Programa Conte a sua História
Depoimento de Esther Ibañez
Entrevistada por Carol Margiotte e Natália Tozo
São Paulo, 07/06/2018
Realização: Museu da Pessoa
PCSH_HV683_Esther Ibañez
Transcrito por Eliane Miraglia
Revisado e editado por Viviane Aguiar
P/1 – Dona Esther, bom dia!
R – Bue...Continuar leitura
Programa Conte a sua História
Depoimento de Esther Ibañez
Entrevistada por Carol Margiotte e Natália Tozo
São Paulo, 07/06/2018
Realização: Museu da Pessoa
PCSH_HV683_Esther Ibañez
Transcrito por Eliane Miraglia
Revisado e editado por Viviane Aguiar
P/1 – Dona Esther, bom dia!
R – Buenos días!
P/1 – Muito obrigada por estar hoje aqui com a gente.
R – Eu também agradeço imensamente.
P/1 – E, para começar, por gentileza, o seu nome completo.
R – Esther Ibañez Badia Mota, que é brasileiro, do meu marido.
P/1 – E o seu local e a data do nascimento.
R – 25 de junho de 1945. Eu nasci em Zaragoza, Espanha.
P/1 – E a senhora sabe por que seus pais te batizaram de Esther?
R – Foi meu irmão! O meu irmão tem quatro anos de diferença, quatro anos e meio de diferença. Aí, quando ele soube que a minha mãe estava esperando, tiveram que mandar ele para a casa do meu avô em Ojos Negros. Aí, ele gritava do trem: “A menina que vier vai se chamar Esther!”. Ele tinha quatro anos. Ele: “Eu quero Esther. É Esther que vai ser!”. E ficou Esther mesmo, viu? Quando eu nasci, ele voltou, era Esther, Esther, Esther e ficou Esther. Eu adoro o meu nome. A Bíblia diz uma história maravilhosa do nome Esther. Então, eu gosto do meu nome. É isso aí.
P/1 – E por que o seu irmão teve que ir para a casa do seu avô?
R – Porque sozinha... Porque foi parto em casa, né? Então, acho que eles mandaram para lá, para a família. Acho que era normal naquela época. Eu nasci num dia de... Meu pai falava que estava chovendo, a minha mãe falava que estava trovejando, que não estava... Minha mãe tinha comido – porque na Espanha fazem caracóis, como é que chama aqui “escarrôu” [escargot]? –, eles comem muito na época de junho, que nasce. Aí, minha mãe tinha comido uma tonelada daquilo lá. Eu acho que eu não gostei muito, eu quis ir embora de lá. Então, é o seguinte, o que é que eu ia te falar. Minha mãe mandou o meu irmão para lá porque era em casa. E o meu pai falava que estava uma chuva danada. Minha mãe falava que era trovão. E nesse trovão e vão, eu fiquei lá, saí de qualquer jeito. E estou aqui.
P/1 – E, Dona Esther, contando dos seus pais, conta pra gente o nome deles?
R – Meu pai é Santiago Ibañez Lucas. Minha mãe, Maria Pilar Badia Bala. Meu pai saiu de Ojos Negros com 16 anos, porque meu avô casou pela segunda vez. Aí, o meu avô queria que ele fosse para a mina trabalhar. Ele não quis. Aí, ele fugiu de casa. Foi para Valência. Pegou o trem e foi para Valência. Ele tinha um primo lá em Valência. Só que ele não sabia onde e ele achava que era igual a onde ele estava morando, que Valência era uma cidade pequena. E não era, era capital. Ele chegou em Valência, com um pouco dinheiro para comer, e não sabia o endereço. Aí, perguntou, saindo do trem, perguntou se conheciam o primo dele, o nome, deu o nome dele – que eu não sei o nome dele. Ninguém conhecia, achavam ele louco. Igual àqueles que vêm agora do Norte, que vêm para São Paulo pensando que São Paulo é só aquilo, né? Aí, ele sentou no batente da estação de trem, num banco de lá, ficou sentado esperando. O dia inteiro, ele andando e perguntando do primo dele. E todo mundo... Não sabiam. Aí, já anoitecendo, ele viu de longe. Desceu a turma do trem, viu de longe uma pessoa. Falou: “Mas aquele lá é o meu primo. Aquele lá é meu primo!”. E não era o primo dele? Quando ele gritou o nome do primo, ele: “O que você está fazendo aqui, Santiago?”. Ele contou que tinha fugido, tudo. E ele trabalhava de entregador de um supermercado. Não é supermercado, entregador de comidas, né? Falou: “Bom, você vai dormir com nós em casa” – que ele era também solteiro – “Você vai dormir em casa e depois eu te arrumo um emprego”. Dito e feito! Aí, o papai ficou trabalhando para essa firma. E o que aconteceu? Que eles faziam entregas para todo o lado da Espanha, para o sul, faziam entrega. Um atacadista era, na época, eu acredito. Aí, foi que aconteceu que eles fizeram uma entrega de Valência para outra capital, só que tinha que atravessar o rio, o Rio de Valência. Eles foram normal, como sempre. Quando chegaram lá, estourou a guerra da Espanha, irmãos contra irmãos. Então, eles queriam voltar para Valência, mas não era permitido. A turma que ficou em Valência lutou contra o Franco. E a turma que estava do lado que o meu pai estava lutou a favor de Franco, sem querer! Meu pai só queria saber de mulheres e trabalhar, só. Então, não sabia o que era política, na realidade. Lutou desde o primeiro dia da guerra. Ele já foi para uma igreja, porque não tinha onde morar. Ele foi para uma igreja ali, e os outros que estavam lá, os colegas dele, ficaram lutando contra Franco. Então, meu pai lutou a favor de Franco. Quando meu pai chegou na igreja, deram comida para eles, tudo o mais. Aí, um dia, dois, três dias, meu pai perguntou para o padre: “Senhor, quando que vai acabar essa burrice aqui?". O padre falou para ele: “Santiago, se isto não terminar em três dias, vai durar três anos. Porque em três anos vai acabar a guerra da Espanha e vai começar a Segunda Guerra Mundial”. Isso os padres já sabiam. Os curas já sabiam dessa Segunda Guerra Mundial, está entendendo? Então, não durou. Durou os três anos. E meu pai lutou a favor do Franco. Matando muita coisa, tomando, às vezes, passando muita sede. Bebiam até a própria urina deles. Não meu pai, muitos, meu pai também, muitas vezes ele contava que... Por que essa idiotice de guerra? A guerra não leva a nada. Só leva a sofrimentos. Os próprios colegas... Tanto é que meu pai, por exemplo, uma época, eles estavam lutando, e passava o Rio Ebro e, de um lado, estava a favor do Franco e, do outro do rio, estava contra o Franco. No acampamento do meu pai, estavam cantando, os militares lá, um deles estava cantando. Do outro lado, gritaram: “Olha, aqui é fulano, pergunta para esse que está cantando se o nome é sicrano?”, não sei o nome. Aí, perguntaram para ele e era! Eram dois irmãos. Um lutando contra o outro, entende? Os dois – olha, fico toda arrepiada! – os dois se uniram, puseram eles no meio do barco, de um barquinho de remo, para se encontrar. Ficaram conversando, falaram do pai, da mãe, dos irmãos, se abraçaram, cada um foi para um lado. Passou dois dias, um deles morreu. O contra o Franco morreu. Aí, gritaram para ele: “Olha, fala para sicrano que o irmão tinha morrido. Levou um tiro”. Ninguém sabe se foi meu pai, se foi ele mesmo, se foi outro. Então, a guerra é isso! Bom, parando de idiotice, de tristeza, meu pai começou a lutar. Meu pai, muito safado, mulherengo, ele tinha noiva em Ojos Negros, uma noiva em Ojos Negros, uma noiva em Valência. Tinha duas noivas! Naquele tempo, era noiva, não era só ficar. Era noiva. Aí, ele na guerra. Ele foi para ficar no front de Quinto de Ebro. Quinto de Ebro é onde minha mãe nasceu e tinha 14 anos. Lá não tinha água encanada, nem nada. Tinha que lavar a roupa no rio, ou na represa ali. Minha mãe sempre ia, levava a roupa para lavar lá. Nessa época, passou uma turma de soldados. As mocinhas todas lá lavando roupa, falando de coisas de mulher, viram aqueles soldados bonitinhos, sabe? Começaram a dar risada. A Dona Pilar não! Diz que não deu risada. Diz ela que não deu risada, não sei se é verdade. Meu pai, muito sem vergonha, falou assim: “Em vez de vocês darem risada, por que vocês não vêm lavar nossa roupa?”. Meu pai. Minha mãe falou assim: “O senhor, você pode ir em tal lugar, na rua” – deu o endereço – “que eu lavo à noite a roupa para vocês. Leva para mim à noite que no dia seguinte eu lavo a roupa para vocês”. Meu pai, à noite, pegou a roupa dele toda suja e levou lá para os meus avós. Levou para lá. Aí que começou a conhecer. Ficou noivo da minha mãe. Então, ele tinha noiva em Ojos Negros, noiva em Quinto e noiva em Valência. Meu pai! Por isso que eu estou falando a história da fotografia. E assim foi. Depois veio a guerra, muito forte. A mamãe teve que sair de Quinto de Ebro, foi trabalhar como doméstica em Zaragoza, e meu pai já estava em Zaragoza também, lutando. E foi assim que eles se conheceram e começaram namorar.
P/1 – Mas das três noivas...
R – Ficou só com a minha mãe!
P/1 – A senhora sabe por quê?
R – Acho que amava ela (risos). Amava! Porque eles eram sempre brincalhões, sempre carinhosos, sempre. Então, o meu avô, eu queria falar isso, o meu avô é Francisco Ibañez Rubio. O meu avô, do pai. E a mãe dele era Mariana Lucas Hernandez. Eles tiveram cinco filhos. Você vê, meu pai, Santiago, meu tio Manoel, que faleceu agora, faz dois anos, um ano e meio. Mas eu conto essa história do meu tio. Angeles, minha tia que casou com o irmão da minha mãe. Essa minha tia Angeles, era um irmão e uma irmã, e minha mãe, um irmão e uma irmã. No casamento da minha mãe com o meu pai, eles se conheceram. Então, ela era noiva lá em Ojos Negros, rompeu o noivado e veio casar com o meu tio. Então, um primo meu... Eu me chamo Esther Ibañez Badia. Ele chama José Badia Ibañez. Então, minha tia Angeles. Meu tio Francisco também, saiu com 13 anos de casa, porque apanhava muito da madrasta. Essa história também é muito boa. E a minha tia Amparo, que ficamos 20 anos sem se conhecer. Quando nós viemos aqui para o Brasil, ela que procurou, ligou para o Consulado para saber como que podia se encontrar com a gente. Aí, eles mandaram uma carta. Nós também não sabíamos lá. Nós ficamos 20 anos sem saber nada de lá! Então, foi assim. Aí, a minha mãe, os pais da minha mãe, agora. É Paschoal Badia Alierta, um homem lindo! Ele vinha do campo limpo, cheiroso, porque ele tomava banho. Diz que espanhol não gosta de tomar banho. Mas ele tomava banho todo dia no riacho da horta dele. Ele vinha com a carroça, isso eu me lembro muito bem. Ele vinha com a carroça e um boi carregando. Ele, com cachecol, a camisa branca listradinha, com o... Como é o nome daquilo lá, como é, sem manga? Não sei o nome, blusinha, um casaco assim, sem manga. Ele usava uma boina, a boina grudada aqui, eu não sei como, porque nunca caiu, gente! A boina do meu avô nunca caiu! Cheiroso, cheiroso. Olha, você olhava assim: “Meu Deus!”. Agora que eu sei que espanhol não gostava de tomar banho. Mas ele era cheiroso demais, meu avô. E minha avó era Leôncia Balcalvo, era magra, tipo você, magrinha, bonita, tipo a Geórgia, muito bonita, alta. Muito séria, é capricórnia, dia 13 de janeiro, igual meu marido, dia 13 de janeiro. Minha avó, Leôncia Balcalvo. Eles tiveram Encarnación, que durou até agora, morreu faz uns dez anos, meu tio Faustino, que morreu na guerra. A tia Maria também morreu de ter levado uma chifrada do seio, morreu de câncer no seio. A minha mãe, que era Lita, Lito, Lita. Meu tio Ramón, que casou com a minha tia Angeles, e a tia Carmen, que ainda é viva. A única que está viva é minha tia Carmen. E isso é a história do pai, da família do meu pai, e a família da minha mãe, a história. Eu vivi mais com meus avós maternos.
P/1 – Sim. O seu pai chegou a reencontrar o pai dele?
R – Não. Nunca mais. Nem o pai, nem... A mãe já tinha morrido. Mas o pai nunca mais reencontrou. Meu avô não tinha um olho. Queimou com cal o olho dele. Mas ele não se importava, não. Ele passava três dias e três noites numa taberna, contando piada e nunca repetia a mesma piada. O meu irmão, o meu filho é assim também. O meu filho é desse jeito. Onde ele passa, alegra todo mundo. Igualzinho, é igualzinho o Ibañez o meu filho. E meu avô, o paterno, ele era muito trabalhador. Muito! Ele trabalhava na mina. Ele se aposentou pela mina de carvão, de ferro, não me lembro direito. Casou, morreu a minha avó, deixando a minha tia Amparo pequenininha. Então, ele casou com outra senhora que tinha três filhos. E agradava os filhos e maltratava os enteados, e por isso que todo mundo se mandou. Só dois falaram: “Eu fico porque as terras são minhas”. Hoje em dia, eles estão podres de ricos, que não sabem... Mas eu falo para eles: “Tio!” – aí vem a história do meu tio – “Tio, vamos para o Brasil”. “Ai, Rami, e eu ia subir aí arriba? Eu vou subir em um avião? Não, não, não, não. E después eles fazem as necessidades deles lá em cima e cai tudo aqui em baixo!”. Ele falava para mim. Podre de rico! Não sabe... Esse meu tio, ele leva todos os dias carneirinhos de 12 quilos a 15 quilos para o mercado. Ele era pastor. Eles preferem, eles preferiam dormir mais no chão do que em casa. Esse meu primo, o filho dele, faz três anos, eu fui para lá. E Fernando, ele estava lá nervoso porque não sei o quê. E falei: “Por que você está nervoso?”. “He perdido un millón de euros”. Um milhão de euros. Eu digo: “Por quê?”. “Porque eu confiei num primo, num amigo meu”. Num amigo meu. “Ele comprava e depois ia me pagando, me pagando. No começo, pagou direitinho. Depois, ele não me pagou e ficou atrasado”. Um milhão de euros! Eu falei: “E agora, você vai...”. “¿Yo voy a me aborrecer?” “Eu vou me aborrecer?” “Mas você já está aborrecido!” Ele: “Dejala, vá venir después”. Para você ver que eles não ligam. Mas eles ligam para uma viagem de avião. É muito interessante. É cultura, né? E assim é. E esses meus tios Manoel e Francisco, porque eles saíram de lá e tudo o mais. Faz dois anos, eu falei, eu ia todo o ano, por eles. Eu tenho parentes ainda lá. Aí, há dois anos, eu cheguei, eu falei: “Olha, eu vou visitar meus tios porque eles estão muito velhinhos. Estavam um com 93 anos e outro com 96. Eles estão muito velhinhos, eu vou visitar eles”. Eu cheguei lá, eu que me cuidasse, viu? Porque eles estavam... Esse tio Manoel morava em Barcelona. Nós fomos passear, passamos perto da praia. As mulheres lá não usam mais sutiã, usam topless. Ele falou: “Hija, mira, mira, mira, mira esta mujer”. “O que que é tio?” A mulher sem sutiã na praia. Ele: “Mira, mira! Antes, tanto, tanto, que no podría usar esto, aquello. Ahora ni con pinza se levanta más”. Porque agora não adiantava mais, porque agora não tinha mais jeito. Nem com pinça levantava o dele (risos)! “Tio, pelo amor de Deus” – 87 anos ele tinha, 87 anos. “Mas tio, pelo amor de Deus!” É assim. Bom, eu fui, visitei os dois, eu adoro os dois. As mãos do meu pai, as mãos do meu pai, as mãos do meu filho, igualzinhas. Eu cheguei aqui em setembro, em novembro, morreu o tio Manoel. Em dezembro, morreu o tio Francisco. Do mesmo ano que eu fui. Morreram. Os dois. Foi muito emocionante isso também. Isso me tocou muito. Agora a história do meu pai e da minha mãe (risos). Da família que eu queria que os meus bisnetos, tataranetos soubessem o nome deles, da herança que vem, de onde eles vieram, a raiz de onde eles vieram. São tudo honesto, trabalhadores ao extremo. O lado da minha mãe é mais sofisticado do que o meu pai. O do meu pai é mais grosseiro, mais de roça. A da minha mãe já é mais refinadinho, mas coisa, né? Mas todos eles... Maravilhoso. Eu tenho orgulho de pertencer a esta família. Posso continuar agora?
P/1 – Pode continuar. Dona Esther, só para avisar, se a senhora quiser, tem lencinho. E tem água.
R – Tá bom. Tá bom.
P/1 – A senhora falou que conviveu bastante com os seus avós maternos.
R – Sim!
P/1 – E a senhora falou um pouco do seu avô. Mas eu queria que a senhora contasse em que momentos a senhora frequentava a casa deles.
R – Do meu avô? Eu fui criada por meu avô. Ele me ensinava o Pai Nosso, ele me ensinou o Pai Nosso. Quando eu falei o Pai Nosso, não, os Dez Mandamentos – no Pai Nosso ele me deu só 50. Os Dez Mandamentos, que eu falei os Dez Mandamentos para ele, direitinho, ele me deu una peseta. É, una peseta. Era dinheiro! Olha, eu comprei uns quatro rabos de bacalhau. Adorava rabo de bacalhau salgado, para brincar. E eu fui criada por eles. Por quê? Porque meu irmão e eu, minha mãe diz, dizia, que nós brigávamos muito. E ela tinha outra coisa, sei lá o quê. Aí, me mandava para minha avó. Minha avó, em Quinto de Ebro, passou o Rio Ebro, que minha mãe e meu pai se conheceram. E ela falava que o meu irmão ia nadar lá no rio e podia morrer. Aí, eu concordava e ficava com o meu avô e minha avó. Eu gostava mais porque lá tinha minhas amiguinhas, eu brincava muito de tabas. Aqueles ossos virados ao contrário, tem um ossos... Aqui é de saquinhos que a gente brincava, brinca, né? Ali, eu brincava com ossinho, não é de galinha. De porco, pode ser de porco, quadradinho, tem quatro, cinco dados diferentes. Eu brincava muito com aquilo. Brincava com agulhas. Fazia um montinho de areia: a gente arriscava, se saía cor-de-rosa, era um valor. Aquelas agulhas que faz alfinetes, aquilo lá, a gente brincava com aquilo e que era uma delícia! Em Zaragoza, em outra capital, não tinha como brincar. Lá em Quinto de Ebro, eu brincava, e eram 20 quilômetros só de diferença, de onde minha mãe morava dos meus avós. Então, eu preferia ficar na casa dos meus avós também. Eu tenho mágoa, um pouco. Eu achava que a minha mãe preferia o meu irmão a eu. E sempre foi. Até velha. Eu, velha, velha, eu falava para ela. Eu cuidei muito da minha mãe sempre, dos meus pais. Eu falava para ela: “Você sempre gostou do meu irmão mais do que de mim”. E é verdade. Mas é ciúmes. Mas é isso aí.
P/1 – E como a senhora ia para a casa dos seus avós?
R – De bicicleta. Primeira vez que uma menina usou calça comprida, macacãozinho, em Quinto de Ebro, fui eu! Minha mãe fez. Você viu pelas fotos. Minha mãe sempre muito caprichosa, muito lencinho. Minha mãe, com três anos, me fez fazer permanente, me queimou aqui. Elétrica, permanente elétrica, porque tinha que ser. E isso manteve até com 50 e poucos anos, eu tive que fazer isso. Nós vamos chegar lá. Aí, a minha mãe mandou fazer um macacãozinho. Usa aqui. A Adriana que usa muito, a minha neta. Ela é tirante, tem um peitoral e curtinho. A minha mãe fez e me pôs em cima do banquinho da bicicleta do meu pai. E, ó, Santiago e Dona Esther foram para Quinto de Ebro. São 20 quilômetros de bicicleta, é descida. Foi uma beleza. A subida que é pior, né? E assim a gente ia sempre. De bicicleta mais. Tem o trem que passa lá também. Mas acho que, para economizar dinheiro, qualquer coisa, meu pai: “Eu levo!”. E levava. E eu adorava, porque meu pai é meu pai (risos). É isso aí!
P/1 – Na casa dos avós tinha alguma comida predileta que a sua avó fazia?
R – Tudo! A minha avó fazia pão em casa. Tinha o fogão a lenha, ela fazia pão em casa, fazia grão-de-bico. Comida de espanhol, muita batata. Como meu avô tinha roça, ele trazia todas as verduras: acelga de vocês, feijão-verde. Aquele, como é? Vagem, vagem, comida de espanhol. E porco, muito porco, porque eles matavam uma vez por ano os porcos. Eles colocavam em tigelas, em baldes, aquela banha – aqui também no Nordeste fazem isso –, e cortavam e aquilo vai tirando. Aquilo não envelhece porque fica no meio da verdura, da gordura. E como é muito frio, lá não estraga. Aí, você tem comida para o ano todo. E era uma matança danada, viu? Vou te falar. Eu me lembro disso. Coitado do porco (gritos). E assim foi (risos).
P/1 – E, Dona Esther, falando um pouco da casa da sua infância...
R – Olha, a casa da minha mãe em... Nossa casa em Zaragoza era um sobrado, era muito boa. Tinha uma sala de jantar, uma sala de visitas, tinha o quarto da mamãe, outro quarto meu e do meu irmão, depois tinha o refeitório e depois tinha a cozinha. Tinha um corredor, tinha lavanderia, banheiro, banheiro no corredor. Era muito boa. Nós vivemos bem em Zaragoza. Por isso que eu falo que a minha mãe foi uma heroína. Saiu dali e foi morar onde nós fomos morar, em Osasco. Mas tudo bem.
P/1 – A gente vai chegar nessa parte ainda. Só falando um pouco mais da infância da senhora, tinha divisão de tarefas em casa?
R – Não. Nenhuma. A minha avó atendia tudo em casa. Eu só brincava. Nunca teve. Ia para a escola, ia para a igreja muito, isso era obrigada. E brincava. Eu também, quando meu avô chegava, ele me mandava com a bota buscar una peseta. La bota de... Aquele de couro, um couro que fazem para eles porem vinho lá dentro. Aí, ele me mandava para a loja para comprar o vinho para ele. “Una peseta. Una peseta de vino.” Eu ia lá correndo porque, quando eu subia, ele me dava uma moeda. Então, é comigo mesmo. E assim foi. A minha infância foi muito boa nisso aí de Quinto de Ebro. Eu vivi muito bem em Quinto de Ebro. E Zaragoza. O meu irmão, quando a minha mãe gostava muito, até esqueci de falar isso. A minha mãe e o meu pai gostavam muito de cinema. Eles duros! Meu pai trabalhava igual a um condenado. Mas a minha mãe: “Ó, está passando tal filme”. Eles saíam de um filme e entravam para o outro. Às vezes, numa noite só, saíam três filmes de uma vez. Meu pai e minha mãe. E deixavam eu e meu irmão. Meu irmão tomando conta de mim. Aí, de vez em quando, meu irmão me dava um cascudo para eu dormir. E eu dormia (risos). Aí foi assim. Foi uma infância boa. Aí, de repente, o meu pai, porque o meu pai trabalhava em três coisas no dia. O papai, eu não sei o horário que ele saía, se eram três, quatro horas da manhã. Ele trabalhava numa fábrica de cimento, carregando cimento, fazendo não sei o quê. Saía uma e meia da tarde, almoçava. Eu me lembro dele vindo da fábrica, eu gritando, ia abraçar o meu pai. Isso eu não esqueço. São memórias. Gozado. E eu abraçava meu pai. Minha mãe puxava por meu irmão e meu pai puxava por mim. Mas em todos os efeitos. Em tudo. Mesmo de velha, velhos, era a mesma coisa. Minha mãe e meu irmão. Minha mãe tirava de mim e dava para o meu irmão. E meu pai: “Ai, minha filha!”. Então, meu pai trabalhava na fábrica de cimento e saía uma hora, uma e meia, não sei. E almoçava, dormia até às três ou quatro, e daí para desmanche de casas da guerra, que estava demolida. Pegava aqueles peões para tirar os entulhos e tudo. Trabalhava até nove horas, dez horas da noite, vinha embora. Aí, eu vou contar um segredo. A minha mãe, o padrinho da minha mãe era tenente-coronel, na época. É uma patente muito alta lá na Espanha. Não sei como é aqui no Brasil. Patente muito alta lá. E ele ofereceu para a minha mãe trabalhar, porque estava a pós-guerra, todo mundo duro, trabalhar com azeite. Então, era contrabando, antigamente era contrabando, se vendia azeite que não era do governo. E ali você tinha um litro por semana ou por mês para você usar. Não podia ter mais, não usava mais. O governo te dava, como a cesta básica aqui. Depois da guerra, aconteceu isso. Aí, a minha mãe começou a contratar vizinhas e a minha mãe distribuía o azeite. Era assim o azeite. O azeite é assim. O meu pai e o meu irmão iam na linha do trem, e vinha o trem, vinha bem devagarzinho, e jogava aquelas botas de vinho, em vez de vinho, vinha azeite. Com dez litros. Cada barrilzinho com dez litros de azeite. Aí, o meu irmão ficava naquele frio, chovendo. Meu irmão ficava escondidinho debaixo... Para não pegar frio, e ficava esperando. Recolhia, meu pai recolhia e deixava no monte. E meu irmão ficava para ninguém roubar aquilo lá. Meu pai subia de três em três de bicicleta, até em casa. De dia, a minha mãe distribuía para fulana, sicrana, sicrana e sicrana, e vendia. De tarde, as mulheres traziam o dinheiro e minha mãe levava o que pertencia para o quartel, e o restante ficava com a gente do que pagava as vizinhas. Então, meu pai trabalhava em três, praticamente em três. Porque ele ficava até uma hora da manhã no azeite também. Das dez à uma, ficava no azeite também. O papai foi sempre assim, trabalhador. E a minha mãe também. Acompanhava em tudo, em tudo.
P/1 – Por que é um segredo essa história?
R – Porque... Traficante, né? (risos) Na época era traficante. Na realidade, você vê isso. Porque você está lutando a pós-guerra. Então, não era tão grave assim. Hoje a gente acha grave, mas na realidade lá não era. Era sobrevivência, né? Eu acho que é isso.
P/1 – E, Dona Esther, eu queria que a senhora contasse para a gente os cuidados que a sua mãe tinha com a senhora com relação ao cabelo.
R – Ai, minha filha, mas era demais! Era sofrimento demais. Bom, eu já contei. Três anos, permanente. Isso sempre. A mamãe que gostava. Eu tenho o cabelo muito crespo, muito crespo, que espeta assim, de tão crespo que é. Imagina? É grosso, é duro. Mamãe não tinha laquê na época. O que tinha para durar, grudar? Cerveja! A minha mãe passava cerveja no meu cabelo, fazia cachinho para ficar o cachinho penduradinho. Isso, com o monte de cabelo que eu tenho, você imagina. Uma criança com três anos, quatro anos, sentada duas horas. Por isso que eu chorava, eu chorava, e a minha mãe: “Para presumir, sufrir”. “Para você ficar bonita, tem que sofrer”, minha mãe falava. E até hoje quando eu faço alguma coisa que demora muito, e minhas filhas, eu falo: “Para presumir, sufrir”. Para ficar bonita, tem que sofrer, de qualquer maneira. E assim foi. A minha mãe sempre impecável, sempre com lacinho, sempre, quando eu estava lá em Zaragoza. Eu gostava mais quando estava em Quinto de Ebro porque não tomava banho todo dia. Eu ficava brincando onde que eu queria. Com terra, sem terra. Mas a minha mãe era muito caprichosa. A casa dela era limpa. Até morrer, era limpa, limpa, que você comia no chão da mamãe. É assim, minha infância foi maravilhosa. Aí, quando meu pai resolveu, veio embora para o Brasil, porque no Brasil dava ouro na árvore. Não nascia fruta, nascia ouro, sabe? Era o que se falava lá na Espanha. Aí o meu pai não tinha dinheiro, logicamente. Não tinha dinheiro. Quando vinha muita fruta lá do lado da minha mãe... Das terras da minha mãe, vinha muita fruta. Também esqueci de contar essa.
P/1 – Pode contar.
R – Vinha muita fruta, muita coisa vinha. Azeite, olivas, carne, tudo vinha muito de lá para nós. E meu irmão era danado. Ele sempre foi o chefe da turma dos moleques lá. E eu, a chefa. Atrás da nossa casa tinha um castelo. E nesse castelo tinha... De um lado era o castelo, do outro lado, era uma fazenda, com muito pêssego, figo, tudo o que você possa, laranja, tudo, tudo o que vocês podiam pensar, tinha lá. E o que o meu irmão fazia? Tinha um muro de quase dois metros de altura para subir. Mas nós subíamos. E o meu irmão me deixava em cima do muro para ver se o vigia do palácio ia atrás de nós, para não quebrar. Ele não queria que a gente não comesse as frutas. Ele não queria que a gente não quebrasse os galhos. Mas eles faziam de Tarzan. Eles eram Tarzan. Meu irmão tinha até banheiro. Fazia acampamentos lá. Para você ver como nós éramos. Aí, um dia, o guarda. Não, foi assim. Eu estava lá e eu gritei: “Santiago, Santi” – eu falava – “Santi, guardia, guardia!”. Olha, eles davam um pulo de um lado para o outro, um pulo só, pum! Estava do outro lado. “Desde, desce!” “Eu tenho medo! Não vou descer.” “Desce!” O outro detrás me deu um empurrão que eu, puf, no chão. E o guarda veio se queixar para o meu pai. No dia seguinte, ou no mesmo dia, veio à noite falar com o meu pai, que nós tínhamos feito isso, tinha quebrado não sei o quê. Ele chamou: “Senhor, venha, entre!”. Tinha um saco de pêssegos, um saco de laranja, eu me lembro disso, um saco de pêssegos, um saco de laranja, tinha mais três, quatro sacos assim, que tinham acabado de chegar de Quinto, dos meus tios. Ele falou: “Olha, não é porque eles estão precisando fazer isso”. O homem abaixou, era manco o homem, da guerra. Ele mancava, ele fazia tum-tum, tum-tum, sabe? Ele não tinha uma perna. Isso eu lembro também. O homem falou: “Eu sei. Eu sei que não lhe falta nada. Tem de tudo. É coisa de criança”. E era mesmo. Mas foi delicioso, foi muito bom. Aí, quando o meu pai cismou de vir para cá, não tinha dinheiro, não havia nada. Então, minha mãe fazia muitas reuniões de amigos, senhores, minha mãe era muito... Fazia visitas para idosos, para tudo. Aí tinha um casal, Seu Joaquim e Dona Teresa, estava lá. E esses tinham muita amizade. Não, já estou exagerando, espera um pouquinho. Meu pai cismou e falou com a família. O pai, o marido da minha tia falou: “Santiago!”. Ele comprava uma fazenda toda, a plantação da fazenda, e depois ele pagava. Ele comprava de vez, toda, antes de começar a plantação, comprava tudo. Aí, esperava a colheita, eles vendiam para ele esse negócio e ele ganhava o dinheiro dele também. Como é que chama? Não sei como é que chama isso aqui. Ele comprava. Como o banco faz. O banco não paga uma colheita toda? Então, fazia isso, o tio Francisco fazia isso, comprava. Aí, ele chegou para o meu pai e falou: “Santiago, faz teus documentos que, assim que sair a colheita, eu dou o dinheiro para você ir”. Meu pai, todo entusiasmado, começou a fazer documentos para vir para o Brasil. Mas chegou na hora, ele ficou com medo de dar o dinheiro para o meu pai vir para o Brasil. Não ia voltar mais ver a família nem nada. Acho que minha tia, a irmã da minha mãe, fez a cabeça do meu tio. Não emprestou o dinheiro. Ficou aquele problema em casa, com os documentos, com tudo, e passagem, que só faltava comprar a passagem. Aí, esse casal de velhinhos, o genro deles estava na mesma situação. Só que eles não falaram nada. Chegaram para o meu pai e falaram assim: “Santiago, a minha casa responde. Nós vamos hipotecar minha casa e você vai para o Brasil”. Eles fizeram isso. Eles deviam ter uns 70 anos. Eu me lembro deles. Bem velhos. É que, na época, para a gente era velho, mas não era tanto. Sofridos, né? Eles foram e hipotecaram a casa para pagar em dois anos. Meu pai teria que pagar essa casa em dois anos. Aí, meu pai falou para ele: “Seu Joaquim, se eu não pagar essa dívida em dois anos, eu juro para o senhor, eu nunca vejo minha família mais! Eu dou minha palavra de honra”. Não teve nada assinado. Nunca foi assinado nada, só a palavra de honra. Aí, ele veio para o Brasil. Ele veio pra o Brasil com a cara e a coragem, sem dinheiro quase, você imagina? Sozinho. Nós ficamos lá. A mamãe começou a trabalhar de tecelã, eu fui para a casa dos meus avós, eu e meu irmão, porque nós estudávamos lá na Espanha, na Nossa Senhora Misericórdia lá, que aqui no Brasil também, vim estudar lá... E meu irmão ficou lá estudando. E eu, como era menor, fiquei estudando no povoado. Então, meu pai veio para cá sozinho. Minha mãe trabalhando de tecelã. Saía de madrugada e voltava duas horas da tarde. Aí que ela cuidava do resto de casa e tudo o mais. O que a gente se manteve lá, e meus parentes também continuavam mandando coisas para a gente, para ela. Meu pai chegou no Porto de Santos e tinha aqueles espanhóis, aqueles que queriam empregados sem pagar nada. Mas o meu pai foi trabalhar na Mooca com um espanhol. Mas continuou. Aí, começou a encontrar amigos espanhóis. E, como eu estava falando, o espanhol da época, naquela época, hoje a gente fala: “És catálan, és basco”. Mas, naquela época, não. Espanhol era espanhol, todos. Você podia ser do norte, do sul, do leste, você era espanhola. Então, se uniam, se uniam, você podia ajudar um ao outro. Aí, meu pai trabalhou seis meses para esse espanhol, só que meu pai não recebeu um tostão, um tostão. Quer dizer, comeu e dormiu só, em seis meses, e contando dois anos que ele tinha que... Ele vinha, de domingo, ele vinha se reunir com essa turma em Osasco. Ele estava na Mooca, ele vinha em Osasco. E se queixou, se queixava. Aí, um deles, Seu Luís, eu me lembro, tinha duas gêmeas, ele falou: “Santiago, você quer que eu te arrume emprego no Cobrasma [Companhia Brasileira de Materiais Ferroviários], fazendo engates de trem?”. Meu pai falou: “Quero! Só que eu não tenho um tostão para comer”. Falou: “Minha casa responde. Você dorme o mês inteiro, e eu te dou a comida. Quando você puder, você me paga”. Aí, foi assim. Meu pai veio embora para Osasco e, no outro dia, já foi trabalhar no Cobrasma, e dormia na casa do Luís, do Seu Luís. Comia na fábrica e só jantava lá no Seu Luís. Meu pai trabalhou quatro dias. Quando o meu pai saiu do Cobrasma, ia embora para casa, viu aquela multidão de gente na frente. O meu pai falou para o guarda: “O que é essa gente toda?”. Ele falou: “Estão em greve”. Foi a primeira greve de Getúlio Vargas. A história tem vida, a história viva mesmo. Foi a primeira greve do Getúlio Vargas. Meu pai falou: “E aí, o que eu faço?”. Ele falou: “Se você sair, não volta mais. Só quando acabar a greve”. “E se eu ficar aqui?” “Você vai trabalhar!” “Pois é aqui mesmo que eu vou ficar.” Aí, meu pai não ligava muito para banho. Tinha que comer, o Cobrasma dava comida. Dormir, ele dormia em qualquer lugar. Então, meu pai ficou 15 dias trabalhando 24 horas, 15 dias. Ele dormia, lógico! Mas os pontos, como ele não batia ponto, isso foi, 15 dias direto. Foi a salvação para ele. Ganhou os seis meses que ele trabalhou para o espanhol. Aí, quando ele recebeu, quem me contou isso não foi meu pai, foi o diretor, um dos diretores do Cobrasma, que a esposa dele foi minha primeira professora, a Dona Nair Belacosa. Ela foi a minha primeira professora. E ela, como eu falava muito espanhol, eu falava tudo em espanhol, ela achava muito interessante. Ela me levava para os filhos dela conhecerem, me conhecerem, falar em espanhol também. Um dia, o marido dela chegou e soube que eu era filha do Santiago. Ele me chamou e falou para mim – não lembro o nome dele, ele era advogado na época, não me lembro direito o nome dele. Ele me chamou e falou: “Olha, eu vou te dizer, não sei se você vai entender” – eu tinha nove anos – “Mas tenha muito orgulho desse homem que você vai encontrar com a mão calejada, porque ele é um homem muito honrado, muito trabalhador. Eu nunca tive um homem tão trabalhador quanto ele”. E era verdade. Meu pai era um homem... Onde que eu estava? Eu fico emocionada quando eu falo do meu pai e minha mãe.
P/1 – Que o seu pai conseguiu o dinheiro.
R – Quando ele recebeu, ele viu aquele montão de dinheiro, de cruzeiro, contos, eram contos na época, eram cruzeiros. Meu pai foi numa agência de turismo, na Avenida São João, subindo para São Bento, na esquina do lado direito, que ainda existe. É uma portinha pequena, ele vendia dólar, ele trocava dólar, trocava dinheiro, era ali. Senhor Balaguer é o nome dele. Meu pai pegou aquele dinheiro todo. Não! Antes disso, meu pai colocava dinheiro em cartas. Colocava o dinheiro, colocava o jornal, para não olhar, via que ele tinha escrito e mandava e minha mãe recebeu umas três, quatro vezes dinheiro assim, por carta. E veio direitinho. A minha mãe guardava para pagar a dívida. O senhor Balaguer, um dia, meu pai foi lá para trocar em pesetas, porque ele ia lá e trocava em pesetas para mandar para a Espanha. O Seu Balaguer falou: “Vem cá, Santiago! ¿Por que haces esto? É perigoso”. Aí, o meu pai contou que mandava para pagar... “É muito perigoso. Eles podem sumir o dinheiro. É o seguinte, você me traz o dinheiro aqui, você me traz em cruzeiros e eu dou para tua esposa em pesetas lá. Nós fazemos a diferença, você vai saber quanto que eu vou dar lá e você recebe em pesetas lá”. E assim foi. Então, foi até o final isso. Até meu pai, no último mês que fazia dois anos que meu pai estava lá, meu pai mandou total o dinheiro para pagar a dívida dele lá. O homem que hipotecou a casa falou para os velhinhos: “Se eu soubesse que ele ia pagar, eu não teria dado o dinheiro, mesmo recebendo os juros, eu não teria dado o dinheiro”. Ele queria a casa porque, antigamente, na Europa, não é só antigamente, até hoje, essas casas vêm de tataravós, herança. É muito difícil você comprar. Agora não, tem facilidades, mas antigamente era muito difícil. Então, ele queria a casa. Mas meu pai pagou a honra dele. Quando meu pai, o Balaguer falou para o meu pai: “Quando você vai vir buscar teus filhos e tua mulher?”. “Daqui a uns três anos”. Ele falou: “Não! Você não vai daqui três anos, porque, se você não mandar logo vir, você nunca mais vai ver teus filhos porque vai ter uma guerra aqui no Brasil”. “Mas eu não tenho dinheiro!” “Bom, eu vou pagar a passagem dos teus filhos, da tua mulher, eu compro a passagem e você vai pagar aqui no Brasil." Meu pai recebia cinco cruzeiros. Cinco cruzeiros recebia. “Você sabe quanto que eu posso pagar?” Ele falou: “Paga e, quando eles vierem, você vai ter mais condições, você vai pagar mais”. Ele fez a nossa passagem, o Balaguer comprou a passagem. Aí, nós fomos para Barcelona, que tenho aquela fotografia de Barcelona com minha tia. Nós tiramos na casa da minha tia. Eu fiquei um mês lá. Em Alcover, Tarragona. Aí, nós fomos lá. Quando nós fomos embarcar, fecharam as fronteiras brasileiras. Teve a revolução com o Getúlio Vargas, ele se matou. Foi em setembro. Não! Em agosto. Nós chegamos dia 25 de setembro. Trancaram as fronteiras, então, não saía nenhum navio de nenhum país do mundo, nem avião, nada saía para vir para cá. Nós ficamos uma semana na casa de uma prima do meu pai, em Barcelona. Depois de uma semana, abriram as fronteiras. Aí, nós fomos de navio. Nós viemos no Cabo de Hornos, nós viemos. No navio Cabo de Hornos. Passamos 17 dias no navio, 17 dias!
P/1 – Então, Dona Esther, a senhora estava começando a contar dos 17 dias no navio, né?
R – Pois é! Nesse navio vieram três meninos com 15 ou 17 anos sem pagar passagem. Polizónes que eles chamam. De contrabando, que não tinham passagem, não tinham documento, não tinham nada. Da idade do meu irmão. Eles tinham 14, 15 anos, não tinham 18, 14, 15 anos, a mesma idade. E geralmente, imediatamente, demoram dois dias, pegam eles sempre. Só que eles não. Eles se uniram, a turma dos meninos. Aí, ficaram os moleques todos, ficaram juntos. Então, eles conseguiram chegar no Brasil. Foi muito interessante. A mamãe lavava a roupa deles. Eles comiam junto na mesa, como se eles estivessem lá. Ninguém ia saber se eles tinham pai, mãe, nada, mas ninguém... Bom, nós não sabemos o que aconteceu com eles, mas nós conseguimos trazer para o Brasil três sem documento, sem nada, nada. Não sei o que aconteceu. Eles desceram no Rio de Janeiro. Para descer, porque eles tinham que passar com os números, desceram os três e meu irmão com mais três números de outros colegas. Aí, meu irmão desceu, levaram eles. Isso eu lembro também, muito triste. Levaram eles no cais, no chão. Depois, meu irmão subiu, entregou os documentos para os outros colegas e foram passear. Mas as mães que sabiam, todas as mães ajudaram a lavar a roupa de um, de outro, sabe? Encobrir. Nós estávamos em cima, e eles fazendo tchau para a gente, fazendo tchau. A minha mãe chorando, agradecendo, eles agradecendo, se ajoelhavam e agradeciam porque tinham chegado. Se eles tivessem que voltar, a polícia pegou eles, qualquer coisa, ninguém sabe disso. Eu sei que eles agradecendo, eu me lembro, eles se ajoelhando e agradecendo as mulheres que estavam ajudando eles. Aí, meu irmão subiu e pegou mais uns três ou quatro, a turminha deles, que eles dormiam naqueles navios que ficam pendurados. Eles dormiam lá para eles não sentirem que o outro não tinha lugar para dormir. Cabine. Não tinha cabine para eles, entende? Aí, falavam que os meninos não queriam mais dormir com os pais. Queriam dormir... Está entendendo? Então, foi assim. Aí, desceu toda a turma. Eu me lembro que devia ter uns 12, 13 meninos com aqueles três. Ficaram o dia inteiro brincando, até o navio sair. Aí. eles se despediram, dos três, e nunca mais soubemos disso, deles, nunca mais. Não sei o que deu neles. Se eles foram, voltaram repatriados ou não, mas eles chegaram ao Brasil. Essa foi a nossa viagem, mais importante que aconteceu na nossa viagem. Teve enjoo. Teve...
P/1 – E o que vocês trouxeram na mala, Dona Esther?
R – Só roupa. Mais nada. Só a roupinha que a gente tinha e coragem. Só! Mais nada. Não tínhamos nada. Minha mãe não trouxe nada.
P/2 – E, Dona Esther, em que ano vocês vieram para o Brasil?
R – Nós chegamos aqui em 54, dia 25 de setembro de 54. Nós chegamos. E eu casei no dia 25 de setembro também. É dose, viu? Mas eu casei (risos). Aí, eu contei, nós fomos para Osasco, no Jardim Piratininga. Nós fomos morar, que eu te falei...
P/1 – Mas, antes, como foi chegar?
R – Chegar? Ah, meninas, isso eu tenho que contar! Eu, quando chegamos ao cais do Rio, tinham aqueles “estribidores” [estivadores], aquelas pessoas que carregam as coisas. Antigamente, carregavam no ombro mesmo. Aí, foi a primeira vez que eu vi uma pessoa de cor. E eles faziam isso, isso o que eu vou falar, porque eles sabiam que a gente ficava assustada. Eles mostravam os dentes pra gente. Riam e mostravam aqueles dentes brancos, brancos, brancos e preto, preto, preto, preto. A pessoa preta, preta, preta, sabe? Que nem esses nigerianos que a gente vê agora, igual. Eu nunca tinha visto. Eu desci para o quarto em que nós estávamos, eram as escadas assim, desci a mil, gritando: “¡Mamá, vi un diablo! Vi un diablo!”. Terrível! Isso foi marcante, os três meninos e as pessoas de cor. A primeira vez. Porque na Espanha não tinha. Agora tem, normal. Mas na Espanha não tinha pessoa de cor. Foi a primeira vez que eu vi, no Rio de Janeiro. Aí, depois eu te contei, né? Fomos para Osasco.
P/1 – Mas, depois do Rio de Janeiro, vocês pararam...
R – Em Santos.
P/1 – Em Santos.
R – Fomos até Santos. Aí, o meu pai estava lá, esperando pela gente. A gente veio, não me lembro se viemos de trem, ou de ônibus.
P/1 – E como foi o reencontro?
R – Emocionante. Foi muito emocionante. O meu pai, com dois anos, tanto é que eu comentei com você, se nós fôssemos fritar um ovo, o meu pai saía da casa porque não suportava o cheiro do ovo, de tanto ovo que ele tinha comido com pão. Era assim, foi mesmo, foi duro para ele esses dois anos. Então, a família, ele lutou pela família. E ele viu que aqui não dava ouro na árvore também. Ele viu que tinha que trabalhar. Ele viu que tinha que lutar e que aqui não tinha mais família. Era ele. O meu irmão veio com 13 anos, com 14 anos ele começou a trabalhar no Cobrasma, junto com o meu pai. Aí, nós conseguimos pagar mais rapidamente a dívida do meu pai. Já sobrava mais dinheiro para a gente viver e guardar para comprar uma casa, que o objetivo da gente era uma casa.
P/1 – Mas quando vocês chegaram em Santos e foram para Osasco? Antes, onde seu pai levou vocês trabalhar?
R – Não, não, já fomos para Osasco, nessa casa do cortiço que meu pai alugou. Meu pai alugou uma casa para seis pessoas, seis famílias. Um russo, dois brasileiros e, não! Tinham cinco famílias. E um filho de espanhol e minha mãe. E meu pai se desculpando, né? Era um banheiro para cinco famílias. E minha mãe o que fazia? A minha mãe obrigou, falando que todo mundo tinha que ter um dia para limpar o banheiro. Cada família limpava um dia o banheiro. E ela ficou com dois dias para limpar o banheiro disso. E a minha mãe pintava a casa todos os meses, de cal. Por quê? Porque tinha que estar cheirosa, tinha que estar limpa, sabe? A mamãe era assim. Nunca reclamou. Nunca. Lutou, lutou para comprar uma casa. Para nós comprarmos uma casa.
P/1 – E ainda, Dona Esther, nessas primeiras impressões, como que foi se adaptar à comida?
R – Nós comíamos igual espanhol. A gente comia igual. Batata. Não comíamos arroz e feijão. Até hoje eu não como arroz e feijão quase. Eu como mais por causa do Valter, eu fazia por causa do Valter, e o Valter não gostava também muito de feijão. Então, era mais comida espanhola. Só ele nunca deixou eu fazer grão-de-bico depois que eu casei. Porque ele falava: “Não quero grão-de-bico”. Eu comprei um saquinho de grão-de-bico quando eu casei, durou sete anos, duro, que eu jogava pingue-pongue. Mas estava lá, estava lá. Não queria que eu fizesse grão-de-bico. Normal, a comida. Normal, tudo, carne, tudo normal, a comida tudo normal como espanhol. Muita sopa, a mamãe fazia muita sopa à noite porque meu pai tinha que esquentar o estômago dele, tinha que fortalecer o estômago, fazia muita... Como nós não tínhamos muito dinheiro, a minha mãe comprava aquelas costelas com osso. A gente comia a carne, e o osso dava para a sopa também. Então, a gente viveu assim. Três anos.
P/1 – Voltando, Dona Esther, a gente estava falando dos primeiros contatos com comida, embora vocês tenham mantido a tradição.
R – Sim! Mantemos a tradição toda. Agora, o interessante foi a primeira semana em que nós estávamos aqui no Brasil, o papai levou nós na feira. Estranhamos porque na Espanha não tinha isso na rua. Agora está tendo. Agora é normal ter, até nas cidades pequenas. Mas antigamente não tinha. Então, era só no supermercado que a gente comprava. Aí, nos levou no largo de Osasco, na Antônio Agu, tem uma feira, até hoje tem essa feira. Nós fomos comprar o que minha mãe precisava de batata, cebola, o que minha mãe precisava. Compramos e passamos na banana. Ah, eu esqueci da banana da Espanha. Essa banana da Espanha é tradicional. Vou voltar, vou só fazer isso. Na Espanha, Barcelona, quando nós ficamos uma semana sem embarcar, a minha tia comprou uma banana. Uma banana. Gente, até hoje, com 73 anos, eu sinto o gosto da banana. Eu comi aquela banana tiquinho por tiquinho, tiquinho por tiquinho, entrava no dente, mas aquele gosto delicioso da banana. Até hoje eu lembro do gosto da banana. Eu estava comentando isso ontem, na classe, da banana, dessa banana. E todo mundo fala que sente mesmo os gostos. Nós fomos pra feira no domingo, que era só de domingo. Aí, meu pai comprou um cacho de banana, 113 bananas. Tinha 113 bananas. Era assim a pinha. Durou quatro dias. Quatro dias, e não tinha mais banana nenhuma. Era só banana. Na segunda semana, tinha noventa e poucas bananas, a outra pinha o meu pai comprou. Também grande. Essa já durou mais de 15 dias ou mais, e eu não lembro mais. Aí, a minha mãe também começou a engordar por causa disso. Era banana com pão, engordava mesmo. A mamãe chegou aqui com 54 quilos. Em um ano e meio, estava com 80, tranquilo. E a Dona Esther também. Entrou também na banana. Foi muito interessante isso. Aí, o meu irmão começou a trabalhar no Cobrasma de faxineiro. Foi servindo café e depois começou a estudar. Ele se formou desenhista projetista. No Cobrasma, ele se formou. E foi trabalhar como aprendiz de desenhista projetista. Aí, no final, ele se formou engenheiro. Ele fez uma roda de usina nuclear, da usina. A primeira usina que o Brasil fez... Oh, meu Deus, no Sul. Ele que projetou. Levou até medalha. Ele viveu bem. E eu fui estudar no colégio Misericórdia, Nossa Senhora de Misericórdia, que era o mesmo de lá da Espanha, aqui em Osasco. Eu não pagava. Porque eles mandaram a carta, e como nós éramos imigrantes, eu nunca paguei escola. Eu me formei lá. Fiz um curso para fazer contabilidade. Eu já tinha 13 anos, eu já estava com 13 anos, eu passei em primeiro lugar de contabilidade. Só que o meu pai, o único erro que o meu pai teve que eu fico meio assim até de falar. Meu pai veio e falou: “Filha, você tem 13 anos. Você vai demorar quatro anos para você ter alguma coisa do estudo. Aí, com 18 anos, você vai querer casar. Que lucro que você vai dar para nós?”. O que você ia falar, você, que é imigrante? Aí, eu perdi. Eu fui em Campinas, recusei, e perdi. A minha mãe tinha uma amiga dela que morava aqui no Brooklin, e o marido dela entrou no poço para consertar a bomba e ele não viu, o gás matou ele. Matou. Ela ficou viúva com um filho. Ela era cabelereira. Para sobreviver, ela foi para Bragança Paulista, que o cunhado dela era diretor do colégio lá, o padre... Esqueci o nome dele. Ele era diretor daquele colégio. Que ele era também do São Luís, aqui. Ela foi morar em Bragança Paulista e pediu para minha mãe me deixar ir com ela para lá. E me ensinava cabelereira. Eu detestava cabelo! Aí, eu fui. Fui lá e fiquei seis meses, odiando. Ela fazendo cabelo e me ensinando, e eu engolindo. Aí, vim embora para Osasco de novo. Minha mãe falou: “Vamos te pôr num salão para aprender”. Eu fui na Praça da Sé, no Akahoshi, era um dos mais famosos cabelereiros para aprender a profissão. Mas você sabe o que é você engolir aquilo? Eu engoli. E de fato eu dei lucro. Porque o que eu ganhava a semana toda, eu ia à feira, no domingo, de bicicleta, aquela bicicleta que eu ganhei. De um lado, eu carregava um frango, duas sacolas de comida, com o dinheiro que eu ganhava de segunda a sábado. E no domingo de manhã eu ia à feira e trazia tudo. O dinheiro do papai e o dinheiro do meu irmão eram tudo com a minha mãe. A minha mãe que controlava tudo. Se sobrava... Então, com essa época que nós fizemos nossa casa lá em Osasco. Dois quartos, sala e cozinha. Nós fizemos. Um quintal enorme. Então, eu dei algum lucro, eu dei. Demos todos. Mas é assim.
P/1 – Qual a história dessa bicicleta?
R – Eu ganhei do meu pai, de segunda mão. Meu pai tinha um vizinho que estava vendendo, que o filho não sei o quê, não sei o que lá, ele comprou a bicicleta para eu ir para a escola. Porque de onde eu morava para o colégio, eu tinha que atravessar a linha do trem e andar de 20 minutos a meia hora, que a gente andava, eu andava bem. Então, ele me deu essa bicicleta para fazer isso. Ele comprou a bicicleta com muito sacrifício, pagou acho que a prestação, mas comprou a bicicleta. Foi uma alegria enorme para mim, eu ter uma bicicleta! Então, além de levar comida para ele às 11 horas, eu levava, porque só se comia às 11. A minha mãe fazia a comida, eu levava para ele na fábrica. Aí, eu ia para a escola e no final da semana eu paquerava com ela. Uma turma de meninas, a gente andava naqueles, ia até os quintos dos infernos de bicicleta, pegava aquela estrada, não sei, vocês não conhecem lá Osasco, né? A Primitiva Vianco não! A que sobe para... Como é o nome daquela avenida, aquela estrada que começa em Pinheiros e vai longe, uma estrada enorme? A gente se mandava para lá. Porque por ali também passava, tinha o quartel militar lá. Aí, tinha gatinhos bonitinhos, as meninas iam tudo para lá de bicicleta. Nós íamos 15, 16 meninas tudo de bicicleta. Sim, era uma turma. A Dona Esther tinha uma turma, sempre. E íamos de bicicleta, íamos e voltávamos, tranquilo. Ia para um clube lá que tinha, tem ainda, um clube lá. Tem ainda. A gente ia para o clube, ficava o dia inteiro. Não, domingo o dia inteiro não, eu tinha que limpar o fogão. Se não limpasse o fogão da minha mãe, eu não saía. Era minha obrigação limpar aquele fogão espelhado. Mas, aí, eu saía. Mas eu limpava tranquilo. Aí, eu fui ser cabelereira, já foi diferente, eu comecei a namorar. Quando eu fui para estudar na Akahoshi, eu... Ah, eu tenho que contar essa, de como eu conheci o meu marido. Bom, foi isso, bicicleta, passeio, paquera, eu nunca namorei firme. Nunca. Foi o meu primeiro namorado o Valter. Mas era paqueradeira que só vendo. Paquerava até gato e sapato. Via um “zóio” bonito, eu tava paquerando. E eu era paquerada também. O dono da Urubupungá, o ônibus mais famoso, Urubupungá, Manuel, era um português baixinho. Eu encolhi agora. Antes eu era mais alta. Ele passava na minha porta umas 50 vezes ao dia, com um carro vermelho, marrom, Aero Willys, uma coisa assim, um velho que até hoje ele tem. Ele mora no “um” e eu moro no “dois”. Até hoje ele tem esse carro. Ele passava e eu falava assim: “Eu não vou namorar esse cara, não. Baixinho. Eu dou um tapa na cabeça dele...”. Se eu soubesse que ele ia ficar milionário até ia olhar melhor, mesmo baixinho, viu? (risos) Mas o português não me lembro se era bonito. Ele era da nossa turma de baile. Eu frequentava muito o baile do Floresta. Mas era assim: eu só saía com o meu irmão. Se eu não saísse com o meu irmão, o meu irmão me explorava. “Esther, eu quero água. Esther, faz suco. Esther, faz isso, limpa o meu sapato”, que até hoje eu nunca limpei o sapato do meu marido e nem do meu filho de tanta raiva que eu tenho. Eu tinha que brilhar o sapato do meu irmão. Não queria saber. “Brilha! Sapa! Senão, não te levo. Não te levo!” Para piquenique, para tudo. Era assim. Um saco, meu irmão. Mas era muito querido. Aí, eu ia para baile, eu não podia dançar duas músicas seguidas com o mesmo rapaz. Porque, aí, era paquera. Não podia. Eu tinha um fã para bolero, um fã para tango, um fã para samba, eu tinha fã porque não podia dançar a mesma música duas vezes com o mesmo rapaz, mas eu podia pular. Hoje, agora eu danço com você... Boleros principalmente. Eu tinha um que, eu encontrei com ele no Carrefour, faz uns 10 anos mais ou menos. Lindo o rapaz. Alto, bonito que só vendo, só que era gago. Ele era. Agora ele é a patente mais alta que tem no quartel militar. Ele é agora. Eu encontrei ele no Carrefour da Raposo. Eu encontrei com ele.
P/1 – Vocês se reconheceram?
P/2 – Vocês se reencontraram?
R – Ele me reconheceu. Ele olhava para mim, eu olhava para ele. Eu falava: “Eu conheço esse homem”. Mas eu conheço tantos. Que diabo que eu conheço esse rapaz! Aí, ele deixou passar duas ou três e me parou: “Você chama Esther?”. “Chamo!” E falei meu nome para ele. Menina, eu não lembrava o nome dele de jeito nenhum. Mas eu lembrava do que ele fazia. Ele cantava: “Você, menina moça, amanhã, flor mulher”. Ele era gago, mas na música não era. Ele cantava divinamente no meu ouvido. Mas era muito bom. Muito bom naquela época. Muito bom. Então, eu não era de namorar. Mas eu era de paquerar. Eu tinha outro de samba, menina! Aquele lá me deixava virada, também muito bom, o Alcides aquele lá. Netinho, chamavam ele de Netinho. O que mais? Um dia, teve uma festa, um piquenique que a gente ia de piquenique tanto para a Praia Grande, pegava o caminhão, botava aquela coberta e, ó, todo mundo, piquenique para Praia Grande, para Praia da Tartaruga. Aí, nós fomos para essa represa aqui de São Paulo, meu Deus...
P/3 – Guarapiranga.
R – Guarapiranga. Fomos para lá. Aí, estava o caminhão, a turma do meu irmão brincando, jogando bola, e um deles puxou a camisa do meu irmão, que rasgou, brincando. Meu irmão ficou muito bravo. “Não vou mais!” Eu falei: “Bom, se ele não vai, também não vou poder ir”. “Você vai.” Eu falei: “Não vou, o pai vai brigar”. “Vai, sim.” Já estava em cima do caminhão e tudo. Eu falei: “Pois eu vou”. Olha, e eu não fui e eu não encontrei o Valter? Aí, fomos. Chegamos lá, estavam a Neusa, a Celinha, estavam quatro meninas. Vimos o campo livre, montamos nossa barraquinha lá para fazer o nosso piquenique. Uma toalha, pusemos as coisas e jogamos peteca. Estávamos jogando peteca. Depois de uma hora, mais ou menos, uma tranquilidade total, veio uma turma, uma turma com seis, sete carros. Homens e mulheres, crianças, tudo! Aí, começaram a jogar bola. Era um campo de futebol lá, onde nós estávamos sentados. Começaram a jogar bola. Era filho disso, filho daquilo... “Valtinho, olha seu irmão, vai para a água. Valtinho, olha isso!” Aí, a minha amiga olhou o Valtinho e adorou o Valtinho. Eu estava de olho no japonês, um que foi com nós. Ele tinha, como é, de relógio, relojoaria. Aí, eu de olho no japonês. Eu queria namorar o japonês. Mas a Neusa falou assim: “Ai, o Valtinho isso, o Valtinho aquilo”. Eu olhei para o Valtinho e falei: “Coisa feia!”. E não era feia não, era bonita. Mas eu estava de olho no japonês, no Mário. Aí, eles começaram a xingar, a falar palavrão. Nós fomos nos afastando, a gente foi se afastando. E deixamos o campo livre pra eles. Nós nos encostamos numa árvore, a turma toda do caminhão, uma se encostou de um lado, outra de outro. Fizemos uma rodinha afastada daquele campo, em que fomos nós os primeiros. Era uma turma de baianos, de Juazeiro, terrível, daqueles mesmo arretados. Eles ficaram de olho também em nós, né? Em nossa turminha também. Aí, minha sogra, que era minha sogra, a mãe do Valtinho vivia gritando: “Valtinho, teu irmão não sabe nadar direito”. Que ele saiu da Marinha. Ele era fuzileiro naval, então, ele nadava muito bem. “Valtinho, teu irmão não sabe nadar direito, olha lá teu irmão!” E ele tava jogando bola. Que ele jogava bola também. Tinha a perna torta. Então, jogava bola também. Aí, a Neide falava: “Chama Valtinho”, e não sei o quê, não sei o quê. Bom, no final, acabou aquele piquenique, nós fomos dar a última volta para olhar os meninos. E eu de olho no japonês. E o japonês só conversava comigo, mas não falava nada. Só me paquerando. E não falava nada. Não abria a boca. Porque antigamente japonês não se misturava assim. Há 40, 50 anos atrás, não se misturava. Uma amiga minha casou com um japonês. Por isso que eu conhecia o Mário. Casou com um japonês, mas sofreu o diabo para entrar na família. Ele gostava de mim, mas não podia falar nada. Aí, a Neide falou assim para mim: “Vamos passear, vamos dar uma voltinha”. De repente, começou: “Psiu, psiu, psiu!”. A a Neide olhou: “Ai, é o Valtinho! Ele quer falar comigo! Vocês vão passar pra frente e eu fico atrás, esperando”. Eu: “Tá bom”. Eu e a irmã dela fomos para a frente. Aí, ele olhou, falou: “Não, não é com você, é com ela que eu quero falar”. A gente se olhou. “Com ela” era comigo. Comigo? Eu não tinha olhado pra ele. Não olhei. Olhei assim, que tinha perna torta. Comigo? Aí, ele veio conversar, que estava interessado, como era meu nome, aquela conversa toda de paparicada. Aí, eu, para fazer birra para a Neusa... Ele falou: “Vamos marcar um encontro”, porque eles já estavam indo embora e nós também. Eu falei: “Tá bom, eu vou na Praça João Mendes, eu estudo na Praça João Mendes. A gente se encontra na terceira porta do Correio Central, às sete horas da noite. Mas é só se ver”. Eu falei pra ele. “Ah, tá bom!” Aí, a Dona Esther, falou: “Mas eu vou mais nada lá. Não vou de jeito nenhum”. Mas e a curiosidade? Para ver como que ele estava vestido, né? Aí, eu fiquei ao lado do Balaguer, eu fiquei lá olhado. Da terceira porta, para ver se tinha um rapaz lá. Mas ele estava tão elegante de terno, de gravata, tão bonito, eu falei: “Eita, diabo, que o rapaz é bonito”. Eu tinha 18 anos, quando eu comecei a... Não! Tinha menos, tinha 14, 18 tinha quando casei. Catorze para 15 anos, fora de série, 14 para 15 anos. Aí, eu achei ele bonito, elegante. O Valter era muito, do tipo da minha mãe ele era. Nunca eu reparei que ele tinha perna torta tanto assim, porque ele usava calça larga. Não reparava. Eu falei: “Nossa, como ele é elegante, bonito”, me tocou. Aí, eu fui lá. Ele me levou até a Sorocabana. De lá da São João, do Correio, até a Sorocabana, conversando. Como eu era? Como era o meu nome? Tátátá, e eu também. Fomos andando, numa boa. Falei: “Ah, não vou encontrar ele nunca mais”. Aí, ele viu onde eu estudava. Soube onde eu estudava. No dia seguinte, ele estava lá na porta do estudo, de onde eu estudava. Aí, ele me levava até a Sorocabana. Só que eu não podia, ninguém podia saber que eu namorava, que eu estava me encontrando com um rapaz, porque meu irmão era muito conhecido e eu também. Então, meu irmão ia saber. Eu não podia namorar. A única coisa que eu não podia fazer era namorar, com ninguém. Então, eu não deixava ele ir para Osasco de jeito nenhum. Ele queria ir para Osasco. Imagina! “Você não vai me ver nunca!” Ele ficava: “Por que eu não posso ir para Osasco?”. Eu contava para ele que eu não podia namorar. O meu pai, a minha mãe falavam: “Eu não quero que você case nem com baiano, nem com preto”. Duas coisas. Ah, tá bom. Não podia casar porque antigamente baiano era ralé, aqui em São Paulo. Na realidade, eram ralé os baianos. Então, eu não podia. E de preto muito menos! Então, eu não casei com preto, mas casei com baiano. Meu marido era cor brasileira, que é moreno. Tanto é que minha mãe desconfiou se ele vinha de raça de cor. O tio dele falou para minha mãe: “Os nossos antepassados tinham escravos. Nós nunca tivemos pretos na família”. Ficou até magoado. O tio Anísio ficou magoado da minha mãe perguntar. Ficamos namorando assim oito meses, com ele. Só ele me levar na rodoviária, na estação de trem Sorocabana. Um dia, um amigo do meu irmão me viu de mão dada. O meu irmão falou: “Você está namorando”. Eu: “Não estou”. “Você está namorando.” “Não estou.” Eu jurava de pé junto que eu não estava. Aí, o meu pai soube. O que é que acontece? O meu pai falou assim. Eu só podia sair de domingo de casa. Meu pai chegou, e eu saí para ir ao cinema. Eu falei que ia com uma turma no cinema. “Está bom.” Eu peguei o trem e encontrei com o Valter na Sorocabana às duas horas da tarde. Eu tinha que voltar às seis horas em casa. Eu fui ao cinema. Pegamos a sessão das três, às cinco eu já estava pegando o trem para vir embora. Eu só fui ao cinema com ele. O que é que acontece? Meu irmão falou para o meu pai: “Você quer pegar ela em flagrante? Você pega em tal hora o trem, que você vai pegar ela na estação do trem”. Só que eu vim antes. Quando o meu pai, meu pai foi, e eu vim embora pra casa. Ele ficou esperando. Ficou esperando duas horas mais. Como ele sabia que eu não podia chegar depois das seis, ele veio embora. Quando eu cheguei em casa, foi a primeira surra que eu levei do meu pai. Quando eu cheguei em casa, o meu pai falou para mim que eu estava namorando. E eu falei que não, que ele estava mentindo. Ele me deu um soco! Ele me deu um soco que inchou meu olho. Ele me deu um tapa, mas um tapa bem dado. Porque eu falei que ele estava mentindo. Ele não estava mentindo. Eu é que estava. Aí, eu conversei com o Valter. O Valter queria vir de qualquer jeito, queria firmar namoro. Eu falei: “Você vai ter que vir”. Combinamos num domingo. Meu pai falou para ele: “Duas horas. Dez horas é o máximo para você sair da minha casa. E só de domingo. Não tem mais nada. Só de domingo”. “Tudo bem.” Concordou plenamente. E eu só namorava no domingo. Mas era chato. Eu não tinha mais paquera. Era muito chato. Eu fiquei sete ou oito meses namorando. Assim, de domingo. Fomos assistir, um dia – olha como ele era positivo, militar –, nós fomos assistir Ben Hur, cinco horas, seis horas o filme Ben Hur. Nós entramos às duas horas no cinema e nós íamos sair cinco horas depois, sete horas, ia passar. Ele me obrigou a sair no meio do filme para chegar seis horas da tarde em casa. Está entendendo? Aquilo foi a gota d’água para mim. Eu era rebelde. Eu falei: “Nossa senhora!”. Aí, voltamos. Eu falei: “Vou romper o namoro”. Eu falei para ele que eu não gostava dele, pá, pá, pá, aquela conversa toda. Ele foi de Osasco até Pinheiros chorando. A pé. Ele não pegou o trem. Isso quem me contou foi a mãe dele. Mas eu não quis voltar. Porque ele foi criado pela mãe só. A minha sogra ficou viúva com 18 anos. O pai dele era médico e foi fazer uma travessia de Salvador à ilha, uma ilha que tem lá, e ele estourou o apêndice e morreu. E a minha sogra estava de sete meses, grávida. Ela ficou dois, três anos com o sogro e foi embora. Aí, não conheceu os avós paternos. Quando esse rompimento de namoro, ele foi conhecer os avós. Ele tinha saído da Marinha, ele foi conhecer os avós. Os avós tinham muita posse em dinheiro, eles faziam exportação e importação de cacau e de fumo na época, mandaram ele para a Alemanha, para estudar na Alemanha, dois anos. Ele foi e ficou em Bremen, na Universidade de Bremen. Aí, ele veio, falou que queria voltar comigo, e queria ficar noivo porque ele ia ficar pelo menos um ano na Alemanha. “Não quero, não quero, não quero.” Mas era muito interessante ele longe, eu não estava vendo, fazia meu príncipe encantado, amoroso, e não estava aguentando. Falei: “Está bom, vou ficar noiva”. Fiquei noiva dele. Ele na Alemanha e eu aqui. Isso, um ano foi assim. Depois de um ano, em vez de ficar dois anos, ele ia ficar um ano em Lancaster, nos Estados Unidos. Aí, ele falou: “Não, eu só vou casado”. “Você tem que ir para ajudar a tua língua, tem que ter outra pessoa, não a mesma língua. Para aprender.” Ele pegou tudo, trouxe o fusquinha dele, vendemos o fusquinha dele, vendeu o fusquinha, compramos móveis e casamos. E ficamos 48 anos casados.
P/1 – Nesse período em que ele estava fora do país, vocês se correspondiam?
R – Direto. Eu tenho caixa enorme. Ele me escrevia sempre. Ele me amou mais do que eu. Muito mais! O Valter me amou, mas ele não soube me amar. Ele me amou. Ele não soube demonstrar o amor. Ou eu não entendi como era o amor dele. Eu não entendi. Não compreendi completamente. Fomos casados, muito bem casados, 48 anos, cinco de namoro e 48 anos de casado. Foi uma vida, né? Faz cinco anos que ele morreu. Em setembro, vai fazer cinco anos que ele morreu. Temos três filhos maravilhosos, lindos, netas maravilhosas. Foi um homem que nunca sorriu para mim. Era muito difícil sorrir. Ele foi criado pela Marinha, eu não entendia isso. Nunca me proibiu de nada. Meu marido nunca me falou: “Não faça isso, não usa isso, não vá ali”. Nada! Foi um homem que eu falava: “Eu vou vender, vou comprar, vou fazer”. Ele falava: “Faça o que você quiser!”. Então, é isso que... Eu precisava de um.
P/1 – E como a família recebeu a notícia do casamento?
R – Do meu casamento? Minha mãe nunca gostou dele, nem meu pai. E nem o Valter nunca gostou deles. Nunca. Nunca se gostaram, se suportavam. Minha mãe falava: “Minha filha é uma princesa linda, casar com um homem...”. Eu nunca vi as pernas do meu marido tortas, quando era noiva! Eu não sabia. Eu sabia. Porque ele usava aquelas capas bonitas. Ele se vestia muito bem. Muito elegante o Valter era. Então, eu não imaginei, por que minha mãe? “Ele tem alguma coisa!” Eu sabia que ele tinha alguma coisa, mas não sabia o que era. Eram as pernas. Era porque a minha mãe cismava que ele tinha a perna torta. E que se danem as pernas tortas, funcionava direito (risos). E assim foi o meu casamento.
P/1 – E como foi esse início da intimidade do casal?
R – Olha, ele foi meu primeiro beijo, foi o primeiro homem que eu beijei. Foi meu primeiro homem. Ele me ensinou tudo do bom e do ruim. Ele me ensinou a ser totalmente independente. Eu sou totalmente independente. Eu quero que você salve meus antepassados, tudo, que eu nunca comi um pãozinho da mão de um homem, foi tudo, foi comigo. O único que eu devo alguma coisa é para o meu pai e para o tio do Valter, tio Anísio, esse eu devo também. Porque, quando meu marido saiu do emprego e foi montar o emprego dele, meu tio sustentou a gente por dois anos praticamente. Só eu trabalhava, não dava. Eu morava de aluguel, não dava. Então, o tio Anísio ajudou toda família. Era um senhor já de idade, solteiro, ajudou todo mundo. Então, a esses dois homens, sim, eu devo. Mas o resto não, não devo para homem nenhum. Eu trabalhei 32 anos, de domingo a domingo.
P/2 – Trabalhando com cabelo?
R – Não. De cabelo não! De cabelo, eu casei, eu levei meu salão de cabelereiro e pus na sala. Eu coloquei o salão para trabalhar de cabelereira. Eu adorava tanto trabalhar de cabelereira que eu vendi meu salão. A primeira liberdade que eu tive, eu comi meu salão. Que fui eu que comprei o salão. Com o meu dinheiro, eu comprei meu salão. Então, quando eu fui trabalhar na Vila Guilherme, eu olhava assim: “Eu não gosto disso!”. Era minha mãe que gostava. Não eu! Minha mãe que ficava... Eu fiz para ajudar eles. Mas, quando eu me vi livre de pressão da minha mãe, eu comi meu salão sem arrependimento nenhum. Eu vim para Osasco, porque nós fizemos a casa, eram dois terrenos juntos. Nós fizemos um salão do lado. Aí, nós alugamos para um mercado. Esse mercado pegou fogo. Meu pai ficou desesperado. Estava alugado para um português, e o português alugou para um japonês depois. Ele estava uns dois anos e alugou para um japonês. Esse mercado pegou fogo dia primeiro de ano. E meu pai ficou sem renda nenhuma. Meu pai ficou desesperado. Aí, se ajuntou meu irmão, e eu, falamos: “Vamos fazer de novo”. Porque era obrigação do português. O contrato era para ele fazer. Mas ele falou: “Não! Em vez disso, eu compro o terreno de frente e faço o meu mercado em frente”, porque já tinha freguesia e tudo já estava lá. Nós ficamos com raiva, eu e meu irmão falamos: “Vamos fazer o mercado para o pai? Vamos!”. Nós fizemos o salão dez por dez. Só que, como estava o concorrente da frente, eu falei: “Só tem que ser nós!”. Pusemos um mercadinho pequeno para o meu pai tocar. O que eu fazia? Eu morava na Vila Guilherme, eu já tinha os três filhos. Nessa altura, já tinha os três filhos. Eu morava na Vila Guilherme. Segunda, terça e quarta, eu ficava na Vila Guilherme, quinta, sexta, sábado e domingo, eu ia para Osasco para ficar tomando conta, para ajudar meu pai. fazer compra para ele. Aí, minha mãe cuidava dos meus filhos. Eles se divertiam porque minha mãe tinha patinho, a Mônica entortava a cabeça dos patinhos e assim foi. Foi aí que nós compramos essa briga eu e meu irmão. O que acontece? Eu queria vir, minha mãe era doente, eu queria vir, meus pais estavam velhos, e eu não queria mais morar na Vila Guilherme. Eu queria vir morar em Osasco, perto da minha mãe. O que acontece? Eu falei para ele. Ele falou: “Eu não quero saber onde eu vou dormir. O resto você se vira”. Eu falei: “Está bom”. E eu fiz, até hoje eu faço isso: “Olha, esse é o quarto que nós vamos dormir. Ótimo”. É assim. Eu morava na Vila Guilherme, eu levava arroz, eu levava feijão, foi quando ele mudou do trabalho. Foi aí que o tio Anísio me ajudou. Quando ele mudou de trabalho, ele montou o escritório dele e foi indo, foi bem – “bem” entre aspas, porque eu nunca vi dinheiro. Nesses dois anos, o tio Anísio me ajudou bastante. E eu ia, quatro dias eu ficava... E eu levava arroz, eu levava ovo, levava frango, levava as coisas para casa também para pôr comida em casa também. Eu falei: “Sabe de uma coisa? Isso não é vida”. Eu carregava até penico na bolsa com os meus filhos. Porque tinha o Roberto: “Eu quero xixi”. Eu não ia fazer ele ou as meninas fazerem xixi na rua. Eu carregava os penicos. Comida, tudo. Vinha de ônibus da Vila Guilherme a Osasco, são três ônibus. Dinheiro pouco. Era um pacote de biscoito de polvilho para os três, porque era aquilo. E aquela luta. O que acontece? Eu falei: “Sabe de uma coisa? Eu vou morar aqui perto”. Quando eu falei para ele que ia morar em Osasco, acostumado em lugares bons: “Eu não vou morar, porque aqui só tem pobre, porque isso, porque aquilo”. “Pois eu vou, com meus filhos, eu vou.” Aí que ele falou: “Só me mostra onde eu vou dormir”. Aluguei uma casa muito boa, e a casa boa com um quintal na frente e atrás, pude pôr os cachorros dele, que ele adorava cachorro. Coloquei os cachorros também, muito boa. Aí, foi. Trabalhei direto com o meu pai. Já comprava tudo, já manejava tudo, papai só me ajudava. Mudou. O contrário. Aí, eu cismei de comprar um terreno. Uma amiga minha me ofereceu um terreno, não tinha nem seis meses que eu estava lá. “Esther, você quer um terreno meu?” “Mas quanto você quer? Eu não tenho dinheiro.” “Não, você me paga em quatro anos. Você me paga 100 por mês num ano, no segundo 200, no terceiro 300 e no quarto 400 por mês. Aí, acaba.” Eu falei: “Tudo bem”. Dava para comprar. Eu comprei em um ano. Eu falei: “É agora! Santiago, faz a minha planta. Eu quero três dormitórios, sala, cozinha grandes. Cozinha maior do que a sala, que a turma fica só na cozinha. E garagem”. Fez canil e no fundo a lavanderia e um quarto de empregada. Fez a casa. Eu falei: “E agora, como é que eu vou fazer?”. Eu chamei, tinha um senhor de idade, Seu Pedro, que até hoje eu tenho a cadernetinha dele de quanto dinheiro eu dava pra ele. Eu devia ter trazido. Eu falei: “Seu Pedro, quanto que eu vou gastar para fazer esta casa?”. Mostrei pra ele. “Olha, se a senhora quiser tudo de uma vez, vai gastar dinheiro, mas, se fizer de pouco, em um ano a senhora constrói.” Eu falei: “O senhor faz para mim?”. “Olha, eu trabalho há muitos anos com um português. Eu só posso sábado e domingo.” Eu falei: “Sábado e domingo! Eu também não tenho dinheiro. Sábado e domingo o senhor trabalha”. Só que foi mais pinga do que água por lá. Mas fez uma bela de uma casa. Em um ano, eu tive a minha casa sem o meu marido saber. O Valter não sabia que eu estava construindo a casa. Fiz um poço de 32 metros, porque não tinha água na rua. Então, fiz o poço de 32 metros. Quando eu acabei, fiz o muro todinho, que era dez por 32 de fundo, fiz o muro todinho. Fiz a casa. Quando a casa estava quase pronta, eu acho que eles desconfiavam, né? Mas nunca falou nada. Eu falei: “Valter, nós vamos mudar de novo”. Ele falou: “Eu quero saber onde que eu vou dormir”. Eu falei: “Descendo a rua, a penúltima casa”. Estavam faltando umas lâmpadas na garagem. O que mais estava faltando? Poucas coisas. Coisinhas mínimas. Ele falou: “Eu pago isso”. Aí, eu fiz a minha casa. Três quartos, sala e cozinha grande, garagem, tinha um escritorinho, também. Foi muito bom. Essa minha vitória foi muito boa. Tudo com o mercado.
P/1 – E, Dona Esther, infelizmente a gente tem que começar a ir para a etapa final dessa história que está incrível. Mas eu queria que a senhora, antes, se a senhora se sente confortável, contasse um pouco dessa relação dos seus pais, dessa afinidade que eles tinham, das brincadeiras.
R – Ah, muito importante, é mesmo, viu? Até estava esquecendo. Você vê, meu pai, dá para perceber que ele era danado, né? A minha mãe passava perto dele, ia no açougue ou ia na cozinha ou ia no quarto, meu pai dava um tapa na bunda dela. Ou passava perto dela, dava um carinho, beijava ela, pegava no seio dela. Então, minha mãe falava assim: “Você é um sem-vergonha! Estás viejo y ainda eres sin verguenza”. Meu pai respondia para ela: “Você que está velha, porque você não quer nem mais brincadeiras”. Minha mãe falava para ele: “Santiago, tu eres siete años e medio más viejo que yo”, “Você é sete anos e meio mais velho que eu. Você tem que morrer sete anos e meio antes. Quando fizer sete anos e meio que você morreu, venha me buscar. Aí nós vamos estar juntos”. Gente, meu pai morreu dia 3 de setembro de 95. A minha mãe morreu dia 30 de março de 2003. O último dia de sete anos e meio, meu pai veio buscar minha mãe. Mas sempre brincando. Sempre brincando. Brigavam muito. Mas o meu pai comia na mão da minha mãe. O jeito dela, meu filho é igual. A mulher que ele tiver, ele vai comer na mão dela. Porque é bruto ao extremo.
P/1 – Pode deixar, Dona Esther, a gente tira sim.
R – Então, eles são brutos demais. A família do meu pai é assim. Todinha. Tudo, tudo bruto. Mas as mulheres, do jeito delas, eles comem na mão delas. É impressionante.
P/1 – E, Dona Esther, novamente, se a senhora se sentir confortável, se a senhora puder contar sobre o falecimento do seu esposo.
R – Cinco anos de muito sofrimento. Ele estava com câncer no intestino. Por quê? Porque ele sempre foi muito orgulhoso. O Valter era muito reservado, muito orgulhoso. Então, ele não se conformava. Ele usou colostomia. Ele ficou muito doente. Primeiro de tudo, ele estava com a irmã dele. E nós fomos fazer uma visita, que a minha cunhada mora nos Estados Unidos. Nós fomos, uma visita, em outra parente deles, que eu me dou muito bem com a família do meu marido. Sempre. Aí, ele não quis comer nada. Ele já vinha emagrecendo muito, emagrecendo. “Valter, você tem que comer. Valter, Valter!” “Você só me enche as paciências para comer. Eu não quero, não estou com fome.” Sempre assim. Nesse dia, nós fomos visitar a Nilza. Quando chegamos, estava a mesa posta, a minha empregada tinha feito a mesa. Aí, ele falou: “Não quero comer”. E subiu. Eu e a Valdete almoçamos. Eu falei: “Deixa eu ver o Valter”. Eu fui lá, ele estava com a porta trancada. Eu não gosto de porta trancada. Eu não durmo. Até hoje, eu durmo com tudo aberto. Eu abri a porta, a cama era aquela king, tremia. A febre dele era tão alta que tremia a cama. Eu falei: “Vamos para o médico”.
A Amil, da minha casa à Amil, de carro é dois minutos. A pé não dava. Mas é segundos. Ele falou: “Não vou, não vou, não vou!”. Falei: “Você vai, vai, vai”. Aí, meu filho viu. Pegou ele no colo e levou. De lá, falou: “Você vai para o hospital”. Nós ficamos fazendo exames e tudo, nós ficamos quase 30 dias. Descobriram esse tumor no intestino. No final, ele usou colostomia. Só que ele não aceitou a colostomia. Eu trocava ele. Ele evacuava por ali. Eu trocava. No começo, durava. Às vezes grudava, porque ele estava gordinho, então, a colostomia grudava na carne. Depois, foi emagrecendo, não dava mais. No começo, eu trocava umas duas vezes ao dia. Depois, eu trocava de meia em meia hora. E eram camas, trocas e tudo o mais. E ele ficou quatro anos assim. Faz cinco que ele faleceu. Quatro anos assim. Por último, ele já não queria comer. Ele morreu com 42 quilos, 43 quilos. Pele e osso. Mas ele morreu porque ele se entregou para a morte. Eu, hoje, entendo que era depressão. A minha sogra morreu também de depressão. Então, eu entendo que eu não o compreendi o suficiente. Todo o gênio que eu tenho de mandona, eu entendo que eu não entendi meu marido o suficiente. Brigo com ele até hoje. Até hoje, no carro, vivo brigando com ele. Porque ele morreu porque ele quis. Porque ele não comeu, porque... Mas até hoje eu peço perdão para ele, muitas coisas. Porque, se eu tivesse entendido que ele nasceu sem pai, que ele foi criado pela Marinha, se eu tivesse entendido o gênio dele, talvez tivesse sido diferente. Talvez, isso é uma confissão que eu estou fazendo agora, talvez eu não fosse tão dominadora, mas eu tive que ser assim. Eu tive que dar comida para os meus filhos. Então, eu já era assim. Às vezes, ele me chamava de sargento. Por último, eu falava para ele: “Agora eu tenho que ser capitão. Muitos anos juntos, tem que ser capitão”. Mas, se eu não fosse assim, eu não teria sobrevivido. Porque ele se apagou. Ele, com 42 anos. Quando o meu pai chegou aqui com 40 anos, 42 anos, fez essa guerra toda. O meu marido, com 42 anos, simplesmente parou de trabalhar. Quando acabou o escritório dele, a sociedade dele, simplesmente ele parou de trabalhar. Tudo o que ele tinha, ele tinha duas fazendas em Carolina do Norte, ele vendeu, eu nunca vi um tostão. Ele tinha imóveis em Osasco, ele vendia. “Assina. Não é seu, é meu!” Então, às vezes, ele doente, ele falava para mim: “Tem dó de mim, Esther. Tem dó.” Eu, com raiva, falava para ele: “Você nunca teve dó de mim”. E ele me amou muito. O Valter me amou muito. Eu fui uma mulher querida. Mas eu não fui compreendida, nem ele me compreendeu. Não quero voltar de novo com ele. Diz que a gente volta. Mas eu cumpri minhas obrigações como esposa. Todo mundo fala. Até o último suspiro dele, eu estava junto. Mas eu não quero voltar com o meu marido.
P/1 – Podemos fazer as últimas perguntas, Dona Esther? Podemos?
R – Podemos!
P/1 – Se a senhora quiser tomar um gole de água...
R – Não.
P/1 – Eu queria que a senhora contasse um pouco sobre sua rotina hoje. O que a senhora faz?
R – Ah, hoje, eu estou feliz. Eu agradeço a Deus. Eu acho que eu não mereço tudo o que eu tenho. Eu tenho três filhos maravilhosos. E três netas mais lindas ainda. Minha filha Mônica é uma batalhadora, teve duas filhas, é uma batalhadora, é uma mãe divina. Ela se separou do meu primo-irmão. Porque a Mônica foi casada com o filho daquele que negou o dinheiro para o meu pai. Que vieram aqui para o Brasil, moraram com nós, olha como o mundo dá voltas. Meu pai ajudou eles, os filhos. O pai negou o dinheiro para o meu pai. E meu pai ajudou os filhos a ficarem aqui. E minha filha casou. Com 14 anos, quando vinha vindo da escola, eu trouxe, eu parei em frente ao mercado, meu primo estava lá, seis casas depois. Ela falou: “Mãe, quem é aquele menino bonito?”. Falei: “É o Paco. É o teu primo”. “Ele vai ser meu marido!” E foi o marido dela. A minha filha é muito bonita, a Mônica. Parece muito com a família do meu marido. A Mônica separou depois. Os dois gênios iguais. Os dois espanhóis iguais. A Mônica tem o mesmo gênio que eu. Mandona, autoritária. E separaram pelo gênio porque se amam até hoje os dois. E tiveram duas filhas maravilhosas. Tem a Geórgia minha, que é um anjo divino, que Deus me mandou. Ela deve a vida duas vezes ao pai. Uma por gerar e outra porque eu estava grávida dela de um mês e meio e tiraram ela de mim. Eu estava com gravidez tópica. Aí, puseram ela no útero. Podiam abortar e meu marido falou: “Não. Ela tem pai e mãe. Ela vai sair como sair, mas ela vai vir ao mundo”. O meu marido tinha disso também. Era um coração divino, era bom demais. Só ele não se entendia. Aí, eu continuei a minha gravidez. Eu tive que pôr cinta para segurar a barriga, porque a criança vai crescendo. Da Mônica, eu engordei 30 quilos. Da Geórgia, eu engordei seis. Ela nasceu com quatro quilos a Geórgia. E a Mônica nasceu com dois e pouco. E eu tive a Geórgia. A Geórgia é o anjo divino de toda a família. É uma criatura que, quem encontra com ela fala: “Não, não tem...”. É bondade, educação. As pessoas que trabalham com ela admiram ela. Ela é auditora fiscal. Ela é maravilhosa. É corretíssima igual ao pai dela. Dá até raiva. Sabe, a gente vê esse governo filha da mãe e a gente vê uma pessoa que... Ela entra às oito horas, ou nove horas da manhã, e sai sete, oito, dez horas. “Onde você está, Geórgia?” “Mãe, ainda estou trabalhando.” “Mas, Geórgia, pelo amor de Deus, eu nunca vi funcionária pública trabalhar tanto.” A minha filha é assim. É divina. Agora, o meu filho é outra vida. Negociante, quando ele chega no topo, quando ele está chegando no topo, que ele está no auge de tudo... Vou te contar, posso contar mais? Meu filho veio um dia e falou: “Mãe!”. Bom, eu dei, ele queria montar, não, ele tinha um carro. Quando o Collor, eu comprei carro para todos, novo, nova frota, e eu dei um carro para ele. Chegou em casa e falou: “Ai, mãe, você me empresta o carro da Geórgia?”. Eu falei: “Cadê teu carro, filho?”. “Ah, você não sabe o que aconteceu, mãe.” “Bom, ele está inteiro? Que se vão os anéis e fiquem os dedos. Trabalhar, a gente trabalha.” “Eu preciso do carro da Geórgia. Eu preciso dele urgente.” Falei: “Pega!”. Nem tinha falado para a Geórgia. Ele vai e pega o carro da Geórgia. Ele chega com o carro da Geórgia lotado, não tinha onde colocar mais, de fita cassete. Quando saiu aquela, aluguel de fita, de filme, ele pôs uma locadora. Ele não tinha onde colocar, ele não tinha prateleira. Ele só tinha... Ele vendeu o carro dele e comprou fitas. Bom, aí, eu fui atrás de amigos, eu aluguei um salão para ele, ele montou aqueles que põem sacolas, de supermercado, nós arrumamos uma lá velha. Ele colocou feltro nela, colocou tudo, fez. Em uma semana, ele já estava funcionando. Ele começou a trabalhar, ficou dois, três meses trabalhando, já colocou funcionária para trabalhar para ele – a lábia dele danada, sempre paquerando as meninas. Quando começou aquele do navio que afundou, o Titanic, ele comprou mil fitas. Ele distribuía fitas em Osasco todinho. Para toda locadora. Ele estava vendendo as fitas. Ele comprava barato, as delas ficavam livres, e ele ganhava dinheiro. Ele é assim. Quando chega no topo do negócio, ele quer outra coisa. Começou que queria... O marido da Mônica tinha uma confecção de bordado. Tudo. “Eu vou começar no bordado.” Aí, começou o bordado. Bom, no final, ele chegou no topo do bordado, que ele bordava para as grifes maiores. Só bordado de bebê... As melhores marcas de bordado de bebê, ele que fazia. Quando ele chegou no topo, ele começou, foi comprar vidros para um escritório da esposa dele, que é advogada. Foi comprar. Quando chegou: “Quanto que dá esse aí? Como é o lucro?”. Hoje ele tem uma têmpera. Ele vende para firmas. Está fazendo para prédios. Vidros com prédios, com tudo o que você possa imaginar. Ele saiu do bordado. Ele entrou agora nos vidros. Falei: “Roberto, e agora? Onde é a próxima?”, porque, quando ele está no topo, ele quer desafios. Puxou Ibañez. Ele é Ibañez. Roberto Ibañez. Porque não tem nada da Mota. É como se diz. É cagado e cuspido (risos). E assim acaba minha história.
P/1 – E a senhora hoje faz o que?
R – Hoje eu faço assim. Moro no Alphaville, que é uma casa boa. O Valter nunca me proibiu. Eu viajo muito. A Europa eu só não conheço o que eu vou fazer agora, que os meninos vão me dar de presente de aniversário, que esse mês eu faço aniversário. Vou para a Inglaterra, Suíça e Escócia. Então, eu viajo muito. É uma coisa que também eu posso te dizer. Meu marido nunca proibiu. Ele só falava: “Quando você vai?”, porque ele não queria. Ele viajou muito também. Solteiro, ele não queria viajar. “Você não vai, eu vou.” E eu vou mesmo. Aí, eu faço isso. Eu viajo muito. Agora, o meu horário: de segunda, quarta e sexta, de manhã, às oito horas da manhã, eu faço hidro. Segunda, quarta e sexta, saio às oito. Aí, eu vou fazer minhas coisas. Tenho aluguéis. De segunda, quarta e sexta, às seis da tarde, eu faço hidro também. Faço fisio e hidro. Duas horas. Então, eu ocupo três horas para mim, de segunda, quarta e sexta. Isso é sagrado. Terça e quinta, eu faço faculdade terceira idade. São 60 meninas lindas. É que eu não trouxe aqui a fotografia. Mas são. Nós temos agora uma que foi miss São Paulo. Duas que são novinhas. Devem ter 36, 38 anos. Mas a mínima tem 82 anos, a máxima. Mas a média é 75, 70. Mas são lindas. Agora, estamos fazendo uma festa para uma coordenadora da gente e nós vamos dançar à espanhola. Ontem, no meio da rua, do residencial, nós estávamos 42 meninas de, como é, uma flor aqui e estola vermelha. Sexta-feira, amanhã, nós vamos amanhã na festa. Vai ser divina a festa. Nossas festas são divinas. O que mais que eu faço? Eu faço voluntariado. Eu tenho de velhinhos, que a gente leva comida para eles. De quinze e quinze dias, eu gasto 1500 reais mais ou menos de comida. Não sou eu. É a turma da escola. A gente dá 200 reais a mais por mês para sustentar esses velhinhos. Então, nós fazemos voluntariado também. O que mais que eu faço, gente? Hidro, a faculdade, agora eu faço memória, porque eu estou esquecendo. Não esqueço de falar. Mas eu estou esquecendo, então, eu estou fazendo memória. Toda quarta, eu faço das nove às 12. Memórias! Aí, eu me mato naqueles quadradinhos, naqueles desenhos de quebra-cabeça, que dá vontade de dar um soco. Mas eu vou fazer, porque eu estou esquecendo mais do que “nega do leite”. Por isso que eu não dormi essa noite. “Eu não vou falar, gaguejando.” Mas eu estou falando mais do que a “nega do leite” (risos).
P/1 – Dona Esther, como foi contar essa história hoje para a gente?
R – Maravilhosa. Mas eu queria tudo isso que meus, que não cortasse muita coisa. Que os meus bisnetos, que os meus bisnetos vissem isso. Que eles se honrem, tenham orgulho de pertencer a imigrantes, que saibam respeitar o que os imigrantes trouxeram. É isso que eu quero. Que eles saibam que eu tenho muito, muito orgulho de ser Ibañez, que eu tenho muito orgulho de ser imigrante, de estar neste país. Eu sou espanhola mesmo. Nunca me nacionalizei, nunca meu marido me exigiu isso, mas eu sou brasileira de coração. Amo o Brasil. Eu fico um mês na minha terra, quero voltar para essa terra. Mas também, quando eu escuto uma música espanhola, eu choro. Quando, lá, eu escuto uma música brasileira, Roberto Carlos, eu choro. E canto duas vezes. Quer dizer, eu tenho no coração dois países. Mas que respeitem, que saibam, que tenham muito orgulho. Muito orgulho de ser Ibañez. A família do meu irmão se afastou um pouco depois que ele faleceu. Mas eu sei que eles se orgulham de ser Ibañez. Eu tenho um que parece com o meu filho, que é Ibañez também, que mora na Bahia. Tem uma batalhadora Débora, que é maravilhosa, uma menina maravilhosa. E tenho – eu estou tão emocionada – o mais velho que ele é pastor, mas já fez quatro faculdades. Ele fez academia militar todinha da Aeronáutica. Fez Filosofia, são quatro faculdades. Ele é maravilhoso. Mas ele é do jeito da mãe dele. É assim.
P/1 – Para a gente encerrar, Nati, tem alguma pergunta?
P/2 – Não.
R – Não tem muito para perguntar, porque eu falei tudo. Não tem muito para perguntar.
P/1 – Dona Esther, eu tenho uma última pergunta que é: quais são seus sonhos?
R – Meus filhos. Que continuem como estão, que tenham saúde e trabalho. O resto eles conseguem. Só isso. Mais nada. Trabalho, saúde e mais nada. Não precisa mais nada. Com o trabalho deles, eles ganham tudo. É isso!
P/1 – Então, Dona Esther, muito obrigada por ter contado a sua história hoje.
R – Desculpe.
P/1 – Foi lindo!
R – Desculpe.
P/1 – Não tem que se desculpar.
R – Eu que agradeço. Era isso que eu queria contar para vocês, que vão gerações e gerações. Se vocês um dia virem isso saibam que existiu um homem batalhador, minha mãe também ajudou muito e nós.
P/1 – Muito obrigada, Dona Esther.
R – Obrigada vocês. Obrigada vocês quatro por me ouvirem. Não tenho mais nada para dizer. Eu pus aqui, olha, tenho orgulho de ser filha de quem eu sou. Irmã dessas pessoas maravilhosas. Com seus defeitos e suas virtudes, suas honras e dignidades. É o que precisa neste país, tanto na Espanha, este mundo todo. Nesse Brasil que nós estamos passando. Fim.Recolher