Projeto Conte Sua História
Depoimento de Milton Ferretti Jung Júnior
Entrevistado por Rosana Miziara
São Paulo, 12/06/2017
Realização: Museu da Pessoa
PCSH_HV588_ Milton Ferretti Jung Júnior
Transcrito por Ana Carolina Ruiz
Revisado por Raquel de Lima
P/1 – Milton, vamos começar da mane...Continuar leitura
Projeto Conte Sua História
Depoimento de Milton Ferretti Jung Júnior
Entrevistado por Rosana Miziara
São Paulo, 12/06/2017
Realização: Museu da Pessoa
PCSH_HV588_ Milton Ferretti Jung Júnior
Transcrito por Ana Carolina Ruiz
Revisado por Raquel de Lima
P/1 – Milton, vamos começar da maneira mais prosaica possível. Qual o seu nome completo, o local e data de nascimento?
R – Milton Ferretti Jung Júnior. Nasci em Porto Alegre, no dia primeiro de agosto de 1963.
P/1 – E os seus pais, como é o nome deles?
R – Milton Ferretti Jung é o meu pai. Ruth Muller Jung, minha mãe.
P/1 – Os dois são de Porto Alegre?
R – O meu pai nasceu em Caxias do Sul, que fica na região da serra do Rio Grande do Sul, mas só foi lá pra nascer. Em seguida, ele desceu pra Porto Alegre e continuou vivendo em Porto Alegre. Minha mãe nasceu em Porto Alegre.
P/1 – Vamos falar um pouquinho das suas origens familiares, por parte de pai e de mãe. Seus avós paternos são de onde?
R – Meus avós paternos são de Porto Alegre... Meus avós paternos são de Caxias do Sul, perdão. Meus avós maternos são de Porto Alegre. Meus avós paternos nasceram na região da serra, numa região italiana, porque eles são de origem italiana.
P/1 – Eles ou os pais deles são italianos?
R – Bom, eles são italianos porque trouxeram isso das famílias, não que tenham vindo da Itália. Minha bisavó, ou pior, a bisavó do meu pai, minha...
P/1 – Tataravó.
R – Minha tataravó é que veio da Itália. Então, duas, três gerações antes de mim, todos já estavam aqui no Brasil, apesar de ainda trazerem, conviverem na colônia italiana. Nós que fomos nascer em Porto Alegre é que não éramos mais da colônia italiana, já tínhamos nos urbanizado, diferentemente deles.
P/1 – O que seus avós paternos faziam?
R – Não sei te dizer. Quer dizer, o que eu sei deles, o pouco que eu sei... Meus avós paternos? Vamos lá. Minha vó era dona de casa, como praticamente todas as mulheres daquela época. Meu vô, pai do meu pai, era contador, trabalhou durante muito tempo nos Elevadores Sur. Ele foi contador profissional e foi contador na vida dele, porque ele calculava tudo que ele gastava na vida. Era uma coisa que me chamava atenção.
P/1 – É mesmo? O que chamava atenção?
R – Porque ele tinha a vida dele num livro caixa. Se ele emprestasse, sei lá, dez contos de réis pra alguém, ele anotava. Se ele desse pra mulher dele ir a venda, ele anotava, e quando voltava, ele continuava anotando. Ele tinha um livro caixa na casa dele onde ele controlava toda a vida dele. Eu não sei como ele conseguia viver daquele jeito. Enfim, era uma coisa que sempre me chamava atenção. Se ele emprestasse um dinheiro, se desse um dinheiro para o filho, não era dado, era emprestado. Ele cobrava aquele dinheiro depois e anotava tudo aquilo. Aquilo me deixava meio chocado, eu era muito pequeno, mas era a vida que ele tinha como contador. Então, ele era contador na vida profissional e foi contador na vida pessoal também, na vida familiar.
P/1 – E seus avós maternos?
R – Meus avós maternos... A mãe da minha mãe era dona de casa também, e o pai da minha mãe era mestre de obras. Ele cuidava de obras. Foi um mestre de obras falido, porque, ao contrário do meu avô paterno, ele não controlava o dinheiro dele. Pelo contrário, ele gastava todo o dinheiro dele, ele dava todo o dinheiro para as pessoas. Se ele tinha um empregado que tinha algum problema, ele pagava tudo. Ele quebrou a empresa dele. Quando ele morreu, deixou tudo quebrado, minha mãe teve que resolver. Ele era mestre de obras, construía casas etc. Era o que ele fazia na vida, profissionalmente.
P/1 – Seu pai conta como foi a criação dele com esses seus avós paternos?
R – Um pouco.
P/1 – O que ele conta?
R – Um pouco ele conta. Pra ele, era uma vida muito controlada e ele era um cara muito rebelde. Meu pai, por exemplo, foi colocado num internato porque não gostava de estudar e pro meu avô, a única maneira de estudar, era ficar no internato. Ele vivia no internato, só que fugia do internato o tempo todo, não gostava de ficar lá. Ele aprontava as mais variadas coisas pra não permanecer no internato. Mas o meu avô insistia, tinha uma educação muito rígida com ele. O meu avô teve o meu pai – o meu pai era o mais velho – uma filha, que é a Miriam, irmã do meu pai, e o irmão mais novo do meu pai, que é o Aldo. O Aldo pegou uma época em que os jovens tinham o movimento hippie. Era um cara que usava cabelo comprido e meu avô não saía na rua com ele. Se não tivesse com o cabelo cortado, ele não saía. Como o meu tio, evidentemente, não aceitava ter o cabelo cortado, eles não podiam sair juntos. Meu avô não tinha coragem de sair ao lado dele na rua, então, não andava com ele. Por aí você tem uma ideia de quanto ele era rígido na relação com os filhos. Em relação ao meu pai, ele fazia isso, agia dessa maneira. Não gostava de sair da casa dele, era um cara que ficava dentro de casa. O grande hobby dele, além de fazer contas, era cuidar de rosas. Isso é uma coisa que eu tenho presente na minha infância. A gente ia pra casa dele, a casa em que a gente se reunia todos os domingos, a família toda ia pra lá, e ele tinha roseiras na frente da casa, na parte da frente da casa. Aquilo lá era o grande xodó dele. Ele adorava aquilo, mas ao mesmo tempo, era a grande angústia, porque, exatamente na frente da casa dele, tinha um campinho de futebol – que na verdade era uma praça triangular que nunca teve grama por muito tempo – onde todos os meninos da rua se reuniam pra jogar bola. Todos sentavam lá na frente, tocavam música, sentavam, jogavam bola. Era o grande drama dele, porque, aquela bola invariavelmente caía no pátio e pegava nas rosas dele, e ele sofria por causa das rosas. Minha vó, não. Minha vó era a pessoa querida, que roubava balas pra nos dar dentro de casa. Cada neto só podia ganhar uma bala, afinal de contas, tudo era muito contato, mas a minha vó conseguia surrupiar algumas balas pra distribuir entre nós. Meu avô era isso... Em relação ao meu pai, que é como eu o conheci, era um cara muito rígido, mas corretíssimo nas coisas que fazia. Só que essa correção tinha um preço muito alto, que ele cobrava dos outros.
P/1 – E a criação da sua mãe?
R – A da minha mãe, foi uma criação mais solta. Meu avô, o pai da minha mãe, dava mais liberdade. Ele teve duas filhas, a Neusa e a Ruth, que era a minha mãe, e ele dava muito mais liberdade no tratamento com ela, até onde eu pude acompanhar. As duas estudaram, tiveram uma vida, pra época, normal. Brincavam na rua, na calçada, enfim, não era uma vida controlada rigidamente por ninguém. Pelo contrário, eles moravam num bairro mais simples, onde se vivia muito em comunidade. Eles moravam no bairro Navegantes, em Porto Alegre, e viviam muito em comunidade. Eu lembro porque eu ia pra casa da minha vó e tinha várias outras casas que a gente visitava, porque tinha uma comadre que morava num lugar, um compadre que morava no outro, uma tia ou um primo. Às vezes, eu nem sabia mais quem era quem naquela história, mas todo mundo vivia ali em volta. Eles tinham uma vida comunitária maior, por parte da minha mãe.
P/1 – Você sabe como o seu pai e a sua mãe se conheceram?
R – Rapaz, eu talvez saiba, mas eu não lembro como eles se conheceram! Porque tem uma coisa curiosa: o meu pai conheceu a minha mãe junto com um amigo dele que conheceu a minha tia, irmã da minha mãe. Eles acabaram casando depois, os dois casais se casaram. Era uma coisa curiosa, do ponto de vista de família, porque a minha mãe, a Ruth, casou com o Jung e a minha tia, a Neusa, casou com o Nietzsche. Era uma coisa curiosa que tinha na família. De qualquer forma, eu não consigo lembrar exatamente como eles se conheceram, em que momento na vida eles se conheceram. Eu sei que o meu pai junto com o meu tio, que não era o irmão dele – era um amigo dele que depois virou meu tio porque casou com minha tia – armaram alguma coisa pra conhecer as duas. Eles fizeram alguma coisa, um combinou com o outro pra conhecerem as duas e acabaram conhecendo, aquilo se transformou num namoro que virou casamento. Eles acabaram fazendo parte da mesma família durante bons tempos. Minha tia morreu muito cedo, morreu com 33 anos. Minha mãe também morreu cedo, morreu com 40 e poucos anos. A minha prima, filha da minha tia, virou minha irmã, porque veio morar comigo logo que minha tia morreu. Não ficou com o pai dela. Enfim, é um pouco do que eu me lembro da maneira como eles se conheceram. Mas, do momento específico, não consigo lembrar da história.
P/1 – Quando você nasceu, seus pais moravam em Porto Alegre?
R – Meus pais moravam em Porto Alegre já há bastante tempo. Meu pai sempre morou em Porto Alegre. Como eu falei no início, minha vó foi a Caxias do Sul para o meu pai nascer em Caxias do Sul. Ela passou toda a gravidez em Porto Alegre...
P/1 – Por que foi pra Caxias do Sul?
R – Porque a família Ferretti era de Caxias do Sul e tinha uma coisa, o filho tinha que nascer onde os pais nasceram. Aí, eles subiram pra serra, meu pai nasceu e imediatamente depois da minha vó sair do hospital – ou seja lá onde ela pariu, eu não sei exatamente se foi em casa ou no hospital, imagino que tenha sido no hospital – eles voltaram pra Porto Alegre. Então, a vida do meu pai em Caxias do Sul foi muito breve. Ele viveu o tempo todo em Porto Alegre. Minha mãe nasceu em Porto Alegre e viveu, durante toda a vida que ela teve, lá na cidade mesmo, onde eu nasci depois. Eu e todos os meus irmãos nascemos lá.
P/1 – Quem é o mais velho?
R – Eu sou o do meio. Eu tenho uma irmã mais velha que se chama Jaqueline, tem dois, três anos mais do que eu, e tenho um irmão mais novo que é o Cristian. Eu sou o do meio, mas eu sou o primeiro filho homem e foi a mim que coube carregar o nome do meu pai, o nome completo. Eu, por exemplo, não tenho o nome da minha mãe. Minha mãe era Muller e eu sou Ferretti Jung porque o meu pai queria colocar o Júnior no meu nome e foi o que ele fez. Então, eu acabei ficando com o nome do pai por ser o mais velho. Nasceu primeiro minha irmã, eu sou o do meio.
P/1 – Você lembra como era essa casa onde você morou na infância?
R – Eu lembro. Quer dizer, na realidade, eu morei um ano só num pequeno apartamento na zona norte de Porto Alegre. Imediatamente, a gente foi para a casa onde nós vivemos o restante das nossas vidas como família, juntos. Aliás, onde mora até hoje o meu irmão. Era uma casa grande na Rua Saldanha Marinho, no bairro Menino Deus, em Porto Alegre, um sobrado bastante grande que era de propriedade do meu avô. Meu avô era dono de vários imóveis. O pai do meu pai era dono de vários imóveis e ele cedeu... Cedeu, não, ele alugou aquela casa para o meu pai, para a minha família morar e nós moramos lá até eu ir embora de Porto Alegre. Meu irmão continua morando lá, a nossa vida continua em torno da casa em que a gente viveu. Hoje é uma casa até maior. Como ela era um sobrado, a gente ficava só com a parte de cima e com o quintal, onde tinha galinheiro, na parte de trás. Era uma coisa que parecia um pouco rural, apesar de ser na cidade. Na parte debaixo, morava outro casal. Quando esse casal foi embora, meu irmão ficou com toda a casa. A casa toda é nossa hoje, a gente ocupa todo aquele espaço, uma casa muito grande. Eu diria que era grande até para as condições de vida que nós tínhamos, que o meu pai tinha. Mas, como era a casa do pai dele, isso facilitou durante um bom tempo. Eu falo que era uma casa rural, que tinha um ar rural, porque tinha uma curiosidade: no quintal da minha casa, atrás do muro da minha casa, tinha uma exposição agrícola que se realizava lá. Depois se transformou na maior exposição agrícola, ou numa das maiores do Brasil, que é a Expointer (Exposição Internacional de Animais), numa outra área completamente diferente. A Expointer começou ali atrás. E por que eu me lembro disso? Porque os expositores levavam o gado pra lá, levavam cavalos, levavam carneiros, e esses animais ficavam todos no quintal... No quintal não, mas no muro da minha casa, atrás do muro da minha casa. Nós tínhamos galinheiro, tínhamos bichos no nosso quintal e atrás, nós tínhamos vacas e bois – coisa que a princípio, pra uma cidade, não tinha o menor sentido, mas pra nós, era muito próximo. Sem contar o próprio cheiro dos animais que você tinha na casa, você percebia isso. Era curioso porque nós vivíamos na cidade, mas o quintal da nossa casa era uma área rural. Depois saiu dali, transformou-se na Expointer, a maior feira agrícola ou uma das maiores que tem no Brasil. Os gaúchos gostam de dizer que é a maior feira que tem na América Latina, mas não é verdade, é uma das maiores que tem no Brasil.
P/1 – Vocês brincavam com esses bichos?
R – Nós íamos, tínhamos uma tremenda curiosidade de ir até a exposição. O brincar não era brincar, porque havia o medo de a gente se aproximar desses animais, mas a gente visitava aquele local o tempo inteiro, ia por conta própria até a parte de trás da casa ou dava a volta e chegava até onde estavam os animais. A gente ficava próximo, por curiosidade. Tocar nos animais não era algo que nos era permitido, seja pela nossa família, seja pelos expositores que tinham, digamos assim, um cuidado especial, porque eram animais de exposição, eram todos animais que davam prêmios. Mas a gente vivia isso, convivia com esses animais.
P/1 – Quais eram as suas brincadeiras de infância?
R – Brincadeira de infância pra mim foi, fundamentalmente, jogar futebol. Eu jogava muito futebol na frente de casa. Na verdade, eu não jogava futebol na frente da minha casa. A gente jogava futebol do outro lado da rua, porque do outro lado da rua tinha o açougue do seu Ernesto. O seu Ernesto quando saía, ia pra casa dele, ele morava perto. Ele fechava a porta do açougue e aquilo virava um gol perfeito. A gente adorava jogar futebol ali até que ele chegava e acabava com o jogo. Isso era uma constante, ele vinha correndo lá da casa dele porque ouvia o barulho da bola batendo nas grades do açougue dele, ou alguém contava pra ele. Lá vinha o seu Ernesto correndo da casa dele. Quando a gente o via na esquina, acabava o jogo, a gente se recolhia. Aí ele voltava pra casa dele, depois nós voltávamos a jogar futebol. Foi muito futebol ali, até porque essa parte que ficava atrás de casa também tinha espaço pra jogar futebol. Quando dava, a gente jogava ali. Bolinha de gude era algo que a gente também jogava. Eu nunca fui muito craque nessas coisas, o meu irmão sempre foi melhor do que eu, ele sempre foi muito mais moleque de rua do que eu fui. As minhas atividades recreativas eram mais bem organizadas. Eu diria que eram mais burocráticas, porque eu pratiquei esporte muito tempo na minha vida. Como eu morava muito próximo do estádio do Grêmio, o Estádio Olímpico, que ficava ali no bairro Menino Deus – eu sempre disse que minha casa era o quintal do Estádio Olímpico – eu ia jogar bola lá, joguei futebol, joguei basquete. Todo tipo de esporte que eu podia fazer, eu fazia por ali. Então, as minhas brincadeiras eram muito mais relacionadas ao esporte do que brincar de pegar etc. Quer dizer, o que eu me lembro de brincadeiras, fora o esporte, estava ligado a andar de bicicleta, sempre no mesmo quarteirão, porque minha mãe não deixava a gente ir pro outro lado da rua, e jogar bolinha de gude. Eram as brincadeiras que eu lembro que praticava naquela época, porque boa parte do meu tempo era tomada por esportes. Ou eu fazia ginástica ou eu fazia judô ou eu jogava futebol ou eu jogava basquete. As minhas atividades estavam sempre relacionadas à alguma coisa relacionada ao esporte.
P/1 – Brincava com os seus irmãos?
R – Brincava com o meu irmão mais novo. Com ele, sim. Com a minha irmã mais velha, não. A minha irmã era muito recatada, não saía de casa, era uma pessoa que tinha uma organização absurda no quarto dela, a gente nem entrava no quarto dela. Ela era daquelas pessoas que arrumam as roupas por tom da cor, sabe? Pelo colorido e pela estampa... Coisa que pra mim e pro meu irmão, que dormíamos no mesmo quarto, não fazia o menor sentido. Com o meu irmão, brincava muito. As brincadeiras de moleque de rua, foi o meu irmão que me levou. Apesar de ele ser o mais novo, foi ele quem me levou a fazer seja ela qual fosse, às vezes até atirar funda, usar funda, estilingue. Meu irmão fazia, e eu ia atrás dele de vez em quando fazer. Eu não era fanático por isso, ele era muito mais moleque, mas eu acabei indo muito mais pra rua por causa dele do que por minha causa mesmo. Eu tinha, sei lá...O fato de eu estar mais relacionado ao esporte, não sei se me deu mais disciplina ou me colocou em coisas mais organizadas do que a brincadeira de rua em si. Mas, com ele eu brincava e brincava em casa. Brincava em casa, sei lá, de algumas coisas que eu lembro agora... Eu lembro que meu pai comprou pra mim e pra ele uma luva de boxe, dois pares de luva de boxe porque naquela época existia o Éder Jofre. O Éder Jofre tinha ido treinar lá, o treino foi atrás da minha casa. Aquele lugar que era uma exposição agrícola se transformou num centro esportivo. Quando o Éder Jofre foi lutar lá em Porto Alegre, ele treinava atrás de casa. A gente foi vê-lo treinar, achou aquilo o máximo. O Éder Jofre já era um grande ídolo do Brasil e era uma época em que você não via essas pessoas a todo momento, não tinha acesso como tem hoje, então, ver de perto um ídolo, era o máximo. Não que a gente gostasse de boxe, mas era uma figura. E aí, claro, aquilo nos contaminou. Meu pai comprou luvas de boxe, uma vermelha e uma preta pra mim e pro meu irmão, e a gente lutava dentro do que podia lutar dentro de casa. Outra coisa que eu fazia de atividade com ele, ele jogava menos, eu fazia mais sozinho, era jogar botão. Eu jogava botão. Não sei se tem algum nome específico, mas era jogo de botão. Eu jogava e transmitia os jogos de botão porque o meu pai foi locutor de rádio, foi locutor de notícia... Não, de notícia, não. Foi narrador de esportes e eu adorava aquilo. Eu jogava dentro do quarto, suava em bicas dentro do quarto, tudo fechado, jogando botão o tempo inteiro, contra mim mesmo. O meu time sempre ganhava, mas era eu que jogava e eu que narrava. Eu fazia tudo muito por minha conta e risco. De vez em quando o meu irmão se metia a jogar ali, mas não era o grande barato dele. Eram algumas brincadeiras que eu tinha com ele.
P/1 – O que seu pai fazia?
R – Meu pai era jornalista, radialista. Meu pai trabalhou um ano numa rádio em Canoas. Canoas é uma cidade que fica ao lado de Porto Alegre, é da região metropolitana, mas apesar de a rádio ter o nome Canoas e ser transmitida pra Canoas, o estúdio era em Porto Alegre. Ele ficou um ano lá, depois ele passou 50 anos trabalhando na mesma emissora de rádio que era a Rádio Guaíba de Porto Alegre, onde eu tive o meu primeiro emprego também. O meu pai é um cara que foi ligado ao jornalismo, ao rádio, durante muitos anos. No rádio, ele começou como locutor comercial, depois passou a fazer locução de notícias e apresentou o que era o principal programa de rádio no Rio Grande do Sul na época, o Correspondente Renner. Era uma síntese noticiosa semelhante ao que nacionalmente era o Correspondente Esso ou o Repórter Esso. Ele era a voz do Rio Grande do Sul nesse sentido, porque fazia o Correspondente Renner na Rádio Guaíba. Narrava futebol também. Ele teve essa vida ligada ao jornalismo. Eu tive uma família muito ligada ao jornalismo porque meu pai era jornalista, o meu tio casado com a irmã do meu pai era jornalista...
P/1 – O Nietzsche?
R – Não era o Nietzsche. Esse era outro. Foi o que foi casado... O Nietzsche casou com a irmã da minha mãe. O tio Tito Tajes casou com a tia Miriam, que era a irmã do meio do meu pai. O Tito era jornalista também. O irmão mais novo do meu pai, o Tio Aldo, formou-se em Jornalismo... Aliás, formou-se em Publicidade, mas trabalhou em jornalismo também. Hoje ele dá aula de Jornalismo, inclusive na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Eu tinha um pai jornalista, um tio jornalista e um padrinho jornalista, porque o tio Tito Tajes, além de meu tio, era meu padrinho também. Eu tinha uma vida muito ligada ao jornalismo desde muito pequeno e essa era outra brincadeira que eu tinha. Já que você perguntou um pouco mais cedo sobre as minhas brincadeiras, eu ia com o meu pai pra rádio e jogava futebol no corredor, enquanto ele trabalhava, com bolas de laudas de papel que a gente... As laudas de jornal que eles usavam na rádio, a gente amassava, amassava, amassava e passava durex em volta. Transformava numa bola e ficava jogando no corredor, porque era a maneira de passar o tempo enquanto meu pai estava trabalhando. Seguidamente, nos finais de semana, eu sempre ia com ele pra rádio, desde muito pequeno.
P/1 – Ele te levava?
R – Sempre. Sempre. Desde muito pequeno.
P/1 – Mas ele levava porque queria ou você pedia?
R – Não, levava porque queria. Talvez ele quisesse me transformar em jornalista, né? Ele me levava mais. Meu irmão e minha irmã iam, nós três íamos com ele muitas vezes no final de semana. Era quase um programa pra gente sair no final de semana, a gente ia até a rádio, porque ele podia ir e voltar à noite, por exemplo. Quando ele fazia o noticiário, a gente não passava o dia inteiro lá dentro. Várias vezes fomos os três, mas eu ia com muito mais frequência por minha conta e risco, sozinho, junto com ele. Eu fui muito próximo do pai, sempre muito ligado ao pai. Talvez puxado por ele, principalmente, eu fui pegando hábitos dele. Era muito comum, tanto eu ir com ele pra rádio como ir com ele, por exemplo, ao estádio do Grêmio. A gente vivia lá dentro, eu acompanhava tudo ao lado dele. Depois, quando ele viajava para o interior pra narrar jogos, eu ia com ele por causa do Grêmio. Eu vivi muito próximo do pai, eu tinha uma ligação muito forte com ele. Ele me acompanhou muito proximamente, mais do que acompanhou meus irmãos. O fato dele ter colocado o nome dele em mim não deve ter sido por acaso, tem muita história relacionada. Enfim, meu pai foi assim, eu estava contando pra você essa história do pai como jornalista...
P/1 – Por que virou uma família de jornalistas? Tem origem?
R – Foi uma coincidência.
P/1 – Por que seu pai quis ser jornalista, você sabe?
R – Meu pai quis ser jornalista porque ele tinha uma bela voz e lá onde ele morava, na Rua 16 de Julho, em Porto Alegre, tinha uma igreja, Igreja Nossa Senhora do Coração de Jesus. Nessa igreja tinha um serviço de alto-falante e meu pai tinha uma voz muito boa, gostava demais da voz que ele tinha...Quando ele era pequeno, brincava com rádio, rádios antigos, esses rádios de válvula. Ele descobriu que se pegasse um fone de ouvido, colocasse num determinado lugar do rádio e falasse no fone de ouvido, a voz dele saía no alto-falante. Ele já brincava desde pequeno com isso e, imagino eu, a partir daquele momento ele começou a gostar de ouvir a voz dele. Ele realmente tinha uma voz muito boa, aliás, ele tem uma voz muito boa. Diante disso, quando surge lá A Voz Alegre da Colina , que era o nome do serviço de alto-falante da rádio – era da Colina porque a igreja, como tradicionalmente as igrejas católicas são, ficava no alto do bairro – ele fazia o serviço de alto-falante. Ele ia participar do serviço de alto-falante, principalmente nas quermesses, lendo recados de namorados e namoradas, mandando mensagens, lendo anúncios de comerciantes da região que ajudavam a igreja, era o trabalho que ele fazia. Então, me parece que foi natural, não sei se a gente pode falar natural, mas ele desde pequeno teve admiração pela voz e começou a trabalhar com voz. Provavelmente, ele deve ter descoberto que não precisava estudar, não precisava se formar pra ser radialista. Como ele odiava estudar, nunca gostou de estudar, ele seguiu por esse caminho. Quando surgiu a oportunidade de fazer um teste como locutor comercial, ele fez esse teste e passou. Em seguida, um amigo dele o convidou para fazer teste numa outra emissora de rádio, a Rádio Guaíba. Esse amigo dele depois virou um grande jornalista também, Pedro Carneiro Pereira. Curiosamente, os dois passaram... Os dois passaram, não. Os dois foram para a rádio e o pai passou no teste, o amigo dele não passou. Anos depois, ou algum tempo depois, o amigo dele passou, virou até chefe dele, continuaram grandes amigos. Enfim, o pai sempre teve essa ligação com o jornalismo. O resto foi coincidência. Minha tia Miriam casou com jornalista sei lá por que, eu não sei nem onde eles se conheceram, mas ele era jornalista. O meu tio foi fazer Publicidade, na área de Comunicação, tinha um belo texto. Eu quero crer que isso é responsabilidade dos meus avós, porque não é uma coincidência que tanto o meu pai, quanto o meu tio Aldo, que eram irmãos, tivessem uma qualidade de texto muito apurada. Eu imagino que isso estivesse muito relacionado ao fato de eles lerem muito. Isso me parece que foi um legado do meu avô, que eles lessem muito, e o fato deles lerem muito fez com que eles tivessem um texto muito qualificado. Talvez isso os tenha encaminhado também para o jornalismo. Meu tio mais novo, o tio Aldo, fez Publicidade. Acabou trabalhando no jornalismo, talvez a convite do meu pai, foi trabalhar na redação e permaneceu no jornalismo durante algum tempo. Depois ele saiu, voltou para a publicidade, depois teve outras atividades. Hoje ele dá aula no Jornalismo. Foram coisas que foram acontecendo na carreira de cada um deles, não me parece que tenha sido um direcionamento dos meus avós. Não me parece ser exatamente isso, porque talvez o meu avô não quisesse que ele fosse jornalista. Eu imagino que o meu avô, pela característica e a personalidade dele, gostaria que meu pai tivesse uma profissão mais segura, mais tradicional para aquela época. Meu pai seguiu por esse caminho, minha tia virou uma dona de casa – talvez isso fosse tradicional pra época – e o meu tio mais jovem, além de ter enveredado pelo lado da Publicidade, também criou uma banda cover dos Beatles. Enfim, eu acho que os filhos do meu avô não seguiram os caminhos que o meu avô gostaria.
P/1 – Ele tinha uma banda cover dos Beatles?
R – Ele tinha uma banda, tem até hoje uma banda cover...
P/1 – Você o via tocar?
R – Sim. Via. Vi meu tio tocar porquê... Isso é curioso. Meu avô, que não andava ao lado do meu tio porque ele era um cabeludo, teve que engolir o meu tio tocando bateria na garagem da casa dele. Só que era uma coisa estratégica, na realidade, porque o meu avô tinha muito medo de perder as pessoas, tinha muito medo das pessoas saírem, distanciarem-se dele. Então, ele conseguia superar o seu terror em relação à juventude e permitia que meu tio ensaiasse todo final de semana, com a banda, na garagem da casa dele. Ele conseguia engolir o fato de “quem são esses caras cabeludos aqui na minha casa”? Pensando: “Eu sei que o meu filho está sob o meu domínio, eu estou enxergando.” Pelo menos ele tinha essa ilusão: “Sob meu domínio.” Aos finais de semana, quando nós íamos pra casa do meu avô, a gente via meu tio tocando bateria. Meu tio era baterista, tinha a banda dele tocando lá. Pra nós, aquilo era uma coisa genial, era uma garagem com jornais e revistas coladas nas paredes, era algo completamente diferente do que a gente tinha na época, do que imaginava na época. O nosso tio era o nosso ídolo de criança porque, afinal de contas, imagina, o cara ser aquele jovem da maneira como ele era, e ainda tocava bateria. De vez em quando, ele nos deixava tocar bateria, eu e meu irmão. Eu não peguei o menor gosto, não peguei o menor jeito com a música, ao contrário do meu irmão, que virou baterista depois, teve uma banda de jazz e sempre foi um músico qualificado dentro do que ele poderia ser. Eu não tive essa possibilidade, por mais que o meu tio insistisse que eu usasse a bateria dele.
P/1 – E sua mãe? Como era, o que ela fazia?
R – Minha mãe era uma dona de casa que cuidava da família toda. Minha mãe era uma agregadora de pessoas, ela reunia as pessoas, ela gerenciava as crises, não só da minha família, mas de todos da família. Ela controlava as pessoas de uma maneira muito forte. Isso era a imagem que eu tinha da minha mãe. Nós convivemos até os 20 anos, minha mãe morreu em 1982.
Foi ela quem controlou a casa, quem organizou a casa, quem cuidou da nossa educação, quem ia pra escola conversar com os professores, quem ia garantir que nós nos mantivéssemos na escola mesmo sem ter dinheiro pra pagar. Era ela quem organizava tudo, inclusive, era quem cuidava do meu pai nesse sentido. Ela era extremamente ativa e gerenciava todos os problemas de família nos outros núcleos familiares. Quem ia conversar com um, conversar com outro, quem levava as pessoas lá pra casa pra tentar mediar as conversas. Passou a ser quem fazia os almoços de domingo quando as idas pra casa do meu avô já eram mais complicadas, porque estavam um pouco mais velhos. Foi ela quem levou a minha vó, a mãe dela, pra nós cuidarmos, quando a vó começou a ficar doente, separou do meu avô. Foi ela quem levou a minha vó paterna...
P/1 – Sua avó se separou do seu avô?
R – Eles se separaram. Os dois se separaram.
P/1 – Depois de tantos anos?
R – Ah, depois de muitos anos. Minha vó se separou depois de muitos anos. Meu vô por parte de mãe era um mestre de obras, um cara extremamente bonito e elegante. Isso é a imagem que eu tinha dele. O cara que estava sempre com os ternos alinhados, sempre de chapéu, sempre de sapato branco. Isso era uma marca dele nos finais de semana. Um cara extremamente elegante e galanteador. Com o tempo, a gente descobriu que ele tinha outras relações extraconjugais. Aí, ele se separou da minha avó. Claro que, naquela época, separação não era a palavra mais apropriada, minha vó foi morar conosco porque ela precisava ficar com a gente. Ela passou a morar com a gente, depois de muito tempo é que nós, mais jovens, fomos perceber que, na verdade, eles tinham se separado. Enfim, minha avó foi morar conosco, cuidou da gente durante um bom tempo também. Realmente cuidou da gente, era supercompanheira nossa. Ela dormia no meu quarto, meu e do meu irmão, então, ela era a pessoa que ficava próxima da gente. Ela ficou até morrer com a gente. Depois, a minha avó por parte de pai ficou muito doente também. O meu avô não tinha mais condições de cuidar dela, os dois estavam muito velhinhos, ela também foi morar com a gente. Era a minha mãe quem trazia essas pessoas pra casa, minha mãe é quem colocava essas pessoas dentro de casa porque ela gerenciava todas as crises, ela que controlava em qualquer situação, desde questões familiares até questões de segurança. Eu lembro da minha mãe negociando com o ladrão da região, porque a gente morava... A Rua Saldanha Marinho, no bairro Menino Deus, encerrava no que a gente chamava na época de beco. O beco era uma rua sem asfalto, sem paralelepípedo, uma rua de terra com esgoto a céu aberto e com pequenos casebres. O beco era uma mini favela – na época não se falava em favela –, só uma pessoa muito pobre morava ali. Ali tinha um famoso ladrão da região. Talvez eu vá lembrar do nome dele a qualquer momento, mas ele era o ladrão da região, ele era o cara que saía da casa dos pais e entrava nas casas dos vizinhos, roubava pequenas coisas, às vezes um pouco mais, um pouco menos. Uma vez, ele entrou na minha casa. Ele não entrou só no quintal da casa pra roubar uma roupa ou coisas do tipo, ele entrou na nossa casa em um período de férias. Aquilo incomodou muito a minha família, porque ele deixou de ser um cara que pegava pequenas coisas e passou a invadir a nossa casa, entrou na vida mais privada. Naquele momento, minha mãe, eu me lembro dessa cena muito claramente, ela nos trancou em casa e disse assim: “Vocês não abram essa porta pra ninguém.” Saiu de casa, foi até a casa onde moravam os pais ou os avós desse ladrão da região e disse: “Olha, vocês têm até amanhã pra me devolver o que vocês levaram de lá. Levaram isso, isso, isso, isso, isso, isso e isso. Senão, eu vou chamar a polícia.” E voltou pra casa. Nos três, quatro dias seguintes, talvez uma semana, todas as coisas foram sendo devolvidas pra minha casa. Nem tudo foi devolvido, teve coisas que não voltaram, mas as coisas passaram a ser devolvidas naquele momento. Eu me lembro da mãe fazendo, inclusive, esse tipo de ação. Ela era uma pessoa extremamente corajosa em todos os sentidos, ela era muito forte nesse sentido. Ela sempre foi muito presente nesses momentos, isso é uma coisa que eu lembro. Ela gerenciava desde as coisas familiares mais simples do nosso dia a dia, até o drama, quer dizer, uma questão de segurança pública como essa: ir lá e negociar as coisas.
P/1 – Quem que tinha mais autoridade com vocês, seu pai ou sua mãe?
R – Vamos pensar o que é autoridade, o que é poder, nesse jogo. O pai não precisava falar com a gente, a mãe falava. Era a mãe que nos disciplinava, era a mãe quem nos controlava, cobrava horário etc. O pai não tinha, nunca teve essa coisa de diretamente nos cobrar. Ele cobrava da mãe, pra mãe nos cobrar as coisas. Era a mãe quem controlava esse tipo de coisa: horário de entrar, horário de fazer lição, horário de dar uma surra com chinelo. Tudo isso era a mãe quem fazia, não era o pai. O pai trabalhava, e se alguma coisa o incomodava, ele passava o recado pra minha mãe. Ele não nos cobrava diretamente. Sempre foi a mãe quem fez esse tipo de trabalho, sempre foi a mãe quem cuidou dessas coisas pra gente. Em relação, por exemplo – vou pegar um caso nosso – quando eu rodei de ano na sétima série. Eu não falei pro meu pai, não tinha coragem de falar pra ele que eu rodei de ano, até porque quando eu rodei de ano, o meu pai estava viajando, era minha mãe que sabia. Minha mãe sabia como eu estava, minha mãe já tinha falado com os professores, ela sabia que eu ia rodar, ela controlava tudo e, evidentemente, contou tudo pro meu pai. Mas disse: “Quem vai falar pro seu pai é você, não sou eu.” Eu não falei pro meu pai que eu tinha rodado. Eu falei pro meu pai dentro de outra situação que aconteceu, outra pessoa fez uma intervenção na nossa relação pra eu ter coragem de falar pro meu pai. Mesmo assim, eu falei pro meu pai e ele não me deu uma bronca sequer. Ele não brigou comigo. Era curioso, ele não brigava com os filhos, ele não cobrava nada da gente, ele não se expunha para a gente, ele usava a mãe pra fazer esse trabalho. Foi a mãe que sempre nos cobrou as coisas, sempre foi quem nos disciplinou, sempre foi quem botou ordem na casa.
P/1 – Vocês comemoravam festas na sua casa, como aniversários e Natal?
R – Sempre, sempre. Minha mãe fazia questão de fazer festas temáticas, dentro do que poderia ser temático naquela época. Ela que organizava as festas com música, pra convidar os amigos, e arrastava as coisas da sala pra gente poder dançar. Ela que sempre cuidava dessas coisas. Certamente, a festa mais marcante pra todos nós era o Natal. No Natal, nós tínhamos em casa uma tradição. Chegava por volta de quatro, cinco horas da tarde, todos nós íamos tomar banho. Todos os filhos tomavam banho, descíamos, meu pai nos pegava, botava no carro e nos levava de carro até o Morro da TV. É um local em Porto Alegre que fica num ponto alto, onde você vê o Rio Guaíba, vê quase toda cidade. Nós ficávamos lá no Morro da TV, olhando tudo aquilo, deixando o tempo passar. De repente, o meu pai dizia: “Vamos voltar para casa.” Aí, nós todos voltávamos para casa. Quando nós chegávamos em casa, a casa estava escura, só com a árvore de Natal acesa e os presentes estavam lá. Todo santo Natal era comemorado da mesma maneira. Minha mãe nos dava banho, meu pai nos pegava, nos levava pro Morro da TV, enquanto isso o Papai Noel chegava, deixava os presentes e depois nós voltávamos. Nós fizemos aquilo durante muito tempo, até um momento em que a gente percebeu, a gente já sabia que aquele momento de sair de casa era a hora de botar os brinquedos embaixo da árvore. Mas a gente continuava mantendo aquela relação e continuava indo pra lá, na ansiedade de voltar pra casa, porque sabia que era a hora que a mãe ia botar os presentes embaixo da árvore de Natal. O Natal tinha sempre essa característica marcante pra nós, era o dia de visitar o Morro da TV. A gente ficava lá esperando o Papai Noel chegar na nossa casa. Isso era muito comum de acontecer. Tinha outras coisas que não eram festas, não era Natal, não era aniversário. Minha mãe fazia, por exemplo, uma feijoada. Todo ano tinha uma feijoada lá em casa. Ela sempre reunia toda a família, vinham todos os tios, os primos, as primas, meu avô, meus avós. Iam todos lá pra casa porque ela fazia uma grande feijoada e, necessariamente, não era uma data, era no inverno. Chegou o inverno: “Vamos fazer uma feijoada.” Porque feijoada tinha tudo a ver com inverno. Era ela e o meu tio Tito, que era um bom cozinheiro, os dois eram bons cozinheiros. Eles faziam uma tremenda feijoada num fogão a lenha. Não era tão antiga essa época, mas eles fizeram um fogão a lenha porque gostavam do fogão a lenha, da imagem do fogão a lenha e achavam que a feijoada ficaria melhor. Faziam a feijoada no fogão a lenha, um fogão que existe até hoje, onde, recentemente, o meu irmão continua fazendo a feijoada. Ele substituiu, a gente fala, a minha mãe, nesse sentido. Ela reunia as pessoas em casa mesmo quando não havia uma festa, era uma reunião em família. Aniversários, a gente tinha. Se eu for me lembrar de uma festa de aniversário marcante, foi quando o Garibaldo, da Vila Sésamo, foi nos visitar em casa. Todos os bonecos, todos os enfeites que eram da Vila Sésamo na sua origem... O Garibaldo era um boneco, sei lá quem apareceu na nossa casa... Tudo aquilo era muito fantasioso na nossa cabeça e era ela quem organizava. As festas de aniversário e o Natal. Páscoa, também. Páscoa era uma data que, evidentemente, a gente comemorava, porque nós éramos e somos de uma família católica. A Páscoa é uma data até mais importante do que o Natal para os católicos. Mas a gente comemorava não de forma católica, a gente comemorava com coelhinho da Páscoa. A gente comemorava com os ovos, com os ninhos – o ninho escondido que você tinha que buscar, encontrar. Quer dizer, essa tradição toda que não tem nada a ver com catolicismo, mas a tradição da Páscoa para as crianças era mantida em casa, naturalmente, com ovos pintados à mão, não eram de chocolate. Eram ovos mesmo que a gente fazia, ovo cozido, sei lá exatamente o que, que se pintava à mão e depois eram colocados nos cestos. Aí, o coelho escondia os cestos em algum lugar pra gente buscar. Eram essas as datas que a gente comemorava.
P/1 – Você teve educação religiosa?
R – Eu tive. Minha mãe me levava à igreja, fui batizado, fiz primeira comunhão, estudei em colégio católico. Quando era muito pequeno, estudei num jardim de infância. Em seguida, fui pra um colégio de freiras e um, dois anos depois, fui pra um colégio católico, o colégio Marista. Eu tive toda a minha formação católica, minha mãe era católica, levava-me à igreja, eu fiz toda a formação inicial. Depois, me afastei durante muito tempo da igreja. Voltei depois pra igreja católica, hoje sou um católico praticante. Essa é uma categoria típica do brasileiro, tem o católico não praticante e o católico praticante. Só existe isso aqui no Brasil: ou você é ou você não é. Enfim, eu sou um católico praticante e isso tá muito ligado ao que a minha mãe me trouxe de espiritualidade, de religiosidade, naquela época. Uma curiosidade, já que nós estamos falando, contando várias histórias: a minha rua era uma rua ecumênica. Tinha a Igreja do Menino Deus, que ficava próxima, no bairro do Menino Deus. Tinha a Igreja do Menino Deus, próxima da minha casa, lá na Avenida Getúlio Vargas, mas a minha rua especificamente, a Rua Saldanha Marinho, era tomada por casas de umbanda, quimbanda e qualquer outra religião que você imaginar que existisse na época. Ao lado da minha casa, era um centro espírita. A gente convivia com isso, com algumas religiões que, inclusive, sacrificavam animais. Você ouvia os animais sendo sacrificados. Nós, como crianças, tínhamos tudo aquilo como uma grande curiosidade. Pra minha mãe, como católica, por melhor relação que ela tivesse com toda a vizinhança, e ela tinha uma bela relação, inclusive com os nossos vizinhos...Ela ficou apavorada no primeiro dia que a gente foi – eu, dois amigos meus, meu irmão também deve ter ido – numa casa de umbanda receber um passe. Porque nós tínhamos curiosidade de ver o que as pessoas faziam lá dentro, se as pessoas incorporavam algum espírito, alguma coisa que baixava, era uma coisa, pra nós, curiosíssima e a gente foi lá. Passamos ali, pra nós, era mais uma curiosidade, minha mãe ficou horrorizada com aquilo, que nós não deveríamos participar, porque por mais que se respeitasse aquela religião, não era a nossa religião. Nós éramos católicos. A gente conviveu muito bem com essa mistura de religiões, o que acho que foi bastante positivo pra nossa formação. Mas eu sou, por formação, católico. E jovem, participava das diferentes atividades na igreja.
P/1 – Com quantos anos você entrou na escola?
R – Ah, não lembro com quantos anos, mas era muito novo. Eu entrei no jardim de infância, no jardim... Na escola Branca de Neve, eu lembro claramente da Branca de Neve pintada na parede da escola e dos anõezinhos da Branca de Neve colocados no jardim. Talvez fossem cenas meio aterrorizantes, eu era pequeno, mas sobrevivi àquelas cenas. Enfim, eu vivi lá durante algum tempo, o jardim de infância não era nada marcante na minha vida, nada assim, maravilhoso. Eu lembro que a minha irmã curtia muito, eu fui pro jardim de infância com a minha irmã. Em seguida, a gente saiu, talvez pelo medo que eu ficasse dos anõezinhos da Branca de Neve. Nós fomos pra um colégio de freiras, o Nossa Senhora das Dores. Se não me engano, foi o Nossa Senhora das Dores. Nós fomos pra um colégio de freiras que também ficava lá perto da minha casa.
P/1 – Vocês iam a pé?
R – A gente ia a pé. Tanto no jardim de infância como no colégio das freiras, a gente ia a pé e ficava por lá. Minha irmã curtia mais, até porque era um colégio mais feminino do que masculino, por ser de freiras. Tinha poucos meninos. A lembrança que eu tenho desse colégio de freiras era... A lembrança que eu tenho é que foi onde eu dei o meu primeiro beijo. Na verdade, eu não dei um beijo em ninguém, eu fui beijado por uma colega da minha irmã. Porque, como tinha poucos meninos nas salas de aula, ou sei lá por que motivo, na época, teve uma colega dela que gostava de mim e um dia me deu um beijo no quintal... No quintal, não, no pátio do colégio, e aquilo ficou na minha lembrança. Não sei o nome dela, não sei por que ela me deu o beijo, mas eu sei que ela me deu o beijo naquele momento. Foi o que ficou desse colégio. Depois, nesse colégio, eu só tive mais alguma atividade esportiva porque a gente... Isso eu lembro! Curiosamente, nós formamos um time de futebol de salão na minha rua e nesse colégio tinha uma quadra. Eu já não estudava mais lá, mas tinha uma quadra que a gente alugava pra jogar aos domingos. A minha mãe me convenceu que só ia dar certo a gente jogar...O padre ficaria muito incomodado se a gente só fosse lá pra jogar, ela sempre dizia assim: “Como vocês vão jogar aos domingos, vocês necessariamente têm que ir à igreja aos domingos. Rezam, e depois da igreja, vocês vão jogar.” A gente fazia isso, a gente ia à igreja, mesmo contrariado, achava que não tinha muita importância, mas ia à igreja, rezava lá no domingo, depois ia jogar, porque acreditava que fazia parte do negócio ir à igreja. Não adiantava muito, porque o nosso time era ruim demais, mas tudo bem, a gente ia à igreja e jogava lá. Eu fiquei pouco tempo nesse colégio como aluno porque eu não curtia o colégio. Não sei nem por que, mas eu não curtia o colégio e a gente acabou indo pro Nossa Senhora do Rosário, que era um colégio Marista mais distante, no bairro da Independência. Era longe, a gente ia de Kombi escolar no início, na época era Kombi escolar. Aí sim, foi marcante pra mim, porque ali eu tive todo meu crescimento de adolescência, foram grandes momentos.
P/1 – Já era no ginásio?
R – Eu entrei na quinta série. Acho que ainda era primeiro grau.
P/1 – Era fundamental. Era primeiro grau.
R – Era fundamental. É, primeiro grau. Era quinta série. Eu fui pra lá na quinta série e cursei até o final, até o terceiro ano do segundo grau. Então, era primeiro e segundo grau ainda. Foi lá que eu rodei de ano, mas foi lá que eu aprendi muita coisa. Foi lá que eu tive uma série de experiências, seja na vida escolar, na vida esportiva, na vida amorosa, na vida política. Eu passei por vários estágios dentro da escola, pra mim foi muito marcante. Lá estudou minha irmã, estudou meu irmão também, todos nós acabamos indo pra lá. Meu irmão chegou a... Na época ele foi colocado também no jardim de infância Branca de Neve, que ainda existia, mas ele bateu o pé até o fim porque ele queria ir pra escola dos irmãos, e foi. No meio do ano ele saiu do Branca de Neve e foi pra escola dos irmãos que era no Rosário, cursou todo tempo lá. O Rosário foi o colégio que marcou mesmo a minha vida.
P/1 – Quais foram essas experiências na escola?
R – Ah, do início ao fim. Vamos lá, no campo de...
P/1 – Do estudo.
R – Do estudo? No campo do estudo, foi onde eu tomei minha primeira bomba no ensino, que foi a melhor coisa que me aconteceu na escola. Quando eu cheguei, porque eu entrei... Eu sempre fui mais novo do que os meus colegas na sala de aula, porque a minha mãe me colocou um ano mais cedo do que eu deveria ter ido pra escola. Quando eu cheguei na sétima série, os meus colegas tinham um ano a mais do que eu, num período em que um ano a mais fazia diferença. Isso me levava a uma submissão muito forte. Minha personalidade era muito fechada. Eu me relacionei com dois ou três colegas que eu lembro, não lembro o nome deles, mas me lembro deles, que não eram nada santos na sala de aula, e eu entrei no embalo deles completamente. Eu passei um ano inteiro, praticamente, sem estudar. Eu ia pra escola, saía com eles no meio da aula, faltava, a gente ia pra alguma lanchonete próxima ou ia pro apartamento de algum amigo próximo. Ia pra dormir, pra não fazer nada, pra bater papo. Não fazíamos nada de mau, a não ser não ir à sala de aula. Estudar, eu não gostava de estudar. Eu levei aquela quinta série, não sei como sobrevivi àquela quinta série. Quer dizer, na verdade eu não sobrevivi... Naquela sétima série... Na verdade, eu não sobrevivi porque eu acabei rodando, levei pau mesmo, rodei, minhas notas eram péssimas, notas vermelhas. Eu não tinha outra saída, tinha que rodar e descobri que foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. Porque, na realidade, no ano seguinte, quando eu sentei à mesa junto com as pessoas da minha idade, eu mudei completamente a minha personalidade. Eu passei a liderar um grupo, passei a ter voz no meio daquelas pessoas, coisa que eu não tinha. Então, claro que é duro rodar de ano, especialmente numa escola particular, o teu pai faz das tripas, coração, pra poder pagar. Era muito difícil pagar, porque era uma escola muito cara. Meu pai nunca teve um salário astronômico, era um processo complicado, mas ele nos manteve lá. Então, rodar de ano era crime de lesa-pátria e eu passei por isso, mas foi a melhor coisa que me aconteceu. Eu mudei a minha personalidade, eu ganhei liderança dentro dos grupos que eu convivia. Eu passei a ter um relacionamento com os professores completamente diferente, com muitos deles, um relacionamento de amizade. Eu tinha coragem de conversar com os professores. Aí foi se desenvolvendo uma característica de dialogar, de conversar, de ser aberto, de dizer o que eu penso pras pessoas. Isso foi funcionando porque eu cobri a minha dificuldade em aprender determinadas coisas mostrando outras características de aluno que eu tinha. Quer dizer, já era uma escola que enxergava o seguinte: o aluno não é a nota que ele tira, o aluno é o que ele é, o que ele mostra ser pras pessoas, o que ele pode ter de potencial. Isso me ajudava muito. Mesmo que eu não fosse um aluno que tirasse grandes notas, os professores me entendiam. Isso foi muito legal. Foi muito forte pra mim, porque mostrou que não era o fato de eu saber mais alguma coisa, ou decorar mais alguma coisa – eu odiava decorar coisas na sala de aula – que me faziam melhor ou pior. A minha participação em sala de aula, a minha conversa com os professores, os questionamentos que eu fazia, isso me ajudava porque demonstrava aos professores que eu tinha interesse ou uma capacidade de absorver outro tipo de conhecimento, não necessariamente o do livro. Eu sei que isso, por exemplo, foi o que me fez completar a escola no terceiro ano. Quando eu fiz o terceiro ano, o último ano no colégio – o ano que você encerra e vai fazer o vestibular – lá na escola, lá no Rosário, eu estudava de manhã e à tarde porque tinha uma espécie de reforço. Só que o reforço tinha nota e você estudava Química um, dois, três, Biologia um, dois, três, era uma revisão de tudo pra você se preparar pro vestibular. Naquele mesmo ano, eu jogava no time de basquete da escola e era um time extremamente competitivo, nós jogávamos muito, além de eu fazer as outras atividades. Eu fui presidente do grêmio estudantil da escola naquele último ano. Então, eu fazia absolutamente tudo menos ir pra sala de aula, porque eu estava envolvido em várias questões e os professores sabiam. Eu me envolvia nas brigas contra a APM, que era a Associação de Pais e Mestres, porque eu lutava ao lado dos professores para que os professores tivessem participação na APM. Porque a APM, na verdade, era um grupo de pais, de amigos de pais que tomavam conta e os professores não tinham voz. Eu consegui, nós conseguimos, garantir a presença dos alunos nas reuniões da APM e aí nós dávamos voz para os professores também, era um voto ao lado dos professores. Tinha uma briga que a gente foi levando e isso fez com que os professores fossem me entendendo, lutando naquele terceiro ano, ajudaram muito. Foi uma coisa assim, do seguinte tipo: a gente na época podia... Você passava por média, ou seja, você conseguia a nota média em todas as matérias, passava. Se você não passasse por média, você tinha um primeiro exame pra fazer. Eu, evidentemente, no primeiro exame, fiz exame de todas as matérias, porque eu não tinha média em nenhuma delas. Você podia ficar em até três matérias num segundo exame. Eu fiquei em quatro matérias. Aí os professores tinham a tal reunião dos professores, eles faziam as reuniões, discutiam lá entre eles pra avaliar os alunos e eu lembro que eu ficava na escola esperando os intervalos pra conversar com os professores. Eu fazia o meu lobby lá com os professores. Tinha dois ou três professores que gostavam muito de mim: “Olha, a gente negociou o que deu. Nós conseguimos te passar naquela matéria e você vai fazer só as três, tá?” “Tá legal.” No segundo exame, das três matérias, podia ficar numa, sei lá como eles chamavam...Recuperação terapêutica. Você tinha que ficar mais uma semana na escola estudando, fazendo um monte de provas. Eles faziam um monte de coisa pra te passar e eu fazia um monte de coisa pra não passar. Eu lembro que naquele terceiro ano, das três que eu fiz, eu fiquei em duas, não consegui nota suficiente. Foi a mesma negociação. Eles foram pra reunião de professores, conversaram, negociaram, foram meus advogados de defesa na reunião. Desceram e me disseram: “Legal, você vai ficar só numa e você vai ter que fazer essa.” Não lembro se era Matemática, se era Biologia, numa delas eu fiquei. Aí eu fui fazer a segunda época e acabei passando. Era uma coisa legal por quê? Porque era um momento em que os professores percebiam que você não era necessariamente aquele aluno da prova. Você não era um bom ou mau aluno porque você ia bem na prova, você ia mal na prova. Você era um bom ou mau aluno pela capacidade que você tinha de discernimento, de compreender as coisas e talvez eu tenha conseguido mostrar isso pelas ações que eu realizava, seja à frente do grêmio estudantil, seja nas outras atividades que a gente participava. Isso foi legal pra mim. Teve uma passagem da escola muito marcante. Eu tive uma professora genial, Maria Helena, professora de artes. Artes você não faz nada pra tirar nota, né? Você faz artes, você vai num... Professora não tem que fazer exame de artes pra você. É conversar, é bater papo, é criar, é pensar. Mas, ela foi genial pra mim, porque ela disse uma coisa que, na época, barrou um preconceito que certamente poderia ter nascido naquele instante, até pela minha formação, pelo meio que eu vivia, sei lá. Eu lembro claramente, eu estava recomeçando a fazer aulas de violão ao lado do meu irmão, em mais uma tentativa frustrada com a música. Nós fazíamos aula de violão numa escola de balé que tinha perto da minha casa. Eu fui conversar com a professora Maria Helena e ela perguntou: “O que você tá fazendo?” Eu disse: “Ah, eu estou fazendo aula de violão.” “Onde?” “Lá na escola “tal”.” Era o nome da escola de balé que era conhecida, era famosa na época. Eu olhei pra ela e disse: “Mas não estou fazendo balé.” Ela disse assim: “E se você tivesse, qual seria o problema?” Essa pergunta é uma coisa que eu tenho até hoje guardada na minha mente, porque aquilo pra mim foi transformador. Com uma pergunta que ela me fez, ela barrou o desenvolvimento de um preconceito que poderia estar sendo construído naquela etapa da minha vida. Ela perguntou pra mim: “E se estivesse fazendo, qual seria o problema?” Eu percebi, eu disse: “Não teria problema nenhum.” Aquilo foi, pra mim, transformador. Veja, eu aprendi uma coisa na escola naquele momento que eu não ia testar numa prova, porque não tem prova pra isso, eu ia testar na vida. Então, eu certamente aprendi muito mais ali do que eu devo ter aprendido numa aula de História, com todo respeito aos meus professores de História, tive alguns até legais. Entende o que eu quero dizer? Você aprende coisas na escola que não podem ser medidas em nota, em avaliação, e eu aprendi aquilo. Aquilo, pra mim, foi genial. A escola foi extremamente importante pra mim porque me deu personalidade, construiu minha personalidade, deu chance de me expressar. Foi formadora, realmente, foi formadora em todos os aspectos, inclusive em saber encarar minhas fraquezas, meus defeitos que eram não saber estudar, não gostar de estudar. Quando eu vou lá e rodo de ano, sou obrigado a encarar isso diante das pessoas, e foi muito difícil. Pro meu pai, eu tive uma tremenda dificuldade de contar, eu tive que ser forçado por outra pessoa a contar essa história pra ele, porque eu tinha medo de contar. Quando eu contei, ele teve uma reação supertranquila, do tipo: “Você sabe, no ano que vem, tem que estudar mais.” Eu não levei bronca, ele não brigou comigo, eu disse assim: “Pô, dá pra conversar com as pessoas, não precisa ter tanto medo assim.” Foi tudo pedagógico naquele processo, eu sou muito grato pela passagem que eu tive. Era uma escola com grandes professores, isso foi importante.
P/1 – Foi no ginásio que você repetiu. Você continuou lá até o colegial?
R – Continuei na escola até o colegial. Primeiro e segundo grau, tudo na mesma escola.
P/1 – No segundo grau, você fez o que? Você optou entre humanas, biológicas?
R – Não. Não tinha isso.
P/1 – Não tinha? Era igual?
R – Na época era tudo igual. Não tinha essa escolha, você era obrigado a fazer humanas, biológicas, era obrigado a estudar História, obrigado a fazer conta. Até que foi bom ter feito isso de uma maneira ampla, senão eu não teria pensado em algumas matérias, eu iria seguir por humanas que aparentemente seria mais fácil na minha vida. Foi isso, tanto no primeiro como no segundo grau, eu tive que fazer todas as matérias, não tinha muito choro, não.
P/1 – Na juventude, quais eram os seus programas? O que você fazia?
R – Eu fazia muito esporte.
P/1 – Onde você frequentava?
R – Eu fazia muito esporte. Muito esporte, muito. Eu vivia... Tinha época que eu fazia ginástica olímpica de manhã, alguns dias da semana, nos outros eu jogava futebol na escolinha de futebol do Grêmio, ia pra escola, voltava, ia treinar basquete todas as noites. Os meus finais de semana eram em competições. Praticamente, ou eu competia jogando futebol ou eu competia jogando basquete. Então eu sempre tive a minha juventude muito ligada... A minha programação muito ligada a estas atividades. Depois, lá pelos 17 anos, talvez, eu comecei a sair mais, ir à noite a algum bar, a alguma balada, dentro dos moldes que nós tínhamos na época. Aí sim, eu comecei a frequentar a noite e a sair. Meu pai não me deixava sair muito, meu pai controlava muito a gente. Não era ele que controlava, era a minha mãe, mas por ordem do meu pai. Era muito rígida a nossa saída, nós tínhamos horário pra voltar. Eu fui o primeiro dos irmãos a quebrar essa barreira, a desrespeitar a barreira do horário, a encarar isso. Isso causou muitas crises dentro de casa. Minha irmã era mais velha, mas minha irmã não saía mesmo, era muito mais disciplinada. Meu irmão era muito mais novo ou bem mais novo, então, não saía porque era mais novo. Fui eu que tive que quebrar essa barreira e criar novos parâmetros e horários dentro de casa. Eu chegava na hora que eu queria. Isso causava uma crise, porque o meu pai brigava com a minha mãe, cobrava dela. Era uma época que você não achava os seus filhos no telefone celular, você não tinha para quem ligar, você tinha que esperar o cara voltar pra casa. Ele brigava, brigava, brigava com ela e, quando eu voltava pra casa, ele ia deitar e dormir, ele não falava nada pra mim, mas eu ficava sabendo através dos meus irmãos o que tinha acontecido, a crise que tinha acontecido por minha causa. Era assim, a diversão era sair à noite, ir ao bar, à casa de amigos ou ir pra alguma festa em alguma boate que tivesse lá na região. Na época não falávamos em boate, falávamos em discoteca que tivesse na região. Eram essas as minhas diversões. É que eu tive, principalmente na adolescência, a adolescência muito marcada pelo esporte. Pra você ter ideia, eu fui beber mesmo, beber álcool, aos 19, 20 anos, porque até então eu não bebia porque eu tinha muita consciência de que eu dependia muito da minha parte física pra ter alguma projeção no esporte. Como eu tinha carências técnicas, eu tinha que superar essas carências fisicamente. Eu não bebia por causa disso, porque eu tinha muita disciplina nesse sentido. Eu tive a minha vida, a minha adolescência, muito marcada pelo esporte, seja no basquete, seja... No basquete principalmente, porque eu joguei durante 13 anos basquete.
P/1 – A qual clube que você ia?
R – Ao Grêmio.
P/1 – Ao Grêmio?
R – Ao Grêmio. A minha vida foi muito ligada ao Grêmio, desde muito pequeno. Eu ia ao estádio em todos os jogos do Grêmio, pra ver os jogos de futebol do Grêmio. Eu treinava na escolinha de futebol do Grêmio. Joguei competitivamente, depois fui pra escolinha de basquete do Grêmio, joguei por 13 anos lá. A minha vida foi totalmente ligada ao Grêmio. Atividade esportiva em outros clubes, raramente. Eu cheguei a ensaiar fazer judô num outro clube de férias que a gente ia, o Clube dos Gondoleiros, que era na zona norte de Porto Alegre, perto de onde morava a minha vó, mãe da minha mãe, do qual o meu avô era sócio remido, que era uma coisa genial. Eu achava genial alguém ser sócio remido, não tinha a menor noção do que era isso. Depois eu fiquei sabendo que o cara ganhava um título ad aeternum. Era maravilhoso. Enfim, o cara devia ser superimportante no clube. Eu, nas férias, fui fazer judô lá. Mas o resto, todas as atividades esportivas eram relacionas ao Grêmio. Sempre.
Lá eu joguei, fui técnico, desenvolvi uma série de atividades no esporte.
P/1 – Nessa época, você já tinha alguma coisa como: “Quando eu crescer, quero ser tal coisa?”
R – Na realidade, teve uma época que eu queria ser decorador de interiores. Eu adorava revistas de arquitetura, revistas que tinham casas desenhadas, plantas baixas das casas desenhadas. Eu adorava desenhar isso e colocar a cama, o sofá, onde ia ficar a televisão, onde seriam as janelas. Eu gostava de desenhar isso. Mas curiosamente, eu nunca levei à frente esse meu desejo, eu nunca fui um bom desenhista. Não desenhava bem, não tinha essa arte toda pra desenhar, nunca levei à frente. Mas, teve um período em que olhava revistas de decoração. Adorava olhar aquelas revistas, adorava, principalmente, ver a planta baixa. Eu achava genial aquele desenho, encaixar tudo ali dentro. Era isso. Mas, nunca tinha pensado em fazer outra coisa. Num determinado momento, surgiram duas coisas na minha vida: a
Educação Física, pela prática do esporte, e o Jornalismo, pela convivência que eu tinha. Eu arrisquei ser professor de Educação Física, até porque eu comecei a dar aula pra crianças. Quando eu jogava basquete, a maneira que o clube tinha de me remunerar – não existia basquete profissional no Brasil – a maneira que o clube arrumava pra me remunerar, pra me pagar algum dinheiro era eu dar aula pra criança. Eu dava aula na escolinha de basquete do Grêmio. Quando eu comecei a dar aula na escolinha de basquete do Grêmio, eu comecei a perceber: “Poxa, eu tenho que aprender um pouco mais sobre essa técnica, entender como é que isso funciona.” Aí eu pensei em fazer Educação Física, cheguei a fazer vestibular pra Educação Física, entrei na universidade federal, na Esef, na Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul mais ou menos na mesma época em que eu entrei no Jornalismo. Eu fui levando os dois estudos em paralelo, mas chegou um momento que eu desisti da Educação Física. Mas eu cheguei a fazer, fiz cursos... Entrei pro Projeto Rondon, dava aula em escolas de periferia em Porto Alegre, dava aula de... Não era Educação Física, dava aula de recreação pra crianças, depois fiz curso pra trabalhar com crianças excepcionais. Então, eu cheguei a trabalhar também nessa área, mas nunca levei isso profissionalmente à frente porque o Jornalismo acabou me dominando. Chegou uma época que eu tive que tomar uma decisão, o que realmente fazer da vida. Durante muito tempo eu joguei basquete profissionalmente, treinava todas as noites, não tinha tempo pra outras coisas, era um esforço acirrado. Aí, não deu mais, ou eu fazia uma coisa ou eu fazia outra. Eu larguei a Educação Física. Mas, no início, eu pensei em fazer decoração de interiores, depois eu fui contaminado pelo Jornalismo e pela Educação Física. Eu tinha uma expectativa, tive num determinado momento, uma expectativa de seguir carreira jogando futebol, mas essa foi uma carreira abortada no meio do caminho, talvez pela minha incapacidade. Como no basquete eu me sentia mais à vontade, eu segui no basquete, fui... Segui pelo basquete, joguei, recebi dinheiro por isso, mas não era algo pra ir além do que eu poderia, não teria capacidade de dar um passo além. Por isso, os caminhos naturais eram ou Educação Física ou Jornalismo, que foi o que eu acabei fazendo, ficando no Jornalismo.
P/1 – Na juventude, antes da faculdade, você namorava?
R – Todas. Apaixonadíssimo. Eu sempre tive um problema sério, eu me apaixonava pelas pessoas. Às vezes, elas nem eram apaixonadas por mim, mas eu me apaixonava pelas pessoas e cultivava aquela paixão. Como eu viajava quando eu era adolescente jogando basquete – eu viajava pra disputar competições pelo Brasil – em todos os lugares que eu ia, eu tinha uma namorada, eu arrumava uma namorada. Namoradas que muitas vezes não iam além de um beijo ou de um abraço, não mais do que isso, mas se transformavam em namoradas e eu me apaixonava por elas. E como é que a gente se relacionava? Por cartas. Eu mantive durante algum tempo, namoros, que a gente poderia dizer platônicos, com diferentes namoradas, em diferentes partes do Brasil. Eu escrevia cartas pra ela, contava qualquer paixão, sei lá o que eu dizia pra ela na carta, e mandava pra ela. E mandava pra outra, mandava pra outra e mandava pra outra. Eu mantinha essas cartas comigo pra ter uma narrativa pra cada uma daquelas pessoas, pra saber o que elas me escreviam, qual era a história de cada uma delas e qual era a história que eu estava contando pra elas. Não mentia pra ninguém, eu contava as minhas histórias, mas o que eu já contei, o que eu não contei etc. Eu mandava cartas e elas respondiam por cartas, a gente prometia se encontrar a qualquer momento. Provavelmente, elas deviam ter os seus namorados lá na cidade em que elas estavam como eu tinha as minhas namoradas na cidade que eu estava, em Porto Alegre. Mas a gente mantinha essa relação platônica por carta porque eu era assim, eternamente apaixonado, eu achava que aquela ia ser a mulher da minha vida, o que durava, sei lá, uma semana, um mês. Às vezes, mais tempo, porque a gente nunca mais se via, mas continuava... Manter um relacionamento por carta é muito fácil porque você não tem crise, não passa por problemas, você só conta as coisas legais, as coisas bonitas e a pessoa também te fala de coisas legais e bonitas. A gente mantinha um relacionamento de amizade por cartas durante muito tempo. Mas tive namoradas, algumas namoradas, algumas mais marcantes por bem, outras muito mais marcantes por mal, mas tive. Tive algumas namoradas lá em Porto Alegre. Mas a minha grande namorada eu fui conhecer em São Paulo mesmo.
P/1 – Que música você escutava na juventude? Seu tio já tinha esse cover dos Beatles?
R – Ah, tinha o cover dos Beatles por causa do meu tio, por causa dele, mas eu não era assim... Eu não era um cara fanático por música, assim de “esta música é a música da minha vida”. Eu fui muito contaminado pelo esporte. O esporte me impediu de seguir pela arte. Tanto é que eu sou um cara que se frustrou várias vezes ao tentar fazer música, ao tentar tocar algum instrumento, eu nunca consegui. Eu via meu irmão tocando muito bem, naturalmente, minha irmã aprendendo a tocar e eu não conseguia. O meu ouvido musical foi sempre péssimo, mas eu peguei todas aquelas músicas da década de 70. Eu peguei Rolling Stones, eu peguei The Doors, John Travolta. Eu me vesti de John Travolta... Claro que me vesti de calça branca pra dançar na discoteca, pra dançar no baile dentro de casa, quando iam uns amigos e eu tocava a música da fita K7 que a gente conseguia gravar. Eu peguei todas essas músicas daquele período, eu peguei, mas assim, nada era extremamente marcante pela minha incapacidade e pela minha insensibilidade para a música. Hoje eu tenho coisas que ficaram, e o Rolling Stones foi uma dessas coisas. U2, depois dos 18 anos, porque tinha músicas de fossa, eu sofria muito ouvindo, e eu gostava de sofrer. De músico marcante, tinha Nei Lisboa, que era um músico da cidade de Porto Alegre. Ouvia todas as músicas de Nei Lisboa, porque ele cantava a cidade de Porto Alegre e cantava as coisas do seu dia a dia, seus dramas, suas paixões arrependidas. O Nei Lisboa era o grande poeta da cidade. Nei Lisboa era o cara que te marcava, mas eu não saía pra dançar Nei Lisboa, eu acho que ninguém dançava Nei Lisboa. Ouvia-se Nei Lisboa.
P/1 – Tem alguma letra dele que você se lembra?
R – Pra viajar no cosmos é uma delas. Difícil eu lembrar aqui, pra você, alguma música, nesse momento. Minha memória não vai me permitir, talvez porque a minha memória, o meu cérebro me protege muito de me arriscar a cantar qualquer música. Eu tenho um problema com música. Total. Mas assim, Pra viajar no cosmos é uma delas, Foi uma noite no salão... Eu não vou lembrar. Eu não vou me lembrar das músicas agora, aqui. Eu precisaria parar, tranquilizar-me totalmente pra começar, rememorar, trazer pra memória algumas músicas do Nei Lisboa que eu cantava ou cantarolava sozinho, porque eu não tive coragem, nunca, de cantar na frente de ninguém. Enfim, Nei Lisboa era aquela música que te tocava, era música que você se embalava, era o músico que você ia a todos os shows, pra assistir. Era o cara que marcava. Teve uma época forte, marcante, de Lobão. O Lobão, na época da desgraça, você ia pro bar, ficava bebendo uísque a noite toda. Tinha um bar, o bar Opinião, em Porto Alegre, que era um bar que tinha banda e tinha um cover do Lobão lá. Todas as músicas do Lobão eram tocadas e você ficava lá cantando Lobão e bebendo uísque. É a coisa mais “fossante” que pode ter. Você não tinha namorada, ou a namorada que você queria ter não te queria e você saía pra noite pra ficar bebendo uísque. Você bebia a noite inteira, uísque, com seus amigos, ia pra casa depois na hora que você quisesse, já era uma época que minha mãe já tinha morrido, meu pai já não morava comigo. Então, eu ficava até a hora que eu quisesse na minha vida, eu fazia o que eu quisesse da minha vida, ela era completamente sem responsabilidade com ninguém. Você ficava ouvindo Lobão até altas horas. Mas, o Nei Lisboa era o cara mais marcante, porque era um cara da cidade, ele cantava as músicas ali do entorno da cidade, da... Agora vou esquecer. Esqueci até o bairro, mas daqui a pouco vem na memória. No entorno da Redenção, do Parque da Redenção, que eram ambientes onde você vivia. Então, poxa, você... O Nei Lisboa era o cara que tocava o teu coração naqueles momentos de fossa ou de alegria, às vezes de alegria. Mas, a música era isso. Minha relação com a música é muito ruim. Eu tentei... Eu não, né? Minha mãe me fez tocar violão junto com a minha irmã e com a minha prima. A gente foi para as aulas de violão, tinha uma professora que tocava piano, a gente tinha que tocar e cantar e eu sempre fui desafinado. Você ficava cantando assim: “A mesma praça, o mesmo banco....” E ficava lá tentando dedilhar. Passado um tempo, a professora me chamou e disse: “Vamos combinar o seguinte: você não precisa cantar, você só toca e acompanha a sua irmã e sua prima. Eu vou no piano, você toca, tal, pra pegar o ritmo.” “Tá legal.” Aí, eu fui só tocar e não precisava cantar. Passado mais um tempo, a professora me chamou e disse assim: “Hoje na aula nós vamos fazer uma coisa, eu vou te dar esse chocalho e você vai ter que tocar o chocalho acompanhando nosso ritmo, pra ver se você vem atrás da gente no ritmo.” Aí, quando ela me deu o chocalho, eu disse assim: “Não vai dar certo.” Larguei de mão, desisti. Caí fora da aula, pedi pra minha mãe: “Não quero mais aprender música.” Anos depois, quando o meu irmão foi fazer violão, eu entrei no violão de novo com o meu irmão. Começamos tudo de novo, eu e meu irmão, tocando com um cara, numa escola de balé. Passaram-se três meses, meu irmão dava um banho tocando, ele tinha uma habilidade pra tocar, eu disse: “Ah, eu não vou ficar aqui, ficar atrasando a vida desse cara tocando violão. Eu tenho que fazer outra coisa na vida.” Como eu me dava muito melhor no esporte, eu fui embora, desisti. Eu tentei ir pro coro do colégio, no Nossa Senhora do Rosário, fui expulso do coral. Tinha o irmão Armando que cuidava, era o maestro. Eles botavam todo mundo no teatro do colégio, um teatro grande que tinha lá na escola, todo mundo ia pra lá cantar. Ele tinha um ouvido maravilhoso, ele conseguia identificar as pessoas: “Ah, mais aqui, mais acolá.” Eu lembro que eu estava sentado lá no fundo, no meio do teatro, lá pra trás, e ele chamou a mim e a dois amigos, chamou-me e disse: “Vocês não precisam cantar, tá? Vocês não precisam mais vir ao coro porque não vai dar certo.” A minha relação com a música foi sempre muito conflituosa, nunca deu muito certo.
P/1 – Aí, chegou a época do vestibular. Você fez cursinho? Ou era essa...
R – Primeira coisa que aconteceu quando eu fui fazer vestibular pra Jornalismo: eu tomei pau. Eu tinha saído do terceiro ano nas condições mais complicadas possíveis. Eu só passei...Empurraram-me no terceiro ano pra eu passar na escola. Disseram: “Você merece passar porque você é um cara legal.” E eu passei. Então, eu não tinha nenhum preparo pra ir pra faculdade. Fiz o vestibular pra federal e pra PUC (Pontifícia Universidade Católica) e não passei em nenhum deles. Aí, no meio do ano, eu fiz vestibular de novo na PUC do Rio Grande do Sul e passei pra Jornalismo. Até era difícil eu não passar em Jornalismo, não passar na PUC no meio do ano, e eu consegui quase não passar. Eu consegui a vigésima oitava vaga de 28 vagas. No ano seguinte... Eu fiz cursinho, eu fiz cursinho porque seis meses sem nada não ia dar certo. Eu fui fazer cursinho pra tentar fazer vestibular. Fiz um semestre de cursinho. Nada marcante no cursinho, nada que ficasse na memória de tão relevante na minha vida. Já era um tempo que os cursinhos eram um grande negócio da educação, tinha os professores artistas que te ensinavam as coisas. Fiz aquela época do cursinho por fazer, fui fazer o vestibular e passei pra Jornalismo no meio do ano na PUC. No semestre seguinte, eu fiz pra Educação Física na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e passei também. Aí, já nem fiz, porque pra Educação Física, você precisa fazer menos cursinho ainda pra passar. Eu consegui passar nas duas faculdades porque não tinha como não passar, eu tinha que fazer um esforço grande pra não passar. Mas deu certo, pelo menos no jornalismo, as coisas deram certo.
P/1 – Você cursou durante quanto tempo, as duas ao mesmo tempo?
R – Eu fiquei quatro anos... Bom, fiz os quatro anos de Jornalismo. Na Federal de Educação Física eu fiquei... Educação Física é um curso de três anos. Eu até fiquei três anos lá, mas eu fazia só algumas cadeiras e aí aconteceu uma coisa que, na verdade, foi o que acabou me tirando de vez da Educação Física: eu tive que fazer aula de Anatomia. Eu ia pra faculdade de Medicina fazer as aulas de Anatomia, num dia qualquer da semana, à noite, o que me impedia de treinar basquete, me incomodava muito. Segundo, as aulas de Anatomia eram aulas em que você trabalhava em mesas que tinham pedaços de corpo humano, você trabalhava com defuntos, com cadáveres, e tinha um cheiro de formol que me incomodava muito. Eu fiz aquilo contrariado no primeiro semestre e, evidentemente, eu não passei, porque precisava estudar muito. Aí, eu me inscrevi no segundo semestre e não passei de novo. No terceiro semestre eu disse: “Esse semestre eu não fazer Anatomia, eu vou deixar.” Fui fazer outras cadeiras na Educação Física. Aí, teve uma greve geral na federal, todo mundo foi passado naquele ano, e eu perdi a chance de passar em Anatomia. Eu disse: “Bom, agora no quarto semestre eu vou fazer Anatomia de novo.” Eu me inscrevi em Anatomia. Fui à primeira aula. Quando cheguei – era uma aula onde antes de você ir pros cadáveres, tinha uma arquibancada de aula, aquele modelo antigo da sala de aula – eu fiquei sentado, o professor olhou pra mim e disse: “Você vai tentar de novo?” Quando ele falou aquilo, eu fiquei pensando: “Pô, eu estou perdendo o meu tempo aqui, esse negócio não vai funcionar entre mim e ele.” Só que aconteceu uma coisa pior, que foi dormir na sala de aula. Eu dormi, dormi mesmo, porque eu fazia muita coisa. Naquela época eu já fazia Jornalismo, já fazia estágio, já fazia um monte de coisa, já jogava. Eu não tinha por que estar lá, eu dormi. Quando eu dormi na primeira aula, eu tomei a decisão: “Já era. Educação Física acabou. Não quero mais saber.” Então, eu acabei cursando dois anos e meio, mais ou menos isso, ou dois anos completos de Educação Física, mas fazendo poucas cadeiras, eu não levei à frente. O Jornalismo, sim, eu fiquei os quatro anos e esse foi o que eu levei a sério. A sério em termos, porque eu sempre fui um aluno prepotente no Jornalismo. A maior lição que eu recebi na faculdade foi essa. O fato de eu viver o jornalismo desde muito pequeno, por causa do meu pai, por causa dos meus tios, eu vivia nas redações, eu convivia com outros jornalistas, com filhos de jornalistas... Quando eu fui pra faculdade, eu cheguei com a seguinte ideia: “Eu já sei fazer jornalismo.” Os professores contavam algumas histórias que eu sabia que não eram tão assim, e que eram histórias que alguns estavam até inventando. Aquilo foi fazendo: “Ah, eu já conheço isso, não preciso aprender mais.” Isso fez com que eu deixasse de aprender algumas coisas que eram extremamente importantes e que fui aprender só quando cheguei na profissão. A maior lição que eu tive nos quatro anos de Jornalismo foi que você tem que ter a humildade de aprender, de estar aberto pra aprender tudo na faculdade, porque a faculdade é o melhor ambiente que pode ter pra aprender. Eu desperdicei essa oportunidade. Quatro anos lá, desperdicei. Sim, várias outras coisas eu aprendi, eu consegui desenvolver legal. Consegui desenvolver texto, tinha professores de texto. O professor Leonam foi um professor genial de mídia impressa e cuidava muito da questão do texto, ele foi superimportante pra mim. Tinha outros professores ali que eu respeitava muito, mas eu deixei de aprender muitas outras coisas por achar que não precisava daquilo, que ia aprender na profissão, ia aprender na redação. Quando eu cheguei pra trabalhar, eu comecei a ter os primeiros impactos porque eu percebi que tinha coisas que eu não tinha levado em consideração. Eu, por exemplo, tive meu primeiro emprego em televisão e quando cheguei, descobri que eu não tinha aprendido a fazer televisão na faculdade, apesar de ter tido talvez um dos melhores professores que eu pudesse ter tido naquela época. Eu não aprendi televisão na faculdade, não aprendi a editar na faculdade. Até porque na faculdade o que acontecia? Como eu era o filho do Milton Jung, todo mundo sabia que eu era o filho do Milton Jung, todo mundo me dava trabalho de rádio pra fazer e eu fazia com um pé nas costas porque eu conhecia, sabia como é que era. Não tinha problema nenhum. Em troca, a turma fazia os outros trabalhos pra mim e eu desperdicei uma baita oportunidade de aprender coisas muito boas lá dentro. A minha prepotência me cobrou caro depois, quando eu cheguei a trabalhar, cheguei nas redações. Eu fui me deparando com coisas que eu não sabia fazer e tive que aprender no ato. Isso faz com que as coisas fiquem mais difíceis pra você. Aprendi? Bom, muitas eu aprendi, mas outras eu deixei pelo caminho, desperdicei a grande oportunidade. Mas, a faculdade de Jornalismo, de qualquer jeito, foi uma faculdade superlegal pra mim, apesar de eu não ter aproveitado como deveria. Era legal porque o campus permitia que eu saísse das minhas aulas de Jornalismo, assistisse aula no Direito, assistisse aula na Psicologia, mesmo sem ser aluno de Direito ou de Psicologia. Eu achava legal porque eu tinha amigos lá e ia assistir às aulas. Na verdade, foi assim, era um ambiente de conhecimento, mas de outros tipos de conhecimento, não necessariamente do Jornalismo, da técnica do Jornalismo como eu deveria ter aprendido. Fui aprender outras coisas lá, de relacionamento, tal. A faculdade te ajuda nesse sentido também, está aí pra isso.
P/1 – Qual foi o seu primeiro estágio?
R – Meu primeiro estágio foi trabalhar... Bom, meu primeiro estágio na vida foi fazer um projeto dentro do Projeto Rondon como recreacionista com crianças em escola pública e numa escola de periferia em Porto Alegre. Eu posso dizer a você que teria sido meu primeiro emprego, informal, mas foi o meu primeiro emprego. No jornalismo, meu primeiro estágio, como não poderia deixar de ser, foi na Rádio Guaíba de Porto Alegre, onde meu pai trabalhava. Foi ele quem arrumou pra mim a primeira vaga de estágio, porque não existia aquela vaga para mim. Era um estágio não remunerado e era num programa que eu sonhava fazer. Era o único programa de rádio que falava sobre o que na época nós chamávamos de esporte amador. Qualquer coisa que não fosse futebol, era chamada de esporte amador. No programa de esporte amador, nós tratávamos de tudo, inclusive de Fórmula 1, que não tinha nada de amador, mas nós tratávamos. Eu adorava, o meu sonho era trabalhar num programa de esporte amador. O único programa que tinha era na rádio em que o meu pai trabalhava, na Rádio Guaíba. Tinha o Alexandre Pussieldi, que foi o cara que criou aquele programa na Rádio Guaíba, porque ele gostava disso. Ele aproveitou que nós estávamos às vésperas das olimpíadas de Los Angeles pra lançar o programa. O Alexandre fazia tudo sozinho e precisava de alguém pra trabalhar, foi então que o meu pai teve a grande ideia e disse assim: “Vocês não querem que o Milton, no caso o Miltinho, faça? Porque ele sonha em trabalhar nesse programa.” Aí eles fizeram esse programa, quer dizer, eles abriram uma vaga de estagiário que não era remunerada, não custava nada pra rádio, ganhava um cara pra fazer tudo e eu fui lá realizar meu sonho. Eu precisava fazer estágio, então eu fiz o estágio num negócio que eu queria muito fazer. Eu acabei ficando na Rádio Guaíba, o Pussieldi saiu, foi fazer outras coisas. Eu fiquei com o programa pra mim, fazia tudo no programa sozinho, aquilo era a grande realização e eu achava que ia me acabar ali. Na verdade, não me acabei, segui em frente fazendo outras coisas, mas era o programa do meu sonho. O primeiro estágio que eu tive foi aberto pelo meu pai porque foi ele quem conseguiu aquela vaga.
P/1 – O que você fazia no estágio?
R – Tudo. Eu redigia as reportagens, eu entrevistava pessoas.
P/1 – Já ia para o ar?
R – No início não, mas em seguida eu comecei a fazer entrevistas que iam para o ar, depois eu comecei a ler textos no ar e depois eu já estava no ar apresentando o programa. Porque era assim: como ninguém, nunca, nas redações, tinha muita vontade de fazer esse tipo de programa, como você fazia tudo, deixavam você fazer. Você tinha que gostar muito de esporte amador pra fazer aquele programa. O Pussieldi e eu adorávamos fazer. Quando ele saiu, eu passei a fazer tudo. Eu fazia todo o programa sozinho, entrevistava, editava, fazia tudo absolutamente sozinho, depois de certo tempo naquele programa. Até o momento em que eu me formei. Eles me chamaram na rádio e disseram: “Agora você vai virar gente grande, você vai receber salário, vai ter carteira assinada. Só que pra receber salário e ter carteira assinada não dá pra ficar fazendo mais esse programa, você vai ter que fazer outra coisa: futebol.” Eu passei a fazer futebol, ser repórter de campo no futebol dali pra frente. Naquela época, eu era o Milton Júnior. Eu só fui trocar de nome quando vim pra São Paulo, porque eu precisava ter um nome que não fosse Milton Ferretti Jung, Milton Ferretti, Milton Jung, qualquer coisa que fosse igual do meu pai. Então, era o Milton Júnior, que foi como eu comecei a carreira lá no Rio Grande do Sul. O que não significava nada, porque não mudava nada, todo mundo sabia que eu era filho do meu pai, não tinha como negar ou esconder esse tipo de coisa. Menos mal que eu não precisava esconder, porque eu não tinha vergonha do trabalho que o meu pai fazia. Agora, claro que ao mesmo tempo que te abria algumas portas, também tirava alguns olhares desconfiados: “Esse cara só está aqui porque é filho do Milton Jung.” Certamente, eu só comecei a trabalhar, só fiz aquele estágio, porque eu era filho do Milton Jung. Mas, eu tenho total convicção de que todos os passos que eu dei, além daquele, deram-se porque eu era o Milton Júnior, não porque eu era filho do Milton Jung. Porque daí, foi por minha conta e risco arrumar emprego em outros lugares, trabalhar em outros lugares, conseguir vagas etc.
P/1 – Nessa rádio, na Rádio Guaíba, teve algum fato marcante logo no começo da sua carreira, alguma coisa que tenha acontecido que você lembra até hoje?
R – No esporte menos, a não ser coberturas do dia a dia do esporte. Teve um momento chave pra mim no esporte, que foi quando eu decidi sair do esporte, sair do futebol, porque eu já fazia reportagem de campo, e ir pro jornalismo. Foi quando eu cobri o setor do Grêmio, eu era setorista do Grêmio. O Grêmio tinha jogado uma partida no Rio de Janeiro e tinha sido goleado pelo Flamengo. Naquela época, o Renato, que hoje é técnico do Grêmio, era jogador de futebol, era o grande astro do futebol gremista, Renato Portaluppi. O Renato, depois do jogo, foi pra uma balada qualquer, foi fotografado na balada, aquilo se transformou num escândalo. O time do Grêmio chegou a Porto Alegre no dia seguinte, toda a imprensa foi cobrir a chegada do time do Grêmio pra ouvir o Renato falar. Aí, o Renato não fala, vai embora, vai pro Estádio Olímpico, que era o estádio do Grêmio, pegaram o carro dele. Fomos todos em debandada pro Estádio Olímpico. Eu, como conhecia muito bem o Estádio Olímpico, sabia mais ou menos os corredores internos, por onde entrar, por onde sair etc., porque eu vivi lá dentro toda minha infância, eu consegui chegar no lugar onde o Renato estava. O Renato saiu porque ele não queria dar entrevista. Eu saí atrás dele com o microfone na mão, com gravador na mão, pra entrevistar o Renato e ele não me deu entrevista. Só que, no dia seguinte, na contracapa do caderno de esportes do Jornal Zero Hora, saiu uma fotografia, três colunas, página inteira, do Renato fugindo. O primeiro cara que aparecia depois do Renato era eu, com o microfone esticado. Quando eu olhei aquela foto eu disse assim: “Cara, o que ele ia falar pra mim que ia mudar a minha vida, ia interessar às pessoas? Esse cara não ia dizer nada que preste. O que eu estou fazendo aqui? Eu não quero trabalhar com jornalismo pra fazer isso.” Eu falei com o meu chefe de esportes naquela época e disse: “Eu não quero mais fazer isso, eu não quero ficar correndo atrás desses caras que não têm o que me dizer.” Foi muito legal porque ele entendeu, perfeitamente, que aquela minha indisposição, aquela minha angústia, mostravam claramente que eu não ia conseguir aproveitar como deveria o jornalismo esportivo. Ele era um cara que tinha passado pelo departamento de jornalismo. As redações tinham essa divisão, departamento de jornalismo, departamento de esportes, como se o cara que fizesse esporte não fosse jornalista, né? Enfim, ele entendeu, ele era um cara que já tinha trabalhado no jornalismo, ele entendeu que eu tinha que fazer jornalismo, ele aceitou que eu trocasse, deu-me a oportunidade de fazer, ser repórter geral no jornalismo da Rádio Guaíba, ainda de Porto Alegre. Aquilo foi marcante. Teve outro momento, porque aconteceram algumas coisas interessantes, curiosas, pessoalmente. Meu pai narrava futebol e eu fazia reportagem de campo, então, por várias oportunidades, mesmo que a rádio tentasse evitar muitas delas, por várias oportunidades eu e ele trabalhamos na mesma jornada esportiva. Era o Milton Jung e o Milton Júnior, era o Milton chamando o pai, o pai chamando o filho. Eu, uma vez, fui fazer... Meu pai foi narrar um jogo da seleção brasileira, em Goiás, e eu fui pra casa de um jogador de futebol que era do Internacional, Mauro Galvão – anos depois jogou no Grêmio. Mauro Galvão ia estrear na seleção brasileira, ele era gaúcho, e eu fui pra casa do Mauro Galvão, da família do Mauro Galvão. Uma casa muito simples, o pai dele se chamava seu Oquelésio. Eu fui lá, fiquei do lado do seu Oquelésio pra transmitir a emoção da família que via o filho estrear na seleção brasileira. Eu estava sentado lá, o seu Oquelésio me ofereceu o jantar. Eu não quis jantar porque eu achei que era uma casa muito humilde, eu não deveria estar ali incomodando, já estava incomodando de uma maneira, não vou jantar aqui na casa deles, imagina, não precisa. O seu Oquelésio me ofereceu mais alguma outra coisa, eu não aceitei, outra coisa, não aceitei. Veio o intervalo do jogo e o Mauro Galvão não tinha entrado em campo ainda, seu Oquelésio me ofereceu um copo de cerveja. Aí eu disse: “Bom, eu vou tomar um copo de cerveja com ele.” Mas era uma época que eu ainda não bebia, ou bebia muito pouco, e eu aceitei o copo de cerveja do seu Oquelésio. Só que o seu Oquelésio tomava mais do que um copo de cerveja e ele começou a me dar outros copos de cerveja, eu fui tomando outros copos de cerveja. O Mauro Galvão entrou no time da seleção brasileira, entrou lá, estreou o Mauro Galvão. De repente o meu pai, que fazia o jogo, chama-me, eu tinha que entrar por telefone. Na época, era telefone fixo, ligava do telefone, discava do telefone fixo, ligava pra rádio, eles botavam você no ar. A gente tinha combinado que ao final do jogo eu entraria pra dar as minhas impressões sobre a família, o seu Oquelésio, a mulher, a mulher do Mauro Galvão, o filhinho que estava dormindo. Eu entrei já um pouco alterado e disse alguma coisa... A primeira bobagem que eu disse foi que toda a família estava aqui na sala assistindo ao jogo do Mauro Galvão, inclusive o filho recém-nascido que tá no quarto dormindo. Quer dizer, como é que o menino que tá no quarto dormindo assistiu ao jogo? Mas tudo bem, eu botei aquilo no meio e falei, falei, e ao final eu fui chamar o meu pai, eu tinha que chamar o meu pai e eu disse assim: “Agora é com você, Milton Júnior.” Eu chamei o meu pai de Milton Júnior. Aí deu um branco uns três segundos mais ou menos, que eu imagino que foi a coisa mais pedagógica na minha vida. Talvez tenha sido a bronca mais pesada que eu tenha ouvido do meu pai... Foi aquele silêncio de três segundos, porque ele também deve ter demorado pra perceber: “O que aconteceu com esse meu filho que tá me chamando pelo nome dele?” Mas, foi a bebida. Foi a bebida que me fez mal, aconteceu, foi um fato que marcou. Isso no esporte. Depois teve algumas coisas no jornalismo em si, coberturas que a gente fez, que eu teria que parar pra pensar um pouco mais, talvez. Teve um momento no jornalismo, e isso é uma coisa curiosa porque eu comecei no esporte, o esporte me ajudou pra caramba porque naquela época o jornalismo de rádio ainda era muito uma coisa gravada, não era um jornalismo ao vivo. O jornalismo esportivo sempre foi ao vivo, sempre. Você transmitia os jogos ao vivo, você tinha que saber falar muito, improvisar, isso me ensinou muito. Eu lembro que eu estava num plantão na Guaíba, lá em Porto Alegre, e uma casa tinha sido invadida por ladrões. A polícia passava no momento e cercou a casa, os ladrões fizeram a família refém. A gente pegou a viatura da rádio, o carro da rádio, e foi até lá. A rádio, aos sábados, não tinha jornalismo, tinha música, só tocava música, mas aquele era um fato jornalístico. Eu passei a transmitir a cobertura da polícia, no entorno da casa, pra tentar pegar os ladrões. Eu fui mantendo... Era só eu, sozinho, num radiotransmissor, falando, falando, falando, falando, tentando descrever. Às vezes, um locutor de estúdio, um comercial – eles pediam pra parar pra rodar o comercial, precisava pagar o comercial – depois voltava pra mim. Era eu falando e não tinha mais ninguém pra segurar aquela transmissão. Eu tentando descrever as coisas, de repente veio o policial do meu lado e disse assim: “Eu quero te pedir um favor. Para de falar o que acontece do lado de fora, porque eles estão ouvindo você lá dentro, então, eles sabem tudo que nós estamos fazendo.” Porque a polícia subia no telhado, cercava não sei onde, fazia não sei o que, pra criar um ambiente de tensão, pra ver se eles libertavam a família. Imagina eu, do lado de fora, tendo que falar coisas que eu não podia contar. Eu lembro que o meu pai me salvou. Tinha um horário que tinha um noticiário, que era o meu pai que fazia. Dez para as sete da noite, ele fazia esse noticiário, então, ele tinha que chegar lá umas seis da tarde, seis e meia. Quando ele chegou, era o único cara realmente de microfone do jornalismo. Ele entrou no ar pra ficar batendo bola comigo, porque senão era eu sozinho até que a polícia fosse lá e desfizesse aquele trabalho. E aconteceu que a família desfez o trabalho , mas eu passei uma tarde inteira cobrindo. Num outro momento, teve uma rebelião no presídio central de Porto Alegre e eu fui com a viatura da rádio. Fiquei parado num lugar em que os caras que tinham estourado o presídio estavam com reféns, a gente conversava com os bandidos. Eles estavam negociando pra fugir em três carros, com os reféns. Aquilo durou todo o dia, então, transmite e tal, tinha outro repórter em outro canto... Tinha uma estrutura já mais organizada naquela cobertura pra manter tudo no ar e a gente foi indo. Mas aí, aconteceu um fato curioso que foi o seguinte: os caras resolveram sair, a polícia liberou três carros com os reféns pra eles fugirem e os caras saíram. Quando eles saíram, eles saíram na direção de onde nós estávamos com o carro da rádio e o motorista que estava comigo disse assim: “Vamos atrás.” Na época, eu nem parei pra pensar e a gente saiu atrás. Só que a gente saiu antes da polícia, então, eram os três carros com os bandidos fugindo, nós e a polícia atrás de nós, porque a polícia disse que daria um tempo pra eles fugirem e depois foi atrás. Só que nós estávamos no meio do caminho e eu fui transmitindo toda aquela cobertura, por onde eles andavam nas ruas de Porto Alegre. Era final de tarde, horário de pico, dentro do que era o pico naquela época. Fui levando aquilo durante um tempo. Isso eu devo estar falando assim de 86, 87, 88, mais ou menos nesse período. Eu fui transmitindo todo aquele processo. Eu lembro que mais uma vez entrou o noticiário do meu pai. Naquele horário do noticiário do meu pai, aquilo era o jornal nacional e não entrava repórter falando, ali era o locutor que tinha que falar, quem tinha a melhor voz do mundo que falava, era uma coisa sagrada. Interromperam a minha transmissão para eles entrarem falando. Ao final, como a perseguição não tinha acabado, meu pai foi autorizado, ele não fez isso por conta e risco, eles me chamaram. Só que já era perto das sete horas da noite, tinha a Voz do Brasil, que era obrigatório colocar no ar. Nós não colocamos nada no ar, nós rasgamos a Voz do Brasil – não sei se eles foram multados ou não – pra transmitir toda a perseguição. Chegou um momento que os caras fugiram, desapareceram, a polícia já tinha passado por nós. Nós achamos por bem que não seria legal ficar entre polícia e bandido, não ia ser um negócio saudável pra nós. Eu lembro de uma cena, de algo que aconteceu, que foi o seguinte: uma senhora ligou pra rádio pra dar uma bronca no meu pai, porque disse que ele jamais poderia ter deixado o filho dele sair atrás de bandidos, e ele ainda incentivava aquilo conversando comigo no ar. Ela ficou muito incomodada com a atitude dele, ele não teve responsabilidade naquele momento no rádio. Enfim, é mais uma passagem do jornalismo lá da Rádio Guaíba.
P/1 – Você ficou quanto tempo na Rádio Guaíba?
R – Caramba, fiquei muito tempo. Não, muito tempo. Não sei. Eu entrei em 84, depois me formei em 85, 86, 87, 88. Até 89 eu fiquei na Rádio Guaíba de Porto Alegre. Na mesma época, eu trabalhei no jornal Correio do Povo, que fazia parte do mesmo grupo.
P/1 – Foi nesse período que você perdeu a sua mãe?
R – Foi. Eu perdi a minha mãe em 86. Minha mãe morreu em 86, teve um câncer fulminante, muito forte, daí dois meses, praticamente, ela morreu. Era um momento complicado pra mim porque, na verdade, eu não era o mais velho, mas eu era o cara de confiança do meu pai. Meu pai me escalou para ser a pessoa que ia gerenciar isso. Quer dizer, eu fui o primeiro a saber que a mãe ia morrer, eu fui o primeiro a saber todas as coisas que estavam acontecendo com ela. O médico me chamou, em vez de chamar meu pai, me chamou pra contar as coisas e eu tive que administrar isso com os meus irmãos, só mais próximos . Então, foi um processo muito complicado porque eu tive que acompanhar todo aquela destruição que ela foi passando, a doença dela. Acabou morrendo em 86, eu tinha 23 anos.
P/1 – Você morava com ela ainda?
R – Morávamos. Morávamos todos juntos na mesma casa. Sempre moramos juntos. Pra mim, foi muito chocante porque eu tive que acompanhar, muito proximamente, todo aquele processo. Ela era uma mulher que sempre foi muito forte, então, quando a doença veio e tomou conta dela, ela já tinha passado pela morte da mãe, pela morte da sogra, ela sacou que ia morrer, ela percebeu. Pra ela foi muito difícil também, porque que ela sabia que não ia sair daquilo. Foi um momento muito ruim pra gente. É outro daqueles momentos que você aprende pra caramba. Nós tivemos que viver cada um por si, porque em seguida meu pai saiu de casa, foi morar com outra pessoa, com a mulher dele, que é mulher dele até hoje. Nós continuamos morando na mesma casa, mas era...
P/1 – Os três irmãos?
R – Os três irmãos e mais uma prima que morava comigo. Éramos quatro, morávamos juntos. Uma república, porque cada um tinha a sua vida, cada um tocava a sua vida da sua maneira, do jeito que queria, por sua conta e risco. Meu pai financiava, talvez, a casa, mas éramos nós que tocávamos. Eu já trabalhava, meu irmão trabalhava, minha irmã trabalhava, então, todo mundo já tinha alguma coisa fazendo pela vida, era uma república onde os quatro moravam juntos. Mas esse foi o período que a mãe morreu e eu trabalhava na rádio e no jornal.
P/1 – O que você sentia? Como você se sentia nesse momento?
R – Como é que eu me sentia?
P/1 – É. Tendo que tocar a vida, o trabalho.
R – Eu acho que eu sempre fui muito irresponsável, porque eu nunca parei pra pensar o seguinte: e agora, o que eu faço? Eu continuei fazendo. Assim como quando me procuraram pra dizer que a mãe ia morrer, você vai tocando a vida, você vai sofrendo, você chora, mas... Minha mãe morreu em casa, eu que peguei o vizinho, disse assim: “Ajuda-me. Vamos lá comprar caixão, vamos acertar isso, vamos acertar aquilo, tem que organizar.” Eu que tive que organizar, fui lá e organizei. Eu tinha um pingo de irresponsabilidade que me ajudou porque eu não fiquei planejando. Eu nunca planejei minha carreira: “Agora eu tenho que fazer tal coisa.” Eu fui tocando, fazendo as coisas do jeito que eu gostava, do jeito que eu achava, do jeito que devia ser. Meu irmão, também. Por exemplo, meu irmão cuidava mais da casa, da relação com a minha irmã, com a minha prima, ele era o cara que se envolvia mais nisso. Eu não. Eu fui tocar a minha vida, eu dormia em casa, chegava a hora que eu achava que devia chegar, fazia as coisas que eu achava que devia fazer, morava na casa de uma namorada, depois voltava pra casa. Eu não tinha mais uma responsabilidade sobre essa questão e nunca tive um medo: “Ah, o que vai acontecer comigo a partir de agora?” Vou tocar a minha vida, do jeito que as coisas estão acontecendo, eu vou fazer. Eu vim pra São Paulo assim, sem querer, eu não vim planejado. Nada aconteceu que eu diga: “Programei. Vou sair daqui e ir pra lá.” Quando eu saí da Guaíba, fui trabalhar em televisão, era um momento que eu já estava extremamente incomodado com o trabalho na Guaíba, eu não estava curtindo fazer o tipo de jornalismo que a gente fazia lá. Aí, os caras me convidaram no SBT (Sistema Brasileiro de Televisão), surgiu por acaso um convite lá do SBT, alguém veio me procurar e disse assim...
P/1 – SBT de Porto Alegre?
R – O SBT de Porto Alegre. Eles queriam montar um telejornal nos moldes do Telejornal Brasil que era um modelo novo de jornalismo que o SBT estava lançando com o Boris Casoy. Eles queriam fazer no Rio Grande do Sul, juntar um cara de rádio, um de TV e um de jornal pra fazer lá uma espécie de um triunvirato, pensar um novo jornal e eu fui pra lá pra essa ideia. E eu saí. Então, o destino me ajudou pra caramba porque eu não estava contente lá. O fato de as pessoas saberem que eu não estava contente lá, talvez tenha facilitado alguém me procurar pra fazer um convite pra sair. Porque também tinha isso, muita gente achava que eu jamais sairia da Rádio Guaíba, que eu ia ser o Milton Jung eterno lá juntamente com o meu pai. Ele me convidou... Eu também achei, determinado momento, eu achei que minha vida ia ser lá na Caldas Júnior, como tinha sido com o meu pai. Caldas Júnior era a companhia que englobava todos os veículos do grupo: jornal, rádio e TV. O meu pai e o meu tio ficaram lá durante muito tempo. Eu achava que era o meu destino também, mas não. De repente, alguém me convidou e eu fui pro SBT sem dó. Fui embora pro SBT trabalhar, fiquei um ano lá trabalhando, foi quando eu tive a nítida noção que eu não entendia absolutamente nada de televisão. Então, eu consegui me manter porque eu cuidava do jornalismo, do conceito do jornalismo, não de fazer TV necessariamente, mas tive a oportunidade de fazer televisão, reportagem, pouca coisa, mas fiz. Eu fui mais como editor, fiquei um ano. Do SBT eu fui convidado... Também no SBT, chegou uma hora que nós tínhamos rompido – eu tinha um grupo que trabalhava comigo lá dentro – rompemos com a direção da casa, que era quem no final das contas mandava. Nós ficamos à espera de sermos demitidos porque era no período do Governo Collor, todo mundo tinha perdido o emprego. Nós queríamos ir embora, não aceitávamos o trabalho que eles estavam fazendo, mas não queríamos pedir demissão.
P/1 – O que eles estavam fazendo?
R – Na verdade, a gente foi pra lá pensando em fazer um jornalismo diferente, revolucionário. Se fosse hoje, diríamos disruptivo. Quando nós chegamos lá, testamos várias coisas. Na hora de botar no ar, eles ficaram com medo, voltaram atrás e fizeram o jornalismo padrão da época. Aquilo nos incomodou, o medo deles, da televisão, da direção, do cara que cuidava da parte do jornal que era o cara que apresentava o jornal, que seria supostamente o Boris Casoy do jornal. Não quis ser o Boris Casoy do jornal. Ele foi ser um apresentador como todos os demais que nós tínhamos até então. A gente não aceitava aquilo, a gente achou que tinham desperdiçado o nosso tempo porque a gente fazia coisas, nós criamos um ambiente em que a pauta era discutida por todos os funcionários da televisão. O motorista, o cara do café ou a moça do café, o cara da segurança, todos podiam participar da reunião de pauta pra debater os assuntos que nós queríamos debater. A gente achava aquilo genial porque saíam pautas diferentes. Só que aquela pauta diferente não estava muito dentro do padrão que a direção queria, porque ela tinha um modelo, ela estava muito pautada num modelo que imperava na televisão até então. Eles não queriam fazer aquilo e aquilo foi nos incomodando, nós nos sentimos traídos porque fomos levados por uma proposta e essa proposta não vingou. Em vez de pedir demissão, nós forçamos pra que eles nos demitissem porque nós queríamos que eles assumissem diante do mercado que eles estavam nos demitindo. Era uma questão política para nós. Eu, na época, era representante sindical na TV, fiz uma carta ao sindicato, fiz uma carta à televisão abrindo mão dessa minha função, porque eu não poderia ser demitido por ser dirigente sindical dentro da TV. Abrindo mão disso, dizendo que me colocava aberto a isso, que não havia problema se quisessem me demitir. Isso aconteceu depois, nós ficamos lá uns seis meses praticamente sem fazer nada ou fazendo só parte das coisas, porque não funcionava. Eu saí pra ser freelance numa rádio, outra rádio, na Rádio Gaúcha, numa Copa do Mundo, trabalhando em Porto Alegre, mas cobrindo num programa sobre Copa do Mundo. Quando eu fui contratado por essa rádio, eu fui convidado por uma produtora de vídeo que ia fazer um trabalho no Rio Grande do Sul. Eu pedi demissão. Eu fui contratado, com carteira assinada, até então eu era freelance. Dia seguinte, eu fui lá e disse: “Fui convidado pra fazer um trabalho num projeto de três meses e eu vou fazer esse projeto. Não quero mais ficar aqui.” E pedi demissão. Era um contrato de três meses pra gravar várias coisas no Rio Grande do Sul e eu fiquei três meses gravando lá, viajando por todo o Rio Grande do Sul, trabalhamos pra caramba. Foi superlegal fazer o que eu fiz. Foi legal. Conheci muita gente, conheci todo o Rio Grande do Sul que eu não conhecia, cidades do interior que eu...
P/1 – Era pra cobrir o que?
R – Era um documentário. Era um documentário, mas era um filme sobre... Não sei se dava pra chamar de documentário, mas era um filme sobre o Rio Grande do Sul ou as cidades do Rio Grande do Sul. Ao final dos três meses, quando acabou o contrato, peguei uma bela grana que eu jamais imaginaria ter pego naquela época. Era final do ano, não dava pra arrumar emprego em lugar nenhum, supostamente. Eu tinha um amigo que trabalhou comigo naquela produtora que era aqui de São Paulo. Ele veio casar em São Paulo, eu vim pro casamento dele. Eu disse: “Vou lá. Não tenho o que fazer, vamos gastar dinheiro, ir pra São Paulo. Vamos pro casamento dele.” E vim pro casamento dele.
P/1 – Você vinha muito pra São Paulo antes? Tinha contato ou não?
R – Não. Eu tinha vindo a São Paulo a trabalho e pra jogar, três ou quatro vezes.
P/1 – Não conhecia?
R – Não conhecia São Paulo. Eu não imaginava trabalhar em São Paulo. Eu pensei alguma vez na vida trabalhar fora, mas no Rio de Janeiro. Não sei se por causa da praia, eu sempre gostei muito de praia lá no Rio Grande do Sul. Apesar de nós não termos belas praias, temos lá no Rio Grande do Sul uma cidade... Tínhamos muita praia, não sei se era por causa disso, eu achava que o Rio... São Paulo eu achava que era muito caótica pra eu conseguir viver aqui, eu nem me via com capacidade, competência pra trabalhar no mercado de São Paulo. Por isso, eu caí de paraquedas. Vim pra um casamento, a vizinha da casa em que eu fiquei no bairro de Pinheiros trabalhava na TV Globo, ela soube que eu tinha trabalhado em televisão em Porto Alegre, comentou que na Globo eles estavam precisando de repórter e estavam fazendo teste, queria saber se eu fazia teste. Eu disse: “Eu faço. Lógico.” Marquei um teste lá...
P/1 – Você conheceu a vizinha aqui, no casamento?
R – Eu conheci aqui, batendo papo, assim, de muro. Porque, na verdade, ela sabia, conhecia o vizinho dela, era a casa que eu estava, sabia que eu tinha vindo de Porto Alegre. Ela conhecia, sabia que eu... Porque ele também tinha trabalhado comigo naquela produtora, então, ela sabia que eu tinha alguma coisa a ver com televisão. Ela comentou ali, batendo papo: “Porque lá...” Eu falei pra ela o que eu fazia, que eu era jornalista e ela disse: “Estão procurando um repórter lá na Globo. Estão fazendo teste. Você quer fazer um teste lá?” “Legal essa chance.” E fui. Inscrevi-me pra fazer o teste, fui lá num final de dia, início de noite, deram-me uma equipe pra fazer uma reportagem. Na verdade, a equipe ia sair pra gravar umas imagens, disseram: “Vai junto e fecha a reportagem, pra teste.” Era uma reportagem na Mooca, de uma casa pegando fogo. Essas casas antigas da Mooca, históricas. Estava pegando fogo. Quando eu cheguei lá, a dona da casa disse pra mim: “Eu tenho certeza que foi o dono dessas casas aqui que botou fogo, porque isso aqui pra ele é um baita prejuízo, tá tudo tombado, ele não pode vender, não pode não sei o que.” Eu resolvi fazer a pauta em cima dessa história, que era mais do que um incêndio, mais do que uma briga de vizinhos, tinha uma questão do patrimônio histórico de São Paulo que estava em jogo. Fiz uma pauta mais ou menos assim, uma passagem só, porque era pra fazer uma passagem, botei uma sonora ou outra daquele ambiente ali pegando fogo. Ponto. Já não estava mais pegando fogo, só tinha fumaça. Entreguei essa fita lá pro chefe de reportagem e uns três dias depois o cara me chamou e disse: “Com essa fita aqui você se emprega. Se quiser levar essa fita, você pode levar, porque você arruma emprego em qualquer lugar em televisão em São Paulo com esse material. Aqui na Globo, eu só tenho uma vaga pra você, de madrugada.” “Eu quero.” Eu jamais imaginei trabalhar na TV Globo, jamais tinha imaginado trabalhar em São Paulo, aparece uma chance dessas. Não tinha nada que me prendesse em Porto Alegre. Nem namorada em Porto Alegre eu tinha naquela época mais. Ninguém mais me aguentava. “Aceito.” Ele disse: “Mas tem que começar agora em janeiro.” “Não tem problema. Eu só preciso ir à Porto Alegre.” Era um pouco antes do Natal, “tenho que pegar as minhas coisas. Não tenho nem onde morar aqui ainda, mas vamos embora”. Eu fui à Porto Alegre, vendi o meu Fusca. Eu tinha um Fusquinha vermelho que eu tinha comprado com sobra da campanha que a gente fez, com o trabalho que a gente fez. Eu vim embora pra cá, dia 1º de janeiro de 1991 eu cheguei em São Paulo pra começar a trabalhar na TV Globo, dia 6 de janeiro de 1991. Essas são datas que eu consigo guardar porque sendo primeiro de janeiro de 1991 é uma data que eu consigo guardar. Foi assim, eu passei o réveillon em Porto Alegre, despedi-me de todo mundo, cheguei no dia seguinte aqui em São Paulo, pra vir viver em São Paulo.
P/1 – Veio morar onde?
R – Em Pinheiros. Ao lado da Igreja da Cruz Torta, uma ruazinha pequenininha. Na verdade, o Zezo, que era meu amigo, que trabalhou comigo lá no Rio Grande do Sul, que tinha essa casa aqui em São Paulo, ia viajar pelo exterior durante um tempo com o dinheiro que ele ganhou lá na campanha que a gente fez junto, no trabalho que a gente fez junto. Ele disse: “Fica aqui na minha casa enquanto isso, depois você vê o que acontece.” Ele voltou, não sei se dois, três meses depois, ele voltou: “Se quiser continuar morando aqui, a gente vai dividindo as despesas.” Eu continuei morando com ele durante um bom tempo, até conhecer a minha mulher, que trabalhava na TV Globo. Em pouco tempo, eu fui morar com a minha mulher, eu saí da casa. Mas assim, foi ali que eu fui morar. As coisas conspiraram totalmente a meu favor, pra vir trabalhar aqui. E o que me manteve? Isso pra mim sempre foi muito legal. Na TV Globo, como eu trabalhava de madrugada, eu fazia...
P/1 – O que você veio fazer na Globo?
R – Fazer reportagem de madrugada. Ser repórter da madrugada, cobrir crime, doença. Naquela época, estou falando em 1991, foi um período que tinha muita chuva. Toda madrugada a gente se metia... A cidade tinha muitas áreas de risco que desbarrancavam, caíam aquelas casas. A gente cansava de entrar em casas com barro até o joelho porque o que a gente cobria na madrugada era isso. Chegava nos lugares que você nunca tinha visto. Eu menos ainda, não conhecia nada na cidade, mas mesmo a equipe que conhecia ia pros locais... Eram locais breus, coisas complicadas e a gente cobria isso aí. Só que todo dia de manhã, logo cedo, eu entrava ao vivo no Bom Dia São Paulo, o que era muito legal pra mim. Por quê? Porque falar ao vivo era a única coisa que eu sabia fazer em televisão, por causa do rádio, por causa do esporte. Aquela experiência que eu tive lá no início da minha carreira foi o que me manteve vivo, na realidade, na televisão, durante muito tempo. Porque fazer matéria, fechar matéria eu nunca gostei, mas fazer entrada ao vivo eu adorava fazer, eu curtia pra caramba. Eu fazia o Bom Dia São Paulo, fazia umas pautas bem loucas de manhã. As pautas da madrugada eram só crime. Eu gosto sempre de lembrar, durante a madrugada, eu fiz todos os velórios possíveis, não fiz um batismo, porque você só cobria crime, coisas ruins, morte, chuva, temporal, desgraça. Na madrugada, é isso que você cobre, o que talvez me ajudasse, porque é um factual, é mais fácil de transcrever. Se fosse uma reportagem especial, eu não teria capacidade pra fazer. De manhã você tinha algumas pautas ao vivo, você entrava de alguns lugares estranhos, alguma coisa que fosse mais curiosa. Era o Carlos Tramontina que apresentava e editava o Bom Dia São Paulo, ele fazia muito bem aquele programa, era um programa superágil, tinha helicóptero, entrava repórter ao vivo. De vez em quando, eles inventavam umas pautas doidas assim: o lançamento do ônibus da Gretchen ou da Sula Miranda. Da Sula Miranda. Eu tinha que entrar de dentro do ônibus da Sula Miranda. Enfim, fazia umas coisas assim, e como era entrar ao vivo e era divertido, eu fazia, eu curtia aquilo lá. Foi marcante pra mim, porque foi ali no Bom Dia São Paulo que eu troquei o meu nome, porque eu vim pra São Paulo como Milton Júnior. Lá no Bom Dia São Paulo: “Milton Júnior, Milton Júnior...” Uma vez, eu ouvi a minha futura mulher comentar na redação, dizer assim: “Júnior não é nome, é parentesco.” Ela estava falando mal de mim quando eu cheguei na redação, e eu ouvi aquilo. Eu fiquei com aquela coisa na cabeça, eu disse: “É verdade, Júnior não...” Até porque tinha um monte de Júnior aqui na imprensa paulista, não tem força “Júnior”. Eu disse: “O que eu vou fazer?” Eu pedi licença pro meu pai: “Pai, tudo bem pra você se eu usar Milton Jung lá em São Paulo?” “Claro. Pode usar.” Eu passei a usar Milton Jung. Por que eu digo que foi curioso? Porque o Tramontina fez questão que aquilo fosse anunciado no Bom Dia São Paulo. Como eu entrava no ar todo dia como Milton Júnior, do dia pra noite eu ia entrar como Milton Jung. Ele disse: “Nós temos que explicar pro ouvinte, pro telespectador, em respeito ao telespectador, por que você tá trocando de nome ou a tua troca de nome.” Então foi explicado no ar, eu fui rebatizado Milton Jung no ar no Bom Dia São Paulo. Fiquei na Globo até o final de 1992, praticamente. Foi o período que eu fiquei lá, depois fui pra TV Cultura.
P/1 – Deixa eu voltar só um pouquinho. Como é que foi sua chegada em São Paulo? O que você sentiu da cidade? Como é que foi esse encontro com São Paulo?
R – Foi, inicialmente, uma mistura de sensações. Por quê? Foi genial eu conseguir um emprego em São Paulo, na TV Globo. Nunca me passou pela cabeça trabalhar em televisão, na Globo. Não é trabalhar em televisão, mas, principalmente, na TV Globo. Tinha passado pelo SBT, mas a minha experiência no SBT não era de um cara de TV, era muito mais um cara com olhar sobre o jornalismo. Não era um negócio que eu achava que ia ser a minha vida, ia ser o meu futuro. Menos ainda na TV Globo, até porque o tradicional no Rio Grande do Sul é você trabalhar no Grupo RBS (Rede Brasil Sul) e aí vir pra TV Globo. Eu tinha trabalhado um mês na Rádio Gaúcha que fazia parte do Grupo RBS, mas não tinha nenhum histórico. Então, nunca pensei, pra mim foi genial. Foi uma oportunidade que eu jamais pensei na minha vida. Isso gerou também um tremendo medo. Os primeiros meses aqui foram dramáticos, porque eu comecei a perceber: “Cara, eu não tenho a menor capacidade de fazer isso que eu estou fazendo. Eu vou ter que voltar, e eu vou ter medo de voltar porque eu vou ter que voltar porque fracassei.” Eu lembro que escrevi uma carta pro meu tio, tio Tito Tajes, que era um jornalista, contando essa história pra ele. Aí, ele me escreveu e disse assim: “Cara, se você tiver que voltar, você não deve explicação pra ninguém. Você não tem que explicar para as pessoas, se você vai ficar, se você não vai ficar. Se você foi para aí, foi por mérito seu, se você quiser vir embora, você vem embora por sua vontade. Você não tem que dar explicação. Ninguém tem direito de te cobrar nada. Então, azar de quem achar ruim porque você tá voltando. Não tenha medo de voltar.” Aquilo me deu segurança, porque eu disse: “Se eu não preciso ter medo de voltar, eu não preciso ter medo de errar no que eu estou fazendo.” Eu segui em frente, passei a fazer as coisas acontecerem. Então, o tio foi superimportante pra mim, nessa garantia de que “você não deve explicação para as pessoas, você deve o que a quem”? Aquilo foi legal pra mim, foi forte pra mim. Foi o que fez eu ter coragem de continuar trabalhando na TV Globo. Esses foram alguns sentimentos. Em relação à cidade, no início, eu tracei uma cidade pra mim, porque ela era muito gigantesca, eu não conhecia. Quando eu saía de madrugada, com o carro da Globo, a gente ia pra lugares que eu não imaginava: Diadema, São Bernardo, tudo era muito longe. Zona Leste era inimaginavelmente longe. Eu não sei nem como chegar lá de dia...Porque a gente ia de noite, tudo escuro. De dia o que eu fazia? De dia, eu concentrei minha vida entre Pinheiros e Barra Funda, onde ficava a TV Globo. Esse era o corredor que eu tinha da minha cidade, eu vivia nisso. Inclusive, quando eu saía à noite, eu saía nessa região, de táxi ou de carro, logo que eu comprei um carro aqui, porque eu tinha medo de me deslocar. O primeiro grande choque, na verdade, que eu tive em São Paulo, foi uma coisa curiosa, que eu demorei pra perceber, foi o seguinte: Porto Alegre é a cidade do pôr do sol. Quando a gente vai ao Morro da TV, você vai ver o pôr do sol, quando você vai pra beira do Rio Guaíba, você vai pra ver o pôr do sol no rio. Aquilo é marcante, tem um horizonte, é lindo. Tudo isso é lindo de ver, eu cresci com isso. Quando eu cheguei em São Paulo, eu demorei pra perceber, era uma cidade sem horizonte. Por quê? Porque diante da sua casa tinha sempre um prédio, diante do teu trabalho tinha um viaduto, tinha o Minhocão. Você não tinha horizonte, você não via o pôr do sol em São Paulo. Eu percebi, num final de semana em que eu não trabalhei, porque aquilo ia me angustiando, eu ficava muito sozinho, tinha uma coisa que estava me incomodando profundamente. Eu disse assim: “Cara, não tem pôr do sol em São Paulo.” Eu peguei o carro e fui para a Cidade Universitária, onde eu achava que podia encontrar o pôr do sol. Fui dando a volta e fui pro lado de lá, onde o sol ia se por. Eu olhei o pôr do sol. Eu disse: “Descobri o pôr do sol de São Paulo aqui.” E aquilo me marcou, porque eu disse assim: “O problema dessa cidade é que ela não tem horizonte.” Não é que é o problema, na verdade, a diferença dessa cidade em relação à Porto Alegre é que não tem horizonte. Tudo tem prédio, tudo tem uma barreira visual na tua frente e era aquilo que estava me fazendo falta. Aquilo começou a me incomodar, gerar angústias. Então, foram processos, foram momentos pelos quais eu fui passando, de insegurança, de medo, de angústia, mas que eu fui virando. Fui virando, no dia a dia, com as coisas que eu fazia, com a minha irresponsabilidade em fazer. Foi esse o processo que eu fui passando por lá, e dentro da Globo, com todas as dificuldades que eu enxergava, porque eu tinha limitações profissionais. Faltava experiência, às vezes, havia uma exigência maior. A Globo tinha um sistema muito rígido na relação com os repórteres, era tudo muito estratificado. Eu entrei no Jornal Nacional duas vezes, porque a notícia caiu no meu colo nas duas vezes, porque eu não entraria de jeito nenhum. Naquela época, diferentemente de hoje, naquela época só entraria... Eu cansava de fazer reportagem durante o dia, chegava um repórter do Jornal Nacional, gravava uma passagem e botava no ar a minha reportagem, porque eu não podia ir para o Jornal Nacional porque eu não era repórter de rede. Aquilo me incomodava muito porque, puxa vida, por que eu não posso fazer? Era um processo que eu vinha passando e eu tinha que aprender mesmo. Eu tinha que aprender pra crescer, porque eu tinha muita coisa pra aprender em televisão. Mas eu era muito ansioso e a minha ansiedade não me dava paciência de ficar na Globo durante tanto tempo. E parece que a minha tarefa na Globo tinha sido cumprida, que era conhecer a minha mulher. Chegou um momento que eu...
P/1 – Vocês se conheceram lá e já começaram a namorar?
R – Nos conhecemos lá. Minha mulher trabalhava no Esporte, eu trabalhava de madrugada. Ela chegava de madrugada, ao final dos jogos, jogos de vôlei, basquete ou futebol. Ela chegava muito tarde e era o horário que eu estava na redação, a gente ia conversando. Na verdade, eu ia conversando mais com ela do que ela comigo, porque eu fui muito acintoso. Uma vez, ela chegou e, quando eu a vi, eu fui lá e dei um abraço nela, como se ela fosse a minha grande amiga. Ela, talvez, surpreendida, me abraçou também e ficou por isso mesmo. Teve um colega dela que disse assim: “Vocês estão namorando?” Ela disse: “Não.” “Então, tem que contar pro gaúcho, porque eu acho que ele não sabe disso.” Mas foi legal, porque aquilo a alertou sobre a possibilidade.
P/1 – Você já estava envolvido?
R – As coisas já vinham acontecendo e aconteceram. Em pouco tempo, a gente passou a ficar junto, e em seguida, a gente foi morar junto. Mas, naquela época, eu já vivia o incômodo e não conseguir fazer o que eu gostaria de fazer, como eu gostaria de fazer, na Globo. Mais uma vez o destino me ajudou porque foi naquele período que alguém me procurou e disse assim: “Você não quer trabalhar na TV Cultura?” “Eu quero.” Pra muita gente, foi surpreendente, porque você sair da Globo pra ir pra Cultura não é o caminho natural. Algumas pessoas acharam: “Acabou a carreira dele aqui.” E eu fui. Eu fui pra TV Cultura, e foi o grande salto que eu dei na minha carreira. Porque eu fui pra lá pra cobrir o impeachment do Collor, então, eu tive a oportunidade de ir pra Brasília fazer a cobertura, que tinha muito a ver com o rádio, novamente porque era uma cobertura ao vivo. A TV Cultura fazia tudo ao vivo, transmitia aquelas coisas ao vivo. Nadava de braçada porque era ao vivo, era muito mais fácil de fazer. Eu volto a cobrir comícios em São Paulo, tudo ao vivo. Era superlegal. Com isso, a TV começou a me explorar muito nas entradas ao vivo dentro do Jornal 60 Minutos, que era o jornal que entrava ao meio dia. Fazia todas as feiras, tudo que tinha pra fazer ao vivo, eu fazia. Isso fez com que eles visualizassem a possibilidade de eu ser âncora de um jornal, ancorar o jornal. Eu comecei a cobrir férias, cobrir faltas, ausências. Uma vez me convidaram pra ficar apresentando o Jornal da Cultura durante um tempo pra cobrir uma ausência. O âncora do Jornal da Cultura tinha saído, Era o Rodolfo Konder, que foi trabalhar como secretário de Cultura do Maluf. Ele saiu e eles queriam botar outro cara experiente. Eles disseram: “Você fica aqui apresentando dois, três meses?” Eu fiquei dois, três meses, e saí depois. Perguntaram pra mim: “Nós estamos preparando outro âncora pra assumir esse lugar. Tudo bem?” “Não tem problema.” Fiquei dois, três meses, saí, voltei pra reportagem. Passaram-se alguns meses, aquele cara que assumiu pra ficar ali no meu lugar acabou não vingando, não deu certo, sei lá, e eles me chamaram pra apresentar o Jornal da Cultura. Eu virei âncora no Jornal da Cultura. Foi tudo muito...Sei lá se por acaso, as coisas foram acontecendo nessa carreira. Na Cultura, eu fiquei oito anos. E foi lá na Cultura que eu conheci o Heródoto Barbeiro, que trabalhava na Rádio CBN (Central Brasileira de Notícias). Porque até então, em São Paulo, ninguém sabia da minha história no rádio. Eu não tinha um passado no rádio em São Paulo. Para quem me conhecia em São Paulo, no jornalismo, me conhecia da televisão, fazendo o que eu fazia. Para o Heródoto, eu contava o que eu imaginava do rádio, a gente discutia rádio. Ele trabalhava na Rádio CBN.
P/1 – Você conheceu o Heródoto aqui?
R – Na TV Cultura, porque ele também trabalhava na TV Cultura. Eu o conheci lá e ele ficou sabendo o que eu pensava do rádio. Ele estava no projeto da CBN e um dia perguntou pra mim: “Você quer trabalhar lá? Estão precisando alguém que cubra férias.” “Eu quero. Claro.” Chance de fazer...Eu trabalhava na Cultura, fui fazer um programa de rádio na CBN.
P/1 – Não tinha problema trabalhar na Cultura e trabalhar na rádio?
R – Não tinha problema nenhum. Os horários eram condizentes, funcionava perfeitamente, eu ganhava mais uma grana e fazia rádio. Fui apresentar um programa de rádio, ser âncora de rádio, cobrindo as férias do Chico Pinheiro, que apresentava o programa do meio dia na CBN. O Chico foi embora pra TV Globo, não voltou das férias. O Heródoto me diz assim: “Você fica aqui uns dois, três meses? Porque nós precisamos botar um âncora famoso, que tenha nome.”
P/1 – Qual programa?
R – Era o programa do meio dia, apresentado pelo Sardenberg hoje, o CBN Brasil. O Heródoto disse assim: “Nós vamos preparar um cara pra botar no lugar, nós estamos procurando no mercado um nome forte, enquanto isso você fica apresentando?” “Eu fico apresentando sem problema nenhum.” Você vê que eu aprendi bastante com aquela minha prepotência da faculdade. Enfim, eu disse: “Sim. Claro que fico. Eu estou me divertindo fazendo isso, eu gosto de fazer isso, estou ganhando dinheiro pra fazer isso. Fico.” Fiquei dois meses. Botaram outro apresentador. Um mês depois, me chamaram porque tinha um programa pra eu apresentar lá. Aí, eu fiquei definitivamente, isso era de 1998 pra 1999. Fiquei definitivamente na CBN, fazendo outras coisas, depois em outros veículos, trabalhei na Rede TV, trabalhei no Portal Terra.
P/1 – Você ficou nesse programa?
R – Não. Eu fui fazer o que hoje é o Jornal da CBN segunda edição, na época tinha outro nome, que era um programa nacional das cinco às sete da noite. Eu fiquei fazendo esse programa durante um tempo. Aí surgiu a oportunidade de apresentar o CBN São Paulo, porque o apresentador do CBN São Paulo tinha saído da rádio. Eu pedi pra fazer o programa CBN São Paulo, o que também foi uma reversão de expectativa, porque eu fazia um programa nacional e eu pedi pra fazer um programa local. Porque eu tinha tanta convicção que fazer um programa sobre São Paulo podia me dar uma tremenda dimensão, eu não tinha a ilusão, ou a fantasia: “Eu fazer um programa nacional vai me dar uma projeção, o Brasil inteiro vai me ouvir, então é muito mais legal.” O horário do rádio pela manhã é muito forte e São Paulo é um mercado extremamente forte, então, eu fui muito consciente da decisão: “Eu vou sair do nacional e quero fazer o programa de São Paulo. Quero fazer um programa que seja o fórum da cidade de São Paulo, porque nós vamos discutir essa cidade.” Mesmo sendo gaúcho, o que no início, inclusive, pesou em relação a mim. Era o Miguel Dias que apresentava o CBN São Paulo. Miguel Dias é um cara extremamente dedicado à cultura paulistana. Ele saiu pra ir pra TV Record e eu assumi o programa. Pra muitos, foi um choque: “O que esse gaúcho vem fazer aqui, comandar um programa?” Eu já tinha passado por isso na...
P/1 – Que ano era isso?
R – Eu fui em 98 pra Rádio CBN, finalzinho de 98. Provavelmente, final de 99. Foi tudo muito rápido. Acho que 99 pra 2000, mas provavelmente final de 99. Porque foi a época em que eu acabei saindo, em 99 eu saí da TV Cultura... Foi isso. Eu saí da TV Cultura e fui pra Rede TV. Eu fiquei lá na CBN nesse tempo apresentando esse programa. Eu fiquei muitos anos, não vou lembrar quantos anos eu fiquei no CBN São Paulo. Pra mim, foi muito legal trabalhar lá. Foi muito bacana porque deu pra fazer tudo aquilo que eu gostava de fazer de cidade, discutir os temas da cidade, deu pra fazer naquele espaço, deu pra transformar aquilo. Eu sonhava assim: isso aqui tem que ser um fórum de discussões, todos os grandes debates da cidade de São Paulo têm que passar aqui por dentro. E aconteceu isso. Então, isso pra mim foi muito forte, foi muito bacana.
P/1 – O que mudou na percepção que você tinha de São Paulo, da cidade sem horizonte, com esse programa?
R – Que a cidade era muito mais problemática do que eu imaginava, mas que era muito criativa. Na verdade, na época da TV Cultura, eu fui conhecer mais São Paulo. A TV Cultura por si é uma TV da cidade, do Estado de São Paulo, permitiu-me conhecer mais São Paulo. Ali eu comecei a quebrar aquela visão da cidade sem um horizonte, que era muito mais uma questão física do que uma questão espiritual com a cidade, na relação com a cidade. Porque, se eu pensar, foi a cidade que abriu todos os meus horizontes, mas fisicamente ela não tinha horizonte. Eu consegui, na TV Cultura, enxergar essa cidade do ponto de vista criativo. Isso foi enriquecedor. Ali começou, mais do que no próprio CBN São Paulo, foi na TV Cultura que eu comecei a mudar, a enxergar a cidade de outra maneira, as coisas que aconteciam por aqui, as pessoas que viviam aqui, a inteligência que tinha aqui. Isso foi muito bacana. O tal horizonte que eu olhava era unicamente físico, inclusive descobri que tinha outros horizontes pra encontrar, alguns lugares na cidade onde você conseguia ver o que você queria. Então, isso aconteceu. Quando eu fui pro CBN São Paulo, era a ideia de discutir essa cidade que eu aprendi a conhecer lá na TV Cultura. E aconteceu de mobilizar pessoas muito mais do que na própria TV. Na rádio, a gente conseguia mobilizar pessoas, fazer as pessoas se organizarem, defender causas. Os temas que estavam em debate na Câmara Municipal, mobilizar gente pra ir pra Câmara Municipal. O rádio permitia isso, dava esse espaço. O rádio consegue ser mais mobilizador do que a televisão porque ele é mais próximo das pessoas. Isso foi possível fazer. Na realidade, eu descobri São Paulo na TV Cultura, na televisão, mas eu comecei a influenciar São Paulo no rádio. Influenciar nesse sentido de provocar as pessoas, de fazer as pessoas discutirem os assuntos. Eu pude ter uma participação mais direta na cidade e aí você percebe a dimensão dessa cidade. Primeiro, o quanto é difícil resolver os problemas dela, às vezes isso é frustrante, mas que você pode ter certeza de que vai chegar um momento que alguém vai aparecer pra te dar uma esperança. Isso é legal porque você tá diante de um baita problema na cidade, de uma encrenca daquela e você diz assim: “Cara, acabou. Não vai ter jeito isso aqui.” E alguém aparece com uma expectativa diferente pra você, com uma tentativa, com um projeto, com um encontro, com um coletivo, um sonho e você: “Ah, vamos tentar.” Então, você busca talvez essas coisas. Talvez você vá descobrir depois que não vai dar certo de novo, mas você volta a acreditar. É isso. Eu hoje sou muito mais paulistano do que sou gaúcho, não tenho a menor dúvida disso. Eu vivo muito mais o que é São Paulo, ser São Paulo, do que vivo Porto Alegre. Por mais que eu adore voltar pra Porto Alegre, por mais que eu tenha relações com o Rio Grande do Sul fortes ainda, em diferentes aspectos, eu vivo muito mais São Paulo, eu sou muito mais cidadão paulistano do que um cidadão porto-alegrense. Eu não tenho a menor dúvida. Eu nunca lutei por Porto Alegre como eu lutei por São Paulo. Por quê? Porque aqui em São Paulo eu tive essa oportunidade. Porque lá em Porto Alegre era uma fase em que eu não tinha espaço pra tal, aqui em São Paulo eu tive e eu pude fazer isso. Eu tenho muito mais convicção da proximidade que eu tenho com São Paulo hoje do que tenho com Porto Alegre. Por mais que minha família esteja lá, por mais que minha origem esteja lá, por mais que o clube do coração esteja lá. Por mais que eu goste da cidade, goste do Rio Grande do Sul, de alguns hábitos, enfim, por mais que eu tenha orgulho de contar para as pessoas que eu sou gaúcho, eu vivo muito mais São Paulo. Minha mulher é daqui, minha casa eu construí aqui, meus filhos nasceram aqui, estão construindo suas vidas aqui. Então, pra mim, é muito claro isso.
P/1 – Quando você teve filho?
R – Meu primeiro filho nasceu em 96, o Gregório. O segundo filho nasceu em 99, o Lorenzo. São os dois filhos que eu tenho. Nós já morávamos na casa em que eu moro. Eu moro no Jardim Lar São Paulo que fica próximo do Portal do Morumbi. Minha mulher morava naquela região, mora naquela região até hoje junto comigo, mas morava na infância. O pai dela era dono de algumas terras num lugar que ficou conhecido como Jardim Eunice, que é o nome da minha sogra. O fato do pai dela ser dono de algumas daquelas terras pode dar uma visão distorcida pra vocês, mas o meu sogro era pastor de uma igreja evangélica, da Congregação Cristã, então, ele não admitia ser rico. Ele era funcionário público, trabalhava como gari, apesar de ser rico. Ele morava numa casa muito simples porque ele dizia que ele nasceu numa casa muito simples e a família dele tinha que morar numa casa muito simples. Não é que era uma casa simples só, era uma casa com goteira, uma casa malcuidada, num terreno ruim. A família da minha mulher morou lá durante todo esse tempo. Meu sogro morreu, perdeu absolutamente todas as terras que tinha porque ele dava as terras. Ele deu, por exemplo, pra construir igreja, deu pra construir a escola. Ele foi dando, até aí tudo bem, mas ele começou a dar terras para as pessoas...
P/1 – Ele era gari?
R – Ele trabalhava no caminhão de lixo como funcionário público, era a função dele. Era um servidor, ele tinha que ser um servidor das pessoas e era como ele se entendia. O cara comprava a terra dele, chegava no meio do período, o cara não conseguia pagar mais, ele acabava dando. Ele perdeu tudo. Em termos assim de patrimônio, ele entregou tudo, deixou só a história dele pra ser contata. Minha mulher sempre morou naquela região, quando nós casamos... Aliás, antes da gente casar, a gente foi morar junto numa casa alugada no Taboão da Serra. Nós casamos em 93, fomos à Porto Alegre pra casar, casamos em 93 e construímos a nossa casa onde nós moramos hoje, no Jardim Lar São Paulo, que fica próximo ao Portal Morumbi. Foi lá que os meus filhos nasceram também, os dois. Tanto o Gregório como o Lorenzo nasceram lá, a gente vive lá. É uma casa que a gente mantém. Quando nós fomos morar nessa casa, era uma rua de chão batido ainda, tinha duas casas além da nossa. A nossa era a terceira casa nessa rua. Então, a gente viu crescer tudo aquilo ali, ou ser destruído tudo aquilo ali, porque tinha muito mato em volta ainda. Isso eu estou falando de 93, nem é tanto tempo assim. Era curioso como ainda tinha lugares na cidade que eram assim, mesmo em bairros tão avançados como era a proximidade do Morumbi. Butantã, Vila Sonia, já existia tudo isso, mas ali ainda era muito terreno baldio, muito mato, muita árvore. Aquilo foi sendo colocado abaixo. A gente mora lá, os meninos são de lá, os meninos estudaram ao lado ali da casa. Na esquina da nossa casa... Na minha rua você tem um colégio, você tem uma igreja e você tem a quatro quadras, uma delegacia. Então, você tem um minibairro, uma minicidade no seu entorno.
P/1 – O que mudou, depois que você foi pai, na sua vida?
R – O que mudou? Eu passei a entender...
P/1 – Como foi ser pai?
R – Foi genial. Sempre quis ser pai, sempre tive esse desejo. Eu tinha desde o início. Assim, desde o início... Há muito tempo, eu tinha o desejo de ser pai. Antes de casar, eu tinha o desejo de ser pai. Enquanto eu só era filho, eu tinha desejo de ser pai e eu tinha na minha perspectiva assim: “Ah, eu tenho que ser um pai melhor do que o meu, na relação com os meus filhos.” Com o tempo, eu aprendi outra coisa que pra mim foi mais importante, foi muito mais significativo, porque eu passei a entender melhor o meu pai e percebi o seguinte: meu pai me deu uma educação que era resultado da educação que o meu avô deu pra ele. Se eu pensasse de maneira lógica, meu pai foi um pai melhor do que o meu avô foi pra ele. Eu disse: “Opa! Então eu tenho que ser um pai melhor do que o meu pai foi pra mim.” Porque, claro, ele trouxe parte daquilo que o meu avô trouxe. Ele adaptou ao tempo e desenvolveu a sua forma de ser pai. Eu tenho que aprender com o que o meu pai fez comigo e adaptar ao meu tempo na forma de ser com o meu filho. Eu não posso ser igual ao meu pai, como meu pai não foi igual ao meu avô. No momento que eu for igual a ele, eu parei no tempo. O mundo segue, as coisas mudam, as relações mudam. Eu tinha muito desejo de ser pai, eu queria muito e tinha uma ideia de um relacionamento com os meus filhos que eu consegui construir. Claramente, pra mim, nós conseguimos construir esse relacionamento. Tenho um com 20, outro com 17 anos. Hoje, eu vejo, assim, era isso que eu queria deles, era isso que eu esperava deles. Então, o que mudou ao ser pai foi entender o meu pai, perceber por que ele fez algumas coisas durante a minha criação, eu passei a entendê-lo melhor... Entender vários aspectos da vida dele. Isso me ajudou muito, minha mulher me ajudou muito nesse sentido também. Isso foi muito bacana. Você, às vezes, fica olhando pros caras, pensando: “Será que vai dar certo isso aqui?” Eu sempre acreditei que ia dar. Eu tenho muitos amigos que me alertaram a vida toda, estou exagerando, mas os 20 anos de pai, que ia dar problema. “É que eles são pequenininhos agora. Calma lá, você vai vê-los adolescentes.” “Ah, é que eles são pré-adolescentes ainda, mas calma, você vai ver quando chegarem as namoradas. Prepare-se quando eles começarem a sair. E as drogas?” O tempo inteiro os caras te impondo o medo, dizendo: “Vai ser um horror. Não é nada disso que você tá vendo. Tá bom até agora.” Eu sempre tive muita confiança de que as coisas iam dar certo e a gente ia passar por todas as etapas que tivesse que passar. E a etapa de agora é melhor do que a anterior. Isso vem acontecendo até hoje pra mim. Eu tenho o maior orgulho de ser pai. O maior orgulho. Eu olho pros dois hoje, dizendo: “Cara...” Quando eles me falam algumas coisas, eu digo: “Pô, era o que eu esperava que o cara me dissesse.” Mesmo quando eles se contrapõem, e eles se contrapõem às coisas, olhar e dizer assim: “Poxa....” E os caras ficaram me botando medo lá atrás... Quando a gente foi escolher a escola deles, tinha uma escola na esquina de casa. Eu e minha mulher conversamos, dissemos assim: “Cara, não dá pra botar na escola na esquina de casa só porque está na esquina de casa. A gente não pode ser tentado pela questão geográfica.” Nós começamos a conversar com um professor, com outro, com educador, gente que a gente conhecia do dia a dia e os caras diziam: “Aquela escola lá é legal. Pode por.” E me disseram um negócio que eu achei genial, disseram assim: “Eles têm um trabalho na área de cidadania muito importante.” “É isso que eu quero.” Desde o início eu tinha isso, eu não estou colocando os meus filhos na escola pra serem engenheiros, pra serem doutores, pra serem professores, pra serem garis. Eu estou botando meus filhos na escola pra serem cidadãos. Independentemente da função que eles exercerem, o meu orgulho vai ser ouvir alguém um dia dizer assim: “Pô, seu filho faz não sei o que, um cara muito legal.” Não interessa se ele é doutor, mestre, não sei o que, em qualquer área que ele estiver, mas ele tem que ser um cara legal, ele tem que ser um cara bom, do bem. Eu sempre tive isso, ia para as reuniões de pais, eu e a minha mulher, a gente ficava ouvindo os pais histéricos, seus filhos lá com dez, 11 anos, o pai já histérico sobre qual era o projeto pedagógico da escola prevendo a formação pra universidade. Que universidade, cara? Depois, o meu filho nem vai entrar na universidade, eu não sei o que ele vai fazer e os caras estavam preocupados com a universidade que o filho ia cursar. Eu olhava aquilo – tanto é que a gente passou a não participar mais das reuniões de pais nas escolas – a gente não ia mais. A gente deixava pra ir no final, pra assinar o que tinha que assinar, e quando precisava falar com um professor ia na escola num dia da semana e falava com o professor, quando tinha necessidade. Essas reuniões são de gente neurótica. Eu vi os pais pautando a vida dos filhos e disse: “Cara, é tudo que eu não quero.” Já basta eu, que fiquei o tempo inteiro, meu pai agarrado na minha mão me levando pra tudo que é lugar. “Não vou fazer isso. Não vou impor isso ao meu filho.” E foi muito legal. Tudo bem. Meu mais velho é estudante de Jornalismo, mas fazendo outro tipo de coisa, completamente diferente. O meu mais novo tá trabalhando numa outra coisa, mais diferente ainda. Eu aprendi isso que eu acho que é o legal de ser pai: o que a gente tem que aprender pra ser pai, você tem que aprender com seus filhos. Eu aprendi muito com eles. A gente convive muito junto, desde pequenos. Nós tivemos um ambiente em que eu e minha mulher, que também é jornalista, conseguimos nos dividir de maneira que eles estivessem com a gente. Minha sogra ajudou muito, ficou com eles muito tempo, mas a gente tinha sempre grandes momentos com eles, convivendo com eles. O crescimento deles foi ao nosso lado, o tempo todo. O uso do computador deles foi na mesma mesa que eu tinha, nós tínhamos uma mesa redonda em que nós todos estávamos juntos fazendo as coisas. Eles sabiam quando eu estava trabalhando e eles sabiam respeitar isso, eu sabia quando eles estavam brincando. Eu fui aprendendo com eles. Hoje eu falo com alguns pais que até hoje não aprenderam como é que os filhos usam os computadores. Então ouço o pai dizendo assim: “Meu filho só joga.” “Não é verdade. Teu filho só não sai da frente do computador, é diferente.” “Não, ele fica jogando o tempo todo.” “Olha o que ele faz, pergunta pra ele o que ele faz, que você vai ver.” Isso eu aprendi com os meus filhos, estar sempre na frente do computador, a vida tá na frente do computador. O trabalho da escola tá no computador, professor com quem ele fala tá no Facebook, os colegas com quem ele estuda estão no computador, ele tá estudando no computador. O vídeo que ele vê tá no computador, ele tá vendo vídeo, tá vendo cinema, tá vendo seriado, tá vendo documentário, tá vendo no computador. Sim, ele joga também, porque o jogo também tá no computador. Não é que ele só... Era a ideia do passado: “Meu filho não sai da frente da televisão.” Não. Aquilo ali é diferente, tem um mundo ali, mas eu só vou entender se eu estiver junto com eles, eu estou aprendendo com eles. Segundo, não o deixar isolado em algum lugar, preso dentro do quarto. Meus filhos nunca tiveram computador dentro do quarto e não é que eu proibi, você não pode. Não. Não tiveram naturalmente, eles nunca quiseram ter. Computador eles sempre tiveram na sala, junto da sala da TV, da bagunça, onde eu trabalhava como é até hoje, todos os nossos computadores estão juntos. Ou seja, eu aprendi como é que eles consomem aquela informação, então, eu não fiquei com medo e dei confiança pra eles me falarem as coisas, dizerem as coisas, eles deram palpite na minha vida, nas coisas que eu faço, no que a minha mulher faz etc. Nós aprendemos a conviver. Quando eu olho isso eu digo: “Deu certo.” Eu não preciso impor nada pra eles, eu não preciso os obrigar a fazer isso, eu não tenho que dizer pra eles o que eles têm que fazer da vida, não tenho que mandar neles. Eles sabem, e eles sabem o momento de me perguntar, então, funciona o diálogo, a conversa. Eu tenho um baita dum orgulho de ter aprendido a ser pai com os meus filhos. Eu acho que pra mim foi genial, transformador. Porque era um sonho que eu tinha, ser pai, e eu queria ser um pai legal. Não era um pai legal, mas um pai melhor que o meu pai e eu vejo que eu consegui ser, porque eu aprendi com o tempo, assim como o meu pai aprendeu no tempo dele. Eu aprendi agora, com esse novo tempo, que eu acho que é bem mais desafiador do que era naquela época. Então, pra mim, isso é muito legal.
P/1 – Voltando pro programa da rádio em São Paulo, teve uma matéria que te marcou? Um projeto, uma localidade, uma situação da cidade. Deve ter milhares, tantos anos...
R – Pois é. Eu vou lembrar agora, é sempre essa história que vem na minha cabeça, a primeira coisa que vem, então, acho mais natural contar. Ela parece simples. Dentro do meu programa eu apresentava um quadro chamado Conexão Rio-São Paulo. Eu falava daqui, o Sidney Rezende apresentava do Rio de Janeiro, a gente trazia coisas das cidades para aquele ambiente. Ele do Rio, eu de São Paulo, a gente trocava experiências. Um dia, eu abri o jornal, tinha uma nota sobre uma biblioteca de uma escola na região metropolitana, em Barueri. Tinham entrado na biblioteca e colocado fogo. Era uma notinha pequena de final de semana. Aquilo me causou indignação e eu levei ao ar aquela indignação. Eu talvez tenha falado até um tom acima do que normalmente falaria, porque pra mim era muito chocante que alguém da comunidade tivesse chegado numa escola...Não é que ele colocou fogo na sala de aula, onde talvez a professora o tenha tratado mal, não sei o que motivou e quem tenha sido motivado, ou a diretora que não respeita... Mas o cara ter entrado na biblioteca pra fazer isso. Pra mim, aquilo ali era ofensivo. E eu falei, falei nesse tom de indignação. Foi curioso porque Oded Grajew, que na época trabalhava no Instituto Ethos, desenvolvia um projeto no Brasil inteiro que tinha como meta construir uma biblioteca pública em todas as cidades do Brasil que não tivessem bibliotecas públicas. Ele ligou, logo depois do programa, e disse: “Ouvindo você falar, nós decidimos fazer diferente. Barueri tem outras bibliotecas e essa era uma biblioteca pública de uma escola pública, mas nós vamos pegar a verba que nós temos dentro desse projeto e vamos aplicar pra reconstruir essa biblioteca. Mesmo tendo outra, nós vamos sair do programa, vamos fazer.” Eles foram e construíram, construíram em sistema de mutirão, os moradores da região reconstruíram as paredes. Eles ganharam um acervo muito legal de livros, todos novos. Eu vejo assim, essa é uma história aparentemente simples, mas que se você levar com o tom certo, você consegue mobilizar pessoas. Eu não sei que impacto aquela biblioteca teve na vida das pessoas que chegaram depois, mas ela teve. Os livros estavam lá, estão lá, outras crianças pegaram livros novos. Mudou alguma coisa. Aí você diz assim: “Pô, é legal fazer isso.” É bacana você conseguir transformar desse jeito, de alguma maneira, transformar desse jeito. Às vezes, você quer fazer o grande projeto da sua vida, mudar as pessoas todas, e a gente nunca vai conseguir. Talvez isso São Paulo tenha me ensinado, a gente ser capaz de perceber que nós não vamos mudar o mundo, não tem jeito, eu não vou mudar São Paulo, mas eu posso fazer coisas que mudam determinadas coisas. Quem sabe outros façam outras, e a gente vai ampliando isso. A ideia de “vou transformar a cidade”... Não vou transformar porque é muito grande, é muito complexa. Não vou fazer nada por causa disso? Não. Não vou me render. Vou lutar. Aí as coisas vão acontecendo. Ali aconteceu uma coisa legal, foi uma biblioteca que nem era na Cidade de São Paulo, era em Barueri. Esse foi um momento que foi emocionante, eu estive lá quando eles inauguraram aquela biblioteca. Você olha aquilo, te toca, porque daí você diz assim: “Cara, bacana a gente conseguir fazer, usar um programa pra fazer isso.” Isso pra mim foi importante, foi um momento, que eu lembro, importante no CBN São Paulo. Surgiu também, isso foi lá em 2008, uma ideia que foi muito no estalo, que acabou gerando um movimento. Não foi uma reportagem que eu fiz, mas foi uma reflexão que eu levei ao ar. Em 2008 teve eleição municipal em São Paulo, elegemos a Câmara Municipal de São Paulo. Saíram os nomes dos 55 vereadores, eu publiquei isso no CBN São Paulo. Imediatamente eu comecei a receber e-mails de pessoas dizendo o seguinte: “Quem elegeu esses caras? Quem são esses caras? Esses caras não me representam.” Naquele momento, eu comecei a questionar no programa, o seguinte: esses caras aí, que eu não gosto, e que você não gosta, foram eleitos por São Paulo. São nossos representantes na Câmara Municipal de São Paulo nos próximos quatro anos. Goste ou não deles, entenda ou não como eles chegaram lá, são eles que vão discutir a cidade a partir de agora. Então, amigo, se você não tem nenhum vereador que você acredite, adote um vereador. Foi dali que surgiu o movimento “Adote um vereador”. Ideia original: escolha um vereador que você não conheça, você não saiba quem é, e passe a acompanhar a vida daquele cara durante os quatro anos. Veja o que o cara faz, o que ele vota, como ele se pronuncia, como ele gasta o dinheiro etc. e tal. Publica isso. Na época, a gente falava “publique em blogs”, não existiam as redes sociais, e faça com que outras pessoas conheçam isso. Talvez daqui a quatro anos, quando alguém for votar de novo, ele procure o seu blog e descubra que aquele cara que foi pedir o voto na região dele não merece o voto dele. Aí, ele vai votar num outro, diferente. Então, você pode ajudar a cidade nisso, acompanhando o trabalho lá. Sem contar o seguinte, o cara na Câmara Municipal vota leis que mexem na minha vida: Plano Diretor, orçamento, qualquer coisa que você pensar, o cara pode mexer na minha vida, no meu bairro. Pode valorizar ou desvalorizar minha região, pode mudar uma regra. Por mais que eu ache que a maior parte das leis aprovadas na Câmara não têm importância, tem leis que eles aprovam que são impactantes. Se o cara toma uma decisão que impacta a minha vida, eu tenho que saber que decisão ele tá tomando e tentar influenciar o voto dele. Segundo, tudo que esse cara faz lá é com o meu dinheiro, porque ele não tem dinheiro do bolso dele, é dinheiro público que tá lá, e se é dinheiro público, é o meu dinheiro. Eu não vou cobrar que ele faça o que eu quero? Vou deixar ele fazer o que ele quiser? Eu trabalhei com essas ideias no programa e surgiu a ideia do “Adote um vereador”. Imediatamente, algumas pessoas começaram a escrever e se propor a adotar um vereador ou outro. De repente, surgiu um wiki-site de alguém que tinha feito um wiki-site sobre o “Adote um vereador”. Outro fez um site, outro fez um blog. De repente, uns caras me mandaram uma mensagem lá na rádio me convidando pra nos encontrarmos no Centro Cultural de São Paulo. Eles tinham combinado de todo segundo sábado do mês se reunirem no “Adote um vereador”. Eu fui lá pra conhecer, porque eu não sabia quem eram as pessoas. Aquilo motivou gente de outras cidades a fazer o mesmo movimento, esse movimento foi mantido, perdendo força, ganhando força, dependendo da proximidade da eleição. Até hoje a gente se encontra no segundo sábado do mês, agora no Pátio do Colégio. Foi um movimento que eu quis fazer, levar pro Pátio do Colégio, no café do Pátio do Colégio, porque lá é o local de fundação da cidade, então, eu achava simbólico estar lá. Todo segundo sábado do mês, senta um grupo de pessoas de um movimento que sequer força tem, mas que eu aprendi com o tempo, nesses nove anos, que tem um mérito: as pessoas que sentam lá não trabalham necessariamente no “Adote um vereador”, não acompanham vereador nenhum. Tem um cara que vai no conselho de segurança do bairro dele, outro vai na associação de moradores, outro vai no conselho popular da subprefeitura, outro participa do conselho do parque, outro tá no movimento que ajuda crianças, não sei o que. São pessoas que vão pra lá pra bater papo, conversar, contar as suas experiências, não necessariamente na Câmara Municipal, mas até discutindo coisas ligadas à Câmara Municipal. Vão pra lá porque eles se sentem pertencentes a um grupo de pessoas que querem ajudar a cidade. E eles ajudam cada um à sua maneira. Tem uma senhorinha que vai lá...Se você for ouvir a história dela...Essa senhora participa de todas as reuniões do Conselho de Segurança do bairro dela, não só do bairro, de outras regiões próximas, porque ela mora perto da região central, então, tem vários bairros que impactam. Ela vai nas associações de bairro, quando os partidos políticos fazem reunião, ela vai lá pra incomodar os caras. Às vezes, ela vai na Câmara Municipal. Ela não acompanha o “Adote um vereador”, não tá registrada, não segue um vereador. Não. Ela faz um trabalho político da maneira dela, vai pra lá no segundo sábado, senta lá com a gente, fala as histórias dela, dá os palpites dela, ela se sente pertencente, talvez fortalecida pra voltar no mês seguinte, fazer tudo aquilo de novo. Ela vê que ela tem importância. E as pessoas sentam lá com esse objetivo. Então, por mais que, às vezes, eu quisesse que esse fosse um movimento muito mais amplo do que ele é, eu percebi que ao longo do tempo ele se transformou nesse lugar em que as pessoas sentam, conversam, contam essas suas histórias, suas indignações, expõem o que pensam e dessa maneira se sentem pertencentes a aquilo. É um grupo que gosta de fazer a cidade melhor. Como a gente sabe que em outras cidades, outras pessoas estão levando em alguns lugares até mais bem estruturados, bem organizados, você diz assim: “Bom, vale a pena manter a ideia, ficar defendendo essa ideia do “Adote um vereador”, do “olhe pra Câmara Municipal da sua cidade e veja o que os vereadores estão fazendo”.” Isso é bacana de continuar. Foi um movimento que surgiu dentro do meu programa, o CBN São Paulo, e que vai completar dez anos agora. Ele tá aí, vivo, de alguma maneira ele tá vivo, mesmo que às vezes seja frustrante porque você não consegue avançar o que você queria. No início, a gente até conseguiu avançar bastante na Câmara, teve um impacto muito forte na Câmara, um incômodo muito grande deles, até porque era um movimento com mais gente, mais gente mobilizada. Foi mais uma coisa que aconteceu lá dentro do programa e que você acaba transformando pessoas, ajuda a transformar pessoas.
P/1 – Quais são seus planos profissionais hoje?
R – Essa é uma bela pergunta, eu não tenho a menor ideia. Quando eu comecei na Rádio Guaíba de Porto Alegre, meu plano profissional aos 50 anos era estar aposentado em Porto Alegre, assim como o meu pai acabou se aposentando depois de 50 anos de rádio. Ele foi se aposentar bem mais tarde do que os meus 50 anos de idade. Eu não parei pra pensar o que eu vou ser amanhã, eu fui fazendo coisas, incluindo coisas e capacidades na minha carreira profissional. Fui montando, hoje muito mais forte, muito mais fortalecido, com a minha imagem no rádio. Mas eu, por exemplo, desenvolvo vários projetos na área de comunicação, seja com livro, seja com palestras e até uns treinamentos fora do jornalismo, que não estão relacionados a Jornalismo, estão relacionados a desenvolver a capacidade de comunicação das pessoas. Faço esse trabalho também voluntariamente, em algumas instituições. Recentemente, eu vim de um curso de um mês inteiro, na igreja da qual eu participo, pra ensinar as pessoas a proclamarem a palavra, porque aquilo passa pela comunicação, eu fui ensinar as pessoas a proclamar a palavra do ponto de vista técnico e não espiritual, isso teve outro grupo que cuidou. Eu vou desenvolvendo ações nesse sentido. O que eu vou ser daqui pra frente? Eu percebo que eu terei de ser cada vez mais empreendedor de mim mesmo, dos meus negócios. Quais são esses meus negócios? Não sei, mas com certeza, coisas ligadas à comunicação. Porque se o Diabo sabe mais por velho, do que por Diabo, eu aprendi nas minhas diabruras a trabalhar com comunicação. Então, pra mim é isso. Dificilmente eu conseguiria me enxergar diante de um comércio, diante de outra área qualquer que não estivesse relacionada à comunicação. Mas eu estudo hoje alguns segmentos nos quais talvez eu possa amanhã, futuramente, investir. Até pela experiência dos meus filhos, eu tenho olhado muito as questões relacionadas ao digital, ao esporte eletrônico. Eu tenho estudado isso, porque talvez seja um caminho a ser adotado em algum momento. Há um crescimento muito grande nessa área. Mas se você me pergunta o que eu vou fazer daqui a cinco anos, talvez continuar apresentando o jornal da CBN, onde eu apresento hoje. Não sei, se eles me aguentarem mais cinco anos lá, eu estarei apresentando o jornal da CBN. Agora, olhando talvez outras coisas, outros cenários, outros mundos pra trabalhar com comunicação porque é a comunicação que eu entendo, que eu consegui desenvolver. A não ser que apareça mais uma vizinha do outro lado do muro e que me faça um convite genial dizendo o seguinte: “Você não gostaria de trabalhar em tal lugar?” E aquilo me acender uma luz de ir trabalhar. Porque no final das contas, a minha carreira foi construída assim, os fatos foram me levando para outra direção, ou para a direção que o destino quisesse me levar. Claro que eu provoquei algumas, claro que eu gerei conversas porque se eu quisesse sair de um lugar e não contasse para as pessoas que eu queria sair, aqueles que um dia pensaram na possiblidade de me levar para aquele lugar não se sentiriam à vontade pra me procurar. E me procuraram. As pessoas foram sabendo do que eu queria, dos meus desejos, assim como as pessoas sabem, as pessoas que eu convivo no meio profissional, de que eu gosto de trabalhar com projetos na área de comunicação e outros projetos. Talvez isso faça com que alguém abra o seu ouvido em determinado momento e veja uma oportunidade para me oferecer. Mas eu não vou atrás da oportunidade, eu não disse: “Eu quero fazer tal coisa em tal lugar.” Nunca soube trabalhar dessa maneira. Como até hoje deu certo, talvez eu vá continuar fazendo assim, esperando essas coisas acontecerem, mas contando aos outros quais são os meus desejos, quais são os meus sonhos. Por exemplo, continuar trabalhando em comunicação é um sonho, ter esta capacidade, mesmo que chegue determinado momento em que talvez a minha característica, a minha personalidade não se encaixe mais num programa de rádio. Porque pode acontecer, há transformações nos veículos, talvez eu não consiga me adaptar tão rapidamente quanto queiram. Eu gostaria de me adaptar, tenho conseguido fazer isso, mudei minha forma de apresentar programas desde que eu comecei. Eu não tenho dúvidas de que eu sou um cara hoje muito mais solto pra falar, muito mais à vontade para contar coisas, coisa que no passado eu não fazia, eu tinha medo, inclusive, de brincar, porque eu tinha medo de desrespeitar as pessoas. Eu preferia me manter muito mais seguro. Desenvolvendo tudo isso, geram-se novas oportunidades, eu não sei quais. Eu não sei onde eu estarei daqui a cinco anos. Eu sei que, daqui a cinco anos, eu terei 58 anos, estarei com quase 60 anos e eu quero continuar trabalhando, eu quero continuar trabalhando com 80 anos. Eu quero estar trabalhando em alguma atividade, independentemente dela qual seja, em alguma atividade. Espero conseguir encontrar novas capacidades e competências nestes 20 e tantos anos que faltam para chegar aos 80. É mais, né? Não. É isso. São quase 30 anos que faltam pra chegar aos 80, eu espero desenvolver, ter coração e mente abertos pra desenvolver novas capacidades que me permitam continuar trabalhando. Eu não vejo outra forma de estar ativo. E o “trabalhando” não precisa ser necessariamente o trabalho profissional, mas fazendo coisas, possibilitando oportunidades para as outras pessoas, fazendo algum trabalho, por exemplo, como esses trabalhos que eu faço, fiz na igreja.
P/1 – Que igreja?
R – É a Igreja Católica. É a Igreja de Santa Suzana, que fica na região onde eu moro. A capela que fica ao lado da minha casa é a Imaculada Conceição, faz parte dessa paróquia. Lá nós temos, por exemplo, a Cáritas Santa Suzana que atende 2 mil, 2,5 mil crianças de todas aquelas comunidades que tem no entorno da região do Morumbi, Vila Sônia, Butantã. São crianças muito carentes e que têm lá um apoio genial, inclusive profissional. Uma recolocação dessas... Recolocação, não, mas uma colocação desses jovens no mercado de trabalho como pequeno aprendiz etc. Desenvolvem capacidades. A gente recentemente fez uma campanha grande porque durante 11 anos a Cáritas funcionou em contêineres e nós conseguimos transformar os contêineres num prédio. É genial pra aquelas crianças. Era uma questão de dignidade, inclusive, elas terem um ambiente como aquele ali, uma sala de aula boa, com qualidade. Conseguiram construir aquilo através de campanhas etc. Foram trabalhos que descobriram alguns caminhos interessantes. Poder fazer isso vai ser genial, se eu puder continuar fazendo, pode ser na igreja, pode ser sei lá onde. Se eu conseguir, dentro do que eu sei fazer, dentro de comunicação, porque não adianta eu tentar inventar, querer ser gestor de um organismo porque eu não sei ser gestor. Eu tenho que fazer gestão da minha vida. Não sei se eu sei ser gestor de uma empresa, talvez não saiba. Trabalhar para mim é isso. Futuramente, se não tiver profissionalmente como me sustentar, trabalhar em outros setores, mas trabalhar, continuar ativo, continuar fazendo alguma coisa.
P/1 – O que você achou da experiência de contar a sua história de vida pro Museu da Pessoa?
R – Eu adoro contar história. Eu adoro que as pessoas contem histórias. Não é por acaso que um dia eu inventei lá na rádio o Conte sua história de São Paulo, que era uma chance de as pessoas contarem as histórias de São Paulo pra mim, que não conhecia a cidade. Fui conhecer através do olhar destas pessoas. Curiosamente, durante todo o início daquele projeto, que foi em 2004, as pessoas me escreviam e diziam assim: “E qual é a sua história de São Paulo?” “A minha história de São Paulo eu estou contando ainda. Eu estou construindo ainda essa história de São Paulo a partir do que vocês escrevem.” Eu tenho orgulho hoje de saber que eu sou paulistano, perceber que eu consegui construir a minha história na cidade. Eu adoro contar histórias e contar histórias que possam de alguma maneira servir de referência para as pessoas. Eu não tenho medo de dizer que eu fui prepotente na faculdade, porque eu espero que o estudante que ouça o quanto eu perdi por ser prepotente na faculdade, perceba que ele não pode ser prepotente na faculdade. Quando eu conto que eu dei chance para as oportunidades surgirem, eu quero que isso não seja só uma história contada por mim, porque senão é vaidade demais achar que a minha história é importante pra estar sendo contada. Mas, se essa história, se esse exemplo, fizer com que outras pessoas digam assim: “Cara, eu tenho que criar chances pra que as oportunidades apareçam.” Então, legal. Contar uma história pra uma instituição que preserva as nossas histórias, pra mim é um momento de orgulho. Porque durante muito tempo eu ouvi vocês coletando histórias dos outros e eu ficava pensando: “Quando vai chegar o dia de eu contar a minha história?” Aí, vocês deram esta chance de eu contar a história. Pra mim é um motivo de orgulho, mesmo.
P/1 – Como você conheceu o Museu da Pessoa que acabou culminando naquela parceria do Conte sua história de São Paulo?
R – O Museu da Pessoa, eu conheci muito antes. O Museu da Pessoa eu conheci como repórter da TV Cultura, mostrando um projeto que tinha alguns computadores sobre a mesa num escritório e que coletava os dados das pessoas, especialmente contando história da imigração das pessoas, seu passado. Eu conheci ali o Museu da Pessoa. Desde lá, eu acompanho esse processo. Quando surgiu o Conte sua história de São Paulo, eu percebi, com o tempo, que vocês do Museu da Pessoa tinham um projeto Conte a sua história que era muito parecido com isso. Naquelas histórias lá registradas, tinha histórias de pessoas que falavam da sua vida no mundo, mas também tinham episódios que ocorriam em São Paulo. É uma maneira, também, de dar voz a essas pessoas dentro de um programa de rádio. Foi dali que surgiu aquela parceria há algum tempo, não vou lembrar exatamente a quanto tempo.
P/1 – 2010.
R – 2010?
P/1 – Foi até o ano retrasado.
R – E que as coisas foram rolando contando essas histórias. O Conte sua história de São Paulo, pra mim, é quase um braço do trabalho que vocês fazem aqui. Aqui vocês trazem as pessoas pra gravar as suas histórias, vocês provocam as pessoas a contarem as suas histórias. Lá, no Conte sua história de São Paulo, além de nós focarmos só em episódios de São Paulo, a pessoa escreve, ela que escreve, ela que vai contar o que ela quiser, um capítulo que ela tem, talvez até com mais controle. Porque quando você se expõe diante da câmera, expõe-se diante de alguém que fica fazendo perguntas, provocando o seu pensamento, você vai entregando mais do que você gostaria. Ali não. Ali é um texto mais controlado, a pessoa escreve aquele texto pra você, mas é uma maneira dela compartilhar a sua história e contar a história de São Paulo. Em 2004, 2005, a gente fez o livro com o nome Conte sua história de São Paulo reunindo essas histórias todas, pela Editora Globo. É muito legal você ver que a história de São Paulo pode ser contada por personagens, personagens que às vezes nós nem sabíamos que existiam: pode ser o senhor obeso que ficava na frente de uma loja na Avenida Santo Amaro, ou o maltrapilho que visitava a rua gritando coisas para as crianças e que era um personagem daquele bairro. Enfim, coisas desse tipo que você jamais descobriria se não fossem as pessoas contando, porque isso aí não tá em livro de história, isso tá na memória das pessoas. Por isso é legal ter a ideia de projetos como esse.
P/1 – Você acredita na missão, no slogan do Museu “uma história pode mudar o seu jeito de ver o mundo”? Você acredita que uma história pode mudar o nosso jeito de ver o mundo?
R – Uma história contada por você pode mudar o jeito dos outros verem o mundo. Uma história contada por mim pode mudar o seu jeito de ver o mundo.
P/1 – O contato com alguma outra história...
R – Porque você conta um pedaço dessa história, o outro vai contar outro pedaço da história. Tem vários aspectos em cima desse slogan. Um, é o que eu citei antes, ao contar a minha história, se ela servir de referência pra você refletir sobre a sua, eu posso mudar a sua maneira de ver o mundo. Ao contar a minha história e ela se juntar a outra, você tem outra vertente, outra visão sobre aquela situação e nós vamos permitir que uma terceira pessoa tire a sua própria conclusão. Então, quando você conta uma história, sim, você está transformando outras pessoas e você está ajudando a você e aos outros enxergarem o mundo de uma maneira diferente.
P/1 – Obrigada.
R – Muito obrigado a vocês.
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