Depoimento de Laurindo Martins Junqueira Filho
Entrevistado por Nanci Souza do Nascimento e Evandro Silvério
São Paulo, 22 de maio de 2018
Entrevista número MET_HV01
Realização: Museu da Pessoa
P/1 - Bom dia.
R - Bom dia.
P/1 - Fala pra mim seu nome completo, nome de guerra no metrô, local ...Continuar leitura
Depoimento de Laurindo Martins Junqueira Filho
Entrevistado por Nanci Souza do Nascimento e Evandro Silvério
São Paulo, 22 de maio de 2018
Entrevista número MET_HV01
Realização: Museu da Pessoa
P/1 - Bom dia.
R - Bom dia.
P/1 - Fala pra mim seu nome completo, nome de guerra no metrô, local e data de nascimento.
R - Eu nasci em Santos em 1945, durante o período da guerra, meu pai era militar e ele comandava um destacamento naquela época, voltado para proteger o porto e os sistemas de eletricidade de (R Border) [00:00:54]. Meu nome é Laurindo Martins Junqueira Filho. Eu nasci em Santos por acaso. Como meu pai era militar ele se deslocava pelo litoral brasileiro e foi essa a razão.
P/1 - E no metrô, você é conhecido como?
R - Laurindo. O nome de guerra foi esse, desde o começo. Não tinha nenhum outro com esse nome, só meu pai mesmo.
P/1 - Antes de entrar propriamente na sua história, conta mais um pouquinho sobre a origem da sua família.
R - É interessante, porque Junqueira a origem é portuguesa. Eles chegaram no Brasil em 1759, mais ou menos, um casal, e se dirigiram pra região de Poços de Caldas para abrir fazendas, completamente mata bruta, virgem. E esse casal, nós fizemos um levantamento agora em 2003, nós contamos 104 mil descendentes desse casal. A família Junqueira mais ou menos se conservou dessa maneira, sempre voltada para abertura de fazendas no campo. Foi aí que eles foram entrando, acompanhando esse desenvolvimento do país. Essa é a origem paterna. A origem materna é talvez mais interessante. Minha mãe é de origem russa, ela nasceu na antiga União Soviética, logo na época da revolução e meus avós participaram da revolução de 1905 e 1917. Depois, devido à guerra civil, à fome, à miséria que se implantou nos primeiros dois, três anos, eles migraram para o Brasil. Vieram com uma colônia, um navio inteiro onde veio Lasar Segall, muita gente desse tipo. Eles foram trabalhar quase como que como escravos no interior de São Paulo, nas fazendas de café. Evidentemente era um pessoal que tinha um nível de desenvolvimento um pouco maior do ponto de vista tecnológico, eles foram fugindo das fazendas e se concentrando num bairro chamado Presidente Altino, que fica aqui em Osasco, nessa região ao longo da ferrovia. A origem ferroviária tá aí, meu avô foi chefe de trem naquela que é considerada a maior ferrovia do mundo, que é a Transiberiana na Rússia – ela atravessa o país por 10 fusos horários, alguma coisa assim. Então levava 10 dias pro trem atravessar de um lado a outro. Eles moravam no último carro do trem, o último vagão era da família. Meus tios e minha mãe foram nascendo ao longo da ferrovia, dentro do vagão. Minha mãe nasceu em (Pskov) [00:04:09], uma cidade russa, meus tios foram nascendo nas outras. Quando eles vieram para o Brasil, eles foram muito bem recebidos aqui em São Paulo, em Osasco particularmente, porque estava se implantando a indústria ferroviária no Brasil naquela época, a construção das ferrovias, essas que atendem São Paulo que vão até o interior, até Mato Grosso. Eles foram utilizados pra construção de ferrovias e pra construção de vagões também, de trens. Meu avô chefiava uma oficina de construção de vagões na Soma, que não existe mais hoje, meu pai trabalhou na Cobrasma, também com construção de vagões e assim por diante. Eles construíram os túneis de acesso ao porto de Santos, minhas tias trabalharam na picareta, na enxada, furando túnel. Na época não tinha tatuzão. A casa dos meus avós onde eu vivia, passava boa parte do tempo, eram restos de ferrovias, de trens antigos, peças, aquilo era uma delícia pra mim, que eu ficava brincando com aquilo tudo. Então o veio ferroviário está mais ou menos demonstrado nesse lado. Do lado do meu pai também, porque quando criança ele viu a abertura da ferrovia noroeste do Brasil entrando pelo interior de São Paulo, depois vindo até Mato Grosso. Então ele ouvia muito as histórias dos índios, eles reagiam contra a ferrovia, com flechas, assim por diante, coisas que a gente só vê em filmes de faroeste. E ele me contava isso desde criança. Então a origem ferroviária é dupla, então só podia ir trabalhar no metrô depois.
P/1 - Como é o nome dos seus pais? Você sabe como eles se conheceram?
R - Sim. Meu pai é Laurindo Martins Junqueira, era camponês, sitiante no interior, família toda de fazendeiros de café, de açúcar. A nossa família foi a maior plantadora de café do mundo, de açúcar e álcool. O primeiro carro a álcool foi criado numa fazenda da minha família, para você ter uma ideia, isso em 1926, 27. Dizem que houve outro em Pernambuco, eu não tenho certeza, mas me parece que é mais ou menos nessa época. Era um caminhãozinho que funcionava dentro da fazenda e circulava por aí a fora. Depois uma parte da família, quando avançou pela noroeste, começou a criar gado também. Essa abertura das ferrovias nessa região coincidiu com fatos que são historicamente interessantes. Nós estávamos no final da Primeira Guerra Mundial, na década de 20, a guerra começou em 14, foi até 17, 18. Já àquela época, norte americanos, ingleses e canadenses tinham interesse muito grande no Brasil por causa do fornecimento de alimentos. Quem fornecia alimentos pro mundo eram Argentina, Uruguai e o Rio Grande do Sul, basicamente em Pelotas. Mas ficava mil milhas marítimas mais distante do front europeu e dos Estados Unidos e ele resolveram transferir isso então para São Paulo e Mato Grosso. Só que para poder criar gado precisava de ferrovia, para poder abater precisava de matadouro, para poder processar precisava de indústria de alimentos. Então foram criados quatro, cinco grandes frigoríficos nessa região aqui de Parque São Domingos, de Vila Leopoldina, Vila Anastácio, Presidente Altino, Osasco e assim por diante. E junto com quartéis do exército, você veja, as três coisas muito associadas. Ferrovias, indústria de alimentos e quartéis militares. Então houve todo um esforço pra criar uma fonte de suprimento para a futura Segunda Guerra Mundial, isso já no começo da década de 20. Quer dizer, os caras pensavam longe. Isso coincide com o crescimento dos Estados Unidos e a transformação dele no império que hoje é, eles começaram ali. Quer dizer, indústria fordista, ferrovias e tal. A explicação de por que que esses escravos eslavos em geral conseguiram fugir das fazendas e vir para um lugar concentrado, como Presidente Altino, como Osasco, ela está mais ou menos aí, eram os únicos capazes de trabalhar nas câmaras frigoríficas, muito frias; eram os únicos que sabiam construir ferrovias, porque tinham trabalhado com isso lá; e construir trens. Então o governo brasileiro fez vista grossa para o fato de que eles estavam fugindo das fazendas. E não só isso, ele pagou a dívida, que era impagável, que eles tinham com os fazendeiros que tinham trazido eles da Europa naquela época. Eles vieram para substituir mão de obra escrava, mas na virada da história acabaram servindo para outras coisas. Então essa região toda cresceu na beira do Rio Tietê por conta desse esforço de guerra, já preparando para a Segunda Guerra Mundial. O meu pai, que trabalhava na lavoura, na região de (Avanhandava) [00:10:31], Promissão, Lins, que era onde estavam as fazendas da família – eles estavam em Poços de Caldas, migraram para Franca, Ribeirão Preto e quando abriu-se a noroeste nesse esforço, eles receberam terras praticamente de graça do governo, para poder abrir as fazendas. E na crise de 1929, quando ocorreu o crash da Bolsa de Nova York, arrebentou a economia mundial e também a economia brasileira foi para o brejo. Muitos parentes nossos perderam suas fazendas com dívidas com o Banco do Brasil e assim por diante. E meu pai sentiu muito isso, então ele migrou para São Paulo no comecinho da Segunda Guerra Mundial, em 1939, e se alistou no exército. Ele pretendia ir para guerra, como voluntário, e se alistou num desses quartéis instalados em Osasco, o Quarto Regimento da Infantaria, em Quitaúna. Havia um espírito muito forte de combate do fascismo e do nazismo. O fascismo no Brasil era muito organizado, de Plínio Salgado, assim por diante, você tinha manifestações de rua, com os fascistas vestidos de uniforme cáqui, com a saudação tradicional dos fascistas. Eram mais ligados aos italianos, ao Mussolini, do que ao Hitler, mas também havia hitleristas. E o contraponto disso foi o surgimento de movimentos comunistas muito fortes, inclusive dentro do exército brasileiro. E meu pai era um deles, se filiou ao Partido Comunista Brasileiro, foi voluntário na guerra – não chegou a ir, porque no interior de São Paulo ele tinha tido leishmaniose que perfurou o septo do nariz dele, era uma região muito inóspita, muito sujeita a febre amarela, por isso que ninguém se metia a abrir fazenda nessa região, tinha que ser casca grossa. Então no exame médico ele não conseguiu passar. Ele ficou militando no exército em regiões de guerra no Brasil, defesa de portos. Parece brincadeira isso, mas nós tivemos 29 navios afundados, havia náufragos e assim por diante. Quer dizer, o eixo Japão, Itália e Alemanha tinha consciência de que os alimentos que iam abastecer as tropas inglesas, norte americanas e canadenses vinha do Brasil. Eles tentaram convencer os argentinos a respeito do fascismo, e o Perón foi bem isso, fizeram a mesma coisa com o Getúlio Vargas, tentando implantar o fascismo no Brasil para poder se prevenir quanto ao fornecimento de alimentos da Segunda Guerra Mundial. Mas os americanos e os ingleses foram mais espertos. Tiraram da Argentina o fornecimento de alimentos, se implantaram no Brasil e aqui deram um jeito de controlar o Getúlio para dizer o seguinte: não vem que não tem. Esses movimentos comunistas, socialistas, num esforço de ajudar a combater o nazismo no mundo, eram muito fortes aqui. E eu nasci no bojo disso, em 1945, em Santos, uma cidade portuária com uma larga tradição de luta política, e depois aqui em Osasco. Meu pai conheceu a minha mãe nesse processo, ele vindo do interior e se instalando em quartéis aqui de São Paulo e minha mãe, vinda da Rússia, já nesse esforço de construção de ferrovias e tal. O nome dela é Anastásia Martins Junqueira. O Anastásia é o nome da princesa, a quinta filha do Nicolau, foram todos fuzilados. Só que sobre Anastásia, havia um mito – isso meus avós me contavam – de que ela teria sido salva, era mais novinha. Então os russos punham o nome da princesa que tinha sido salva, embora eles mesmos tivesse matado a família, o que era uma crueldade. Ela tinha o nome da princesa. Agora pode ter certeza que vai nascer um monte de Megan no mundo inteiro, vai ser uma Megan explosão.
P/1 - E você tem irmãos?
R - Eu tenho uma irmã, Maria Teresinha Martins Junqueira, professora de Química. Ela é caçula, um ano mais nova do que eu.
P/1 - Você poderia descrever pra gente um pouco a rua, o bairro que vocês moravam na sua infância.
R - Deixa eu contar uma coisa um pouco antes disso, quem me contou foi o Azis Absader, que é um professor de geografia da USP, famoso, e um outro colega nosso da Emplasa, Zaratin. Ele me disse o seguinte, tem uma publicação do Caio Prado Júnior, quando fala sobre a história do desenvolvimento brasileiro, em que ele levantou um aspecto extremamente interessante, que é o fato de que o Tietê não corre para o mar mais próximo, ele corre para dentro do interior. Nesses 70 quilômetros de Guarujá e de Santos, ele teve seu curso invertido com o passar do tempo, ele era um afluente do rio Paraíba do Sul, ele corria para o Rio de Janeiro no começo. Depois por movimentações geológicas ele inverteu o curso e passou a ir por São Paulo e de São Paulo ele foi desembocar no Rio Paraná, por mil quilômetros. E vai até a Argentina por mais 3 mil. Ou seja, ao invés de cair no Atlântico aqui, ele cai no Atlântico Sul lá embaixo. Esse fato, do ponto de vista histórico, segundo o Caio Prado Júnior, é muito singular. A gente aprende na escola o Tratado de Tordesilhas, para que que serve essa porcaria? Serve pra isso. Quem me ensinou foi uma das fotos que eu dei, a dona Didila, a minha professora. Aí o Papa chamou os castelhanos, os espanhóise e os lusos, sentou numa mesa e disse o seguinte: para não dar briga entre vocês, vocês descobriam a América, vamos traçar a linha de Tordesilhas, e aí foi dada a partida. Os espanhóis saíram do lado do Pacífico subindo os Andes e os portugueses saíram do lado do Atlântico, indo em direção a bendita linha de Tordesilhas. Os portugueses se valeram do fato de que o Rio Tietê corria para dentro e não o contrário, portanto, você não precisava remar contra a corrente. Para chegar primeiro, você se valeu do fato de que o Tietê quase não tinha cachoeiras, a não ser na região de Pirapora, mas daí para frente ele é bastante lento. De qualquer maneira, ao contrário, os espanhóis tiveram que subir os antes, quatro, cinco mil metros de altitude, para poder depois entrar na selva brasileira, pantanal, para poder chegar até aqui. Os mapas espanhóis naquela época eram muito interessantes, porque eles apresentavam nós aqui em São Paulo como fazendo parte do Gran Peru. Ou seja, nós somos peruanos segundo os espanhóis daquela época. E a cidade de São Paulo tinha muitos espanhóis realmente, por conta dessa origem. Mas os portugueses chegaram antes na linha de Tordesilhas e foram empurrando até onde deu, até encontrarem com os espanhóis que vinham cansados tentando alcançar ela. Por isso o Brasil é tão grande. Evidentemente os portugueses deram um nó nos espanhóis de no Papa junto. O fato de que o Rio Tietê corre ao contrário é uma característica extremamente importante, porque se vocês olharem os mapas da ferrovias e rodovias paulistas vocês vão ver que é como se fosse uma mão aberta, saindo do porto de Santos, passando por São Paulo e tendo o eixo do Rio Tietê como sendo o vetor principal. Isso entra por Mato Grosso e hoje essa mão está chegando na Amazônia. Tem uma estudiosa argentina que vive nos Estados Unidos, (Saskia Sassen) [00:20:37], que fala que a cidade de São Paulo é tida como uma das cidades chamadas globais exatamente por causa disso, quer dizer, nós temos uma bacia de produção de alimentos que é considera hoje como sendo o celeiro agrícola do planeta. Nós estamos substituindo os Estados Unidos, que depois de terem feito tudo isso, eles exploraram a terra norte americana de tal forma, que hoje o lençol freático deles está a seis metros de profundidade. Ou seja, a água falta em cima, então eles têm que fazer irrigação forçada, cada vez mais. Então a produção de soja, de milho, nós estamos passando a perna, provavelmente esse ano a gente passe os Estados Unidos. Ou seja, estamos nos transformando num celeiro mundial. Quando você estava lá na GEOP ainda conosco, a quantidade de visitantes de delegações de fora que a gente recebeu da China, da Inglaterra, dos EUA, do Japão, da Rússia – eu era incumbido de ficar conversando com essa turma – grande parte do interesse deles era justamente esse fato, quer dizer, a capacidade do Brasil de produzir alimentos para sustentar 40% do planeta. Isso não vai durar pra sempre, vai durar 20, 30 anos. Mas enquanto durar... então, esse eixo do Rio Tietê foi escolhido por essa razão, esses bairros todos foram criados ao longo de estações ferroviárias, onde se instalaram fábricas de tecidos de alimentos, Anderson Cleiton, Anaconda, Refinações de Milho Brasil, Frigorífico (inint) [00:22:37], Wilsons, (Swift) [00:22:39], os dois (tendais) [00:22:41] da Lapa, uma infinidade de fábricas de alimentos – não foi por acaso. E a indústria ferroviária veio junto com isso, Cobrás, (inint) [00:22:55], principalmente, para poder dar conta desse esforço. Não à toa que os trens nossos no metrô são patente da (Bud) [00:23:04] norte americana, quer dizer, aquilo foi cedido para o Brasil porque eles já tinham a ideia de que, olha, ensina essa negada a construir trem, porque nós vamos precisar deles. Tem muito disso. Então essa região onde eu morei na infância era uma área de expansão do Rio Tietê. Naquela época, ele estava sendo retificado aqui em São Paulo, e o Pinheiros também, e a terra sendo substituída em alguns lugares. Então ele era todo cheio de meandros e o resultado disso é que era uma bacia de inundação natural, como é o Jardim Pantanal hoje, onde deixaram construir um monte de casinhas ali e de vez em quando o rio resolve pedir de volta o terreno dele. Aqui houve um esforço tremendo para você retificar o rio, então as ruas eram um ex-pântano que foi aterrado. Esse era o bairro onde moravam basicamente esses imigrantes eslavos, principalmente russos. Depois a imigração armênia. Eles saíram da Armênia quando do holocausto turco sobre eles, um milhão e meio de armênios foi dizimado na invasão da Turquia. Eles então migraram para a mesma região e convivam conosco, eu era da colônia russa brasileira e eles armênios. Havia um respeito muito grande deles por nós, porque o holocausto na Armênia tinha sido interrompido pela intervenção da jovem República Soviética, que entrou e botou os turcos para correr. Depois houve um movimento turco para destruir o império otomano. Isso tudo aconteceu faz 100 anos, em 1917. Veja a imbricação histórica que existe entre esses fatos todos, houve uma concentração de imigrações ali. Não é que tenha sido planejado, mas não foi por acaso, haviam interesses geopolíticos por trás disso, que a gente só foi capaz de perceber passados 100 anos. Isso chama atenção por uma razão simples, nós estamos vivendo sintomas parecidos de novo. Grandes concentrações de indústrias alimentícias no Brasil, o Brasil comprando empresas norte americanas instaladas aqui, mas o capital vem de lá. Lemman comprando todas as Ambevs da vida, assim por diante. Grandes grupos de alimentação passando por um processo extraordinário de concentração. Esse é um sintoma de que a gente pode estar diante de uma nova guerra. Tem outros sinais, mas não vamos entrar nisso agora. Por exemplo, estão faltando insumos para remédios no mercado, tenho amigos que trabalhavam conosco no metrô que estão no Hospital das Clinicas, falaram que está sumindo remédio. Alguém está estocando remédio no mundo, quando alguém está fazendo isso, significa que vem algo pela frente. Pode não vir, mas as pessoas estão se preparando. E o Brasil, de certa forma, vira a bola da vez, porque chegou a hora de ele seja o celeiro agrícola, antes que a África venha a ser. A África vai ser o próximo, nós vamos esgotar as nossas terras. Enfim. O bairro de Presidente Altino era resultado disso, um bairro mais ou menos planejado, ruas retas, tudo bonitinho, mas em cima desse ex-pântano onde o rio extravasava.
P/1 - E você brincava muito na rua?
R - Muito. Era a rua mesmo. Eu era um andarilho com a molecada da rua, eu frequentava essa região toda. Aqui nessa casa, vocês estão perto da estrada da boiada. Estrada da boiada era justamente a estrada que trazia o gado para aquela região. Com o passar do tempo ela deixou de transportar o gado, porque os frigoríficos foram colocados na beira do rio. A gente convivia com isso, de vez em quando passavam tropas de gado enormes e a gente ficava escondido atrás da cerca, porque de vez em quando estourava a boiada. Era perigoso, eles entravam nos quintais, um boi enfurecido. E jogávamos flechas de vareta, fica atrás da cerca. Coisa de moleque. Era um bairro proletário, de operários muito pobres, com uma grande concentração de comunistas, de pessoas que tinham passado pela revolução socialista e, portanto, tinham uma visão diferente daquela que normalmente o brasileiro tinha. Era uma delícia, soltar pipa, papagaio, brincar de bolinha de gude.
P/1 - Você ainda tem amigos dessa época?
R - Não. Eram todos muito pobres e desse pessoal todo, acho que quase ninguém conseguiu fazer uma universidade, muitos nem terminaram o primário. Mas tanto minha mãe, quanto meu pai, incentivavam muito, forçavam a barra. Então daquela turma eu acho que fui o único que consegui entrar na USP, entrei nos primeiros lugares, fazendo um colégio noturno e trabalhando como operário durante o dia. Era muito difícil você prestar um exame na USP e se colocar bem ainda. Aconteceu comigo, com minha irmã, mas não com meus colegas, meus amigos de infância.
P/2 - Qual sua formação?
R - Eu fiz física na USP e por convicção. Naquela época nós estávamos começando os lançamentos espaciais. Eu acompanhava muito aquilo e estudava muito astronomia, me interessava muito por esse assunto. E aí decidi pela física. Uma foto que eu mostrei com o professor Emir, que era presidente do sindicato dos jornalistas de São Paulo, era da Folha de S. Paulo, editor de política internacional. Ele tentou me convencer a virar jornalista, era professor da Cásper Líbero e dava aula para nós em Osasco. Era um cara abnegado. Discutia política internacional com a gente na aula de português, ensinava grego, latim. Isso foi muito importante pra mim, fundamental para entender as raízes da língua portuguesa. Ele falava, “faça jornalismo que eu te arrumo um emprego na Folha”. Aquela época era importante você sair de um curso já empregado. Não quis, fui fazer física. Fiquei vacilando se ia pra Poli ou não, mas decidi pela física. Quando eu saí do colégio para prestar vestibular, na USP, meu primeiro exame não foi com uma colocação boa. Aí eu falei, vou fazer o cursinho primeiro, consegui uma bolsa de estudos da prefeitura de Osasco, eles pagaram cursinho para mim. Aí no ano seguinte eu entrei para valer. Naquela época, poucas pessoas se interessavam em fazer física, matemática, era muito raro isso. Mas esse espírito da época, da conquista espacial, saída da guerra, incentivava um pouco a gente a fazer isso. Vários colegas saíram comigo, foram pra física. Aconteceu o golpe de 64, os militares tomaram o poder e aí eu passei a ser procurado pela polícia, pelo exército. Eu descobri que meu pai tinha ligações com antigos camaradas dele de farda e disseram, “teu filho tá na lista”. Eu fiquei sumido um período, escondido na Praia Grande na casa de uma tia minha, mas depois voltei. E quando entrei na universidade, fui direto para o movimento estudantil. Eu já tinha feito movimento sindical, operário quando eu trabalhei no grupo Cobrasma, participei da greve de Osasco, que faz 50 anos agora. Quando eu estava no presídio em Tiradentes, saí condenado a quatro anos de prisão, eu tinha passado por vários presídios, pelo Dops, pela Obam, pelo Hipódromo e aí terminei no Tiradentes, que era um presídio de escravos construído 100 anos atrás. Impressionante, as paredes de 90 centímetros, as grades de uma polegada, ainda forjadas, era interessante do ponto de vista arquitetônico, não de viver lá dentro. E a gente estava um dia e começou a ouvir ruídos estranhos. Passados os dias, aquilo foi crescendo e a gente se perguntando o que estava acontecendo com a cidade. Alguém explicou para nós que estava sendo construído um tal de metrô e que o metrô iria passar por baixo do presídio Tiradentes, onde está a estação hoje. O presídio se dividia em partes, tinha uma parte feminina, onde estava a Dilma presa – eu convivia com a Dilma todo o sábado, com ela e com o marido dela, que estava na minha cela também. Tinha a parte masculina, que eram dois pavilhões. E havia uma parte que era chamada Corró, que significava o correcional, a raia miúda da bandidagem, batedor de carteira, 171, essas coisas todas. Não era o pessoal da pesada, mas não custava nada virem a ser. E aí começou, pô, mas vão fazer um túnel aqui embaixo, vamos fazer um túnel também. Eu me lembro até hoje, um companheiro nosso do Rio Grande do Sul, todo atiradão, tinha participado da guerrilha com o Lamarca aqui no Vale da Ribeira. Ele falou, “como é que é esse negócio, vamos fazer um túnel, tchê. A gente faz e ganha o mundo”. E o tatuzão passando ali. Essa ideia de metrô nasceu na minha cabeça por causa disso. Eu estava fazendo física nuclear nessa época, mestrado no instituto de energia atômica. E aí aconteceu uma sucessão de mortes de colegas meus de turma. Quando chegou no décimo, pensei, o próximo sou eu, vão me pegar, é uma questão de tempo. Aí eu procurei meu orientador de tese, que era um Uruguaio emigrado, que naquela época era ditadura, e falei, “professor, vou cair no mundo, senão não vai ter tese de mestrado nenhuma”. Não deu outra, fui embora para o Rio Grande do Sul. Lá tinha havido um conjunto de prisões muito intensa, aquela época o PC do B tinha tido prisões muito acentuadas. E eu meio que fui trocado, quer dizer, os dirigentes do movimento no Rio Grande foram para São Paulo para se esconder e eu fui de São Paulo para lá. Quatro meses depois, ao voltar para São Paulo, me pegaram aqui em casa. Eu estava escrevendo um livro de matemática para o colegial, tinham me pedido, com algumas ideias diferentes. Fui preso pelo exército, que chegou em casa, fui condenado. O meu amor pelo metrô começou por aí, essa ideia do túnel.
P/1 - Você já estava casado nessa época?
R - Não. Eu casei depois. Casei com a Helena, que também era descendente desses imigrantes russos que vieram junto com meu avô. Minha mãe era conhecida da mãe dela desde muito criança. Eu havia conhecido a Helena por conta dessa família. Depois eles voltaram para a União Soviética, moraram sete anos lá, mas se arrependeram, porque encontraram uma situação que não condizia com aquilo que se descrevia da União Soviética. Quando retornaram pro Brasil, comecei a namorá-la e nos casamos, estamos juntos até hoje.
P/1 - Vocês têm filhos?
R - Três. Duas filhas e meu filho mais novo. Minha filha mais velha é formada em Biologia pela Unicamp e trabalha com genética molecular, especializada em moscas. Nunca mexeu numa planta, numa flor, num animal e virou especialista em moscas verdes. Porque ela tem um efeito importante na economia mundial e também transmite muitas doenças. Ela trabalhou na Unicamp, depois foi para os EUA, o laboratório mudou para Singapura, ela foi para lá, ficou dois anos. Agora é professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro, mas já está com vontade de voltar para Singapura, porque o Rio está uma draga e ela está com medo. A outra filha emigrou para o Canadá, há uns 10 anos atrás. A gente teve um assalto em casa, ela decidiu ir embora do país. Ela foi e hoje é cidadã canadense, meu netinho tá lá e vai nascer a netinha agora nas próximas semanas. E não querem saber do Brasil mais, de jeito nenhum. E o outro meu filho também estudou no Canadá, mas ele quis voltar para o Brasil e permaneceu aqui. Fazia economia na Unicamp, era primeiro aluno, chega no terceiro ano ele fala, “pai, não é bem isso que eu quero”. Aí ele prestou letras na Unicamp, entrou em primeiro lugar e virou um professor de português, deu aula algum tempo, mas ele está com um projeto educacional. Um projeto interessante chamado Primeiro Livro de ensinar crianças a escreverem seu primeiro livro. Já tem uns 700 publicados, mais ou menos, crianças até com síndrome de Down escrevendo livros. É uma coisa absurda para quem não está acostumado. A menina da Fundação Casa também escreve livros e conta as histórias deles, tem relatos muito interessantes. Vocês que são do Museu da Pessoa seria interessante conhecer os relatos dessa turma, porque é o retrato de uma época. Então ele está num projeto educacional desse tipo, de criar softwares usando inteligência artificial para poder ajudar as pessoas a fazerem redação, os jovens principalmente, pessoal do Enem, dos vestibulares e também crianças. Aprendem a redigir no computador, usar todos os recursos gráficos, desde fazer a capa, a impressão. E escrever uma história, sacar uma ideia e desenvolver. É impressionante o potencial criativo que tem a molecada, a gente não acredita.
P/1 - A Cobrasma foi seu primeiro emprego?
R - Na verdade, eu trabalhei antes como camelô, vendendo revista em quadrinhos na feira de domingo. Trabalhei como engraxate, trabalhei na feira. Tive um monte de empregos, desde os sete anos de idade eu trabalhei. Depois fui trabalhar numa das empresas do grupo Cobrasma que era a Brás Eixos Rockwell, fabricava peças para Cobrasma, para trens, mas mais para automóveis e tratores. Ficava junto com a Cobrasma em Osasco. Esse foi o primeiro emprego com carteira assinada.
P/1 - E a entrada no metrô?
R - Eu saí da prisão, tinha sido condenado a quatro anos, mas ganhei duas úlceras na prisão e elas estavam a ponto de supurar. Os juízes militares ficaram com receio de que eu morresse na prisão e aquilo daria uma repercussão internacional. Ia dar mesmo, porque dentro da prisão eu fazia comunicação com a Anistia Internacional na Suécia, dizendo quem tinha sido morto, quem tinha sido torturado, o que acontecia e assim por diante. Eu fazia as mensagens e no sábado, quando era visita, as mulheres levavam nas partes íntimas, escondidas, as mensagens. Eles descobriram isso, revistavam as mulheres inclusive nas partes íntimas, mas não conseguiam pegar. Elas eram mais espertas que as policiais. As notícias chegavam lá, eles não sabiam que era eu, não tinham identificado. Mas de qualquer maneira, eu, com duas úlceras tinha uma chance enorme, se supurasse de madrugada eu estava perdido, não ia ter uma ambulância que me levasse pro hospital com a rapidez necessária. Eles resolveram me soltar em liberdade condicional. Foram 25 de meses de prisão. O juiz deve ter pensado, já que esse filho da mãe vai morrer mesmo, deixa morrer lá fora, não aqui dentro. O juiz me chamou e falou, só tem uma condição você não pode voltar para a USP. Você tem 10 anos de cassação dos direitos políticos e se você voltar para a USP eu te trago de volta. Aí eu procurei pela USP mesmo assim, tiveram várias ofertar, o professor Goldenberg me ajudou. Mas não contratando como professor novamente ou como pesquisador se não nós estaríamos perdidos, mas fazendo consultorias para a universidade. E eu procurando emprego, porque o juiz também me disse, se você não arrumar emprego em três meses, tá de volta para cá. Procurando em jornal na Rhodia pedindo um físico para fazer produção de fios especiais de nylon, lá fui eu, passei no exame, mas ficava em Santo André, era longe. Aí surgiu uma oportunidade no metrô. O pessoal da física da USP 29 já tinham ido para o metrô. O Plínio Asma teve uma visão muito interessante. Ele dizia: nós não temos no Brasil uma escola de transporte que formem engenheiros que sejam capazes de construir metrô, então vamos ter que mandar gente para fora. E nós não temos gente com capacitação para construir o software, os sistemas de controle. Então ele foi na Poli, pegou alguns, no ITA pegou alguns e foi na física e pegou 29. Foi um da física nuclear e foram os outros, Caetano, Rock e assim por diante, que eram da área de computação. A gente trabalhava com um computador que só nós e a Poli tínhamos, eram os mais avançados do país, um IBM. Como o metro precisaria construir o seu sistema de controles, tinha que mandar gente para a fora, nada como pegar pessoas que já sabiam da linguagem. Quando essa turma de colegas meus vieram para o metrô, eles ficaram sabendo que eu tinha saído da prisão, eu não tinha contato com eles para não queimá-los, porque a polícia estava tentando identificar que eu ia procurar. Aí eu recebi um convite de um desses colegas, ele disse, Laurindo nós vamos montar um centro de controle, não era navegueiro ainda, você não quer ir junto com a gente? Eu falei, vou tentar. Quem me ajudou nisso foi o Humberto e o Massahiro, que era da física nuclear e tinha saído. Eu prestei um teste, passei. Quando me fizeram o teste psicotécnico, a impressão que eu tenho é que eu acertei todas as questões e fiz antes do tempo determinado. E aí os caras acharam que eu tinha colado. Sei que repetiram o teste em mim e aí eu acertei de novo e fiz na metade da metade do tempo, porque eu já tinha aprendido o teste. Aí as psicólogas, eu fiquei sabendo disso depois, elas falaram que não era possível, que eu estava colando. Mas naquela época não tinha celular, não tinha nada. Aí me deram um terceiro e aí eu fiz na metade da metade da metade do tempo e acertei tudo de novo. O teste psicotécnico é um teste inventado nos EUA para os soldados norte americanos que iam para a segunda guerra e muito mais voltados para negros. No fundo era para um cara que fosse burro não fosse para a guerra. E as nossas psicólogas continuam aplicando esse mesmo teste feito na década de 40 até hoje. Para nós que somos físicos, aquilo era fichinha. O Massahiro logo que tinha ajudado a me levar para lá - eles tinham conversado com a Teresa, japonesa, que era da GRH – ele foi chamado pelo professor Zerbini que estava criando o Instituto do Coração. O Massahiro saiu do metrô e o Zerbini queria que ele implantasse no sistema hospitalar brasileiro o mesmo padrão de serviço do metrô. Criaram um hospital modelo, que é o Instituto do Coração, dentro do HC. Esse modelo se propagou depois para o Einstein, para o Sírio, enfim, para cinco ou seis hospitais referência, que são mundialmente aceitos como sendo parte de uma rede de excelência. Padrão metrô. O Massahiro está lá até hoje, se especializou em medicina nuclear de imagens, tirar tomografias, essas coisas, com a experiência do metrô. Nós, no metrô, tivemos esse papel de absorver a tecnologia da Nasa, que era o que tinha de mais avançado em tecnologia. Eles tinham, por deliberações de governo, resolvido repassar a experiência tecnológica toda para o mercado o norte americano. Ou seja, os segredos da Nasa começaram a ser repassados para poder desenvolver o país como um todo. É evidente que eles repassavam a segunda linha, a primeira ainda ficava secreta. Mas os engenheiros da Nasa que tinham participado desse esforço foram contratados para poder montar nosso sistema de controle, quer dizer, o sistema nosso não poderia ter falhas. A gente se baseou muito no modelo do (Bart) [00:52:17] de São Francisco e eles já tinham tido um acidente grave lá. A decisão da diretoria foi, olha, nós vamos duplicar esses sistemas de segurança de tal maneira que se ocorrer uma falha, recursivamente reduz a probabilidade de que ela venha a matar gente. Esse foi o pessoal responsável. Eu entrei no metrô em 73, os outros entraram um pouco antes, foi um esforço mais ou menos conjunto. O Caetano foi mandado para os EUA, passou quatro anos, o Rock também foi e muitos deles foram e aprenderam com esses técnicos da Nasa a produzir metrôs. Mais tarde, a ONU, através de um programa de desenvolvimento que eles têm, pediram técnicos brasileiros que pudessem construir um sistema de trólebus em Quito, no Equador. Uma das fotos é isso. Nós fomos lá, construímos, o projeto foi premiado como um dos 10 melhores do mundo. Embora nós fossemos de metrô, a gente tinha ajudado a criar a EMTU, o corredor de trólebus, então sabíamos mais ou menos da tecnologia e fomos lá. Um dos caras lá que estava dirigindo nosso projeto no Equador, era um militar que havia comandado a guerra entre o Peru e o Equador no ano anterior, ele era um comandante de uma divisão de tanques na floresta amazônica. Uma vez ele saiu para jantar comigo e ele me disse, “sabe porque eu sendo um coronel de exército do Equador, com experiência de batalha, estou aqui no transporte? Porque nós estamos tentando repetir no Equador o que vocês fizeram no Brasil. As tecnologias de controle que servem para construir um metrô servem pra construir um foguete, um carro blindado, um satélite e uma série de outras coisas. Serve para desenvolver o país. Vocês brasileiros foram muito espertos, porque vocês conseguiram roubar dos norte americanos a tecnologia da Nasa de lançamentos espaciais, sem que eles percebessem que o próximo passo de vocês seria esse. E vocês têm outra experiência importante, que vocês têm uma escola de engenharia chamada ITA onde aprenderam a fazer aviões, assim por diante”. Muitos engenheiros do ITA vieram trabalhar conosco, muitos físicos vieram, uma parte foi para uma área secreta até hoje, que é a construção da bomba atômica, que acabou não saindo, mas eles estão ainda no projeto do submarino. Mas então veja, houve um esforço militar no Brasil, e eu aprendi isso no Equador, de absorver tecnologia chamada sensível, que é tecnologia de controle automático, de computação, de tal maneira a repassar isso para todos os setores da sociedade. E eles estavam tentando fazer o mesmo no Equador. “Vocês não estão aqui no Equador a troco de banana, vocês estão aqui para nos ensinar a absorver tecnologia de sistemas de controle”. E, de fato, o sistema de controle nosso foi montado por brasileiros, junto com técnicos da (Westinghouse) [00:56:34], que tinha o selo da Nasa. E funciona até hoje, aquela porcaria não bateu até hoje. Como é que essa indiazada toda é capaz de projetar esses negócios? A gente aprendeu com eles e desenvolvemos melhor do que eles. Eles diziam isso, o sistema de metrô de São Paulo é visto até hoje como sendo uma espécie de excrecência, como é que esses caras conseguiram chegar lá. Esse é o aspecto mais tecnológico. Um de vocês citou antes de começar a gravação, tanto por parte do Plínio Asma, como por parte do Claudio Niscena Frederico, quanto do Seichum, que era nosso gerente, houve uma preocupação sempre de montar equipes multidisciplinares. Eu era físico, chefiava uma equipe de engenheiros, historiadores, economistas, matemáticos, administradores, tinha de tudo. O CCO principalmente foi montado muito em cima disso. As decisões não eram tomadas só por engenheiros. Vamos construir escada rolante ou não? Vai o pessoal para campo, faz a pesquisa. Se não tiver escada rolante tem gente que não vai usar. E o contrário, descobrimos que na Liberdade as mulheres, principalmente de origem japonesa, diziam que jamais iriam entrar dentro de um túnel. Diziam, pode fazer o que vocês quiserem aí embaixo que eu não entro nisso aí. A partir daí se montou uma visão mais humana da engenharia, e aí começo a falar como engenheiro, essa visão em que as ciências humanas, o pessoal de comunicação visual, de comunicação escrita, todo mundo, interfere sobre uma decisão se você vai fazer uma escada rolante ou não, se a comunicação que tem que indicar os caminhos lá dentro, tem que ser assim ou assado. Ele não foi um projeto de engenheiros, ele foi um projeto multidisciplinar que levou em conta esses aportes todos. Quando eu fui contratado, o diretor Luiz Sérgio falou assim, “Laurindo, o que a gente quer de você é que você não seja especialista, nós queremos um especialista em generalidades”. Eu fiquei puto da vida, que diabo de especialista em generalidades, eu sou um físico nuclear. Aí eu pedi para ele explicar. Ele dizia, tem que ter uma visão de economia, de história, de política, técnica e humana das coisas e conjuminar isso tudo e dirigir equipes que são sim de especialistas. Cada um dando seu aporte, mas extraindo desse grupo alguma coisa que seja diferente daquilo que os outros metrôs têm feito. Foi muito nessa base que a gente conseguiu sucesso. Há um tempo atrás, o Instituto de Engenharia pediu uns trabalhos nossos, a gente acabou ganhando dois prêmios seguidos. Um dos trabalhos, eles pediam para traduzir essa visão multidisciplinar do que é chamado um projeto complexo de engenharia. A Poli está criando esse ano um curso chamado engenharia da complexidade, que visa exatamente fazer isso que nós fizemos 50 anos atrás no metrô. É a primeira universidade que, de certa forma, para montar um projeto técnico, como uma hidrelétrica, um hospital, de caráter complexo, se vale não somente do engenheiro que vai construir, mas de profissionais da formação mais ampla possível. Até hoje o pessoal que faz pesquisa para nós são sociólogos. Quando alguém ia falar assim, vamos construir um metrô, começa a contratando sociólogo. Porque eles que precisam perguntar para a população o que eles acham disso. Eu tento demonstrar nesse trabalho essa característica diferente que tem o metrô, que os engenheiros não conseguem absorver até hoje, é razão de briga. Por isso o Rock é representante nosso no (Comet) [01:02:16], que é a organização mundial que reúne os 15 maiores metrôs do mundo. Porque ele tem essa visão, fez parte dessa raiz inicial, que é o que o Zerbini do metrô. Nós vamos montar o Instituto do Coração, que eu vou atender o povo por inteiro, portanto eu tenho que ter uma visão não médica, não põe médico para administrar um negócio desse, porque dá zebra. Precisa de gente que tenha uma visão distinta dessa meramente técnica.
P/1 - E na inauguração? 14 de setembro de 1974.
R - Todo esse automatismo, essa conversa fiada de perfeição, que realmente era perfeito, o trem na hora de ser ligado falhou o automático. Estação cheia, lotada. O pessoal anunciando e o trem não saía. Um dos nossos pega o transceptor e fala com o operador de trem, “vai seu filho de uma puta”. Esse foi o automatismo, ele assumiu o comando manual e todo mundo, “sucesso, tecnologia”. Outra coisa interessante, a gente precisava muito de mão de obra pra construção civil e eles vinham de Minas, Nordeste, Norte do Paraná e aí por diante. Mas o metrô era muito rigoroso nos exames que fazia, acho que foi uma das empresas que começou a pedir exames médicos, a biografia – quem acabou com isso foi o Massahiro, uma máquina de dinheiro e submete o cara a uma radiação. E o metrô pedia exame de fezes. Você comprava uma latinha na farmácia, fazia exame de fezes e levava lá. A gente começou a ter falta de mão de obra, porque o pessoal não passava no exame de fezes. O metrô dava um mês, você procura um médico. E o pessoal procurava coisa nenhuma. O Humberto chegou pra mim e disse, “você conhece aquela expressão, vender merda enlatada?”. Sim, já ouvi falar. “Você sabe onde foi inventado? Foi no metrô”. Teve um peão que foi um dos poucos que passou no exame de fezes no ano, acho que estava no canteiro de São Bento, ele morava no Glicério, naqueles cortiços e o cara conseguiu passar. O que o espertalhão fez? Ele trabalhava no metrô e no sábado ficava aquela fila na porta do cortiço pra fazer o exame de fezes. Ele pegava as fezes dele e punha nas latinhas que o metrô dava e todo mundo passava no exame de fezes no metrô. Vender merda enlatada. Você vê que as pessoas que criaram o metrô são muito criativas. Parece brincadeira, mas é verdade. Esse é o começo do metrô. Teve um outro cara. Quando a gente inaugurou o pátio, aquelas construções belíssimas, vinha o presidente da República, acho que era o Geisel na época. Tinha um coronel que comandava a parte de seguranças. E o metrô era todo infiltrado de outros coronéis do SNI que ficavam vigiando a gente. O Valter foi nosso GRH no começo e já tinha uma visão muito mais clara, mais aberta de contratação de pessoas e esse tipo de filtro não ocorria. No dia da inauguração, a última telha tinha que ser colocada na hora que chegasse o presidente da república. O bloco A todo coberto, só faltava uma telha. Um engenheiro que não sabia dessa história viu o buraco lá em cima, falou, “Severino sobe lá e põe a porra dessa telha”. O Severino pegou a escada, pôs a telha. Dali a pouco chega o coronel do exército, da segurança, “falei que não era pra por a última telha, porque é quando o presidente chegar aqui”. “Severino, sobe lá e tira a telha”. E aí isso se repetiu várias vezes, cada um que chegava dava um palpite. Até a hora que o Severino falou assim, “puta que o pariu, se entendam, é pra por ou não é pra por”. Quando o presidente chegou lá, puseram a telha. São detalhes desse início de metrô. E o papel nosso, especificamente meu, era especialista em generalidades, conviver com o público e ver as reações das pessoas. Tão num túnel, é a primeira vez que vocês estão entrando, tem gente que passa mal. Era observada não tanto a parte técnica, mas essa reação do público com respeito a esse tipo de coisa. Isso foi muito interessante, porque anos depois, eu e Peter fomos incumbidos de recepcionar dois diretores do metrô de Nova York. Eles iam fazer uma reforma geral, porque já estava muito velho, e eles passaram alguns dias com a gente. Eles vieram acompanhados de um cara que era o principal especialista mundial em engenharia de transportes, um tcheco chamado (Wuczik) [01:10:06], professor que morava nos EUA. Tem até hoje publicações muito interessantes. Aí lá vem os dois diretores e o (Wuczik) [01:10:19] e nós fomos incumbidos de mostrar para eles os dados nossos do computador, eles queriam saber dos intervalos entre os trens, “como é que vocês conseguem 101 segundos de média entre trens”. Nós fomos no computador, mostramos os relatórios, aí o (Wuczik) [01:10:41] falou assim, “eu não acredito, esse software vocês podem ter fabricado, preparado para produzir os resultados tudo bonitinho”. Eu virei para ele e falei, “Peter, sete horas da manhã na Sé”. Sete horas estávamos lá no metrô e o Alfredo no CCO. Fomos na estação Sé e os três com o cronômetro na mão, para cronometrar e ver se dava a média mesmo. A gente meio enfastiado com os cara. E não deu outra, sete horas e os trens rodaram como nunca tinham rodado e os três cronometrando. Falei, “agora vamos sair daqui, vamos para o CCO pedir o relatório, o log, o registro para vocês conferirem”. O Alfredo tirou o log – eu tenho os três primeiros, inclusive estava falando com a menina para doar para o museu do metrô – e ele ia conferindo. Aí ele falou, “é, funciona mesmo”. E eu perguntei, por que vocês vieram procurar pelo Brasil e não França, Inglaterra, o metrô de Nova York tem uma tradição admirável. Eles disseram, porque vocês são o primeiro metrô que opera num país de pessoas subdesenvolvidas. Em Nova York é uma cidade que tem muita gente, porto riquenho, cubano, nós temos que preparar o metrô não para pessoas cultas, mas com pessoas que venham de uma cultura não tecnológica – ele usou termos desse tipo. Funcionou do ponto de vista humano, de você preparar uma instalação de engenharia complexa, em que você tem uma infinidade de variáveis que são mutuamente interferentes, os processos caóticos são muito frequentes, um controle de massa que tem quase cinco milhões de pessoas circulando por dia e você observa, aquilo parece um formigueiro, é um negócio impressionante. O Vilmar, um pouco antes de sair, fez um filme. Eles filmaram duas horas e meia e reduziram isso a dois minutos e meio. Você vê o fluxo, é impressionante a regularidade. Quando vocês percebem alguém que foge da média, aquela pessoa chama a atenção para caramba. Pessoa que vem no sentido contrário, ou ele está perdido ou é bandido. Isso para segurança também é importante, perceber um cara que está tendo um comportamento anômalo. Os norte-americanos e outros que visitam até hoje, se espantam com o fato de como é que vocês sendo um povo subdesenvolvido consegue montar um dos metrôs que ganhou prêmios no mundo inteiro. É esse bando de maluco com 20 e poucos que, como vocês, resolveu montar o metrô. Deixa com a gente.
P/1 - Você trouxe um alicate aí, o que é isso?
R - Quando a gente estava instalando a bilhetagem automática, o sistema era francês e eles eram um bando de frescos, eu estudei com eles na universidade, eles são muito metidos e tinham aquela visão colonialista que os norte-americanos não tinham, por incrível que pareça. Os ingleses não tinham também, a gente teve muita assessoria do metrô de Londres, eles conviveram conosco aqui, mas eles eram abertos, consideravam as questões que a gente levantava. Os franceses não, eles sempre de nariz empinado, dizendo, “nosso sistema de bilhetagem é perfeito, nunca teve falhas, instalado no metrô de Paris é a prova de mil falhas”. É o magnético que está até hoje aí. A gente começou a testar o sistema deles, deu muita falha no começo, mas natural, é o que a gente chamava de mortalidade infantil, sempre que começa a funcionar um sistema novo, ele tem suas diarreias no começo. O resultado é que o sistema não estava pronto quando a gente foi rodar os trens e tivemos que nos valer daquilo que se usava nos bondes dos avós, para poder perfurar o cartãozinho que se usava na época. Funcionário na linha de bloqueio, invalidava o bilhete, nessa base. Mas era só pra mostrar que tinha o controle. Evidentemente, quando botaram os bilhetes para funcionar, os estudantes brasileiros encontraram mil e uma maneiras de burlar. Duas eram fáceis, simplesmente emendava um bilhete no outro com fita adesiva, passava e duplicava a validade dele. Outra, a fita magnética que tem aqui o cara cortava em duas e colava num outro bilhete usado. Teve um que cortou em três, com gilette. Foram inventando maneiras. Um caso interesse é o seguinte, eu controlava a bilhetagem automática, era responsável pelo setor e o Alfredo Sucumu coordenava o centro de controle, os computadores. Um dia o Alfredo, um japonês daqueles bem circunspecto, falou, Laurindo tá tendo fraude né. Um bilhete de 10 viagens tá dando 32 viagens e eu não consigo descobrir qual a lógica disso, como pode um cara obter 32 viagens num bilhete que tem o máximo de 10. Generalizou? Não, é traço, aparentemente um bilhete só. Eu falei, “então vamos tentar cercar”. E aí a gente foi pegando os hábitos da pessoa que usava o bilhete fraudado. Descobrimos, São Bento, uma hora da tarde, quartas-feiras. Vamos pegar esse filho da mãe. Montamos um esquema, a segurança toda cercando a estação, o centro de controle, o Alfredo com seus operadores ali e a gente comandando a operação toda em São Bento, que era a maior estação daquela época, quase 90 mil pessoas por dia. Lá pelas tantas o Alfredo me liga, “Laurindo, passou da linha de bloqueio”. Aí fomos e pegamos. Me liga o cara da segurança que pegou, falou, “Laurindo é pra prender mesmo? É uma mulher”. Falei, olha, que interessante. “É, mas não é bem uma mulher, é uma freira”. Em outras palavras, a freira ia toda quarta-feira na missa do meio dia no São Bento e depois de uma hora ela descia e passava com o bilhete. A gente liga para a diretoria. Aí não lembro se era o Plínio, “larga a mão dessa freira, eu já tenho problemas suficientes com a cúria metropolitana por causa da Sé, que nós derrubamos a igreja de Santa Genebra, tivemos que construir outra, você vai me pegar uma freira? Deixa ela passar”. Largamos a freira, ela continuou usando 32, mas traços. Aparentemente era só ela que conseguia passar com 32 viagens. Era milagre de São Bento, a crônica que eu escrevi.
P/2 - Aproveitando esse gancho, das confusões que tiveram no centro, a gente queria saber de você sobre Mendes Caldeira, a implosão para a construção da estação Sé, se você teve alguma participação, se tem alguma coisa que possa nos contar.
R - Eu não estava na praça aquele dia, estava no centro de controle. Havia uma preocupação enorme com relação àquilo. Era um prédio muito alto, 32, 36 andares e podia causar pela onda de pressão efeitos em toda a redondeza. Foi um sucesso de engenharia, o cara que foi dinamitar aquilo lá. Eu conheci alguém da família Mendes Caldeira, a filha de um deles,
ngela. E ela dizia, “vocês foram derrubar o prédio da minha família”, é derrubamos mesmo. Aquela época, que controlava tudo era o Clarê, gerente de obras, depois foi diretor. Eles monitoravam a passagem ali no centro da cidade, aonde o field estava, acho que tinham 500 pontos nos prédios de medição. E o IPT pedia para gente praticamente de hora em hora e mandava os dados dizendo o seguinte, o prédio recuou um milímetro, virou pra cá, virou pra lá. Então o Clarê ficava ali focando naquele negócio, na hora que a gente ia passar o túnel ali embaixo, porque ia dar algum recalque. Foi uma operação muito arriscada, mas bem sucedida.
P/1 - E você tem alguma curiosidade da implosão?
R - Especificamente, não. Tenho da inauguração de Sé, logo em seguida. Quando estávamos inaugurando, pela primeira vez, a gente forneceu para o pessoal da imprensa, que era o Natal que chefiava, equipamentos de rádio para eles se comunicarem entre eles. E eles não sabiam usar, virou uma piada. Teve um lance do tipo assim, o Natal com o rádio aqui, chamando um outro jornalista lá e o jornalista estava de costas para ele. E ele falava alto, “alô, fulano”, e o outro respondida. A gente dando risada olhando para aquilo, olha que figura. Se ele desligar o rádio e falar pessoalmente era mais fácil. Esse foi um lance gozado. Sobre Sé tem um lance pessoal. Em 68, na comemoração do primeiro de maio, nós reunimos trabalhadores de São Paulo inteiro e fomos para a praça da Sé. O governo era o Abreu Sodré e ele se achava muito gostosão e resolveu fazer a comemoração junto com os trabalhadores. Em outras palavras, ele levou uma pedrada na testa, nós botamos fogo no palanque, subimos e fizemos os discursos dos trabalhadores. Então eu não gostava muito de passar pela Sé porque todos nós fomos fotografados pela polícia, tinha 170 agentes da polícia.
P/1 - Você teve toda a sua carreira no metrô e um tempo fora da empresa. Que ano que você saiu?
R - O metrô, internamente, vislumbrou a ideia de que teria que repassar a tecnologia nossa para o país inteiro. Quando eu contei aquela história do interesse dos militares, ela tinha tido origem na própria ditadura. Quando decidiram que a gente seria o primeiro metrô do Brasil, os militares, eles impuseram para nós uma condição que seria a seguinte: absorver a tecnologia toda, que tinha um fundo militar; repassar essa tecnologia para outros metrôs. Então Porto Alegre, Recife, Belo Horizonte, Rio e Brasília não estavam nisso ainda, depois entraram, mais Caracas e Bagdá. Nós tínhamos a obrigação de treinar todas as equipes que a gente chamava de lançamento, começo de um empreendimento complexo. Eu fui responsável por esse treinamento, eu e Paulo Celso. Cada um desses metrôs passou três meses dentro do CCO, recebendo cursos, Caracas também. O Maduro ele foi treinado por nós, operador de trem no metrô de Caracas. Naquela época havia um coronel do exército que chefiava a secretaria especial de informática, profundamente ligado a esse esforço nosso de absorção de tecnologia, de controle e automação. Esqueci o nome dele. Ele forçou um pouco a gente a implantar o primeiro projeto de inteligência artificial no Brasil. Eu comecei com esse projeto, depois o Arnaldinho foi quem coordenou no final, isso deu matéria de Veja. A gente implantou o primeiro sistema, naquela época inteligência artificial era muito novidade, e escolheram a gente como sendo piloto. A gente desenvolveu, junto com o pessoal de Campinas, na Unicamp, um sistema de controle e depois isso se espalhou. Absorção de tecnologia, depois repasse para o mercado. O metrô teve esse vislumbre, não basta que a gente treine as pessoas aqui dentro, nós temos que mandar gente nossa para poder controlar. Isso ocorreu no Rio também, William de Aquino foi para o metrô do Rio, aconteceu de várias pessoas que tinham participado desse esforço de criação assumir outros sistemas de transporte. Naquela época eu fui para Campinas trabalhar com ônibus, com trânsito, desenvolvimento urbano e assim por diante. Fiquei três anos formando equipes lá também. Depois fui para Santos e fiz a mesma coisa. O Conrado foi para Brasília, teve um pessoal que foi para o México para aprender, eu fui também, fomos treinados. Nesse esforço de circular pelo mercado, eu fui. Em Santos fui presidente da CT de Santos, da CST, em Campinas da Empresa de desenvolvimento, fui secretário de transportes, depois pra NTP, também nesse projeto de formar. Quer dizer, quando a gente municipalizou o trânsito, o que que eu entendia, o que o metrô tinha a ver com trânsito. Durante o projeto de obras, a gente tem uma dificuldade enorme de acomodar a obra com a circulação urbana. A gente teve o vislumbre de, olha, vamos criar uma empresa que não seja o DSV antigo, vamos botar engenharia naquele negócio, de tal maneira que a gente possa ter alguém administrando o trânsito em São Paulo que não seja coronel ou sargento do exército. Então foi criada a CT levando um núcleo de pessoas de dentro do metrô. Eu fui convidado na época, mas me deram uma promoção e fiquei no CCO mesmo, não fui pra CT, acabei mexendo com trânsito mais tarde. Então houve um certo esforço das pessoas saírem do metrô de São Paulo e ir pra Brasília para assumir cargos importantes no transporte nacional e em outros lugares também. Houve uma disseminação. Em São Paulo o (Escanigela) [01:31:21] municipalizou o trânsito. Não era a PM mais, mas eram os marronzinhos, amarelinhos. Quando eu fui para Campinas eu fui com esse projeto, a foto que eu tenho com o Fleury é exatamente essa, ele era originário da Polícia Militar e era promotor público também. Ele chamou o Jacó (Bittar) [01:31:46] que era o prefeito, ele me levou e disse, “eu vou querer que você municipalize o trânsito em Campinas. Eu vou como governador vou te facilitar isso o máximo possível”. Porque eu falei para ele que os coronéis da PM não iam querer deixar, porque tem uma mamata do trânsito, que frauda as multas, aquela história. Ele falou, “eu sei de tudo isso, só que eu quero PM pra cuidar de bandido na rua, não de trânsito. Eu tenho 2 mil PMs voltados para trânsito e eu quero acabar com isso”. Fui em Campinas e aí municipalizei o trânsito lá. De lá foi para Santos, Guarulhos também fez, hoje tem mil cidades que municipalizaram o trânsito. Você tem Cabrobó, o (inint) [01:32:35] tem bem esses números. O cara tem lá um advogado de trânsito, um médico de trânsito, um engenheiro de trânsito e assim por diante, ou seja, criou toda uma profissão nova e que são auto sustentadas. Quem sustenta? Aqueles que levam multas. A gente não reparte o orçamento com nenhuma outra instituição pública, mas tira do bolso dos motoristas. São coisas que nasceram dentro do metrô, com essa intenção, a gente precisa dar um jeito nesse trânsito. Hoje a cooperação com a CT é muito grande, qualquer obra nossa sempre tem equipes conjuntas trabalhando.
P/1 - E a implantação do bilhete único? O que você pode nos falar? Porque deu uma mudança geral na cidade de São Paulo.
R - Quando a gente foi adotar o Edmonson, ele foi o primeiro bilhete magnético a funcionarem países subdesenvolvidos. Ele funcionava na França. E havia um interesse enorme por trás dessa implantação e que a gente não sabia naquela época. O sistema bancário brasileiro tinha se recusado a adotar os cartões magnéticos que durante todos esses anos foram usados. Eles queriam saber o seguinte, olha, vamos usar primeiro um bilhete desse aqui, com uma fita magnética colada, num sistema de transporte de massa para ver se passa, se o teste funciona. Depois disso é que seria implementada em outras coisas, lojas, etc. Nos Estados Unidos não se usavam bilhetes automáticos, porque eles não confiavam, que era passível de fraude. Então vamos ver num país subdesenvolvido para ver se funciona. A bilhetagem automática Edmonson funciona até hoje por conta disso. Com um monte de fraudes, porque é uma tecnologia superada, tem 50 anos, a garotada aprende a manusear isso com a maior facilidade. Naquela época já era mais difícil, com exceção da freira. Mas sempre houve uma tentativa de implementar bilhetes automáticos. Eu diria para você que teve uma reação muito forte dos empresários de ônibus, que mandam em São Paulo. E hoje em dia não só por interesse das empresas de ônibus, mas também por causa do crime organizado, porque as duas coisas funcionam juntas, perueiro clandestino, assim por diante. A gente teve muita dificuldade de adotar os bilhetes inteligentes que foram surgindo depois da década de 90, nenhuma tentativa teve sucesso. Morria na praia. Quando o pessoal do metrô foi trabalhar com a Martha, eles resolveram romper com esse ciclo vicioso e adotar o que havia de mais avançado, que eram bilhetes automáticos com inteligência mais avançada incluída no cartão. Ele nasceu em cima da tentativa de romper com o bloqueio que sempre teve aqui. Eu fiz isso em Santos, mais ou menos na mesma época, quando o Beto Mansura era o prefeito. Fiz isso em Campinas também, mas não com bilhetes, mas com uma tecnologia do CPQ deles, da Telebrás, que era o que usava nos telefones públicos, nos orelhões, todo mundo tinha umas moedinhas. O bilhete único veio muito por conta disso. O efeito do bilhete único foi excepcionalmente grande, eu acompanhei muito do ponto vista social. Porque ele aumentou enormemente a quantidade de pessoas viajando na cidade, tenho gráficos, mostra um crescimento exponencial. Porque as viagens se tornaram, cálculo do Belda, 30% mais baratas, mais ou menos. O orçamento com o transporte, para o trabalhador, caiu bastante. O cara que mora na zona sul consegue trabalhar na zona leste, porque eles faz várias transições com uma passagem só. Isso provocou um aumento no que a gente chama de mobilidade, que é quantidade de viagens média que o cidadão exerce durante o dia. Existem leis econômicas que dizem que já há uma correlação muito forte entre o desenvolvimento da economia e a quantidade de movimentos que ocorrem numa cidade. Embora não haja nenhuma tese demonstrando isso, mas a gente procurou associar, vem o que aconteceu com a economia de São Paulo depois que o bilhete único foi criado. E aí você percebe uma correlação fortíssima, houve uma queda do desemprego, antes de 2008 quando a crise começou. O bilhete único teve esse fator muito significativo. Quem estava no governo municipal era o PT, a Martha, o secretário de transportes era o Zaratini, mas um amigo nosso participava do grupo, o Ademar Geanini, que tinha sido secretário de transportes anterior com a Erundina. O Genanini chamou a mim, o Tatá – amigo de infância meu lá de Osasco – e pediram a opinião, eram nove pessoas na sala para decidir o que ia fazer. Eu e o Tatá mostramos uma série de problemas que isso ia trazer para nós do metrô – vocês vão explodir a demanda dos ônibus e ela vai cair aonde? Nós não estamos preparados para isso. E não deu outra. Mas foi benéfico para a cidade. O metrô arrebentou a boca do balão, explosão de demanda. CPTM então, mais ainda, triplicaram a demanda deles com as integrações todas.
P/1 - Vamos falar de uma coisa chata. Acidente na construção da estação Pinheiros, você estava na empresa na época?
R - Eu estava em Santos ou na secretaria. De qualquer forma, eu acompanhei porque eu conversei com o Kenzo, que era o geólogo no metrô. Ele era uma sumidade em matéria de conhecimento do solo de São Paulo. Com esse processo de privatização, digamos que houve uma certa pressa e um certo descuido com relação aquele trabalho prévio que a engenharia fazia antes de construir uma linha de metrô. Sondagens. O metrô tem um levantamento quase que completo dos terrenos em São Paulo, como é o solo, a conformação geológica, topográfica. Nesse caso da linha 4, quando foi chegando perto da marginal Pinheiros, de certa forma, acho que ignoraram que o rio Pinheiros tinha sido retificado, assim como o Tietê, e portanto ali havia solo instável, solo reposto, que não era um solo natural. Não fizeram o que deveriam fazer, não seguiram o manual da gafieira, ignoraram os alertas que ele teria dado. Isso levou a uma situação tal que ele pediu demissão, simplesmente, foi morar na Bahia, tem uma pousada. Eu converso com o irmão dele de vez em quando, que está comigo no instituto de engenharia. O Kenzo não quis nunca mais saber disso, “desisto da minha carreira, porque não levaram em conta os alertas que eu dei, morreram oito, nove pessoas”. Por um tremendo de um acaso eu estava na prefeitura de São Paulo e nós estávamos fazendo testes com câmeras de CFTV na Marginal. Tinham umas câmeras novas que estavam sendo doadas para a gente pela Sony e eram câmeras que permitiam enxergar uma imagem de 2 quilômetros. Num desses prédios da Marginal, pertinho da CT, lá no alto tinha uma câmera móvel, que a gente filmava tanto lá longe, como o Seagesp lá embaixo. Nós estávamos testando as câmeras e naquela noite em particular a câmera estava focada em cima da obra do metrô e pegou o desabamento todo. Eu gravei esse negócio e perdi essa gravação, mas até hoje eu sei quem é que tem. Hugo Maganha que foi colega nosso no financeiro do metrô. E deu para ver como é que aquele caminhão foi engolido, aquele pessoal que estava a volta. Uma coisa trágica. Pressa e abandono da técnica. Fazer o que.
P/1 - Como é que você vê a linha 4, toda a parte tecnológica.
P/2 - As inovações que eles fizeram em relação a nossa tecnologia hoje? Porque lá atrás nós éramos a referência, todo mundo copiou o metrô, levou a tecnologia para outros lugares. Hoje, eles se tornaram visualmente para a população, a meta de referência, e nós ficamos para trás.
R - Essa pergunta tem uma raiz um pouco mais distante e está relacionada com o papel do Rock e o Caetano. Quando nós desenvolvemos a linha Norte Sul, não havia suficientemente desenvolvido um negócio chamado eletrônica embarcada. Todos os equipamentos eletrônicos, essa câmera, o celular, naquela época os computadores tinham que funcionar em ambientes muito contidos, não poderia ter poeira, temperatura a 18 graus, ficava todo mundo resfriado naquela porcaria. A eletrônica não podia desembarcar, não podia sair de uma sala contida, ambiente controlado. Portanto os trens não podiam se valer da eletrônica, não tinha isso. A experiência mundial não avançava nisso, porque tinham medo, vai falhar muito, dar uma zebra, bater um trem. Então Norte Sul foi baseada não na eletrônica, mas na eletromecânica, nos trens. Era um relés, que a gente chamava de relé de gravidade, que eram usados pela Nasa. E eram duplicados para não dar o defeito que deu no Bart e nem para explodir as naves espaciais, que os norte-americanos perderam sete delas por causa disso. A gente foi treinado por eles, por isso que eu digo, fui treinado em análise de falhas por um pessoal da Nasa que ensinou a gente a detectar falhas nos sistemas e descobrir rapidamente como convergir para solução, qual é o erro que está levando a isso. Então na primeira linha a gente usou sistemas eletromecânicos que funcionaram até recentemente, até o Conrado resolver trocar e botar coisas mais novas. Mas os trens funcionaram 40 anos de maneira perfeita, a gente nunca bateu, é um negócio impressionante, como sistemas antiquados eletromecânicos conseguem fazer uma coisa dessas. Já na linha Leste Oeste, nesse esforço inclusive militar do Brasil – não tenho nada a favor dos militares, apesar do meu pai ter sido, mas eu fui preso e torturado por eles, então não tenho muita coisa a favor, mas eles tinham gente muito inteligente nessa área tecnológica. E eles resolveram desenvolver sistema de eletrônica embarcadas. Qual era o objetivo? Botar isso dentro de um tanque, de um carro de combate, mandar para o Iraque, porque havia acordo dos militares brasileiros com o Saddam Hussein aquela época, e botarem num foguete, numa nave espacial, num satélite, enfim. Era preciso experimentar a eletrônica em ambientes que não fossem totalmente controlados. Nos ônibus isso aconteceu mais ou menos na mesma época, a Mercedes Bens começou a colocar eletrônica embarcada nos motores, o que a gente chamava de micro switch. É uma chavezinha. O ônibus não consegue sair se não tiver a porta fechada, motorista não pode andar com a porta aberta. Esse é um primeiro sistema automático que a gente pôs em ônibus, é uma pequena chavezinha que controla e não deixa. E é eletrônica. Depois isso foi para a regulagem dos motores nos ônibus. E no metrô senta-se o Rock com um grupo de pesquisadores nossos, mas também internacionais, foi um projeto mundial isso, de levar a eletrônica para dentro dos trens. Foi um processo gradual, mas eles foram além do que se esperava e começaram a desenvolver sistemas de controle com uma versão diferente daquela que tinha prevalecido na Norte Sul. Na Norte Sul a gente tinha grandes computadores, que eram Xerox, ou da CGA que controlava a bilhetagem automática, que era uma porcaria de 64 K desse tamanho que qualquer uma porcaria de vocês tem uma capacidade maior do que a dela, para controlar um milhão de passageiros que nós tínhamos por dia. Eles começaram a montar uma nova concepção de sistemas complexos de controle, que se valiam não só de um centro que comandava tudo, pelo menos monitorava, mas também de computadores remotos, locais. Ou seja, aquela ideia inicial da década de 60, de você centralizar todas as informações num centro de controle, começou a abrir espaço para uma distribuição do controle ao longo da cidade. Isso teve uma razão tecnológica forte, mas teve uma razão também de combate ao terrorismo. Se você fosse um terrorista e quisesse desmontar uma linha de metrô você explodia o prédio do CCO e acabava. A gente passou a ter uma concepção diferente de que o sistema tem que ser auto seguro e o que faz o computador central é simplesmente ir monitorando e dar um alarme quando tá fugindo da regra. Quando veio a linha 4 a concepção foi muito mais avançada, a eletrônica entrou com tudo. A gente falou, já que tem disponibilidade agora, já testamos na Leste, funcionou, outros metrôs do mundo passaram a fazer isso também. Todo mundo observado a gente, por isso somos alvo de visita. No caso da leste a gente passou a usar o piloto automático, já na Norte Sul a gente já tinha instalado um grau de automatismo bastante elevado, na Leste mais ainda e agora na 4 você não tem o piloto para poder conduzir aquilo. É um robô. Não tem muito o que fazer. Voltando ao bilhete. Os norte-americanos, antes de implantar o cartão de crédito lá, eles observaram a experiência nossa no metrô, para ver se funcionava aqui. Só depois é que se passou a usar cartão de crédito nos EUA, primeiro no metrô, sistema bancário brasileiro, depois o deles. Hoje em dia se usa cartão inteligente. Mas enfim, a 4 veio no bojo desse movimento. Essa busca do automatismo do trem também visa você combater greve. Na medida que você automatiza os sistemas, você prescinde do operador de trem que é o elemento chave, essencial para conduzir uma greve. Essa é uma tendência mundial também. Aí vieram as portas de plataforma para evitar suicídio, porque viramos alvo de suicidas com muita frequência. O metrô do México tinha 50 suicídios por ano, praticamente um por semana. E eles disseram para nós que teríamos que ter cuidado com isso, daí veio a faixa amarela, que foi invenção nossa também. Parece simples, os cara vão respeitar isso? Respeitam. Nós tínhamos uma morte por ano no começo por suicídio. Hoje nós estamos com 30. As pessoas passaram a escolher o metrô, isso é mundial, não só daqui, como uma forma de dar fim a vida. O primeiro caso de suicídio eu peguei, estava no CCO na época. Era uma jovem mãe, que estava com uma criança no colo, um mês de idade. Ela estava em Paraíso, não sei se ela tinha ido para uma maternidade ali do lado e o marido tinha largado dela. Em Paraíso ela resolveu se suicidar com a criança no colo. Pulou na via, não aconteceu nada e as duas foram jogadas para baixo da plataforma. Nós tínhamos projetado a linha de metrô, por causa desse alerta mexicano, ela tem um vão chamado vão do suicida. Quando o cara se joga na frente de um trem, ele tende a adquirir, por razões naturais, a posição fetal. Você se enrola todo. Quando isso acontece, você vai no vão do suicida, o trem passa por cima de você, não te faz nada e a gente tira o operador de trem, deixa um mês ele em tratamento psiquiátrico, porque ele recebeu um trauma. Essa moça não aconteceu nada com ela, foi salva. Estava em treinamento no CCO no dia. Tivemos um outro caso com a Olga. Ela tentou suicídio no metrô 17 vezes. Era uma moça linda. A cada tentativa, a gente observava pelas câmeras – (CFTV) [01:55:02], uma das funções do operador é essa, tanto na SSO quanto no CCO – o trem encosta na plataforma e a pessoa não entra. É diferente da situação de hoje, muita gente fica ali sentada, esperando dar o horário. Mas naquela época não, todo mundo que estava na plataforma embarcava. Tem pessoas que se aproximam, não entram e voltam, ficam nesse movimento. Isso chama a atenção de uma maneira extraordinária para o cara que tá olhando o CFTV. A gente tinha aprendido isso também com os mexicanos. A Olga começamos a perceber dessa forma, vacilação dela. Como era uma moça muito bonita, os agentes de segurança todos queriam atende-la. Eu sei que foram 17 vezes, ela ficou muito conhecida, a gente dando tratamento psiquiátrico, leva para o hospital. Quando ela entrava em alguma estação, o CCO recebia, a Olga entrou no sistema, era uma mobilização total. Teve uma vez, milagre de São Joaquim, ela foi atendida por uma mesma dupla de segurança, por coincidência. Aconteceu de ela tentar de novo, a gente sempre chegava na hora e pegava a Olga. Essa dupla de segurança atendeu pela segunda vez ela – ela enamorou-se de um segurança nosso e casou com ele. E nós demitimos ele por assédio sexual, porque o nosso regulamento impedia. Imagina nós no CCO discutindo, brigando. O cara salvou a mulher. A Olga casou, nós mandamos ele embora, ela nunca mais tentou suicídio, resolveu o problema dela. Aí o pessoal da segurança hoje fala assim, é, mas quem começou a tentar suicídio foi ele. E a Olga era famosa naquela época por causa da Olga Benário, que tinha sido a mulher do Luis Carlos Prestes, que foi presa na ditadura do Getúlio, mandada para Alemanha e morreu na câmara de gás. O nome era muito famoso na época.
P/1 - Você entrou na empresa com uma expectativa. Ela se concretizou?
R - Sim. Quando eu entrei eu não sabia muito bem o que eu ia fazer, eu fui porque senão eu voltava para a cadeia. Meus amigos de faculdade estavam todos lá. Também havia uma expectativa que é a seguinte, como eu era físico, eu ia trabalhar programando trens, esse tipo de coisa, desenvolvendo software para o controle de trens. Mas não foi isso que aconteceu, me puseram para fazer métodos operacionais, que era uma disciplina muito comum para os administradores de empresa, mas não para físicos ou engenheiros. De qualquer maneira, por causa desse especialista em generalidades, me botaram nisso aí para poder congregar opiniões divergentes. Uma psicóloga falava uma coisa, engenheiro outra, matemático outra e ficava o fuzuê. Precisava de alguém para fazer convergir. Isso foi muito interessante. Eu estava acostumado com sistemas complexos de engenharia como um reator nuclear, um laboratório de pesquisa muito grande, eu tinha trabalho com feixes de prótons. Eram empreendimentos complexos e que exigiam graus de segurança máxima. Para o metrô isso era interessante, como fazer para que a gente não viesse a ter vítimas, batidas de trens. Mas também o outro lado dessa história é eu o metrô, com essa visão avançada, tinha constituído uma associação dos empregados de metrô, a Emesp. E ela acabou virando um órgão chapa branca, porque quem dirigia era o chefe do departamento de pessoal. Aquilo a gente olhava de rabo de olho, precisamos derrubar esse negócio, vamos fundar um sindicato. Aí começamos a trabalhar no CCO a ideia de criar um sindicato. Em primeiro lugar, vamos tomar essa associação. O Wilson Carmiani que era o gerente de recursos humanos. Fizemos uma assembleia, eu reuni um pessoal da operação, ninguém tinha condição de reunir 50 pessoas. Eu chefiava boa parte, falei, negócio é o seguinte, tem assembleia hoje, vamos lá. Aí resolvemos meter o Azevedo. Na hora de eleição que os caras esperavam que iam eleger o chefe do pessoal, não, negativo, vai ser um supervisor de estação agora. O Wilson, ao invés de mandar todo mundo embora, eu ia pra cadeia. Ele falou, boa ideia, porque esse negócio me enchia o saco, não tinha nada a ver comigo, vou ajudar vocês a criar o sindicato. Foi falar com o Almir Pazianoto, que era o ministro do trabalho, e conseguiu criar o sindicato dos metroviários. No primeiro instante, o sindicato de carris urbanos reivindicou, não o metrô é um carril urbano. Eles tentaram, já estavam mortos há muito tempo, mas ainda continuavam, quiseram ganhar nosso sindicado, mas o Almir não deixou. E os ferroviários também tentaram e a gente achou que não valia a pena. Eu conhecia o pessoal da ferrovia, mas falava, o sistema de vocês é outro, mais atrasado, enfim, é uma outra característica. E aí nós criamos o sindicato, elegemos o Luiz Carlos Furtado, o Azevedo, as diretorias todas Pereirinha, depois o Celso. Foi o pessoal daquele núcleo, ali que fermentou esse tipo de coisa. E tudo clandestino, boca pequena. Depois veio o PT, porque eu tinha críticas severas, entrei mais tarde quando fui pra CMTC, Erundina quando foi eleita, levou um punhado de gente lá, eles queriam que eu assumisse a operação e a manutenção, eu falei, eu quero ficar com a manutenção que eu nunca trabalhei com manutenção. E ônibus e trólebus. E levei um punhado de gente do metrô, depois levei pra Campinas, pra Santos. O Azevedo chegou a ser presidente da CMTC.
P/1 - Minha mãe foi assessora dele.
R - Quem é sua mãe?
P/1 - Jandira. Que mundo pequeno.
R - O Azevedo era um funcionário meu, entre aspas, supervisor e trabalhava comigo. Mas ele andou se metendo em algumas coisas... ele era pai de duas crianças, casado e resolveu se envolver com uma piranha que era bilheteira nossa e que estava envolvida com assaltos a bilheterias. Eu chefiava as bilheterias naquela época, todas as estações e resolvemos investigar. Mesmo jeito que fizemos com a freira. Cercamos e pegamos, era a amante dele, envolvida com prostituição na linha e com roubo a bilheteria.
P/1 - Como foi a decisão de entrar no PDV?
R - Não foi nada fácil, mas eu já estava indo para 44 anos de metrô e essas extensões todas. Eu comecei a perceber que o metrô já não era mais o mesmo; que assim como nós com 20 e poucos anos recebemos uma tarefa de montar o melhor metrô do mundo, nós temos que dar essa oportunidade para os jovens de hoje. Os jovens de hoje são diferentes dos jovens da nossa época, eles são muito concurseiros, eles prestam concurso para promotor hoje, para o metrô amanhã. Onde oferece uma oportunidade melhor, eles vão migrando, então a gente tem um problema sério. Você treina um jovem engenheiro hoje e com seis meses ele vai embora. E dificuldades que grande parte do pessoal que sai das universidades hoje não sabe escrever. Não vou chamar de analfabetos funcionais, porque seria muito forte, mas não sabem escrever, se expressar. E na nossa época nós éramos obrigados, o teste inicial já previa esse tipo de coisa. O relacionamento nosso com o público, com outros metrôs, com autoridades, assim por diante, era constante, no dia a dia, todo mundo tinha que estar preparado. E a gente sente muito essa dificuldade hoje, conversava muito com o Conrado com o Rock sobre isso, o que a gente pode fazer para mudar um pouco isso. As universidades preparam muito mal de alguns pontos de vista. Claro que a educação tem que mudar, internet, essas coisas, mudam muito o enfoque que tem que ser dado, não é mais a escola tradicional, milenar, na qual fomos criados. Mas precisamos substituir por coisa melhor do que a nossa e não por pior. Foi duro, eu saí no PDV e entrei em depressão. Até um ano atrás eu estava em depressão, vieram duas infecções graves e aí tive que ser tratado rapidamente para não deixar evoluir. Mas superei. Porque aí começaram a surgir outras coisas, cursos no Brasil inteiro, pessoal pede muito. E também muita oferta de cargo, mas nem eu, nem o Conrado, nem ninguém que sai do Metrô vai querer jamais uma caneta na mão para assinar qualquer documento. O cara que fizer isso não vai dormir o resto da vida. Não estou falando daqueles que roubam intencionalmente, mas quando você assina um documento desse, você sempre tá correndo um risco enorme de alguém resolver te pegar. Não vale a pena. Hora de se afastar.
P/1 - Você está fazendo consultorias?
R - Eu sou vice-diretor num departamento no Instituto de Engenharia, ofereceram diretoria também, cargos, muitos cargos em Brasília, São Paulo. Não, não quero. Volta para o metrô, SPTran, não quero. Deixa a canetinha. Não quero assinar documento nenhum, porque isso traz dor de cabeça. Nada contra a onda da Lava-jato, acho que era muito necessária e tomara que vá em frente, mas você fica muito suscetível a malandragem de promotores públicos. Temos amigos que estão sendo perseguidos por razões que são outras, que a gente não atina muito bem quais são, mas evidentemente tem interesses econômicos por trás. Por exemplo, os trens estão chegando aos 40 anos, o que vamos fazer? Vamos substituir por novos ou fazer uma revisão completa deles? Quanto é que dura uns trens lá fora? Na França são 60, 80 anos, na Inglaterra. Um trem de metrô foi projetado para funcionar 100 anos. Mas houve uma evolução tecnológica muito grande, entrou eletrônica embarcada. Então vamos reformar, não vamos jogar fora essa casca que funcionou 40 anos perfeitamente, porque jogar isso no lixo. Aí os fabricantes de trens novos, que tem um monte deles preparadinhos na prateleira, você quer o verde ou o amarelo? Não quero nenhum dos dois, quero que você me monte aquilo que eu quiser dentro desse trem, como a gente fez na década de 60 e 70. Eles não aceitam. Então os fabricantes mundiais, houve uma forte concentração, eles dominam o mercado mundial e te constrangem a comprar novos trens, joga fora esse aí, ponha outro no lugar. Não é bem assim, a gente, não pensa dessa forma. Um cara desse compra um promotor público, que fica te azucrinando o resto da vida, porque ele está mancomunado com interesse de fabricante.
P/1 - E hoje, com essas novas perspectivas, qual o seu maior sonho?
R - Estou indo ver minha netinha nascer, vou ver meu neto que vai fazer três anos agora. Eu gosto muito de fazer o que eu estou fazendo. Outras empresas de transporte, metrôs principalmente, pedem treinamentos focando esse espírito do metrô. Eles não querem que eu vá lá para explicar como funciona essa câmara. Primeiro que eu não sei mais, mesmo que eu quisesse, já estou desatualizado. Mas eles querem saber como se monta essa relação entre o equipamento, o programa que está orientando esse hardware que está aqui na minha frente, mas não só isso, o operador que está por trás, quais são os desejos que ele tem, as características, como é a relação homem máquina e como é a relação desse conjunto de hardware, software e o operador com o usuário que vai se beneficiar, vai reclamar, vai brigar, e com o ambiente que isso tudo está inserido, que é o ambiente político, não só natural, o ar, os rios, as águas. Essa visão de sistemas complexos de engenharia é o que vai dar nesse curso que a Poli tá criando agora. É exatamente isso, não adianta você descobrir um hardware ultra avançado e você tentar impor isso para a sociedade se ela disser não para você. Se isso tiver produzindo muito metano para a atmosfera, você não vai implantar essa porcaria aqui. Como é que você constrói uma obra de metrô sem derrubar uma árvore, sem levar em conta que tem uma favela no meio do caminho, que vai fazer barulho na obra. Esse conjunto de observações que é a chamada especialidade em generalidades é que os empreendimentos complexos hoje querem. E o mercado também, por incrível que pareça, pede a gente com esse tipo de visão, não quer só uma pessoa técnica. É isso, eu gostaria de continuar fazendo isso.
P/1 - O que você achou de contar sua história?
R - Eu achei muito bom. Já comecei no sábado, mas eles estavam especificamente interessados em 68, porque estão comemorando 50 anos de 68 na França, primeiro de maio aqui em São Paulo, greve de Osasco, manifestações de rua, AI5, essas coisas. 2018 virou um ano chave, uma concentração de eventos que tá muito interessante.
P/2 - Seu Laurindo, gostaria de agradecer a sua participação no projeto de 50 anos de história do metrô e ao Museu da Pessoa. Muito obrigado pela sua história.
R - Obrigado eu.
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