passado de uma maneira boa porque se eu não pensar nesse passado, eu posso voltar para o lado errado porque a cobiça é muito grande. Eu tive uma época que eu comecei a fazer – como eu posso falar – fazer certas coisas para as mulheres levarem dentro delas. As mulheres são as mulas. Então, eu fui para o Jardim Brasil, eles viram que eu estava melhor que da hora, vamos dizer que eu recebi uma promoção: vamos trabalhar no Jardim Brasil para você ganhar mais. Então, têm as manhas, e as mulheres que levam coisas dentro delas. E eu fazia as camisinhas com essa grossura, três ou quatro, as mulheres colocavam celulares, drogas, dentro delas; e eu era desses caras que ficava dentro de um quarto, elas passavam tipo uma vaselina para não ressecar e colocava isso. Então, eu falava: ‘‘Jesus, até onde o ser-humano chega para sustentar sua família’‘. E as mulheres falavam: ‘‘eu tenho cinco filhos, meu marido está preso; meu marido sumiu e tal’‘, então, eu tenho que me lembrar disso e me fortalecer onde eu estou porque a cobiça é grande. Não adianta você falar que está desempregado e o cara chegar: ‘‘vou te dar dois contos por semana’‘. ‘‘Como assim dois contos por semana?’‘. ‘‘Dois contos por semana para você fazer. Você quer?’‘. Então, é muito dinheiro sabe. Em três finais de semana eu posso comprar uma moto, posso comprar um carrinho já sabe. Então, a cobiça é grande. Então, eu tenho que me lembrar do meu passado que fui expulso de três escolas; nunca entrei numa biblioteca; botei fogo numa escola – se eu não falei, estou falando agora -, eu coloquei literalmente, eu coloquei fogo na escola; não foi em latinha de lixo não, foi na diretoria mesmo, aqueles gavetões de madeira que tinha antigamente. Eu fui expulso, eu fiquei revoltado, entrei e coloquei fogo. Coloquei fogo, fiz muita coisa errada, machuquei muitas pessoas. Isso aí eu tenho que pedir desculpas para Deus mesmo porque eu sei que eu fiz merda da minha vida sabe, arrependo-me; porque eu falo para Deus: ‘‘não desconte nos meus filhos, desconte em mim’‘, eles não tiveram nada a ver com o que eu fiz no passado; mas o destino é cruel, ele atinge sim a sua família; eles procuram o mais fraco. É o que está acontecendo na minha vida. Eu estou vendo que eu estou tendo um trabalho muito grande com um filho meu; porque ele quer esse mundo louco; ele tem outra visão sobre esse mundo louco. Eu tento. Estou correndo atrás de emprego para ele, mas o linguajar dele de malandro; o linguajar dele quando a pessoa vê, já fala... Eu falo com ele, eu dialogo com ele; até comigo ele fica meio explosivo: ‘‘calma’‘; mas não, esse mundo aqui é um mundo escuro mesmo. É um mundo muito escuro mesmo. Ele sabe te acolher e te oferecer coisas boas, para depois: ‘‘venha’‘, e para tirar depois é difícil.
P/1 - O passado ajuda a lembrar?
R - Não, ajuda-me; eu passo para eles tudo isso também. É como que te falei: eu puxei carroça; pedi no farol; comecei a roubar; comecei a trabalhar; comecei a me dedicar; fui chamado de macaco; um pai já falou para mim que não quer que eu namore com a filha porque eu sou negro; tudo isso aí eu falo para os meus filhos. Mas como eu falei: a geração de agora não está dando ouvido mais para os pais. Lógico, cada um é cada um, mas no modo de ver onde eu moro 70% não está ouvindo os pais.
P/2 - Vamos para frente.
R - Sempre, força.
P/1 - Obrigada, Ed.
P/2 - Obrigada.
R - De nada.
[01:43:47]