Museu Aberto
Depoimento de Elizette Cordeiro Vieira Gonçalves
Entrevistada por Ari Meneghini e Sandro Cajé
São Paulo, 11/03/2000
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número MA_EA_HV130
Transcrito por Daniélle Godoy
Revisado por Luiza Gallo Favareto
P/1 - Dona Elizette, eu queria que a se...Continuar leitura
Museu Aberto
Depoimento de Elizette Cordeiro Vieira Gonçalves
Entrevistada por Ari Meneghini e Sandro Cajé
São Paulo, 11/03/2000
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número MA_EA_HV130
Transcrito por Daniélle Godoy
Revisado por Luiza Gallo Favareto
P/1 - Dona Elizette, eu queria que a senhora começasse dizendo, seu nome de novo, a data e o seu local de nascimento.
R - Bem, meu nome é Elizette Cordeiro Vieira Gonçalves, e, eu nasci em Glicério, no Estado de São Paulo, no dia doze de setembro de 1934.
P/2 - Eu queria que a senhora falasse, um pouco, das recordações mais antigas que a senhora tem da infância. Aquela mais antiga que a senhora tem.
R - (riso) Da minha infância, eu me recordo muito de uma fazenda, onde eu morei, em que eu tinha cinco anos de idade, cinco a seis anos, e depois quando eu comecei a me alfabetizar, aos seis anos de idade, frequentando uma escolinha rural. E esta fazenda foi o local mais bonito que eu vivi na minha vida, era uma grande fazenda que havia sido dividida em sítios, em lotes, e as pessoas adquiriam essa fazenda, inclusive o meu pai adquiriu uma parte dela, um desses sítios. Então eram várias famílias que ali viviam, e viviam famílias de italianos, espanhóis, portugueses e até algumas famílias árabes viviam ali. E as famílias brasileiras, os que viviam ali, eram nordestinos, como meu pai, como a minha família. Então foi um tempo muito bom da nossa vida. Foi o melhor tempo da minha infância, porque nós morávamos numa casa grande e produzíamos tudo aquilo que a gente consumia, meu pai tinha cavalos e gado, a mamãe ordenhava as vacas, então nós tomávamos aquele leite tão puro, e ela fazia aqueles doces, requeijões e queijos, e muitas árvores frutíferas que nós consumíamos, hortas, verduras e que nós colaborávamos também na... Todos os irmãos, a família era muito grande, e cada um tinha a sua tarefa, colaborava no jardim, no pomar e na horta, principalmente na horta que dava o sustento da casa, e também tinha uns empregados e uma plantação que eles plantavam, tinha um pouco de café e também tinha plantação de algodão, plantação de milho, mandioca e tudo aquilo que consome na casa. Então é isso. A gente brincava muito e também colaborava no trabalho da casa, estudava e tinha uma vida assim muito livre, muito sadia, muito boa.
P/1 - Qual é o nome do pai da senhora?
R - Pedro Amaro Cordeiro.
P/1 - E ele, a senhora falou que ele era nordestino, a senhora pode contar um pouco a história dele?
R - A história do meu pai? Meu pai foi uma pessoa muito querida na nossa vida. Ele era uma pessoa muito amorosa com os filhos, então ele tratava os filhos com muito carinho, e nós fomos assim, muito irmãos, e cada filho que nascia era aquela alegria na casa. Eram tantos, porque nós fomos treze. E quando nasciam as meninas, ele ficava muito feliz com as meninas, nós somos sete irmãs. Todas vivas até hoje. A mais velha hoje tem 77 anos, a caçula está com cinqüenta e pouco, mas sempre fomos muito unidos, porque o meu pai, foi assim, aquele tronco firme da família. Eu senti sempre aquele esteio muito forte na nossa casa, embora ele fosse meio cigano, de mudar de um lugar para o outro, de levar os filhos todos também para todos os lugares. E então ele deixou boas recordações na vida da gente. Ele era bem loiro, de olhos azuis, com descendência holandesa, lá do nordeste, e então era isso, e a nossa família ficou toda assim mesclado, uns morenos outros bem loirinhos de olhos azuis, tem muita gente, é uma mescla na nossa família. Porque a minha mãe tinha talvez uma descendência índia, indígena. Então foi uma certa mistura.
P/1 - A senhora pode falar um
pouquinho da mãe da senhora? Também o nome dela?
R - Da minha mãe, Francisca. Francisca Campos Cordeiro, também nordestina. Uma pessoa muito firme, muito, ela não era tão amorosa quanto meu pai foi, porque ela era mais rígida pra cuidar de tantos filhos, pra cuidar da educação dos filhos. Quando ela dissesse alguma coisa pra gente, aquilo era com uma firmeza tão grande que a gente nem ousava contestar. Ela era assim, aquela matrona que comandava mesmo dentro de casa. E quando ela foi envelhecendo, ela foi ficando mais dócil, mais querida. Alguns netos foram chegando, ela também teve uma filha temporona, ela já estava com duas netinhas quando teve a última filha (riso). Então ela já estava bem dócil, mais amorosa mesmo. E teve uma firmeza muito grande pra conduzir essa família toda, pra educar esses filhos, pra formação mesmo, pra fazer com que a gente fosse digno e soubesse batalhar pela vida. E a minha mãe morreu aos 94 anos, sempre teve uma saúde incrível, nunca foi ao médico, teve os treze filhos em casa, com parteira, nunca ela foi à maternidade ter os filhos, e sempre teve muita saúde, nunca fez nenhuma cirurgia, até os 94 anos, então é isso.
P/2 -
E como é que era na infância, a senhora estava falando lá da fazenda, né? Como é que era a relação? Como é que a sua mãe, que estava mais próxima, que cuidava diretamente da vida dos filhos, como é que ela organizava essa divisão de ter tantos homens e tantas mulheres de filhos?
R - (riso) É. Ah! Lá em...
P/2 - Isso, nessa fazenda. Por sinal, onde era essa fazenda, qual é a cidade?
R - Ah, pois é. Ficava em entre Birigui e Araçatuba. É um lugar, ele terminou sendo um sítio, um grande lugar, hoje eu não sei, hoje parece que está loteado, virou cidade, mas era, se chamava Goulart, o lugar. É entre Birigui e Araçatuba. É passando o rio Baguaçu, por ali assim, não lembro quando é... Há muitos anos que eu não vou lá. Muito tempo mesmo. Não sei nem se eu conseguiria localizá-lo agora. E o que você perguntou mesmo?
P/2 - Eu perguntei como é que a sua mãe controlava assim....
R - Ah! Controlava.
P/1 - Ter tantas, tantas mulheres e tantos homens de filhos.
R - É, o papai era bem beijoqueiro e amoroso e tal, então a gente adorava aquela maneira dele ser. E a mamãe era mais um pouquinho mais rígida, porque senão não dava pra controlar mesmo. Ela comandava, e tudo o que nós queríamos, quando nós queríamos alguma coisa, um passeio, uma brincadeira qualquer, a gente pedia sempre primeiro para o papai, porque ele sempre, é claro, ele ia aquecia a mamãe, aí ele dizia: “peça à sua mãe”, aí quando nós íamos pedir pra ela, ela dizia: “ah, não pode”, “mas o papai deixou”. Ela sempre comandava. Agora, se ela dissesse não, nós nem ousaríamos contestar o não que ela dissesse, nós não íamos e conformávamos com isso, mas ela dividia as tarefas, mesmo o papai, ele ajudava muito na tarefa da casa, ele que levantava a noite pra fazer chazinho para os filhos, pra acudi-la no que ela precisasse e, eles dividiam muito o trabalho da casa. Ele procurava poupá-la muito, pedia para os filhos maiores ajudarem, então desde muito pequenos a gente sempre colaborou muito na casa. Sempre contribuiu com todo o trabalho da casa. Os irmãos mais velhos iam quase que mandando um pouquinho nos irmãos, ajudando na educação, e nós também obedecíamos muito aos irmãos mais velhos. O que um irmão disser, o maior, mais velho do que a gente, podia ser, e nós éramos um ano de diferença quase. Porque ela foi tendo filho um por ano, mas mesmo aquele que era sempre a antiguidade lá era posto em casa (riso). Então, nós obedecíamos sempre e eles podiam comandar, então as irmãs, por exemplo, mais velhas, iam aprendendo tarefas da mamãe, faziam todos os trabalhos da casa, mas cada uma das filhas mais velhas e tudo, iam colaborando no trabalho, cada uma tinha uma tarefa. Uma era de tirar a água no poço, outra era de torrar o café pra fazer, outra era de lavar louça. E mudava na semana também, pra cada uma não ficar muito com um trabalho pesado. E nós tínhamos, por exemplo, levantar de manhã e acender o fogo, porque o papai dizia assim: “não, sua mãe não vai levantar cedinho, ela cuidou do neném”, então uma das pessoas tinha que levantar e acender o fogo de lenha, de manhã, e aviando o trabalho do café da manhã, e assim. Então a divisão era essa.
P/2 - Aproveitando, como é que era esse cotidiano da casa que a senhora está já falando um pouquinho. Que horário que levantava?
R - Muito cedo.
P/2 - Como é que tinham as coisas?
R - Sempre muito cedo. Na nossa casa era assim. E a mamãe era muito religiosa e nós tínhamos que também fazer, a hora que levantava, tinha que rezar e a hora que ia dormir também. Sempre antes de dormir, às vezes no período da manhã não dava pra reunir os filhos pra rezar, porque tinha as tarefas. Uns iam pra escola, outros tinham que arrumar o café da manhã, porque tinham os trabalhadores também, que iam pra roça. Todo mundo ajudava nesse trabalho, e o que mais? Me perdi um pouquinho.
P/2 - Tinha outras coisas do cotidiano, por exemplo, como é que era passar roupa? Essas coisas todas?
R - Ah, sim! Passar a roupa, lavar a roupa, passar. Tinha uma das irmãs que era encarregada de lavar a roupa, a outra passava, a mamãe também fazia, e ela foi sempre fazendo assim, cada uma das filhas, era um pouquinho assim de machismo, até porque sempre existiu no Brasil, cada uma das filhas cuidava da sua própria roupa, pessoal, e cuidava de lavar, de passar, depois que crescesse um pouquinho, que pudesse utilizar, senão era a mãe mesmo e a irmã mais velha que faziam quase tudo. E a mãe cuidava da roupa do marido e dos filhos, dos filhos homens. A mamãe cuidava da roupa dos filhos homens, mas nós, mulheres, tínhamos que cuidar da nossa. Até grande, depois de formada e tudo, cada um cuidava da sua roupa pessoal, da sua roupa de cama, de banho, e a gente cuidava sempre pra não ficar uma tarefa muito grande pra mãe. A mamãe aprendeu muita coisa, como ela conviveu com os italianos, os espanhóis e tal, muita coisa da cultura desse povo ela foi também adquirindo nos lugares onde ela morou. Então ela, eu me lembro, ela contava, ela aprendeu a fazer pão em casa, era tudo feito em casa. Era pão feito em casa, ela fazia os requeijões à moda do nordeste, fazia os bolos de mandioca com muito leite, muita manteiga, mandava aquilo pra roça. Ah! E outra coisa, os irmãos, eles eram encarregados de levar o almoço e o café da manhã na roça para os trabalhadores. Então, arrumava aquelas marmitinhas, amarrava num pano de prato, e tal e a gente ia levar na roça, meus irmãos, meu irmão que era um ano mais velho que eu. Então a gente ia contando mil historinhas até, e passava pelo pasto, parava pra pegar coquinhos, porque tinha uns coqueiros, aqueles coquinhos que a gente comia, comia muita frutinha silvestre também. Então a gente ia muito levar pra aquele pessoal, para os trabalhadores o almoço e o café da tarde. Depois eles voltavam para o jantar, no fim da tarde, mas a vida na fazenda começa cedinho, cinco horas da manhã já estava todo mundo indo para o trabalho. E as horas vagas que a mamãe tinha, então ela uma vez aprendeu a fazer um forninho de tijolos, aqueles forninhos de assar, pra assar o pão, e ela aprendeu com uma amiga dela, não sei se espanhola, ou italiana, e fez aquele forninho. E outra vez, também começou a ficar caro muitos filhos, um marido, a fazer roupas, então ela desmanchou uma calça do papai inteirinha, fez um molde e começou a fazer as roupas pra ele e para os filhos homens. Então ela que fazia para os filhos homens. A filha mais velha começou com doze, treze anos, já foi aprender a costurar e depois ela que costurava pra todo o pessoal da casa. Até se casar. Ela se casou com dezoito, então durante esse período ela ficou, dezoito, dezenove anos, ela ficou cuidando de toda a roupa dos filhos, até a roupa da mamãe ela também fazia e de todos os irmãos pequenos e adolescente, tudo. E a minha mãe fazia muito trabalhinho de agulha também, crochê e tal e ela nos ensinou a todos: “vocês têm que aprender, pra quando ficar velhinha”. Pra ter, pra fazer, sentar numa cadeirinha lá, fazer crochê. Então ela ensinou pra todas as filhas, depois foi ensinando para as netas, a fazer o crochê, que era o que ela mais sabia fazer, né? E realmente, a gente aprendeu mesmo. Todo mundo ficou com habilidade e procurou ter outras habilidades, depois ir aperfeiçoando um pouquinho, né? Então é isso.
P/2 - A senhora tem alguma recordação, uma coisa mais emocional, a senhora se lembra dessa época da fazenda, uma emoção forte?
R - Ah! Uma emoção fortíssima é nas festas de natal. Porque lá nós tínhamos toda... Tinha uma igrejinha lá na comunidade, tinha uma igreja do padroeiro, era o São Sebastião. Então, tinha assim, as festas do padroeiro, as festas de São Sebastião, que era uma festa linda, a gente adorava ir, havia quermesse, leilões e tudo isso. E a gente reunia todo aquele pessoal, toda aquela, todos aqueles moradores, os sitiantes que eles chamavam. E uma das coisas que nós mais gostávamos quando crianças, era a festa do Natal, por causa do Papai Noel. As minhas irmãs diziam: “olha, vamos escolher as espigas de milho mais bonitas que houver”, porque a gente plantava milho e colhia, também pra dar para os porcos, para as galinhas, para os cavalos, o milho todo para os animais e também pra gente. E o milho, ela dizia: “vamos escolher a espiga mais bonita, botar no sapatinho de você, na botinha, pra botar na janela, porque o Papai Noel vem montado num burrinho”, porque claro, era a nossa vida, a nossa vivência. Então, mais emocionante era a festa de Natal, a que a gente mais, a que eu mais gostava daquela época, porque o papai e a mamãe iam sempre pra cidade, faziam as compras. Então eles tinham uma loja, eles eram pernambucanos, eles compravam só nas Pernambucanas. Aí trazia aquele... Compras enormes pra todos os filhos. As roupas das meninas, por exemplo, era o mesmo tecido, era o mesmo padrão, só mudava a cor (riso). Então a gente já comprava aquela tonelada e a gente mudava a cor. De vez em quando, eu dizia: “puxa! Igual da outra” e era assim. Eles compravam nossos presentinhos de Natal, claro, escondiam muito aquilo da gente, porque a gente pensava realmente que o Papai Noel trazia, e no dia seguinte, no Natal, a espiga de milho estava só o sabugo. A gente dizia assim: “Olha, que maravilha! O Burrinho comeu todo o milho” (riso). Isso foi uma coisa muito emocionante que a gente viveu e depois eu aproveitei essa historinha e escrevi o livro “Quem Foi Que Disse Que o Papai Noel Não Existe?” (riso). Acho que é uma coisa muito pura na vida das crianças e eu acho que a gente alimentar uma crença, uma esperança e uma fé, não vai criar um trauma, um problema na criança, porque ele não existe. Porque não existe. O nosso pai também pode ser o Papai Noel ou o menino Jesus, o Papai Noel, né? Eu acho que uma esperança na vida sempre é importante, a gente tendo a idade que tiver, não é verdade? (riso)
P/1 - Nessa época da fazenda a família ainda tinha contato com os avós, tinha convivência com eles?
R - Olha, convivência não houve nenhuma, não conheci nenhum dos meus quatro avós. Nenhum. Quando eu nasci, o papai foi também o caçula da família. E os irmãos, acho que eles eram onze irmãos, também era muita gente. E quando eu nasci os pais dele já haviam falecido, o pai e a mãe. No ano que eu nasci o meu avô materno faleceu, lá em Pernambuco. E, naquela época, eu estou falando para vocês na década de vinte, trinta, por aí. Então, essa época era muito difícil a pessoa voltar lá. A mamãe só foi voltar a Pernambuco depois de muitos anos, quando a gente foi morar na Bahia, na década, acho que de quarenta pra cinquenta. Nós fomos morar lá na Bahia. Na Bahia a mamãe foi visitar a mãe dela, que ainda estava viva, com alguns irmãos e o papai, então eu não cheguei a conhecer os meus avós. Depois a minha avó materna também faleceu e eu não a conheci. Então nós não tivemos convivência, nossa convivência foi mesmo entre os pais e os irmãos. Por isso que a gente sumiu tanto, eu acho, nós tínhamos assim... E a mamãe, mesmo depois quando as ocasiões que a gente morou na cidade, por que às vezes a gente ia pra cidade, depois voltava outra vez para o sítio, nós voltamos umas três vezes pra este mesmo sítio, sabe? E a mamãe sempre quis que a gente brincasse, tivesse amigos e tudo isso, mas que não vivesse em casa de amigo, ficasse mais em companhia dos irmãos. Ela nunca permitiu ir muito à casa de vizinho, e ficar muito assim: “pode ter amizade, traga os amigos aqui, vá visitar de vez em quando, mas não viver permanentemente. Então, vocês têm os irmãos, vocês brinquem com os irmãos...”
E nós fomos sempre todos muito unidos, nós nos criamos dez irmãos. Hoje só um faleceu de acidente de carro, mas nós somos nove irmãos que estão todos vivos, todos são avós agora (riso). Até agora, só a caçula que não é avó, mas somos, estamos aí assim.
P/1 - Voltando um pouquinho antes lá na época, na fazenda, a senhora se lembra das brincadeiras que eram praticadas?
R - Muitas. Brincadeiras de roda, muitas mesmo! Aquelas cirandas, lenço atrás, todas aquelas brincadeiras de criança, de boca de forno. O que mais? De esconde-esconde. Aquelas brincadeiras boas de criança, de passar o anel, e também, a gente contava muita história. Quando eu me alfabetizei, eu me alfabetizei lá no sítio, depois o papai terminou vendendo aquele sítio e indo morar na cidade, e lá na cidade eu comecei escola primária, aí eu continuei, eu já tinha começado a me alfabetizar, e continuei lá na cidade e terminei, nós fomos lá para Araçatuba, e eu terminei o quarto ano primário, mas o grupo escolar eu estudava numa escola pública. Eu tinha uma biblioteca, pequena, e eu comecei a ler os livrinhos de história infantil. Eu levava muito aqueles livrinhos, eu levava emprestado da biblioteca e lia toda aquela coleção das crianças, as historinhas dos irmãos Grimm, de Andersen, aqueles contos de fada, da sereiazinha, lia todas aquelas histórias, e quando eu ia para o sítio, porque a minha madrinha continuou morando no sítio que era vizinho, eu ia recontar aquelas histórias para as crianças, para os filhos da minha madrinha, os amiguinhos da gente, os irmãos menores, eu vivia contando história. Aliás, na minha casa a minha mãe sempre contou histórias pra nós, pra todos os filhos. Quer dizer, era a mesma historinha que era repetida treze vezes (riso). De qualquer modo, toda noite depois de rezar. Aí ela contava as historinhas pra gente antes de dormir, toda noite a gente ouvia historinha. Geralmente era história de bicho. E lá na nossa família as nossas brincadeiras, quando brigava um irmão com o outro os apelidos eram de bicho. Sempre assim, acho que porque era o que a gente convivia, era a nossa vida. Então tinha o apelido: “seu camelo não sei o quê”, cada um tinha um apelido de um bicho (riso).
P/1 - Tinha muita história, assim, os pais, tios, contavam alguma história de assombração na época?
R - Contavam um pouco. Eu tinha um tio que depois de algum tempo, meu pai descobriu um tio irmão da mamãe que andava trabalhando em uma fazenda lá. Ele resgatou esse tio pra nossa convivência e nós adorávamos ouvir histórias desse tio, era o tio Cícero. E o tio Cícero era muito engraçado, era um solteirão que tinha vindo embora, porque se desiludiu por causa de um noivado que a mãe não quis que ele se casasse com moça, ele veio embora e ficou perdido aí pelo mundo, então ele contava, nós achávamos ele belíssimo, ele devia ter uns quarenta anos e ele contava umas histórias fantásticas pra gente, nós adorávamos aquelas histórias de assombração, histórias parecidas com a do Bocage, aquelas histórias de malandragem, do cara vender umas panelinhas que: “Olha! Essa panela aqui não precisa de fogo, né?”, panela de barro, de: “Olha! Ela está fervendo.” Então ele ia lá, apagava todo o foguinho e mostrava a panela com o feijão fervendo e dizia: “Olha! Ela é mágica” e tal, e a pessoa comprava. Então essas histórias bobinhas, histórias muito inocentes também. Meu pai também contava muita historinha pra gente, mas umas histórias bastante inocentes. Hoje eu lembro e acho muita graça. Uma das coisas também importantes que eu guardei sempre na vida, foi que meu pai nunca permitiu que nós falássemos palavrões. Nós convivíamos com os italianos e eles falavam muito (riso). Os italianos falavam muito palavrão, mas ele não permitia dentro de casa, mesmo entre os meus irmãos, a maior briga que dava com o irmão é alguém dizer: “Ah! Você é filho não sei de quê”. Então aquilo dava um rolo enorme, porque ninguém admitia e nós não falávamos palavrões. Ele chamava, assim: “mil diabos”, sabe? Ou coisas mais... Mas ele, palavrão assim ele não falava nunca.
P/1 - Ele usava aquelas palavras que são palavrão no Nordeste?
R - Que são como?
P/1 - Palavrão, no Nordeste.
R - Ah! No Nordeste?
P/1 - Os palavrões no Nordeste são diferentes dos daqui do Sudeste, né?
R - Ele falava assim: “com mil diabos! Com seiscentos mil demônios”. Ele falava muito isso assim (riso). Quando ele ficava enfezado com... Lá tratando dos animais, ele dava uma mordida no rabo da vaca, ou mordia o focinho do cavalo, então ele ficava assim, sabe? Ele era meio tenso. Ele fazia essas coisas, mas falar palavrão, xingar, não muito. Ele falava muito isso. Ele chamava o demônio, não sei porque? (riso) Mas chamava sim, a legião inteira, né?
P/1 - Ele e a mãe da senhora, mantinham certos hábitos nordestinos? Tipicamente nordestinos?
R - Muito, na alimentação. A mamãe, eles dois, nunca perderam o sotaque. A vida inteira, a mamãe... Eles vieram em 1929, parece que eles vieram pra São Paulo, mas eles não perderam o sotaque, a mamãe até os 94 anos dela, ela falava meio arrastadinho e ela se traía muito nas palavras. E os alimentos, eles não esquecem aquele tipo de alimentação que eles tinham lá. Então, de vez em quando faziam... Eles usavam muito, faziam muito aqueles alimentos, aquele tipo de comida que era típica do lugar deles. Eles faziam muito.
P/2 - Eles eram de que região?
R - De Pernambuco. Papai nasceu, eu não tenho muita certeza disso, porque faz tantos anos (riso). Então do papai... Mas eu tinha a impressão que dizia que nasceu em Teixeira, mas ele se falava pernambucano, mas Teixeira era na Paraíba. E como ele nasceu e veio para Pernambuco, ele foi criado ali, e toda a família dele ficou radicada lá em Pernambuco. Então eles ficaram lá, e só vieram pra São Paulo, vieram embora quando aquela quebra de 29, foi? 29? Aquela recessão muito grande que ele perdeu tudo e ficou muito triste com aquela seca do Nordeste, ele nunca se conformava, ele dizia: “não quero criar meus filhos aqui no Nordeste por causa dessa terra terrível”, na época deles já haviam todos aqueles problemas políticos que existem até hoje, de desvio de verbas para o pessoal e de não ter cuidado. Ele era muito revoltado com tudo aquilo. Ele dizia: “não, eu quero criar meus filhos num lugar mais avançado, quero ir embora pra São Paulo, quero ir para o Rio de Janeiro”, quer dizer, ele não quis ficar no Rio, veio pra São Paulo, mas aí ele veio embora, vieram de navio, aqueles navios bonitos. Ele falava muito, contava, eu ouvia muito ele contar: “peguei o navio no porto de Cabedelo”, eu achava muito engraçado. Depois eu fui lá conhecer Cabedelo, mas era assim. E o que mais?
P/2 - Queria que a senhora falasse um pouco dessa casa que a senhora vivia na fazenda? E como é que era a casa? Uma casa grande, ou pequena? Como que era a divisão da casa? Como que viviam ali um monte de irmãos?
R - Tantas pessoas.
P/2 - É, tantas pessoas na casa.
R - Era uma casa bem grande e uma sala enorme. Eu me lembro assim, ela foi demolida, porque depois fizeram pastaria de tudo aquilo e a casa foi demolida, mas eu me lembro muito dela, tinha uma escadaria pra subir, uma porta grande, uma sala enorme, os quartos eram em volta da casa. E no fundo tinha uma cozinha muito grande, uma cozinha enorme que tomava o tamanho da casa, lá no canto o fogão, também bem grande. E nós assim...
P/2 - E fogão aceso o dia inteiro, né?
R - Era sempre. Quando era época do frio, porque também lá fazia pouco frio, mas na época do inverno mesmo, tinha aqueles dias bem de frio e a gente levantava e “acocorava” o fogão, ele tinha um rabo comprido e a gente ficava acocorado no fogão pra se esquentar, pequenininho. E a mamãe brigava: “sai daí, menino! Você vai se queimar” e não sei o quê e tal, então de vez em quando a gente acocorava ali pra esquentar e era uma delícia aquele foguinho de lenha, era bem grande. Eu não me lembro. O quarto devia ter assim, várias camas, com as irmãs, os irmãos, era meio dividido, era grande a casa. Depois tinha também uma despensa enorme onde ela acumulava, porque tinha que comprar coisas e também não existia geladeira, nem luz elétrica, nada. Então tinha que acumular tudo aquilo na despensa, todas as casas tinham despensa e do lado de fora tinha um quarto grande que era dos empregados que dormiam, a porta abria para o lado de fora. Tinha um pomar, um jardim, nós que cuidávamos do jardim, cada um tinha o seu canteirinho pra cuidar. Tinha o pomar com umas mangueiras, a gente vivia em cima das árvores, a gente subia muito em árvores pra comer fruta lá em cima, e andava muito a cavalo, procurava coqueiro, eu nunca tentei subir, meus irmãos que subiam nos coqueiros, a gente andava a cavalo bastante, aí como a gente era pequeno era uma porção no cavalo, meu irmão ia na frente comandando e, às vezes, eles faziam uma malandragem com a gente, fazia a gente se virar, caía pela barriga do cavalo, ria, nós brincávamos muito, muito. E como a minha madrinha morava perto, essa madrinha também era família nordestina, e os meus pais foram compadres, várias vezes, porque cada filho que nascia batizava, era padrinho de batismo, de crisma, de apresentação, de não sei mais o quê, de fogueira, tinha muito padrinho de fogueira lá.
P/2 - O que é padrinho de fogueira?
R - É, então na festa de São João você troca o pulo da fogueira com o seu padrinho. Faz lá uma e virava padrinho de fogueira, fogueira de São João (riso). Então escolhia um padrinho e pulava a fogueira. Uma coisa muito interessante daquele meu tio Cícero que pra nós era um mito maravilhoso, ele em todas as festas de São João ou de São Pedro, meu pai era o Pedro, então era a festa que a gente mais badalava era a de São Pedro, lá em casa, o meu tio atravessava a fogueira em brasa, tirava o sapato, passava a mão na sola do pé e atravessava nas brasas bem, assoprava bem as brasas pra sair a cinza e passava. Pra nós aquilo era uma coisa que era do outro mundo, porque imagina, passar na fogueira. Agora, porque ele fazia isso eu não sei. Era o que nós mais gostávamos também, na festa de São João. Nós irmãos, os filhos da minha madrinha, até hoje, às vezes, eles lembram disso, que era uma coisa bonita, pra nós era uma coisa bem mágica. As festa de São João, era quando ele passava nas brasas, que era uma coisa e os estrangeiros ficavam horrorizados com aquilo. Achava que aquilo era até uma feitiçaria, uma coisa assim, né? (riso) Não sei, mas é isso.
P/2 - E a escola? A escola não foi em Birigui, já foi em... A sua formação primária, né?
R - É, porque ai a gente foi morar em Araçatuba, e a minha formação primária foi em Araçatuba. Depois, nós fomos morar na Bahia e eu fiz o ginásio lá. Aí tornamos a voltar para São Paulo, você vê como a gente andava. E quando voltamos para São Paulo fomos morar em Valparaíso, porque a minha irmã mais velha era casada e morava lá, papai decidiu e fomos morar em Valparaíso. E lá eu terminei a escola normal. Depois vim pra São Paulo, aqui trabalhei sempre muito, comecei a trabalhar em 1954, e trabalhei muito nas escolas do Estado, escolas particulares, depois na Prefeitura. Aí fui fazer...
P/2 - E a senhora se lembra dessa parte da escola, como que era a escola? Como é que era a aula lá no primário?
R - A aula lá quando criança?
P/2 - É.
R - Ah! Lembro muito. Tinha uma professora que até hoje eu lembro dela.
Minha professora muito querida que me alfabetizou. Aliás, em casa as irmãs começavam a alfabetizar um pouco, as irmãs mais velhas ensinavam um pouco pra gente. Quando eu entrei na escola eu já conhecia o alfabeto, as letras, já comecei a... Aprendi com bastante facilidade, porque eu já tinha iniciação em casa, mas a professora, era a Dona Elídia, um anjinho, ela era bem ruiva, sardenta, mas eu achava ela linda porque ela sabia tudo. Professor pra gente sabe tudo, né? E a escola era interessante, era uma escola rural e que também tinha jardim e horta, os alunos também aprendiam os trabalhos da horta. Por isso que a gente em casa repetia e fazia isso. E as classes eram de primeira à terceira série. Tudo numa sala só porque não tinha divisão. A escola tinha o período de manhã, da tarde e a professora dava aula para a primeira, segunda e terceira série. Quarta série lá não existia, você tinha que fazer na cidade depois. Só que eu comecei só a primeira série lá, mas eu fui terminar a primeira série depois, em Araçatuba e fiz até a quarta lá. O papai parou quatro anos num lugar e eu terminei (riso) fazendo a escola primária lá, depois nós voltamos. E, naquela ocasião o meu irmão que era um ano mais velho que e... Papai disse: “não, ele vai fazer o curso de admissão porque ele é homem, precisa estudar mais, mais que você” e eu não fui fazer, porque eu terminei o primário com dez anos e para entrar no ginásio tinha que ter doze anos, então eu não tinha idade pra entrar no ginásio e perdi dois anos de vida sem estudar. Mas nós voltamos pra fazenda, voltamos lá para o mesmo sítio e lá... Aí eu não fazia nada, porque só ficava... Aí a mamãe dizia: “Você vai fazer alguma coisa, vem aprender a fazer crochê, vai começar a fazer coisinhas de crochê. Tudo para você não ficar assim, aí subindo em árvore, andando a cavalo e fazendo estripulias por lá sem ocupação”. Então eu aprendi, comecei a fazer roupinhas de bebê de crochê. Depois nós fomos morar na Bahia e lá que eu fui estudar, que eu recomecei. Nós fomos pra Feira de Santana aí eu fui fazer o curso de admissão pra poder entrar no ginásio. Esse curso de admissão era com professora particular, nós passávamos o dia inteiro lá. Nós íamos almoçar e voltávamos o período da tarde. Foi onde eu aprendi a conjugar verbos, onde eu aprendi tudo de português, da parte gramatical que eu sei até hoje, com esta professora do curso de admissão ao ginásio. Um dia ela dava um caderno de linguagem para os meninos, pra conjugar o verbo: “conjugue um verbo”. Eu tinha aprendido aqui em São Paulo a conjugar presente, passado e futuro, só esses três tempos e, eu num instantinho terminei: “obrigado, já terminei” e quando ela abriu o caderno, ela dizia assim: “olhem! Isto é São Paulo, esta menina veio de São Paulo, olhem o absurdo, ela não sabe conjugar um verbo”, e os meninos continuavam escrevendo, claro, o verbo inteirinho, até o particípio, todos os tempos do verbo. Então, eu aprendi a conjugar e aplicar bem os verbos naquela época. Desde esta época, eu tinha onze anos.
P/2 - E depois no ginásio, como é que era a escola no ginásio lá na Bahia?
R - É, na Bahia. A Bahia foi muito interessante, porque a gente chegou lá e todo mundo ficava à nossa volta, pra ouvir a gente falar porque falava como paulista. Eles ficavam a volta da gente pra ouvir a gente conversando. E foi uma coisa estranha porque os nomes são diferentes. Hoje está tudo, está muito globalizado, mas aquela época você ia comprar um tecido e o nome era outro. Então, por exemplo, a mamãe que já tinha filho, teve uma filha que nasceu lá, em Feira de Santana, a caçulinha, ela me mandava comprar morim pra fazer as fraldas da nenê e a gente não achava morim, porque lá eles chamam madrasto, o morim. Aí ela ia comprar cretone pra fazer lençóis de cama, lá eles chamam bramante. Eram nomes completamente diferentes. Você vai comprar um grampinho para o cabelo, aquelas ramonas nós chamávamos, aqui, naquela época, chamava ramona lá no interior, então eles diziam assim: “não...” , lá eles chamavam de misse. Eram nomes tudo diferente. Às vezes, nós saíamos pra fazer compra e voltamos sem nada em casa: “mãe, não encontramos, não tinha”. E lá eles usavam ainda, na época que nós fomos, era 46, por aí, 46, depois eu entrei no ginásio em 47, então eles falavam assim, por exemplo, “quanto custa isso?” , “um cruzado, dois cruzados”, lembra disso? Chamava cruzado aquela época. Um cruzado era quatrocentos réis, dois cruzados, oitocentos réis, porque era o tempo dos mil réis ainda que nós fomos pra lá. A gente estranhava, não sabia aquilo. Não lembro como é que eles chamavam dois tostões, três tostões, uma coisa assim, eram os centavos e então nós estranhamos bastante, mas a escola foi muito interessante, eu gostava, até hoje eu me lembro de uma senhora que era servente, bedel da escola. Ela era muito engraçada e ela dizia assim: “eh! menino, foi uma tragédia” e eu nunca esqueci isso que ela falava (riso). Coisa muito engraçada, eu tinha doze anos, mas ela dizia: “ah! Mas foi uma tragédia grega”. Acho que ela ouvia alguém falar e ela repetia esse. Engraçado. Aí eu fiquei lá em Feira de Santana, depois o meu pai se mudou pra Itabuna, nós fomos pra Itabuna. E eu continuei fazendo o ginásio lá em Itabuna e apesar de todas essas mudanças, eu nunca perdi o ano. Nunca, às vezes mudava no meio do ano. Umas coisas muito loucas que a gente, hoje, pensa, mas que era, assim, nós achávamos aquilo uma maravilha porque você tinha oportunidade de conhecer outros lugares, outras pessoas, era gente nova, então a gente nunca achou ruim, a gente mulher, os meus irmãos, eu não sei. Talvez eles tenham sido prejudicados um pouco nisso. Eu senti sempre que foi uma coisa boa pra gente o mudar. Depois eu me casei com um militar e a gente mudou tantas vezes, quer dizer, em 25 anos de casada eu mudei, acho que umas nove vezes, por aí também. Acho que a gente está um pouco acostumada a ser um pouco cigana.
P/1 - Nessa época da infância, quando haviam essas mudanças, o que se levava nas mudanças, como eram essas mudanças?
R - Ah! A mudança levava tudo, arranjava um caminhão lá e botava, como você vê essas mudanças malucas, só faltava levar papagaio, gatinho e tal. Então ele mudava, levava o que pudesse levar da casa, levava tudo, o que pudesse, o que não pudesse, eu não lembro bem. Eu sei que a gente tinha umas mesonas mineiras lindas, daquele tipo mineira, porque na minha casa era uma mesa enorme, grande, porque eu lembro de um jantar que a gente reunia naquela mesa, lembro das comidinhas que a mamãe fazia e que a gente queria fazer no prato uma horta, um canteirinho e umas das irmãs ficava brava com aquilo. “O que é isso, que coisa feia!” Então você via uns corrigindo os outros. A mesa, para os hábitos e tudo. E é isso (riso).
P/2 - Aí, depois do ginásio, a senhora mudou de novo?
R - De novo. Aí vim morar em Valparaíso e fiz a escola normal, em Valparaíso.
P/2 - Interior de São Paulo?
R - Interior de São Paulo, é. Aí estudei em Valparaíso e fiz a escola normal, era um colégio de freiras.
P/2 - Como é que era essa coisa? Porque antes era escola pública, né?
R - É.
P/2 - E depois a senhora foi pra escola de freira. Como que foi essa mudança?
R - Ah! Bom, mas desde que eu comecei o ginásio foi sempre escola particular, aí eu não tinha, lá, por exemplo, só existia esse ginásio em Feira de Santana. Era o único ginásio que existia, e ele era pago. Existia uma escola normal, lá em Feira de Santana, mas ela só dava formação para o Estado da Bahia, quer dizer, se você se formasse naquela escola, só poderia lecionar lá. Então alguém me alertou, isso foi a informação que eu tive quando menina, antes de entrar no ginásio: “ah! Você vai fazer o ginásio, porque o seu pai não vai permanecer aqui em São Paulo, aqui na Bahia, com o espírito que ele tem. Ele tende a voltar para São Paulo e seu curso lá não vai ser válido, é melhor você fazer o ginásio, que é equiparado ao D. Pedro II do Rio”, porque todos os
ginásios que eram equiparados ao D. Pedro II eles tinham validade Nacional. E a outra escola lá não tinha. Aí eu fui fazer o ginásio que era particular, em Itabuna também. Só o primário que eu fiz em escola pública, depois eu não tive chance de fazer na escola pública, mas porque as cidades que eu morava não tinha escola pública. Em Valparaíso, por exemplo, foi criado a escola normal por causa de um pessoal que tinha terminado o ginásio e que não podiam estudar fora. Nós éramos um grupo pequeno, minúsculo de normalistas, acho que eram uns treze, só, em colégio de freira. Então, foi isso. Aí meu pai tinha uma dificuldade pra pagar a escola e eu ficava muito enlouquecida, porque chegava no final do mês e tinha que pagar a escola e eu ficava muito desesperada, porque né?! E também a gente... Só ele trabalhava, fora que os filhos foram se casando, as filhas que ajudavam na casa foram se casando, então as dificuldades são, assim, enormes, mas eu... Aí eu aprendi a fazer coisas, procurava fazer trabalhinhos de agulha, trabalhos de crochê pra vender pra alguém, pra poder estudar, porque eu gostava muito e a prioridade minha era a escola, era estudar e eu não queria ficar sem.
P/2 - E de onde veio essa prioridade pelos estudos?
R - Eu não sei, talvez isso seja bem espiritual. Porque os meus pais não tiveram escola, meu pai teve professor, o pai dele foi um fazendeiro bem situado e contratava professores para ir dar aulas em casa pra eles. Então eles tiveram uns meses de aula. Ela era alfabetizado e fazia os cálculos, como ele dizia, ele era bastante inteligente e, às vezes, quando ele mandava fazer contas, ele dizia: “eu não fui à escola e já fiz tudo isso, olha, o resultado é tal”, quer dizer, ele era bem vivo, bem inteligente, mas ele teve pouca escolaridade, a mamãe também. Então de qualquer maneira, eu acho que é uma coisa mais espiritual mesmo, que nasceu comigo e que não teve... Sempre eu estudei sozinha, sempre eu dei conta, nem dava conta. Uma das irmãs, como eu disse pra vocês que os irmãos mais velhos cuidavam dos menores, então era sempre uma irmã mais velha que ia às reuniões de pais, quando eram chamadas à escola, porque a mamãe tinha muita ocupação na casa, e não ia, e ela achava... As filhas já tinham estudado e tal e eram mais, tinham uma condição mais elevada pra conseguir, pra ir assistir a reunião. As irmãs que tomavam conta, que viam boletim e tudo isso, mas eu sempre cuidava das minhas notas sem precisar dar satisfação nenhuma, porque era uma coisa que tenha nascido comigo, ou que tenha vindo, né? (riso)
P/2 - E a disciplina nessas escolas, por exemplo, nessa escola normal, ela é muito rígida?
R - Não, não era muito rígida, era meio, era escola de freiras. A gente andava, era um calor na cidade do interior, todas são de muito calor. A gente andava com umas meias compridas, umas blusa assim, não usava decote, sabe nesse sentido? Era, quer dizer, era a parte, entre aspas, moral, porque elas pensavam muito e quando a gente dizia que ia ao clube, que tinha ido à um baile, uma festa: “ai, que horror!” a freira dizia, “Deus me… Foi abraçar um homem?” Então, as meninas muito sapecas diziam: “ah! Mas que maravilha” (riso) Então, ela dizia: “fui sim irmã”. Mas eram assim, um pouco rígidas, mas não muito, muito, não. A gente fazia teatro na escola, aprendia música, era muito interessante.
P/2 - Nessa época da escola normal?
R - Da escola normal.
P/2 - A senhora tinha quantos anos?
R - Eu tinha de dezesseis a dezenove anos, por aí.
P/2 - Então aí já começava também a ter um namoro, coisa assim?
R - Ah! Claro. Os namoros. Então, os namoros também eram interessantes. A cidade era pequena. Valparaíso era uma cidade que nem tinha asfalto, era rua de terra, tinha um jardinzinho público, tinha um cinema, a gente ia muito ao cinema, então o namoro era assim: você só olhava muito de longe, mas marcava encontro, aí mandava um recadinho que queria encontrar no cinema. Aí você entrava no cinema e deixava um lugarzinho vago para o rapaz chegar e sentar, e se ele fosse mais atrevido pegava na sua mão (riso) pra assistir o filme. De vez em quando, se fosse mais atrevido ainda, dava um beijinho no rosto, mas era… Quando ia namorar os pais sempre mandavam o irmão menor junto, era uma velhinha lá pra segurar vela e tal. E era meio assim. Tive um namorado lá que os pais já faziam até projetos para ele construir a casa em frente a escola, para eu lecionar e tal, mas eu namorei porque todo mundo tinha namorado e eu não tinha. Então eu namorei também não porque eu tivesse uma paixão por ele e nada, mas também foi assim, um namoro. Hoje ele deve ser, acho que é avô até, mas não. Os namoros eram assim, mas tinha baile no clube, tinha festas, todas festa de carnaval, carnaval a gente gostava muito, embora a igreja proibisse, a mãe, a gente também dizia que era festa do demônio e tal, mas aí se a gente fosse a um baile, também em casa, mamãe era rígida, ela chegava de manhã, você tinha que levantar seis horas para ir pra missa, e nós íamos, papai, mamãe e nós todos pra missa, aquele bandinho todo quando pequeno. Quando foi crescendo, também ela exigia, ela fazia levantar e ir pra missa, e a gente ia, mas depois a gente começou a dizer: “bom, agora eu vou mais tarde, vou a hora que eu quiser”, mas aí quando a gente já estava adulta e que ela não tinha mais muito comando, a gente já estava fazendo faculdade (riso), aí começou a botar as manguinhas de fora, mas a gente obedecia, sim. Era isso, porque tinha que cumprir a parte religiosa e a parte das festas.
P/2 - A senhora lembra de alguma história curiosa? Pode ser com algum amigo, amiga assim, alguma coisa que marcou nessa época lá em Valparaíso?
R - Em Valparaíso?
P/1 - Você tinha alguma coisa?
R - Tem tanta coisa interessante, mas a gente não... Não lembro muito assim.
P/2 - Então vamos passar pro seguinte, aí depois de Valparaíso a senhora foi pra?
R - Depois de Valparaíso eu vim aqui pra São Paulo, morei aqui em Pinheiros, vim morar...
P/2 - Veio com os pais também, ou não?
R - Vim com meus pais. Primeiro nós viemos porque minha irmã, uma das irmãs tinha vindo pra cá, pra São Paulo, arranjou emprego, ficou morando na casa de um parente nosso, uma tia, uma meio prima, tia meio longe, por aqui na Lisboa. Aí ficou morando aí e resolveu... Aí veio uma senhora também de lá de Valparaíso e ficou com a minha irmã. Aí ela disse: “vamos alugar uma casa e a gente mora e a gente pode fazer, a gente trabalha, a gente pode fazer um pensionato de moças, vamos alugar essa casa”, aí elas alugaram a casa, mas a mamãe e o papai não se conformaram onde era, e eu vim, também, com a minha irmã. Aí eles vieram também, eles acharam que não deviam, que eles deviam, essa casa que elas haviam alugado, eles deviam assumir, então nós viemos. Nós morávamos ali na rua Cariris. A Cariris, aquela época, 53, ela nem asfaltada, era uma ruazinha de terra, sossegadinha, não parecia que a gente morava em São Paulo. Então nós moramos ali na Cariris e depois, daqui de São Paulo nós depois não saímos mais. O papai viajava muito, ia para o interior, ia para o Mato Grosso e tal, mas a mamãe nunca mais quis se mudar daqui, quando ele falava em mudar ela dizia: “não, meu filho, agora eu não vou mais” (riso) “agora os meus filhos já estão grandes, estão trabalhando aqui, tudo, e então a nossa vida agora vai ser aqui” e, nós permanecemos aqui.
P/1 - Antes dessa vinda, a senhora já conhecia São Paulo? Já tinha vindo pra cá?
R - Eu só tinha passado por aqui quando nós fomos pra Bahia, porque nós viemos de trem, do interior pra cá, e descemos ali na estação da Luz, ficamos num hotelzinho ali na frente da estação da Luz. A família toda. E a gente ficou conhecendo, eu me lembro muito daqui de São Paulo, do rio Tietê, era limpinho o Tietê e tinha uns chorões que caíam. Eu lembro muito disso. Ali perto parece, não sei se era a Avenida do Estado, perto, e lembro que eu andei muito na cidade, ali onde tem o Mappin também, eu achei muito interessante aquela travessia por baixo. Eu tinha onze anos, por aí, mais ou menos e andamos assim, e o que mais? Eu me lembro assim, conheci São Paulo só um pouquinho. Depois quando nós voltamos da Bahia, quando eu voltei da Bahia, eu vim com o papai até e nós paramos aqui em São Paulo e ficamos na casa desse parente na Rua Lisboa. Então conhecia São Paulo, só tinha conhecido lá no Centro da cidade e aqui, a Rua Lisboa. Eu conheci um trechinho da Teodoro Sampaio, um pouquinho assim. Depois, em 53 que a gente se fixou aqui mesmo.
P/1 - Nesse intervalo que a senhora veio com onze anos de idade, até quando a senhora voltou com seu pai da Bahia, a senhora sentiu alguma diferença em São Paulo, na cidade, nas pessoas?
R - Claro, a gente sente. Agora, talvez eu não tivesse muito discernimento pra ver essa diferença, não sei, era menina ainda, e estava parece que noutra... Achei muito interessante, porque quando nós ficávamos aqui na Rua Lisboa, ali, essa tia pediu para eu ir com a prima comprar alguma coisa na padaria, na Teodoro Sampaio. Saímos para fazer umas compras, alguém mexeu comigo e eu fiquei, senti uma coisa muito assim, estranha. E fiquei muito: “pôxa!” A gente mora em cidade do interior, você conhece todas as pessoas que você convive todo dia, nunca ninguém dirige um gracejo para você, jamais, porque todas as pessoas são conhecidas, você nunca ouve isso. Essa… E eu achei aquilo muito engraçado, diferente, quer dizer, foi uma das coisas que eu senti e os bondes, aquela movimentação, aquela loucura de São Paulo, mas marquei, não tive muita condição de avaliar diferença.
P/2 - Em 53, né? Que a senhora veio pra cá?
R - É, vim pra cá.
P/2 - Definitivamente?
R - Definitivamente, é.
P/2 - Como é que foi essa adaptação da chegada a São Paulo? Foi difícil? Foi...
R - Foi muito interessante, porque quando eu vim, como eu já estava com meu diplominha de professora, eu já até achava um pouquinho importante, por causa disso. E eu digo: “vou procurar um emprego” e encontrei essa escola, eu morava ali na Cariris, eu ia a pé pra escola, e também descobri que quando eu fui ver a escola uma diretora que tinha sido diretora de escola lá em Valparaíso, estava aqui, justamente nessa escola. Então ela me deu todas as dicas de como eu pudesse começar a trabalhar. Quando eu digo pra vocês que foi meu primeiro emprego, foi emprego, porque foi trabalho, foi serviço, aí nós éramos professoras substitutas que íamos à escola e éramos obrigados a cumprir um horário “x”, se houvesse falta de uma professora nós dávamos aula para as crianças e ganhávamos aquele dia de trabalho, e se não houvesse professor, você tinha que cumprir tantas horas ali, assinar ponto de entrada e saída, e não ganhava absolutamente nada. Eles contavam pontos, eles diziam que era para depois você ingressar no magistério. Você ganha pontos para o ingresso no magistério. Então eu trabalhei durante seis meses nessas condições de dar... Chegava o final do mês e eu recebia duas aulas, três, aquilo que o professor faltou. Mas a escola foi ampliada e ela tinha dois períodos e passou a três períodos, e foram criadas muitas classes no meio do ano, e como essas classes, as professoras não eram escolhidas, a gente assumia, nós éramos professoras substitutas ali, assumia a classe. Então eu fiquei, botei as mãos para o céu porque aquele ano eu fiquei trabalhando até o final do ano com uma classe e recebendo salário todo mês. Recebendo o ordenado. E fiquei assim, até que depois foram criadas as escolas da Prefeitura e eu consegui uma escola da prefeitura, procurando aluno de casa em casa, requisitando, alugando uma sala, pagando lanche para as crianças, comprando material, todas essas coisas. Então consegui uma sala de aula e fiquei como professora, eles chamavam de funcionário extra numerado, mas depois de um determinado período aí a gente foi fazendo cursos e tudo isso, e terminou se efetivando, nem houve... Porque na criação não houve concurso pra... Na criação das escolas municipais. Aí eu terminei ficando na escola municipal, acumulava sempre com escola estadual e escola particular, quando tinha chance, tinha muitos alunos particulares também, e trabalhava muito, muito. Aí eu resolvi fazer faculdade, mas eu trabalhava em dois períodos e fazia faculdade a noite. Fiz pedagogia. Depois voltei para outras especializações, mas assim, tudo dentro da área de educação, até que me aposentei da Prefeitura (riso).
P/2 - E nessa época que a senhora começou a dar aula, como é que era, assim, um pouco? Gostaria que a senhora falasse um pouco da educação nessa época em São Paulo.
R - Aqui em São Paulo?
P/2 - Está falando, mais ou menos, de cinquenta e...
R - 54, foi quando eu comecei, é, em 54. E as crianças obedeciam muito o professor. Era uma coisa completamente diferente do que ultimamente, quando eu já saí na minha aposentadoria, eu achei que estava na hora, mesmo, de parar. Eu senti isso. E porque as crianças eram assim, se o professor... Quando eu comecei a trabalhar eu tinha uma cara muito brava, eu era muito brava com as crianças por causa da minha insegurança. Hoje eu me dou conta disso, de que eu não... A maneira de fazer com que eles… A insegurança da gente faz com que a gente seja brava. Depois, ultimamente não, eu tinha toda, eu sabia usar a minha autoridade sem precisar falar alto e ser brava com as crianças, mas eu consegui sempre impor silêncio e respeito dentro da sala de aula. E as crianças obedeciam muito o que a gente falava e tal, mas depois eu também percebi, eu trabalhei em escolas particulares aqui na Avenida Rebouças, Eusébio Matoso e eu concluí o seguinte: as crianças da periferia são mais dóceis e obedientes do que as crianças da cidade, filhas de pais ricos, que viajam todas as férias pra vários países, por aí a fora, filhos de deputados e tal. As crianças são muito mais rebeldes, muito mais preguiçosas. Eu sentia isso naquela ocasião, quer dizer, eles tinham tudo, eles tinham muita coisa e não sabiam desfrutar dessa muita coisa que tinham, nem talvez por isso, e aqueles que lutavam com um pouquinho mais de dificuldade eles valorizavam mais. E a escola então, eu procurava até fazer uma troca. Os meninos tinham lápis de cor maravilhosos que eu na minha vida nunca tinha tido, mas eles tinham aquelas coisas maravilhosas e jogavam aquilo fora, então eu pedia tudo aquilo e levava para as escolas, pra periferia e os meninos aproveitavam aquilo muito, sabe? Eu achei, ultimamente... Quando eu me aposentei eu era coordenadora pedagógica numa escola, mas eu sentia que a gente entrava numa classe e que os alunos já não tinham aquele respeito com professor, com uma pessoa que pudesse ser uma certa autoridade, uma coisa assim. Eles não tinham mais, então brincavam muito, faziam muita chacota e coisas desagradáveis até. E talvez por causa, por ter surgido o problemas das drogas, muito… E eu trabalhava aqui no Campo Limpo, eu achava uma região bastante conflagrada, meio difícil de trabalhar. Às vezes ficava até às onze da noite, então era meio duro, mas depois eu trabalhei numa outra escola aqui na Vila São Francisco, quando eu me aposentei aqui, perto de Osasco, entre Osasco e São Paulo. Aí era um ambiente melhor e a escola não funcionava a noite. Era assim mais... Um ambiente um pouquinho, de escola pública, mas melhor para que você trabalhasse.
P/1 - Voltando um pouquinho pra década de quarenta, cinquenta, como era a vida em casa, como receber notícia, comunicação? Como essa coisa chegava em casa?
R - Na década de cinquenta, é, na década de cinquenta eu morava lá em Valparaíso e depois vim pra cá, no comecinho, em 53. A gente sempre trocou muita correspondência, era sempre o correio, era correspondência da gente. A minha irmã... Nós lá em Valparaíso vivíamos... Na nossa casa não tinha telefone, mas a casa da minha irmã, que era pertinho, tinha telefone, então alguma notícia a mais, assim rápida, era com ela. Depois nós viemos para São Paulo, mas a gente continuava muito, a gente tinha o hábito de escrever cartas, então trocava muita carta com os amigos, com os parentes, com as irmãs. Sempre muita carta, depois também com o telefone. Depois aqui em São Paulo, era assim, a comunicação era por carta e por telefone.
P/2 - E o rádio?
R - Ah! O rádio muito, no interior o rádio era um... A gente conhecia todas as músicas, cantava muito, a gente sempre cantou muito no interior, e quando chegava época de carnaval - não eram esse sambas enredo, eram as músicas de carnaval - nós aprendíamos todas as músicas, a gente, na época, ia para o carnaval e cantava tudo. Eram blocos de rua, mas a gente sabia cantar todas as músicas por causa do rádio, então a gente conhecia, ouvia novela. Eu nunca ouvi muito, porque eu estava sempre estudando, mas acompanhava as novelas de rádio. E, o rádio, nossa, era o veículo de maior importância.
P/1 - Quem eram os artistas dessa época que...?
R - Ah! Eram o Francisco Alves que cantava, Carlos Galhardo, eram todos, Orlando Silva, esses artistas todos, românticos, aí, né? Depois veio Dorival Caymmi, que ainda está aí até hoje, Silvio Caldas, muitos, Deolinda Batista, as irmãs Batista, Dircinha e quem mais? Aquela Marlene, muito na minha juventude, era a Marlene, foi rainha do rádio, a Emilinha Borba, tem mais essa gente toda, Dalva de Oliveira, Herivelto Martins, toda essa gentarada (riso).
P/1 - E do pessoal que fazia as novelas de rádio, a senhora...
R - Eu não lembro o nome assim, eu só lembro daquela novela onde tinha Isabel Cristina, o Albertinho Limonta e tal, que tinha aquela “O Direito de Nascer”, que aquela todo mundo tinha que assistir toda noite. Mas eu, os artistas da novela, eu não gravei muito. A gente gravava mais os cantores e os artistas do cinema, porque a gente assistia muito filme nacional também. Porque no interior, troca filme todo, todas as noites, tem filme que fica só um dia na cidade. Então se você assistiu aquele dia, se você não assistiu, perdeu. Eu posso interromper um pouquinho?
P/1 - Pode.
R - Eu gostaria de um banheirinho.
P/2 - A gente estava falando de comunicação, a senhora estava falando de rádio, essa coisa toda que no interior se ouvia muito rádio, dos cantores de rádio. Queria que a senhora falasse como era isso aqui em São Paulo.
R - É, aqui em São Paulo, como era a época das músicas, a gente também continuava ouvindo muito as músicas, mas aí com o surgimento da televisão as coisas começaram a mudar um pouquinho. Então, você já começa, já vai perdendo um pouco aquilo de ter tempo de ouvir rádio, de aprender todas as músicas. A vida vai mudando, a gente também começa uma vida de trabalho, e numa cidade maior as dificuldades também são maiores, porque você tem que se locomover para o trabalho, não é
como o interior que você tem, as coisas são sempre mais perto e mais fáceis, então você tem uma chance de aprender até mais, né?
P/2 - Pode continuar.
R - Pode continuar? Tá. É isso.
P/2 - Estava falando da televisão, quando a senhora viu a primeira vez?
R - A televisão? É, quando eu vim aqui para São Paulo, a gente já... Eu comecei a ver televisão, depois a gente já procurou adquirir televisão, e então a gente foi acompanhando as novelas de televisão. Eu nunca fui muito aficionada a televisão, porque não sei, não tinha muito tempo e eu fazia cursos, trabalhava, o pouco tempo que ficava em casa também tinha sempre afazeres, saía muito também. Gostava muito, acho a rua uma coisa tão mágica (riso). Então a gente sai sempre, não sei, como a gente não traz responsabilidade da casa, porque sempre tem a mãe que é responsável pela casa, a gente não, vive muito fora da casa. Eu nunca fiquei muito assim, não tinha paciência de ficar parada vendo um filme na televisão, se eu não tivesse fazendo um trabalhinho de mão, um tricô, uma coisa qualquer, porque senão me dava sono. Então é isso. Televisão.
P/2 - E como era diversão? A senhora falou que vivia muito na rua, saía e tal.
R - Ah! Eu ia muito ao cinema, porque era a época do cinema. Era a época áurea do cinema, naquela década de cinquenta, sessenta, nós íamos muito ao cinema, em São Paulo, tinham muitos cinemas. E íamos dançar, a gente ia muito à festas, gostava muito de baile, dançava muito, viajava também, a gente foi conhecer, viajava pra Santos, ia pra Poços de Caldas, muito para o interior, porque tinha as irmãs no interior. Tenho uma irmã que ficou na Bahia, que se casou e ficou morando lá, então a gente sempre voltou muito pra Bahia, era assim. Então as diversões eram essas. Feriados, normalmente, a gente viajava, sempre achava uma brechinha pra viajar, o pouquinho dinheirinho a gente economizava pra poder fazer o que quisesse. A gente sempre fazia nossas roupas. Uma das irmãs costurava, a gente fazia tricô e a gente sempre andou toda enfeitadinha, sempre a gente fez muito (riso). Então foi isso.
P/2 - Em São Paulo, onde eram os bailes, os cinemas, os principais cinemas?
R - Ah! Os cinemas a gente frequentava o Marrocos, o Cine Metro, era um cinema muito bom.
P/2 - Na Avenida São João?
R - O Metrópolis na Avenida São João. E tinha o Marrocos ali na Crispiniano. Aqui no bairro, por exemplo, tinha o Cine Goiás. O Cine Goiás era chique e era um cinema que a gente podia ir de calça comprida, porque naquela época, os cinemas da cidade você só podia ir de meia e de saia, não podia entrar de calça comprida, no cinema e nos restaurantes da cidade. Então a gente gostava, em fim de semana, [de ir] ao cinema, ao Cine Goiás, e quando tinha namorado ia comer uma pizza na Rua Pamplona, lá no Camelo, então era chique ir ao cinema de bairro e depois comer uma pizza.
P/2 - Já tinha o Camelo naquela época?
R - É, comia lá na Rua Pamplona.
P/2 - E, como é que eram, você falou aí de namoros, como é que eram as paqueras na cidade, onde é que se conseguia namorado? Como é que...?
R - É, eram, às vezes, nos bailes, porque você flertava, dançava, coisa e tal, ouvia as cantadinhas. No baile que se arranjava namorado. A gente frequentava muito baile da Macmed, eram ali no clube Homs, na Avenida Paulista, e frequentava os bailes de final de ano, de formatura, nós íamos muito. Eram sempre bailes a rigor, e a gente tinha turma, porque era a turma dos amigos. Eu sempre tive facilidade de fazer muitos amigos, de fazer amizade e tudo. Eu tinha muitas amigas, trabalhavam comigo, na escola ou então que eu conhecia de outros grupos, não sei, às vezes até um contato num bonde, num ônibus, de conversar com a pessoa, ficar conhecendo, trocar telefone e tal. A gente sempre saía numa turma muito grande. Eu tinha uns amigos que frequentavam aqui o Fernão Dias, as meninas, os rapazes já estavam na faculdade, e nós saíamos muito, foi o ano do quarto centenário, por exemplo, quando eu vim morar em São Paulo nós íamos muito para o Ibirapuera, porque foi um ano inteiro de festas e de exposições permanentes e muita... Íamos muito pra lá, porque sempre tinha muita coisa pra ver e pra fazer, então nós íamos num grupo grande, às vezes doze, quinze pessoas, rapazes e moças. E era assim, meio paquera, eram mais amigos, nasceram até alguns casamentos desses grupos. O pessoal hoje, também são avós, estavam na medicina, a maioria estava estudando na USP aqui da medicina, outros na São Francisco. O pessoal era bastante estudioso, o meu grupo. De vez em quando faziam umas reuniões literárias na casa de um deles, era interessante. O pai de uma amiga minha era professor de uma escola aqui, ele era economista, era professor da Castro Alves, aquela escola onde hoje funciona o objetivo, ali. A gente sempre reunia na casa dele, esse grupinho de... Fazia as festas, era muita brincadeira, dançávamos muito. Nós íamos aos bailes do Homs, com roupas a rigor, vestidos longos e íamos de bonde (riso). Às vezes voltava, voltando a Avenida Paulista inteirinha até a Consolação e depois pegava o bonde pra voltar pra casa, mas era tudo por farra. Por um lado, a gente era jovem e não tinha dinheiro pra ficar gastando com táxi, por outro lado, como era uma turminha grande, a gente... Mais por folia, porque vinha na madrugada, voltando de bonde pra casa. E a gente voltada de madrugada pra casa, eram duas horas da manhã, três horas. E era tarde pra chuchu. Quando a gente saía pra namorar não podia chegar depois das dez em casa, sempre levava carão, e hoje as jovens as dez horas eles começam a se arrumar pra sair (riso). Era feio chegar depois das dez em casa, uma moça de família não podia chegar depois das dez.
P/1 - A senhora estava falando, na hora do intervalo que a gente fez, sobre as compras aqui em São Paulo.
R - As compras.
P/1 - É, sobre os lugares onde tomava café e tal.
R - Ah! Pois é, o cafezinho era na Galeria Califórnia, um café italiano que a gente comprava. Lá surgiam paqueras até, quando tomando cafezinho, assim. E as compras a gente fazia na Slipper, a gente comprava muito na Slipper e havia algumas lojas que eu não me recordo, uma loja de, era uma butique feminina. Tinha umas roupas bonitas também, lá na Rua Direita, depois do viaduto, porque a gente comprava umas roupas elegantes até, umas roupas bonitas. E eu gostava de comprar os calçados da Slipper, porque aí eu comecei a trabalhar, ganhava dinheiro todo mês, tinha alunos particulares. Eu cobrava caro dos alunos. Então eu comprava um par de sapatinhos todos os meses na Slipper, fiquei com uma mania de comprar óculos e sapato. Os óculos porque eu sou hipermétrope e eu sempre usei óculos, então eu tinha mania e dizia: “puxa! Os óculos enfeitam o rosto, então eu tenho que variar bastante e comprar óculos bonito”, os sapatos eu comprava, às vezes eu comprava meia dúzia de sapatos, então tinha aquela enormidade de sapatos. Um dia em comecei a me analisar e pensar por que eu comprava, que bobagem, né? Comprar tanto sapato, afinal. Eu descobri que quando criança, nós éramos muitos irmãos e a mamãe não dava conta de comprar sapato pra eles, porque quando comprava pra um, o do outro já tinha acabado: “êh! Já precisa comprar sapato também”, e os meus sapatinhos, eu andava tanto que eu furava no fundo, na sola do pé e eu tinha que desviar das poças d’água pra não molhar o pé, mas aí ninguém estava vendo, não tinha importância. Aquela mania do que as pessoa pensam e acham. Quando eu ia pra igreja e tinha que ajoelhar pra rezar, eu ficava puxando a sainha pra poder cobrir o pé, pra ninguém ver o meu sapatinho furado. Eu imaginei que talvez por isso, que eu, depois, quando eu comecei a ganhar dinheiro eu queria tanto comprar (riso). Aí eu parei de comprar sapato, porque eu falei: “que bobagem!” (riso). Foi talvez isso. Depois eu comprei um carro, eu digo: “bom, agora eu tenho que comprar pneu para o carro e não sapato. Um par de sapato para o inverno e um para o verão está ótimo.” Era o que eu fazia. Então foi assim, fui conduzindo assim a minha vida.
P/2 - E na Rua Barão de Itapetininga, era onde era o footing, né?
R - Ali era, era o footing da cidade, tinha umas butiques muito lindas, muito bonitas. Tinha os cafés. A gente saía à noite, aos domingos à tarde e a noite também, ia ao cinema. Depois dava uma voltinha ali, mas não era muito decente andar muito, às vezes, as pessoas reparavam de andar, porque você está se expondo muito, andar pela Barão de Itapetininga fazendo paquera. É feio fazer isso. Às vezes a pessoa falava. Então a gente só dava umas passadinhas rápidas, mas não ficava fazendo, andando pra lá e pra cá, não. Dava uma passada quando saía do cinema, mas nunca deixava de passar pela Barão de Itapetininga, ia aos chás do Mappin. Os encontros nossos eram sempre defronte ao Mappin. Era muito bonito, e tinha... E nesse chá do Mappin que vocês já devem ter ouvido, até falar nisso, era o pessoal lá da Orquestra Sinfônica, lá do Municipal que tocava, algumas pessoas tocavam piano e tocava aquele, como é que chama aquele...? É, o...
P/2 - Violino?
R - Violino e aquele, o sax, não, aquele grande...
P/1 - Contra baixo.
R - Contra baixo? É. Então eles tocavam. Era muito lindo o chá da tarde, das comemorações de aniversário, ou comemorações... Por exemplo, quando foi criado as classes do Alfredo Bresser foram ampliadas, isso por causa de um deputado, é sempre aquela história: “ah! Foi um deputado tal que conseguiu”, então resolveram homenagear o deputado, convidaram para tomar um chá no Mappin, foi todo o pessoal, todas as mocinhas que estavam ali na, que conseguiram classes e tal, nos reunimos, às vezes era alguma comemoração do trabalho da gente, a gente ia comemorar lá ou encontro com amiga, sempre a gente ia para
o chá do Mappin.
P/2 - E a senhora falou que comprou carro? Quais eram as diversões da Rua Augusta?
R - Quando nós morávamos aqui em São Paulo, porque nós começamos, houve aquele problema das fábricas de automóveis do Brasil, porque antes não tinha, só tinha carro importado. Quando a gente veio morar aqui, no tempo dos bondes, não existiam fábricas de automóveis em São Paulo, no Brasil, e eles abriram as fábricas, mas eu não sei se foi no governo do Castelo Branco, não me lembro bem qual foi o governo que eles fomentaram e ainda a indústria automobilística não andava muito bem das pernas.
Eles fomentaram um tipo de carro popular pra que as pessoas, e fizeram, não sei se vocês têm conhecimento ou se lembram disso, mas eles fizeram aquele, era o carro da Volkswagen e uns carros da DKW VEMAG. Então eles fabricaram aqueles carros e vendiam a preço bem reduzido, porque o carro era bem peladinho, não tinha nada. Não tinha espelhos laterais, não tinha frisos, ele era bem liso, não tinha enfeite nenhum e era com material bem simples, eles fizeram umas inscrições e nós resolvemos, essa época eu trabalhava em uma escola da Prefeitura e trabalhava também numa escola dentro do Hospital das Clínicas, funcionavam umas classes, ortopedia, então acompanhávamos crianças que eram internadas, porque sofreram acidentes ou porque tinham acidentes físicos, então eu trabalhava com essas crianças portadoras de defeito físico. Uma colega lá de trabalho disse: “olha! Abriram as inscrições pra compra de carro”, ela já tinha um carrinho importado, desses velhinhos, desses Austin, nem sei que carro era. Então ela disse: “olha! Vamos fazer inscrição?”, eu disse: “puxa! Não tenho dinheiro”, “mas vamos fazer inscrição”, “como é que é?”, “ah! Vai pagar bem baratinho, vai pagar as mensalidades, a gente precisa ter duzentos cruzeiros” e nós fizemos a inscrição. A inscrição durou assim, uma fila, que durou quase uma semana a fila, lá na marquise do Ibirapuera, então a gente fez essa fila para poder depois fazer a inscrição e esperar quando o carro iria ser entregue. E eles vendiam um carrinho que era, não era pé de boi, não. Foi um carro da, um tipo do Gordini, não sei que fabricante, acho que era da Chevrolet, não sei e esse da DKW VEMAG, que eles puseram com, vendendo com financiamento da Caixa Econômica Federal. Então você se inscrevia e depois ia pagando por mês, pagava cento e poucos cruzeiros por mês do carro e eu então pedia DKW, que era o mais caro, mas era o melhor, ai eu digo: “bom...”, aí: “pôxa! Mas você vai comprar o mais caro?”, eu digo: “é, porque se eu tiver que vender, pelo menos ele tem preço, né? E eu vou pedir ele” Então, foi o primeiro carro que eu tive, foi essa DKW. Eu paguei durante quatro anos e fiquei com ele durante os quatro anos (riso). Então fui pagando assim. E era incrível, porque eu pagava cem reais, mas em um dos meus empregos da Prefeitura, eu ganhava duzentos e pouco reais, não, era cruzeiro. E então alguém dizia: “mas você tem coragem? Como é que você vai pagar?”, falei: “vou, pois eu tenho saúde, tenho disposição para trabalhar, eu vou pagar e se eu não puder pagar, eu vendo, mas vou pagar sim, eu posso trabalhar”. Eu trabalhava mesmo, bastante! E pagava meu carro e andava toda bonitinha no carro (riso), mas consegui quando paguei em quatro anos e depois vendi, e aí parti para comprar outro e não parei mais.
P/2 - Foi nessa época que a senhora conheceu o seu Marius?
R - Não foi. Eu conheci o Marius, eu já tinha terminado, depois eu entrei na faculdade. Quando a minha irmã caçula se casou, porque nesse meio tempo aqui, nós na década, no ano de sessenta o meu pai morreu. Então o meu pai tendo morrido, a gente foi aquela, o cair da cumeeira, da casa. E as minhas irmãs, embora eu tivesse, nós éramos naquela ocasião quatro irmãs em casa e mais um irmão. Nós cinco, papai e a mamãe. Meu irmão, muito tímido e tal, trabalhava, não tinha estudado muito, ele era metalúrgico e as minhas irmãs, uma mais velha que eu, mas muito sem iniciativa, muito sem assim... Caseira, sempre trabalhou em casa, costurou, ela fazia alta costura, mas sempre trabalhou em casa e não tem muito expediente assim, de rua, as outras duas menores, de certa maneira eu assumi um pouquinho, os destinos da casa, da minha mãe e tudo, então eu comecei a, fiquei com muita preocupação, porque inclusive nós morávamos em casa alugada, não tínhamos casa própria pra morar e tínhamos perdido o pai. Eu fiquei com isso, pensando muito, e parti para fazer umas inscrições para a compra de casa própria, não sei o quê, e consegui comprar um apartamento aqui na Fradique Coutinho, que nós moramos até quando me casei, e eu, quando a minha irmã caçula se casou, aí eu digo: “bom, agora eu vou fazer faculdade”, fazia quinze anos que eu havia me formado, aí eu fui pra faculdade. Eu prestei o vestibular, estudei sozinha, não fiz cursinho e entrei na faculdade e fiz pedagogia, com bastante dificuldade, porque eu tinha que pagar, eu fiz Metropolitanas Unidas, porque eu não ia nem me atrever tentar USP, porque eu precisava trabalhar o dia inteiro e terminei a faculdade e eu tinha comprado esse carro, tinha já pedido, mas ao mesmo tempo, eu tinha feito inscrições para a compra de casa e já tinha, e consegui, comprei o apartamentinho da Fradique Coutinho. Então eu tinha a dívida do apartamento, um pouco, um resto da dívida do carro, era aquela loucura, e, aí eu fui fazer, eu trabalhava na supervisão da merenda escolar, na Prefeitura, e terminei a faculdade, aí eu me formei e fui fazer o Projeto Rondon, lá no Norte, na Amazônia. Aí fui fazer, fiquei quarenta dias lá com o projeto e quando eu voltei, fui comprar um campus da USP aqui, eu sempre tive relações com o pessoal da USP. Aí eu fui fazer, quando eu voltei eu conheci o Marius, o meu marido. Quando eu voltei de lá, eu já estava quase chegando ao...
P/2 - Quando voltou do Projeto Rondon?
R - Do Projeto Rondon, é. Eu conheci, eu passei, eu cheguei em janeiro do Projeto, eu passei o final do ano, uma época que ninguém queria ir, mas eu fui, passei Natal, ano novo, tudo lá.
P/2 - Em que ano foi isso Dona Elizette?
R - Foi em 73, espera um pouquinho. É, no Natal de 73. Eu tinha me formado em 72, em 73 eu fui fazer o projeto. E quando eu voltei eu fiquei, aí terminei conhecendo o Marius, mas ele já era conhecido do meu cunhado, casado com a minha irmã caçula, porque eles trabalhavam na mesma empresa. E eu tinha referência dele, porque o meu cunhado dizia, nós assistíamos as novelas e a Suzana Gonçalves estava lá na novela e dizia: “olha! Ela é a filha do meu colega”, coronel tal, “Coronel Marius” e eu sempre ouvia assim, depois apareceu a Suzana Vieira, a “Suzana Vieira, filha do Coronel Marius, meu amigo, meu colega, ele é muito meu amigo”, foi assim. Eu conhecia de referências, ele foi ao casamento da minha irmã e tal, mas não chegava a encontrar, nunca tinha sido apresentada à ele e conversado com ele e eu fui conhecê-lo assim, depois que eu tinha chegado. Ele tinha ficado viúvo e estava fazendo a mesma faculdade que eu fiz. E um dia ele conversando com meu cunhado, ele dizia: “ah! O senhor está com tudo, heim? Está aí solteiro, sozinho, no meio de uma mulherada lá na faculdade”, falou: “pois, é. Tem tanta mulher na classe...” , ele ia fazer Direito, mas o primeiro ano foi comum, com todo mundo. O pessoal da pedagogia, do serviço social. Então ele disse que era 140 mulheres e tinha ele. Então ele disse: “você está com tudo!”, ele disse: “não, eu tenho vocação pra casamento, eu quero me casar, eu me sinto muito sozinho, meus filhos adolescente têm a vida deles e eu fico muito sozinho em casa. Gostaria de conhecer alguém e me casar”, ele falou: “bom, se o senhor quiser conhecer, em casa tem uma coroa que está dando sopa, lá”, falou: “olha, que desaforo, né?” e, era eu. Aí, um dia ele me telefona, aí disse: “como é que ela é?”, “tem trinta anos, por aí”, eu tinha 39, 38, 39. Aí dizia assim: “é, mas ela é muito moça, não?”, então eu tinha feito a mesma faculdade que ele estava cursando e a pretexto de buscar umas apostilas na minha casa, ele foi lá pra me conhecer. E aí depois de dois meses nós nos casamos (riso). Até hoje. Foi isso. Mas aí quando ele chegou a minha casa, eu morava aqui na Fradique Coutinho, ele tocou um sábado de manhã, ele foi lá pra buscar as tais apostilas. Até hoje eu não encontrei essas apostilas e ficou por isso mesmo. Ele tocou a campainha e a minha mãe, que já estava com seus oitenta anos, por aí, mamãe é cabaça bem branquinha, apareceu e abriu a porta e ele falou: “puxa, o cara me deu um trote”, né? (riso) Disse: “olha! Que danado, disse que ele me deu um trote, olha quem ele mandou procurar”, aí ele perguntou por mim e ela disse: “ah! É a minha filha”. Daí me chamou, aí ele disse que sentiu um alívio, aí conta as conversas dele, né? Então ele disse que sentiu aquele alívio. Disse: “ah, bom!” Aí ele viu que não…” E foi assim que nós nos conhecemos e nos casamos. Porque ele é cavalariano, que é da arma de cavalaria, então ele diz que o cavalariano tem que fazer tudo rápido e de que lado, não pode esperar muito tempo, e ele dizia pra mim: “não, eu não tenho muito tempo de vida, não posso esperar. Não, não tenho como esperar. Você tem que resolver isso logo”, então a gente foi assim. Eu, às vezes, falo pra ele: “pois é, já vai fazer 26 anos, e você não morreu ainda, você está comigo”, “aí, tenho pouco tempo de vida”, “mas faz tempo que eu estou escutando isso, 26 anos já, né?”.
P/1 - Dois meses, foi rápido.
R - Dois meses. Realmente, né? Foi (riso).
P/2 - E como foi isso de assumir, porque ele já tinha filha?
R - Filhos, é. É realmente é uma tarefa um tanto quanto difícil, porque ele tinha dois filhos adolescentes em casa, já tinha dois netos e as filhas que eram atrizes estavam no Rio, trabalhando lá, com a vida delas, mas uma delas, a Suzaninha Gonçalves, ela veio para São Paulo, porque deixou uma novela no Rio, não sei, não teve trabalho e veio pra TV Tupi, aqui em São Paulo, aí pediu para morar em casa, com o pai. Ele me consultou e eu disse: “claro!”, porque em família de nordestinos, as pessoas são muito unidas e jamais a gente admite alguém querer vir pra sua casa e você dizer que não, nunca na vida. O nordestino é muito agregado e a gente tem essa ilusão de que as pessoas se... Então ele já tinha uma filha com quinze para dezesseis anos, um rapaz com dezoito e a Suzaninha que estava vindo, que veio ficar conosco. Foi um bocado difícil, durante o primeiro ano em que nós estávamos juntos e tudo, eles são delicadíssimos, muito amáveis com a gente, mas as agressões partem sempre.
É sempre uma coisa difícil, porque a mãe tinha morrido fazia muito pouco tempo, antes de um ano de viuvez o pai se casou, então as pessoas são um pouquinho, às vezes, agressivas, talvez aquela coisa de adolescente. Embora eles, aparentemente, fossem delicadíssimos comigo, mas é uma situação bastante difícil, é uma adaptação de vida, e você também tem muita responsabilidade, embora eu tivesse responsabilidade do meu trabalho, de tudo, eu não tinha a responsabilidade de administração de uma casa e é bem diferente quando você vive na casa com os pais é uma coisa e quando você vive, embora eu tivesse... Meu pai tivesse morrido a alguns anos e eu tivesse bastante responsabilidade em casa, é completamente diferente assumir assim, com outros filhos e uma casa que já está montada, inclusive com a mesma empregada que tinha sido da primeira esposa, foi uma coisa bastante difícil pra mim, mas a gente foi contornando e vivemos. Depois de dois anos que a gente estava casado, nós fomos morar em Foz do Iguaçu, então lá nós ficamos os dois sozinhos. Aí eu já tive mais uma oportunidade de ter a minha casa, de me sentir numa casa que era minha, que era diferente, que eu fiz alguma coisa por ela. Então nossa vida foi continuando a partir daí. Hoje nós temos boas relações entre os filhos, eles são assim, meus amigos. Na verdade eu recebi muitas agressões, principalmente da filha mais velha, talvez porque ela viveu mais próxima da mãe, não sei, mas no final ela já estava, na época que eu me casei, ela estava com trinta anos, trinta e poucos anos, mas a gente é criança sempre, né? Não adianta (riso).
P/2 - E como foi essa mudança da casa da senhora, da convivência com a mãe da senhora?
R - Pra uma outra casa?
P/2 - O casamento.
R - É realmente uma coisa tão, tão difícil, é tão engraçado isso porque na minha casa a gente sempre foi muito unido e nunca saímos ali das asas da mamãe e tudo, então eu achava meio estranho. De qualquer modo, como eu trabalhava aqui pelo bairro, naquela ocasião eu fazia a supervisão da alimentação escolar das escolas daqui dessa região. Então, eu todos os dia... Às vezes eu deixava ele no trabalho, pegava o carro, fazia meu serviço e passava na casa da minha mãe pra vê-la. Todos os dias eu não podia deixar de vê-la. E mais de uma vez eu telefonava. Então a gente sempre teve uma ligação muito grande. Eu procurava algum pretexto: “ah! Eu quero fazer tal comidinha, mas esqueci a receita”, ligava pra ela porque era um pretexto pra conversar um pouquinho mais. Às vezes, dá um pouquinho de ciúme no marido, não sei, eles acham que a gente: “você só gosta da sua família, né? (riso) Não gosta de mim ou da minha família”, bobagenzinhas que não são nada, mas eu estranhei bastante por causa dessa descontração que a gente teve, e o meu marido ele é muito assim, alegre, muito descontraído, mas ele tem uma formação militar, então a formação, ele diz que não é uma formação, é uma deformação (riso), então a gente, mais ou menos, tem que se adaptar àquelas regras e aos poucos... Hoje ele diz que a general lá em casa sou eu (riso) mas de qualquer modo não é bem assim, porque é só da boca pra fora, porque na hora que eles têm que ficar bravos, ficam mesmo, e é difícil, mas enfim a gente vai driblando a vida e vai se acertando.
P/2 - A senhora casou com ele em 74, né?
R - É.
P/2 - Então, nessa época, já era uma época da ditadura, que chamava ditadura militar, né? Como é que foi isso? A senhora teve algum envolvimento com política ou alguma coisa assim, próxima a isso?
R - Não, eu nunca tive um envolvimento com a política, política mesmo, porque, eu não sei, eu não acreditei muito na fidelidade dessa classe de pessoas. Então no regime militar, mas uma coisa também é certa, eu não aprovei muito esse problema do regime militar até, às vezes, quando nós moramos em Foz do Iguaçú, eu às vezes dizia: “a revolução da mentira”, as vezes eu brincava assim, porque ela aconteceu dia primeiro de abril e tal, não foi dia 31, então as pessoas diziam: “como? Você é esposa de um militar, você tem coragem de dizer isso?”, falei: “bom, ele é militar, mas eu não sou, né?” e eu sempre fui assim um pouco, e também meu marido é assim, ele também não é muito partidário desse militarismo, não. Ele tem uma mente bem aberta, ele é um pouquinho Marxista, assim, sabe? (riso). Ele está no outro campo e a minha vida inteira eu fui mais pela minoria, sempre fui meio pelas pessoa que não têm chances na vida, que não tem oportunidades e nunca me conformei muito com as coisas do país, sempre batalhei muito e sempre falei o que eu quis, independente até da época da dita revolução.
P/2 - Como que era conviver com esse ambiente militar, porque a senhora tinha que conviver, né?
R - É, sempre muito.
P/2 - Jantares, reuniões, aquela coisa toda, né?
R - Um encontro no Rio de Janeiro que a gente tem todos os anos e que eram os militares, e que depois nós fomos pra Brasília. Ele gosta muito de viajar e eu também. Nós viajamos muito o Brasil inteiro, nós fomos a Brasília, fui conhecer os colegas dele que estavam todos no governo, um era ministro da educação, outro trabalhava como diretor desportos, todos eram coronéis, generais, todo o pessoal da turma de meu marido e a gente... Depois também, quando foi eleito o presidente João Figueiredo, o João Figueiredo foi colega de turma de meu marido e eles foram amigos e colegas desde o tempo do colégio militar, meu marido estudou internado no colégio e ele dormia ao lado, na cama ao lado dele e fizeram sempre uma grande amizade, e meu marido sofreu um grave acidente numa das manobras lá, com um cavalo, o cavalo caiu e caiu em cima do pé dele e ele quase perdeu o ano, ficou internado e quem, todos os domingos, fins de semana, ia levar a matéria de estudo pra ele era o João, o Joãozinho, como ele chama o João Figueiredo. Então eles tiveram sempre uma amizade muito grande, os dois. Na época que ele foi presidente a gente foi à festa de posse dele, lá no Palácio do Itamaraty, encontramos todos os colegas de turma, estavam todos lá, as esposas também e o Marius sempre teve uma grande amizade por ele e não concordou com muita coisa do governo dele e sempre criticou muito, mas nós sempre nos encontramos, sempre amigavelmente, ele sempre foi uma pessoa... Agora, um pouco, um ano antes da morte dele nós fomos à festa do Rio de Janeiro e lá no clube militar, quando eu fui cumprimentá-lo, ele disse assim: “eu só vim à esta festa por causa de vocês”, porque o Marius tinha escrito uma carta pra ele antes e tal, e ele terminou indo à festa. Foi a última vez que eu o vi. Depois deste ano que ele faleceu o Mário ficou muito sentido e a gente tem uma, ele é muito magoado com o país e tudo, e a gente tem uma certa mágoa também, porque a imprensa só deu o aspecto negativo da vida dele, não deu absolutamente nada de positivo, em toda a carreira dele, depois que ele deixou o governo. Ele era um homem sofrido, muito triste e a gente... Muita coisa que se diz, tem muita coisa errada, mas eu acho que durante esse governo militar a desordem do país não era tão grande como há hoje na democracia. Você tinha uma certa diretriz, você tinha medo de alguma coisa, as coisas parecem... Um pouquinho funcionava diferente. Hoje você, todos nós, estamos completamente perdidos, sem saber... Estamos um desgoverno, é o que nos parece. Então, eu não sei muito, a gente não é... Muita coisa teve de errado e deve ter tido alguma coisa de positivo nisso tudo, né?
P/1 - A senhora falou que a senhora e o senhor Marius gostam muito de viajar. Quais são os lugares que vocês foram?
R - Nós viajamos o Brasil inteiro, nós fomos ao Rio Grande do Sul - tudo de automóvel - pra Brasília, depois fomos ao Pantanal norte, ao Pantanal Sul, fomos assim, por exemplo, São Paulo, Cuiabá, depois São Paulo, Corumbá. Fomos pra Campo Grande, depois de trem a gente foi ver o Pantanal. Fomos até a fronteira, Ponta Porã, fomos a Brasília. Nós fomos duas vezes, uma vez de carro e outra de avião, mas fomos de carro, de automóvel, conhecemos Minas Gerais, Goiás, fomos conhecer Araguari, a cidade onde ele nasceu.
E viajamos assim mesmo. Para o Rio de Janeiro nós íamos muito, quando a mãe dele ainda era viva, tem a filha, uma irmã, uma única irmã que ele tem e a mãe morava no Rio de Janeiro, nós íamos a cada dois meses para o Rio.
P/2 - Sempre de carro?
R - Sempre de carro. A maioria das vezes, as vezes de avião. Quando a gente estava em Foz do Iguaçu vinha de avião, mas nós fomos muito pra Foz do Iguaçu, ia e voltava de carro, nós dois sempre dirigindo, um e outro, um pouco. Depois nós fomos pra Amazônia, pra Rondônia, porque um filho mora na Rondônia, fomos fazer o Rio Amazonas, fizemos a Amazônia, que eu já conhecia do Projeto Rondon, mas aí eu fui fazer com ele, e o Acre, conhecemos tudo aquilo. Depois quando nós vivemos em Foz do Iguaçu, a gente foi pra Argentina, nas primeiras férias ele quis me levar pra conhecer Buenos Aires, nós fomos pra lá e fomos até o Ushuaia, no sul da Argentina, Patagônia. Viajamos Bariloche até Patagônia, fomos ao Uruguai e Paraguai. A gente ia muito pra Assunção, ele morou lá em Foz do Iguaçu. E depois nós começamos a viajar, fomos conhecer o Chile, duas vezes nós fomos pra lá, fizemos a viagem do Chile, dos Lagos Andinos, Santiago, Viña del Mar, Valparaíso e depois nós fomos também pra Europa um pouco, nós fomos, eu contei pra vocês que a gente, eu vendi os meus tapetes e nós tivemos dinheiro pra viajar pra Europa, e ficamos dois meses na Europa, mas viajando assim, meio como escoteiro, ficamos em hotéis bem simples e viajando por própria conta. Ficamos até em albergue da juventude (riso) e conhecemos, fomos pra Espanha e pra França, depois fomos à Bélgica e à Holanda e terminamos indo à Itália e terminamos a viagem em Roma, e viemos direto pra São Paulo. Essa foi a primeira viagem. Depois nós fomos para o México, viajamos, foi uma viagem muito bonita pelo México, fomos ao Oriente Médio e conhecemos o Egito.
P/1 - O Oriente Médio foi em que época?
R - Foi a pouco tempo. Foi em setenta, não! Acho que noventa e pouco, faz dois, três anos que eu acho que a gente foi ao Oriente Médio. Dois ou três anos. Acho que uns três anos, que a gente foi. Aí fomos ao Egito, Israel, Turquia e Grécia. Inglaterra, a gente partiu da Inglaterra, e este ano passado a gente foi para o Canadá. Fizemos também uma viagem para os Estados Unidos e depois Canadá, fomos pra Nova Iorque, em Washington e depois fizemos o Canadá, viemos pra Boston e...
P/1 - E o que vocês gostam de ver quando vão nessas viagens?
R - Quando a gente vai viajar?
P/1 - É.
R - Bom, eu gosto muito de museus, eu gosto de ver uma exposição de arte, eu quero ver, quero conhecer, talvez por força dos cursos que eu andei fazendo e eu sempre gostei muito de arte. Então eu gosto de visitar. Agora a gente vai assistir concertos, vamos assistir um concerto lá em Montreal, muito bonito, de piano e orquestra que eles estavam inaugurando um piano que veio do Japão, e era um japonês que tocava o piano, uma coisa maravilhosa. A gente vai ver, por exemplo, vai ao cinema quando o filme é espanhol, ou nós chegamos, por exemplo, na França, nós queríamos ir ao... Fomos ver lá o teatro da ópera, o Louvre, e fomos ver, aí estava o show da Maria Betânia lá em Paris. Aí nós fomos assistir, fomos ver como era a reação dos franceses em relação à música brasileira, os nossos cantores, e fomos ver uma orquestra de senhoritas lá na Espanha, muito interessante, em Roma nós assistimos um concerto também, de uma orquestra que era o milésimo concerto aquele dia e depois eles deram um coquetel, também foi interessante. Em Toronto fui ver “O Fantasma da Ópera”. Lá em Nova Iorque nós também fomos ver “A Bela e a Fera”, fomos à Broadway pra ver os shows, é isso, a gente vai, fomos ao Central Park, depois tomar um chá num hotel chique daqueles que tinha lá, que é bem badalado, que você pensa que vai pagar bem pouquinho, mas paga caríssimo, mas que vem a pessoa tocar violino, vieram tocar uma música brasileira [pra] nós que éramos do Brasil, tocaram uma música do Tom Jobim pra gente. É assim, a gente vai indo e faz isso. Aqui também, a gente vai ao cinema, ao teatro.
P/1 - E dessas viagens, o que aconteceu de marcante pra senhora?
R - De marcante?
P/1 - O que a senhora acha que foi mais marcante nessas viagens?
R - Bom, na última viagem, quando nós fomos [pra] essa viagem pro Oriente, o que eu achei muito marcante mesmo, é que o Marius fazia quase cinco anos que ele estava perdendo a visão e como ele tinha feito uma cirurgia e nós fomos fazer essa cirurgia lá em Goiás, em Goiânia, ele foi fazer a cirurgia da vista, e passou a enxergar da noite para o dia. Então, uma coisa que me emocionou muito, aí eu digo: “pôxa! Nós estamos pensando tanto em fazer, agora está chegando o Natal, então vamos passar, vamos para Jerusalém, então”. Para passar o Natal, ele estava querendo ir pra Rondônia, eu falei: “pôxa! Quatro mil quilômetros”, você gasta um dinheirão, às vezes você pagava mais caro pra ir pra aqui no Brasil, do que você viajar pra fora, aquela época estava meio que assim. Eu falei: “então por que nós não vamos?” Sempre a gente teve vontade de fazer essa viagem e tal, “então, vamos passar o Natal em Jerusalém”, ele falou assim, também, foi um pouquinho de chantagem, e eu falei: “vai agradecer a Deus, porque afinal de contas você voltou a visão e tal”, aí nós fomos fazer essa viagem para Jerusalém e lá, quando nós estávamos naquele local do sermão da montanha, a nossa guia de turismo, era uma judia cristã, até engraçado isso, uma judia, ela falava espanhol, ela é até venezuelana, não sei, colombiana, um dos nossos países aqui latinos, mas mora lá, ela é judia, mora em Jerusalém e então ela estava com a Bíblia e ela nos mostrava todos os lugares e contava tudo da parte cristã, e então lá no lugar do sermão da montanha, tem o Rio Jordão lá em baixo, tudo um lugar muito bonito, ela pediu para o Marius ler aquelas bem aventuranças, lá do sermão e ele leu com essa distância assim, sem óculos. Então eu fiquei muito emocionada, foi uma das coisas que marcou muito, muito mesmo, eu achei que a gente, foi uma coisa muito bonita. E a gente quando viaja, procura conhecer um pouquinho da vida das pessoas, da vida, por isso nós achamos que nós aproveitamos muito, muito, aquela primeira viagem que a gente fez, porque a gente conviveu mais com o povo, sabe? Essa viagem que a gente fez por conta própria, quando você vai em uma excursão, aí é um pouquinho diferente. Mas como é que você vai para o Oriente, países que falam árabe, umas línguas que você não sabe, você tem que ir com guia, né? Você tem que ir num grupo. Então a gente achou bom esse problema, embora você não veja muitos aspectos bem regionais. A gente foi procurando dentro daquilo que a gente, da cultura da gente e tal, a gente vai procurando ver coisas que nos interessam, né?
P/2 - A senhora se aposentou em 82, né?
R - 82, é.
P/2 - Seu marido, um pouco antes?
R - É, um ano antes, em 81.
P/2 - E como é que foi essa parada? Como é que a senhora, uma pessoa de muita atividade, seu marido também, como é que foi essa parada de...?
R - Muito interessante, porque a gente realmente não parou. Eu acho que a nossa vida foi sempre um continuar de coisas, porque o Marius se aposentou nessa vida de trabalho, ele trabalhava com hidroelétrica, era eletricitário, mas ele tinha prestado um concurso pra tradutor, aqui na junta comercial. Nós pensávamos ir embora pra longe de São Paulo, mas com essa profissão a gente pensou que nós tínhamos que ficar, mais ou menos, perto. Então nós fomos ficar a quarenta quilômetros daqui, aí no sítio, em Cotia, porque ele trabalhava ainda, ele ficou durante vários anos trabalhando, depois ele começou a perder a visão e começou também a cansar, e disse: “eu não quero mais trabalhar, não quero fazer mais isso, porque eu quero escrever livro, eu quero ficar livre, viajar, passear, não quero ter mais compromisso”, mas de qualquer modo, quando nós fomos pra lá, eu continuei, eu comecei a fazer uns tapetes e trabalhava muito, comecei a fazer exposições dos tapetes, mostrar em vários lugares, fiz umas exposições aqui em São Paulo, na Assembléia Legislativa, no Clube Militar, em Cotia, uns hotéis, nesses hotéis de lazer de cinco estrelas e tal, que eles recebem muitas delegações de fora. Então fui fazendo assim, muito isso, quer dizer, eu não parei muito, porque eu parei de trabalhar, mas eu cheguei a conclusão que dentro da casa da gente, a gente trabalha muito, muito mais do que quando a gente tem um emprego fora. E então eu cozinhava e eu montei a casa inteira, enfeitei a casa, fiz as cortinas da casa com aquele crochê que a minha mãe ensinou a fazer, então peguei as revistas alemãs e tirei os modelos e fiz, claro, procurei aperfeiçoar aquelas, de tudo aquilo que a minha mãe ensinou. Depois, quer dizer, eu não parei. Depois eu comecei os cursos da USP. Ainda morávamos lá no sítio e eu vinha pra cá pra fazer, nós ficamos até 97 lá no sítio, finalzinho de 97. Eu estava sempre muito ocupada, as nossas compras nós fazíamos sempre aqui em São Paulo, às vezes, nós estávamos vendo a televisão, aí eu comecei, depois que eu me aposentei que eu comecei a curtir, assistir televisão, parar pra ver um filme, porque eu sempre fui muito inquieta, muito instável, muito agitada então, às vezes, nós víamos assim: “olha! Uma exposição de arte, olha! Fulano de tal, uns artistas não sei de onde, está numa galeria da Rua Augusta”, aí nós nos vestíamos, pegava o carro e vinha pra São Paulo, ou uma peça de teatro, mas quando nós vínhamos muito... E lá nós tínhamos uma vida social até quase maio do que aqui em São Paulo, porque nós tínhamos muitos amigos, participávamos de encontros em casa de amigos, e às vezes em restaurante, recebíamos muita gente em casa, muitas pessoas, o Marius era muito festeiro, gosta sempre de convidar alguém e tudo. Então a gente tinha uma vida mais ativa lá no sítio do que tem aqui em São Paulo, que você fica no apartamento e parece que vive isolado um pouco, embora a gente participe de vários grupos, desses cursos que a gente fez e toda hora tem contato, as pessoas telefonam, a gente de vez em quando sente que ainda não está tão só (riso).
P/2 - E como é que a senhora procurou a universidade de terceira idade?
R - É, eu ouvi, acho que pela Rádio Cultura, a gente ouve em casa o dia inteiro, a rádio Cultura, FM Cultura, porque ela tem música clássica e nós gostamos muito de música clássica. Então a gente ouve o tempo inteiro. Eu devia estar fazendo tapete lá, porque a nossa casa era muito grande e eu tinha lá, uma edícula no fundo e eu fiz meu “ateliê”, porque eu tinha um tear de um metro e meio, enorme, que ocupava um ambiente, mas eu tinha a caixinha de ressonância lá, de música, e ficava sempre ouvindo e ouvi que estavam abertas as inscrições pra terceira idade na USP, então eu peguei o telefone e ligamos e eu fui fazer a inscrição. Aí tomei conhecimento disso. Nós começamos um curso de história da arte, aí eu fiquei sabendo que tinha este curso prático que era do MAC, aí fiz a inscrição e comecei a fazer, aí agora a gente recebe os boletins de lá, os informativos e está sempre sabendo, aí divulga para as outras pessoas.
P/2 - Qual foi a importância dessa escola e tal?
R - De voltar para a escola?
P/2 - É.
R - Ah! Foi uma importância enorme pra gente, porque é um contato com a juventude e ao voltar pra escola parece que faz a gente renascer e reviver. É muito bonito, muito importante. A gente sente que às vezes, no primeiro dia de aula, eu fiquei meio assustada com a USP, porque ela é muito abandonada, as salas de aula tão mau conservados, os jardins, a grama, o mato crescendo, então meio que assustou um pouquinho e nós fomos fazer, justamente, um curso na ECA. E a ECA é toda, todo mundo é muito irreverente (riso), é muito engraçado quando nós entramos na sala de aula, aquelas salas, as carteiras todas assim, um rapaz de rabinho de cavalo, um brinco na orelha, ele virou do outro lado, tinha outro brinco e tudo bem, um rabo de cavalo enorme e uma roupa toda maluca, ele sentou lá traz e botou as pernas no alto, na cadeira, eu falei: “nossa!”, fiquei meio assustada, assim. Escrevi até uma poesia sobre isso. (riso) Aí o meu professor de pintura, falou assim: “puxa! Eli”, meu nome é Eli Gonçalves, é o nome que eu uso artisticamente, pra literário, então porque Elisete confunde com Elisabete, com Eliete, Ivete, então ninguém me chama direito o nome Elisete, então falando Eli é mais fácil, não dá pra confundir, embora é um nome que dá pra homem e pra mulher. Eu escrevi uma poesiazinha que dizia assim: “eca, meleca, poteca...” “puxa! Você chamou de meleca?”, falei: “ué? E daí?” (riso). Então foi muito engraçado isso, e eu senti... Também os alunos, alguns eram atenciosos, procuravam saber alguma coisa da gente, e outros eram, às vezes, até hostis, um pouquinho, mas depois a gente vai conhecendo e acomodando e termina fazendo aquele ambiente muito interessante, muito bom.
P/2 - E quais atividades, hoje, que a senhora está desenvolvendo?
R - Hoje eu estou escrevendo. Agora, por exemplo, nós acabamos de chegar lá desse encontro com os calouros lá da faculdade de zootecnia e engenharia de alimentos, lá de Pirassununga, foi uma coisa muito interessante, porque um jovem deles do terceiro ano foi à Piracicaba e pegou na USP, um jornalzinho que tinha uma reportagem sobre a gente, quando nós publicamos o livro, sobre o Marius e eu, e ele um dia telefonou pra casa e ficou… Conversou muito comigo, disse que ficou encantado com a reportagem e que ele gostaria de nos conhecer, queria que a gente fosse, e que fôssemos divulgar nossos livros lá, que fizesse alguma coisa, aí ele conversou com as professoras dele, com a presidente, lá da Comissão de Graduação e da Comissão, uma outra professora da Cultura e Extensão, aí elas acharam que a gente poderia receber os calouros. E fizeram isso. Foi muito interessante, porque o Marius depois pegou uma pneumonia, nós fomos passar o réveillon no Rio de Janeiro, tomamos chuva e quando voltou ele pegou uma bela pneumonia, ficou quinze dias hospitalizado e esse garoto ligava todo dia para o hospital (riso), lá de Pirassununga ele ligava: “oi, o Marius não melhorou? Puxa!” e ele ficou torcendo lá, pra ele melhorar, pra ele poder ir fazer... Então ele viveu aquilo, foi uma coisa muito interessante e nós tivemos, nós publicamos esses livros e lançamos no dia, em outubro, um pouco antes da semana da criança me parece. Lançamos no final de setembro, outubro, lá na Faculdade de Saúde Pública. Foi através da Comissão de Cultura e Extensão que nós tivemos oportunidade de publicar esse livro, de mandar pra USP, embora a gente tenha bancado o ônus do livro, o preço do livro. Mas eles fizeram o lançamento lá, foi muito bonito, houve uma exposição, tinha uns quadros, umas esculturas também que eu expus lá e uns tapetes, então ficou muito bonito o lançamento dos nossos livros lá na Saúde Pública e depois as pessoas começaram a nos convidar, o SESC nos convidou pra fazer um trabalho aqui na Rebouças, também o SESC de São José dos Campos nos convidou. Então nós fizemos um lançamento de livro e uma palestrazinha para o pessoal da terceira idade. Depois eu também levei uma escola de educação infantil, levei uma contadora de histórias pra contar história para as crianças no SESC e pra divulgar o meu livro de história infantil. E estou fazendo esse tipo de trabalho junto às escolas agora, eu faço contato, fizemos o lançamento dos nossos livros em Ribeirão Preto numa mega livraria lá, muito bonita, num shopping center, eu fui chamada pra ir pra Piracicaba numa festa de Natal, com Papai Noel e divulguei o livro entre as pessoas e as crianças das escolas lá. E assim a gente está fazendo um pouco, quer dizer, a gente nunca parou, é muito na vida, porque a gente continua fazendo coisas, sempre assim. É isso, tá?
P/2 - Então, está chegando ao final aqui. Queria saber se a senhora tem mais alguma coisa que a senhora queira falar, alguma coisa que a gente não tenha perguntado? Algo que a senhora queira deixar registrado?
R - Não, só queria agradecer essa oportunidade que vocês deram desse encontro, eu achei muito importante, muito interessante, gostei de conhecer o Tiago, o Sandro e também você, Ari, me senti muito honrada com isso, achei que vocês são umas pessoas muito bonitas, de alma muito bonita e é sempre interessante a gente conhecer pessoas e ver também essa coisa de criança, essa coisa infantil que existe dentro de cada um, é o que há dentro de cada um de vocês. Muito obrigada.
P/1 - A gente é que agradece muito a presença da senhora aqui, de ter dado o prazer pra gente de dar esse depoimento, de deixar a história da senhora aqui, e que há reciprocidade de tudo o que a senhora falou pra elogiar a gente. A gente tem essa reciprocidade.
P/2 - Espero ter colaborado aí, de ter ajudado a senhora a estar organizando um pouco a sua história, um pedacinho da sua história de vida.
R - É isso.
P/2 - Então a gente agradece mesmo, de coração (riso).
R - Certo. Tenho que agradecer, muito obrigado também, por tudo (riso).
P/1 e P/2 - Obrigada.Recolher