Museu da Pessoa

Trilhas rumo à sustentabilidade

autoria: Museu da Pessoa personagem: Luiz Eduardo Rielli

Projeto Conte Sua História
Depoimento de Luiz Eduardo Rielli
Entrevistado por Rosana Miziara e Sônia London
São Paulo, 08/06/2017
Realização: Museu da Pessoa
PCSH_HV587_ Luiz Eduardo Rielli
Transcrito por Liliane Custódio
Revisado por Raquel de Lima
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P/1 – Luiz, vamos começar da maneira mais prosaica possível. Você pode falar seu nome, local e data de nascimento?

R – Meu nome é Luiz Eduardo Rocha Correa Rielli. Sou aqui de São Paulo, natural de São Paulo, nasci no dia 12 de julho de 1983.

P/1 – São Paulo, capital?

R – Isso. São Paulo, capital.

P/1 – Como é o nome dos seus pais?

R – Meu pai se chama Luiz José Rego Rielli. Minha mãe, Sílvia Terezinha Rocha Correa Rielli.

P/1 – Os dois são de São Paulo?

R – Meu pai é de São Paulo, capital, e minha mãe é de Santos, Estado de São Paulo.

P/1 – Vamos remontar um pouquinho às suas origens, falar um pouco da família do seu pai e da sua mãe. Seus avós maternos são de Santos?

R – Meus avós maternos são de Santos. Meu avô materno trabalhava com exportação de café. Minha avó materna era do lar, mas depois passou a trabalhar com venda de confecções, rendas.

P/1 – Sua mãe foi criada em Santos?

R – Minha mãe foi criada em Santos. Cresceu e estudou em Santos. Depois de formada, veio pra São Paulo, trabalhar. É formada em Medicina.

P/1 – Lá em Santos?

R – Exato. Em Santos.

P/1 – Você convivia com esse avô lá de Santos? Você ia pra lá ou eles já estavam aqui?

R – Na verdade, esse meu avô materno, na década de 70, acabou indo pra Atibaia pra buscar uma área pra descanso, lazer, um sítio. Acabou ficando durante o período da construção. Depois, por uma série de questões familiares, ficou morando em Atibaia. Tive muito contato com esse avô materno nos fins de semana que eu passei em Atibaia.

P/1 – Qual era a característica dele? O que a sua mãe conta da educação que ela teve?

R – Eles eram bastante rígidos em termos de educação. Minha mãe é temporã, a filha mais nova. Sempre teve uma educação bastante rígida. Meus avós ofereceram uma educação de qualidade para que ela pudesse se desenvolver por meio da educação. Ela estudou em uma escola bilíngue americana, o que pra época, era algo bastante diferente. Teve oportunidade de estudar em boas escolas, depois estudou numa boa escola de Medicina também. A memória que eu tenho em relação aos meus avós maternos é de valorização da educação. Nos contatos que tive com o meu avô materno, ele sempre perguntava como eu estava indo na escola, na faculdade. Enfim, uma pessoa que valorizava muito esse aspecto.

P/1 – Agora vamos falar um pouco da família do seu pai. Seus avós são de São Paulo, os pais do seu pai?

R – Os meus avós paternos...

P/1 – Paternos.

R – Sim, eles são de São Paulo. Minha avó é portuguesa de nascença, nasceu no norte de Portugal e veio com uns 20 e poucos anos para o Brasil. O meu avô paterno é brasileiro, mas de família italiana, da região de Serra Negra, Lindoia. Depois de formado, ele veio pra São Paulo e os dois se encontraram aqui.

P/1 – Por que a sua avó saiu de Portugal?

R – Ela saiu de Portugal por uma questão, principalmente, econômica. Ela nasceu em uma vila no norte de Portugal, Vila de Monção. Eles eram agricultores e naquele período... Portugal é um país pequeno em termos de oportunidades de trabalho. Já se tinha notícia que, naquele período, no Brasil havia uma série de oportunidades. Por conta das safras ruins na região de Portugal, eles acabaram vindo para o Brasil. Primeiro veio o meu bisavô, depois os filhos, minha avó. Minhas tias-avós vieram em seguida. Foi uma questão de oportunidade de trabalho.

P/1 – Você sabe como seu pai e sua mãe se conheceram?

R – Sim. Meus pais se conheceram na faculdade, em Santos. Minha mãe ingressou em Medicina, na Faculdade Lusíada, em Santos. O meu pai também. Ele vinha de família de médicos, meu avô paterno é médico. Meu pai também ingressou na Faculdade de Medicina lá em Santos. Acabaram se conhecendo durante uma atividade esportiva, pelo que me contaram. Eles se conheceram nesses encontros de estudantes.

P/1 – Ele também estava morando em Santos?

R – Isso. Ele morava em Santos, numa república, com alguns colegas. Na verdade, viraram amigos que hoje em dia fazem parte até da minha vida, porque são tios por consideração. Ele morou também com um colega que depois virou meu tio de fato, de sangue, porque casou com a irmã dele, minha tia. Um colega de república casou com a irmã dele.

P/1 – Eles namoraram durante esse período da faculdade?

R – Isso. Eles namoraram durante esse período de faculdade de Medicina, que é um período longo. Logo que acaba a Medicina, tem o período de residência. Nesse período, ambos vieram pra São Paulo, onde tinha uma oferta maior de trabalho. A família do meu pai já era de São Paulo e eles acabaram comprando uma casinha ali na região de Campo Belo. Já casados, fizeram o período de residência aqui em São Paulo e ingressaram na carreira médica aqui na região de São Paulo mesmo.

P/1 – Você nasceu nessa casa do Campo Belo?

R – Na verdade, não. Eu nasci em seguida. Na verdade, o meu irmão nasceu nessa casa. Eu tenho um irmão.

P/1 – Qual é o nome dele?

R – Meu irmão se chama Luiz Henrique. Nós somos uma família de muitos Luizes. É uma história interessante, eu posso contar depois. Meu irmão nasceu nessa casa no Campo Belo, que foi a primeira casa dos meus pais, recém-casados. Logo em seguida eles compraram uma casa no Brooklin Velho, a casa onde eu nasci e morei até meus 28, 29 anos. Uma casa onde eu passei bastante tempo.

P/1 – Qual é essa história dos muitos Luizes? Por que Luiz?

R – Na verdade, a minha família paterna é uma família que tem um pouco de dificuldade criativa pra buscar nomes (risos). Tem uma tradição de muitas gerações: sempre tem, intercaladas, uma geração chamada Luiz e uma geração chamada Domingos. A família carrega o nome Rielli no Brasil. É uma família só. Eu sou Luiz Eduardo, meu irmão Luiz Henrique, meu pai Luiz José, tenho um tio Luiz Antônio. Os primos do meu pai, Luiz Francisco e Luiz Augusto, meu avô Domingos, meu bisavô Luigi, meu tataravô Domenico, e recentemente, em uma pesquisa da árvore genealógica, descobri também que meu tetravô se chamava Luigi também. É algo engraçado pela falta de criatividade.

P/2 – Não tem mulheres nessa família? Segue a mesma lógica?

R – Tem e com pouca criatividade também: são todas Marias. Então é Maria de Fátima, minha tia é Maria de Fátima, minha outra tia, Maria Hercília, minhas primas, Maria Gabriela, Maria Vitória. Terminando a árvore genealógica, tem uma dezena de Marias. Sempre esses três nomes. Minha esposa já falou que nosso filho não vai se chamar Domingos, já definiu isso. Mas é bacana, chega até 1800 e pouco essa intercalação de Luigis e Domenicos.

P/1 – Essa casa do Brooklin Velho existe ainda hoje?

R – Essa casa existe e ainda é da minha família. No momento ela tá alugada, ninguém vive ali. Mudou um pouco a dinâmica: os filhos saíram de casa, meu pai é falecido. Pra minha mãe ficar morando sozinha numa casa um pouco maior não fazia tanto sentido. Hoje ela mora num apartamento e a casa tá alugada. É a casa onde passei a minha infância.

P/1 – Como é essa casa? Como você via quando era criança?

R – Na verdade eu tenho poucas memórias da casa em si, memórias afetivas, porque eu passava muito tempo na escola – eu estudei em tempo integral – e muito tempo no meu sítio. A gente viajava na sexta-feira e voltava na segunda-feira. A casa pra mim acabou ficando... Era uma casa confortável, gostosa, mas acabou sendo quase um local de passagem. Eu tenho mais memórias afetivas do sítio, que ainda frequento muito, do que da casa. É um bairro muito gostoso o Brooklin Velho, muito arborizado, de famílias de imigrantes.

P/1 – Como era na época?

R – Também era bastante arborizado, com muitos imigrantes, mais do que hoje. Muitos imigrantes alemães e italianos. Do lado direito da minha casa tinha uma família alemã. Eu lembro que quando era pequeno, eles instalaram uma antena de rádio amador pra conversar com a família na Alemanha. Toda noite, quando meu vizinho ligava e começava a fazer contato por rádio, interferia na minha casa inteira: na televisão, na tomada, em tudo. Toda noite eu escutava palavras em alemão por causa do meu vizinho alemão e o rádio amador dele. Do lado direito era alemão, do lado esquerdo também, na frente, alemães. Para os latinos é um pouco esquisito, porque eles têm um jeito mais direto e seco de ser, então, tem que descobrir um pouco de humor. Esses três não estão mais lá porque já ficaram velhinhos. A maior parte deles já faleceu. É um bairro que tem essa cultura de imigrantes: italianos, alemães e suíços. Pessoas que caminham muito pela rua, a gente acabava conhecendo os vizinhos. Um bairro onde, apesar de ter casas maiores, mais afastadas, as pessoas se conheciam um pouco.

P/1 – Mas você brincava? Você tinha amigos na rua, eram da escola? Como era?

R – Poucos, na verdade. Eu brincava muito pouco na rua em São Paulo. Ficava muito tempo na escola, chegava à escola às sete horas da manhã, saía às sete e meia da noite. Na casa mesmo, ficava muito pouco. Brincava muito na rua lá no sítio. Em Atibaia, zona rural, tinha muita liberdade pra fazer todas as estripulias que criança faz, as descobertas. Acabava brincando mais em Atibaia.

P/1 – Quais eram essas brincadeiras e descobertas?

R – Ah, a gente tinha uma turma: eu, meu irmão, meus primos e os vizinhos. A gente acabava saindo pra abrir trilha. Não só fazer trilha, mas abrir trilha. Tinha algumas cachoeiras perto. A gente abria trilha pra visitar cachoeira. Tinha alguns lagos que não tinham acesso, a gente abria trilha pra visitar os lagos. Em Atibaia tem uma série de montanhas, como a Pedra Grande. A gente também abria trilha, caminhos novos pra ir pra Pedra Grande. Muita coisa de bicicleta. Eu, meu irmão e meus primos gostamos muito de fazer esporte, então fazíamos muita coisa de bicicleta. Com 12 anos de idade, saía de manhã e voltava à noite. Andava 70, 80 quilômetros de bicicleta, livremente, o que, pra quem é de São Paulo, é algo diferente. Foi bem legal, tenho umas memórias legais.

P/1 – Quando você disse que seus primos iam pra lá... Eles tinham casa ou vocês ficavam todos na mesma casa?

R – Aí também tem algo interessante. Por acaso, tanto a família paterna, quanto a materna, tinham sítios na mesma região. Em linha reta, 500 metros de distância. O meu avô paterno comprou o sítio em Atibaia porque um tio-avô já tinha sítio ali. Meu avô materno comprou o sítio em Atibaia a uma distância, em linha reta, de 500 metros um do outro.

P/1 – Coincidência?

R – Muito antes dos meus pais se casarem, muito antes de meus pais se conhecerem. Eles se conheceram em Santos, que fica a cento e tantos quilômetros de Atibaia. Minha mãe conta que um dia, meu pai, na época de namoro, levou minha mãe pra passear no sítio da família. Chegando mais perto ela falou: “Mas o que é isso? O que você tá fazendo aqui? Quem te contou que....” Quando eles foram ver, as duas famílias tinham casa e sítio muito perto um do outro. A minha família tem sítio até hoje e tem uma série de primos, tios, tios-avôs que também têm sítios ali, naquela região de Atibaia. É muito legal por que no fim de semana acabamos interagindo com esse pessoal. Na época da infância e adolescência, eu tinha muitos primos e todos ficavam juntos ali.

P/1 – Como era a relação com os seus pais? Quem exercia a autoridade na sua casa? Seu pai ou sua mãe? Como era a característica de cada um?

R – Meu pai exercia mais a autoridade. Meu pai era mais sério. Apesar de muito carinhoso e muito presente, na hora que tinha que dar o aperto, meu pai era uma pessoa mais séria. Minha mãe acabava aliviando um pouco mais. Acho que meu pai era uma pessoa que exercia mais a autoridade.

P/1 – E a escola? Você disse que era período integral. Que escola era? Era perto da sua casa?

R – Eu estudei no Colégio Santo Américo, que fica no Morumbi, não tão perto do Brooklin. É uma escola de período integral até hoje. Uma escola católica que tem uma formação humanista, tem tanto a parte religiosa, como a parte artística e esportiva. Acabava ficando muito tempo na escola porque fazia muitas atividades extracurriculares, principalmente, esporte. Sempre joguei futebol, depois basquete. Basquete eu joguei até mais seriamente, fui até federado. Joguei em alguns clubes. Acabava o período das aulas normais e continuava nas atividades extracurriculares. Isso foi até o colegial, no que é o ensino fundamental hoje. No ensino médio, eu fui para o Colégio Bandeirantes, que fica no Paraíso. É bem diferente a dinâmica do Bandeirantes. O Bandeirantes é um colégio bem mais objetivo. Você entra pra aprender, ter as aulas e passar no vestibular. É muito mais focado e mais rígido. O Bandeirantes também é um colégio que, em termos de diversidade de ambiente, é muito diferente. O Santo Américo é um colégio de classe média alta e o Bandeirantes tem de tudo: filhos de imigrantes e pessoas que vieram da região norte do país. No Bandeirantes eu acabei tendo contato com uma diversidade muito maior de pessoas. Tem uma colônia de imigrantes, por exemplo, coreana e japonesa, muito grande. Tem também uma cultura asiática que até então eu não tinha contato, que é muito forte na disciplina, ensino, respeito. Foram momentos diferentes, mas bem interessantes.

P/1 – Vamos voltar pra esse período do Santo Américo. O que você mais gostava nessa primeira experiência na escola?

R – O Santo Américo é um colégio bem diferente aqui em São Paulo porque tem uma área física muito grande. Tem uma estrutura pra esportes, é quase um colégio-clube. Passava muito tempo livre com os colegas não só pela formalidade do ensino, mas também pelas atividades extras: natação, futebol e basquete. Tinha uma área verde muito grande, sempre gostei muito de natureza. Tenho uma memória muito bacana também pela interação com a natureza. Acho que o que mais me marcou no Santo Américo foi essa questão das atividades extras e esse contato com a natureza, não foi tanto o ensino (risos).

P/1 – Eu ia falar do ensino (risos).

R – Você pode puxar mais para o ensino (risos).

P/1 – Alguma professora que tenha marcado, algum episódio?

R – Ah, tem alguns professores que me marcaram. Por exemplo, tinha um professor, um coordenador pedagógico, professor Moacir, que marcou bastante, não só a mim, mas também a minha família. Era um professor que veio da área esportiva mas virou coordenador pedagógico no colégio. Quando a gente teve dificuldades familiares – meu pai começou a ficar doente – foi uma pessoa muito humana e próxima, que ajudou muito a família a ter calma pra buscar os caminhos pra continuar. Tanto eu quanto o meu irmão tínhamos um desempenho escolar muito bom em termos de notas e também tínhamos um desempenho extracurricular bom. O professor Moacir é uma pessoa bastante especial, não só na minha vida, mas na vida familiar. O professor Nelson, da área de basquete – depois acabei jogando basquete mais tempo – foi a pessoa que mais deu incentivo no começo. Tinha um professor muito interessante no Santo Américo, não ligado à área esportiva, um professor de História, húngaro, que era o dom Bolinha. O dom Bolinha fugiu da guerra. No Santo Américo tinha uns dois ou três professores, todos já falecidos, fugidos da guerra. Alguns deles passaram inclusive por campos de concentração. O dom Bolinha tinha um estilo de ensino mais antigo, acabava até constrangendo, de certo modo, os alunos. Ele fazia, por exemplo, o que ele chamava de leilão. Leilão era o seguinte: ele lançava uma pergunta de História do Brasil, que era a matéria que ele dava. Se alguém acertasse, ele aumentava a nota da prova da pessoa. O aluno tinha a nota da prova e depois da prova ele fazia uma pergunta, ia tornando a pergunta mais difícil e ia aumentando os pontos a mais. Ele: “Dou-lhe uma, vale um ponto na prova. Dou-lhe uma, dou-lhe duas, agora tá valendo meio ponto na nota, ninguém tá sabendo.” E assim por diante. Ele ia leiloando os pontinhos. Eu lembro que teve uma vez que ele fez uma pergunta sobre o Monumento às Bandeiras, do Parque Ibirapuera. Eu tinha ido mal na prova de História e por acaso eu tinha ido ao Parque Ibirapuera naquela semana. Eu sabia o nome do artista que tinha feito o Monumento às Bandeiras. É o Brecheret, né? Não lembro mais (risos). E ele perguntou: “Pergunta: quem foi empurra, empurra na Parque Ibirapuera? Quem artista? Dou-lhe uma, valendo dois pontos na prova.” Nesse dia, ele fez o contrário. Em vez de ir diminuindo, ele foi aumentando os pontos, até o momento que ele aumentou pra sete pontos. Nessa hora eu deixei de ficar quieto e falei: “Eu. Foi o Brecheret.” Eu passei de ano de História com uma resposta só (risos).

P/2 – (risos).

R – Ele ficou constrangido porque achou que ninguém ia saber. Uma coisa meio bobinha, mas que marcou até hoje. Ele era muito engraçado. Quando os alunos estavam conversando demais, ele pegava a ponta da bengala, que era de borracha, e tacava no aluno. Esse negócio machucava e a pessoa reclamava: “Não, professor, me machucou.” Ele: “Se você tivesse passado por que eu passei, não falaria nada.” Todo mundo sabia que ele tinha tido uma história de vida horrível, de sofrimento, todo mundo ficava com uma cara de assustado e ficava quieto. Era uma figura, um cara bastante conhecido no colégio.

P/1 – E esse coordenador pedagógico que você disse que teve um papel importante não só na sua vida, na sua formação, mas na sua família? O que marcou? O que aconteceu?

R – Meu pai ficou doente muito cedo. Meu pai ficou doente com 30 e poucos anos, teve câncer. Médico, profissional liberal, se trabalha, ganha, se tá doente e não trabalha, não ganha. A renda da minha família, que era uma família de classe média alta, diminuiu muito. O Santo Américo é um colégio particular caro de São Paulo. Naquele momento, a gente claramente não tinha condição de pagar o colégio. Mesmo com a minha mãe trabalhando, sem ter nenhuma renda da parte do meu pai, a gente não tinha condição de pagar o colégio particular. Teria que mudar pra um colégio que tivesse um custo menor ou ir para o sistema público. Naquele momento, a escola foi bastante compreensiva. O professor Moacir levou o caso pra direção e defendeu, mostrou que o colégio poderia dar uma oportunidade. A gente é muito grato por ter tido uma pessoa que nos deu essa oportunidade.

P/1 – Quantos anos você tinha quando seu pai ficou doente?

R – Eu tinha 12 anos.

P/1 – Como você vivia a doença dele? Era explicitada na sua casa? Como era?

R – Na verdade, não. Sabe, médico lida muito mal com doença quando é consigo próprio. Apesar de ser uma família inteira de médicos, quando a doença é consigo próprio, eles lidam mal com isso. Também no nosso caso, acho que foi uma forma de proteger um pouco os filhos, a gente era ainda relativamente novo. No começo da doença, a gente não tinha muita noção do que era aquilo, do que estava acontecendo. Minha mãe acabou resguardando a gente, protegendo pra não ter tanto contato com o dia a dia da doença. A quimioterapia é um tratamento bastante agressivo. Eu tenho mais lembranças de ausências, períodos de ausência, do que de contatos diretos nesse primeiro momento da doença do meu pai. Ele ficou bem por uns dez anos. A doença retomou quando eu tinha uns 25 anos. Mas nesse primeiro momento não, não tenho uma lembrança da doença em si, eu tenho uma lembrança de uns períodos de ausência do meu pai.

P/1 – Você passava a maior parte do seu dia na escola?

R – Isso.

P/1 – Seus amigos eram da escola? Você tem lembrança? Tinha turma? Tem algum amigo daquele período que você conserva até hoje?

R – Eu acabei tendo uma turma bastante forte de amigos que jogavam basquete comigo. Com alguns deles até hoje tenho contato. Um dos meus grandes amigos dessa época, morava no mesmo prédio que minha avó e meu avô maternos moravam. Um dia eu estava na casa dos meus avós e encontrei com esse amigo da mesma classe. Descobri que ele morava no mesmo prédio. Nas férias acabei tendo mais interação com ele. É interessante esse amigo, porque naquela época eu tinha um tamanho muito maior, com 12 anos eu tinha o tamanho que tenho hoje, basicamente. Eu tenho um metro e 87 desde os 12, 13 anos. Cresci muito rápido, era bem maior que os meus amigos durante uma época. Esse amigo, especificamente, era um que eu metia a mão. Hoje chamam de bullying, naquela época era outra coisa. Fazia bullying, brigava. A partir do momento que eu descobri que ele morava na casa do meu avô, comecei a ficar mais próximo e ficamos muito amigos. Essa é uma pessoa que eu tenho amizade até hoje. Com a turma do basquete – a gente acabou saindo do Santo Américo e foi jogar em clubes juntos – também teve uma vida fora do colégio e carrego até hoje alguns desses amigos.

P/1 – Na sua família vocês costumavam ter festas como Natal, Páscoa, aniversário? O que vocês comemoravam?

R – As festas religiosas. Minha família é uma família católica. Portugal é um país muito católico e minha avó materna portuguesa é muito católica, tenho uma lembrança muito forte de ir às missas com ela e com as amigas dela. A gente comemorava sempre o Natal em família, com a família da minha avó... Desculpa, minha avó paterna, a família do meu pai. Páscoa e festa junina a gente faz bastante até hoje. Sempre teve festa junina, que também é uma festa religiosa. Ah, e aniversários, Ano Novo, essas festas mais tradicionais.

P/1 – Tem alguma dessas festas que tenha marcado?

R – Olha, teve uma festa ligada a uma questão religiosa, minha primeira comunhão, que me marcou. Eu estava lembrando outro dia: teve a cerimônia religiosa, lá no Colégio Santo Américo, e em seguida a gente foi pra minha casa. A minha avó paterna e meus pais fizeram uma festa grande e chamaram toda a família pra comemorar a primeira comunhão. Eu tenho um tio que tem sítio em Atibaia e cria ovelha. Todo mundo dá de presente de primeira comunhão, um lenço, uma joia ou um livro e ele aparece com uma ovelha lá na minha casa do Brooklin, em São Paulo. Lindinha, uma ovelha quando é desse tamanhinho, é bonitinha. Ficou lá em casa um tempo. A ovelha foi crescendo, crescendo, crescendo, chegou um dia que ela era um bicho enorme. A gente levou para o sítio e falou: “Não. Não dá mais pra ficar em São Paulo.” Era quase um bicho de estimação, a gente levava pra passear (risos).

P/2 – Com coleira (risos)?

R – Com coleira (risos). Era a Rosinha. A Rosinha, tadinha, começou a ficar meio agressiva no sítio, acho que por solidão. Não tinha outra, coitada. A Rosinha, que era nosso bichinho de estimação, começou a atacar toda vez que a gente ia para o sítio. A ovelha dá cabeçada quando se sente acuada. Começou a atacar os cachorros também. Até que um dia atacou o meu irmão. Eu senti uma ausência eterna da Rosinha, acho que ela virou churrasco. Depois disso, nunca mais vi a Rosinha... Mas que ideia do meu tio, levar uma ovelha de presente. Essa foi engraçada, a gente conta. Eu lembro muito da minha avó no dia de Natal. Sempre tem o momento da ceia, depois tem o momento de juntar a família pra rezar um momento. Ela fazia questão, acho que era importante pra família. Acho que foi uma pena, porque a avó paterna morreu e hoje falta isso, falta um pouco esse papel. Acho que é isso, de memórias.

P/1 – E comida? Vem o cheiro de uma comida, alguém que cozinhava mais?

R – A minha avó paterna portuguesa, de novo, cozinhava muito bem. Ela fazia, por exemplo, rabanada de Natal. Botava as crianças pra fazer rabanada. Eu não gostava de bacalhau enquanto era criança. Agora, como adulto, você começa a mudar, comecei a gostar de bacalhau. Muito bacalhau, muita rabanada. O que mais? Tinha uma galinhada que ela fazia, não sei se era portuguesa ou se era espanhola. Onde ela nasceu era fronteira com a Espanha, com a Galícia. Tinha umas comidas que eram mais espanholas do que portuguesas. Tinha uma galinhada que ela fazia que era muito boa. A minha outra avó, do lado da minha mãe, fazia pães, muitos deles em forno de lenha. A gente ajudava a montar o forno. Também fazia em forno de gás. Ela fazia pizza, pães, de todos os tipos, pão de mandioquinha, pão de cará, tudo quanto é tipo de pão. Também tenho uma lembrança imensa do pão. Pra mim, pão é parte do meu dia a dia, tem que ter pão.

P/1 – Sagrado.

R – Sagrado, o pão.

P/1 – Você estudou todo esse período no Santo Américo. Depois você foi para o Bandeirantes porque seus pais queriam outra escola ou porque lá não tinha opção? Como foi essa decisão de ir para o Bandeirantes?

R – Bom, na verdade, essa mudança para o Bandeirantes... Pela visão dos meus pais, seria interessante a gente estudar numa universidade pública. Tem a ver com uma questão financeira também. Acho que a minha mãe, como eu disse no começo, foi criada com essa visão de valorizar a educação que os meus avós passaram. Ela quis fazer um esforço pra colocar a gente num colégio considerado de excelência em termos de resultado pra o vestibular, pra que a gente tivesse oportunidade de escolher. Foi uma pessoa bem pragmática mesmo, pensando mais em vestibular e pensando na possibilidade de entrarmos em uma escola pública.

P/1 – Tinha alguma expectativa de que você seguisse uma carreira? Você queria ser alguma coisa? Assim: quando eu crescer, quero ser...

R – Olha, a única que já me passou pela cabeça foi que eu queria ser arqueólogo. Eu nem sabia o que tinha que fazer pra virar arqueólogo. Eu sabia que queria ser arqueólogo. Lá em Atibaia tem muitas pedras grandes, tem a tal da Pedra Grande, que é um lugar. Mesmo no sítio tem umas pedras enormes. Quando a gente era criança, a gente ficava ali escavando com o martelinho, com pincelzinho, e ficava fantasiando pintura na pedra. Enfim, quando criança teve uma época que eu queria ser arqueólogo. Nunca teve pressão dos meus pais e da minha família pra seguir uma carreira, o que até seria natural, porque a minha família toda é de médicos. Meus avós, meus pais tinham clínica, têm clínica até hoje. Poderia ser um caminho mais fácil, em certa medida, eu já teria alguma coisa montada. Mas sempre foram muito tranquilos quanto à minha opção. Acabei indo por outro caminho.

P/1 – Você fez vestibular pra entrar no Bandeirantes? Teve prova?

R – Teve. Naquela época tinha um vestibular pra ingressar no Bandeirantes. Era um “vestibulinho”. É isso, não tem muito o que falar.

P/1 – Você passou.

R – Isso. O Bandeirantes tem um “vestibulinho”, ingressam todos juntos. O Bandeirantes, naquela época – hoje em dia já mudou – tinha um regime um pouco diferente. A partir do segundo colegial, você tinha que escolher sua área de concentração. Eu escolhi a área de exatas, não me pergunte por quê. Talvez porque meu irmão tenha escolhido exatas, eu acabei indo pra exatas. Naquela época, a formação em exatas era bastante forte no colégio. Acabei ficando nesse grupo e acabei prestando pra Engenharia no terceiro colegial, quando acabei o colégio. Não passei. Digo hoje que foi uma bênção na minha vida não ter passado, que Deus escreve certo por linhas tortas. Em seguida prestei pra Administração e depois pra Relações Internacionais. Mas a turma de colégio acabou indo toda pra essa área de exatas: Engenharia, Física e Matemática. Essa é a turma do colégio Bandeirantes.

P/1 – Vou voltar um pouquinho pra sua entrada no Bandeirantes. Como foi essa diferença de escola: do Santo Américo, uma escola religiosa, para o Bandeirantes?

R – Foi bastante diferente. Tudo era diferente. O Santo Américo é um colégio que oferece as coisas e cuida mais proximamente dos alunos. Você conhece as pessoas pelo nome no Santo Américo. Os professores, os diretores, conhecem os alunos pelo nome, conhecem os nomes dos pais. No Bandeirantes, não. O Bandeirantes é um colégio muito maior. Até pela região da cidade onde fica, mais próximo da Avenida Paulista. Tem o movimento da cidade. Acho que foi a primeira vez na minha vida que eu comecei a vivenciar a cidade. Porque enquanto estava no Santo Américo, na hora do recreio, você ficava dentro do colégio. No Bandeirantes, você ficava fora do colégio, vivenciando a cidade. Enquanto no Santo Américo eu era levado pela minha mãe, ou por alguém da família, de carro ou no ônibus escolar, no Bandeirantes eu tinha que ir de transporte público. Foi uma virada na minha vida em termos de amadurecimento, em relação à independência, ter que me virar e começar a ver a vida real. Até então, estava vivendo um pouco mais condicionado, naquele ambiente mais fechado. Foi um momento bastante importante na minha vida, ter essa liberdade, vivenciar a cidade, os amigos muito diferentes – tinha gente pobre, gente rica, gente de família de outras origens, de outras culturas – era muito mais heterogêneo. Pra mim, não teve nenhum momento de dificuldade.

P/1 – Que trajeto você...

R – Foi mais de descoberta, novas coisas, que eu não sabia nem que existiam.

P/1 – Que trajeto você fazia? Você ia do Brooklin Velho pra lá. Como você ia?

R – Eu ia de ônibus de linha. Pegava na Avenida Washington Luiz, no aeroporto, e descia na Rua Estela, no Paraíso, no Bandeirantes. E vice-versa. A volta era na hora do almoço.

P/1 – E na hora do intervalo?

R – Na hora do intervalo, a gente ficava ali na região da Vila Mariana, Paraíso. Tinha feira de quarta-feira, a gente sempre ia comer pastel na feira. Na sexta-feira, a gente costumava andar na Avenida Paulista com os amigos. Tinha todo aquele comércio de rua. Naquela época tinha o Stand Center, comércio dos coreanos e chineses. Nunca tinha passado pela minha cabeça que existisse aquilo. Você começa a descobrir um monte de coisa. Coisa ilegal, que até então você não conhecia. Então, de quarta-feira ia à feira, de sexta-feira ia à Avenida Paulista, no Stand Center. A gente acabava circulando na região. A gente ia muito à Liberdade. Todo final de trimestre no Bandeirantes – as provas eram trimestrais – pra comemorar com o grupo de amigos, a gente ia à Liberdade. Ia caminhando do Paraíso até a Liberdade e ali a gente entrava nas lojas. Ia até um restaurante chinês, onde a gente sempre comia, e voltava. Virou quase uma tradição da turma, ir caminhando até a Liberdade, comprar coisinhas naquelas lojas japonesas que tem ali, comer no restaurante chinês e voltar. Era quase um rito pós-prova. Recentemente, a gente juntou os amigos, já velhos, e fomos juntos caminhando até a Liberdade. Foi engraçado, foi bom. Então, é isso: acho que no Bandeirantes teve essa vivência da cidade, os perigos da cidade, saber me virar mais.

P/1 – Que lugares você frequentava no fim de semana? Sua turma de amigos era essa do Bandeirantes? O que você costumava fazer na juventude, fora a escola?

R – Isso foi bacana também. Quando eu fui para o Bandeirantes, os meus amigos eram da turma mais ligada ao basquete. Eu sempre jogava basquete, ficava mais tempo. Diferentemente do Santo Américo, no Bandeirantes os amigos eram mais próximos, tinham casas mais próximas, no Campo Belo, no Brooklin, o que ajudava muito o fim de semana. A gente combinava de jogar basquete no Parque Ibirapuera ou em algum outro lugar. A minha turma do Bandeirantes acabou ficando mais próxima, até porque morava mais próxima. Trocava carona de fim de semana e acabei vivenciando mais a família deles, por ter essa proximidade geográfica.

Acho que a turma, meus amigos até hoje, são esses que eram geograficamente próximos.

P/1 – E à noite? Frequentava festa, bar?

R – Naquela época... “Naquela época” parece que... (risos).

P/1 – É que ele é novo.

R – “Naquela época” pareceu meio... “Naquela época...”

P/1 – Tá parecendo sua mãe (risos).

R – No segundo ano a gente saía bastante. No terceiro ano a gente saía bem pouco, porque o foco era estudar. Depois de formado, sim. Quando todo mundo entrou na faculdade, a gente saía bastante.

P/1 – Você escutava música?

R – Eu nunca fui muito de música, não. Não sei por quê. Primeiro, por uma questão motora, psicomotora, eu nunca soube tocar nada, é uma falha pessoal. Meu irmão toca, minha mãe toca. Eu nunca soube dedilhar minimamente um violão, no máximo acho que eu consigo tocar um triângulo. Eu nunca toquei nada, mas eu gostava, gosto ainda, de escutar música.

P/2 – Dançar?

R – Entra na mesma categoria psicomotora, eu tenho dificuldade pra me locomover. Ainda mais sendo uma pessoa meio grande, tenho certo problema quanto a isso. Então, nem dançar, nem tocar: acabei mais escutando música.

P/1 – Você disse que no terceiro colegial, você começou a se preparar para o vestibular. Você fez cursinho ou foi só o terceiro colegial? Tinha alguma preparação especial no próprio Bandeirantes?

R – O próprio Bandeirantes tem uma preparação especial. É um colégio forte. Eu não fiz cursinho, mas também não passei no primeiro momento. Acabei fazendo um período curto de cursinho, muito curto mesmo. Na verdade, depois estudei muito em casa. No meio do semestre seguinte eu passei na faculdade.

P/1 – No primeiro ano, você prestou pra Administração? Foi nessa que você não entrou?

R – Pra Engenharia.

P/1 – Ah, foi pra Engenharia. Poli (Escola Politécnica)? Era só USP (Universidade de São Paulo)?

R – Isso. Prestei pra Engenharia na Poli. Foi uma completa indefinição e falta de clareza do que fazer na vida. Como eu estava nesse grupo que era o grupo de exatas e meu irmão e meus primos estavam na Engenharia, acho que segui um pouco o fluxo. Seguramente não seria o melhor caminho que eu teria seguido. Eu fiz um período muito curto de cursinho. Na verdade, umas aulas de reforço. Estudei muito sozinho pra poder prestar o vestibular pra Faculdade Getúlio Vargas, no meio do ano. Eu tive pouca interação com o cursinho.

P/1 – No meio do ano você entrou. Aí, você queria Administração. Você já estava focado?

R – Isso.

P/1 – Como você decidiu? Você falou: “Vou pra Administração, não pra Engenharia?” Como foi essa decisão?

R – Eu acho que com 17, 18 anos, essa decisão não é assim. A gente acaba sabendo mais ou menos o que a gente não gosta. Acho mais do que ter certeza, a gente acaba, por exclusão, tirando da frente aquilo que não gosta. Administração acabou sendo um curso meio coringa. Você tem possibilidade de fazer muitas outras coisas depois que se forma. Eu tinha consciência que não tinha muita certeza. Por outro lado, achava que também não seria ruim, porque iria abrir mais portas do que fechar. Mesmo sem certeza, acabei ingressando na Administração.

P/2 – Durante o curso você teve alguma dúvida? Você se identificou? Como foi?

R – Muitas dúvidas.

P/2 – Muitas dúvidas?

R – Tanto que eu fui fazer outra faculdade depois. Acho que depois de seis meses algumas coisas já me incomodaram um pouco na Administração. Na própria Getúlio Vargas algumas coisas me incomodaram.

P/1 – O quê?

R – Eu me senti voltando pro Santo Américo, porque diferente de uma universidade, que é mais plural, que tem visões diferentes, ali na Getúlio Vargas tem... Naquela época, hoje mudou, naquela época tinha um perfil bastante homogêneo de alunos. Até o modelo físico do prédio, eu me senti voltando pra trás. O curso também não me fazia brilhar os olhos, talvez porque no primeiro ano de faculdade nenhuma matéria faça brilhar os olhos. São matérias mais básicas, introdutórias. Mas não sei, eu senti que não era aquilo. Eu me esforcei tanto pra chegar aqui e é isso que eu... Achei que tinha que buscar outro caminho. Naquela época surgiu o curso de Relações Internacionais na USP, um curso novo. Em 2001 foi um ano que Relações Internacionais teve muita ênfase pela questão do terrorismo, das Torres Gêmeas. Eu já gostava de alguns assuntos, eu gostava muito de História, eu queria ser arqueólogo. Depois eu descobri que Arqueologia e História tinham a ver, eu nem sabia. Mas eu já gostava de História, já gostava de política, mesmo com 16 anos. Eu gostava de Economia. Tinha um programa na TV Cultura que era do Paulo Henrique Amorim. Toda noite eu ficava assistindo ao programa dele. O pessoal lá em casa me achava maluco, ficar assistindo ao Paulo Henrique Amorim depois do colégio. Acho que já tinha a ver, eu gostava dos assuntos. O curso de Relações Internacionais juntava um pouco tudo isso, História, Política, Economia. Acabei prestando vestibular pra USP.

P/1 – Nesse período da Getúlio Vargas, você chegou a fazer estágio em Administração? Como foi isso?

R – Fiz. Bom, eu me formei em Administração e fiz estágio. Eu fiz estágio numa empresa de comércio exterior, uma trading, que fazia o processo pra exportação de café. Foi muito interessante porque meu avô era dono de uma trading de café. Ele ficou bem feliz quando falei pra ele que estava trabalhando com isso. Também era uma forma de juntar com Relações Internacionais, que eu estava fazendo ao mesmo tempo, a outra faculdade. Era um processo ligado à Administração, mas que também tinha muito a ver com Relações Internacionais porque eu recebia a missão de clientes que vinham comprar café de fora do Brasil e tinha que levar na produção. Foi uma forma de juntar os dois. Em seguida, fiz outro estágio, numa consultoria de política e economia internacional. Fiquei um ano fazendo estágio com análise de cenários políticos, análise de cenários econômicos, ajudando empresas que queriam atuar fora do Brasil, a entender o outro país. Acabei fazendo esses dois estágios que juntavam um pouco do viés da Getúlio Vargas, mais Administração, Economia, com o viés também internacional. Foi uma forma de juntar, unir o útil ao agradável.

P/2 – Na faculdade de Relações Internacionais, surgiram aquelas questões que te incomodavam na FGV, na Administração? Você se identificou mais ou não?

R – Muito.

P/2 – Você foi conseguindo...

R – Primeiro por causa da universidade em si, não só na Universidade de São Paulo, estudar em uma universidade é diferente, é muito mais diversificado, plural. Na Universidade de São Paulo, o curso de Relações Internacionais acontecia em três unidades: na Faculdade de Filosofia, na Faculdade de Economia e na Faculdade de Direito. Eram três mundos completamente diferentes. A Faculdade de Direito no Largo São Francisco, no centro de São Paulo, com todos aqueles rapazinhos engravatados, todos arrumadinhos, com uma história e um peso muito grande. Quantos presidentes estudaram ali! Um lugar assim, pra quem é jovenzinho, aquele negócio é imponente. Mas é um perfil bem... A São Francisco fica no centro de São Paulo. Na Faculdade de Filosofia tinha de tudo. Tinha um pessoal mais largado, a Filosofia é uma fauna completa. Pode editar depois essas coisas (risos)?

P/2 – (risos).

P/1 – (risos).

R – Vocês fizeram Faculdade de Filosofia?

P/1 – Eu fiz História.

R – Você fez História, mas não na USP?

P/1 – Eu fiz na PUC (Pontifícia Universidade Católica).

R – Também deve ter uma fauna boa. Você fez História também?

P/2 – Eu fiz Letras.

R – Letras? Na USP?

P/2 – Não. Na PUC.

R – Na PUC?

P/1 – A PUC é um caso à parte.

R – Também não muda, é a mesma coisa. Voltando à faculdade de Filosofia e à de Economia. Aquilo que me incomodava na Getúlio Vargas, que estava voltando pra trás, porque tem um perfil mais homogêneo, uma cara de escola... A USP é um mundo completo. Tem de tudo ali. O próprio curso é um curso que te olha de maneira muito ampla. O curso de Relações Internacionais abre a cabeça de uma maneira muito ampla. De coração, é um curso com o qual me identifiquei muito. Eu me identifiquei muito com as áreas temáticas.

P/1 – Que áreas temáticas você gostava mais?

R – Eu gosto muito de História. Até hoje, no meu tempo livre, quando eu vou ler um livro...Parece uma falha de caráter, eu tenho dificuldade de ler romances, por exemplo, mas livros ligados a História, eu leio com uma facilidade tremenda. Mesmo livros não didáticos, biografias. Eu gosto bastante de ler livros de História, então é uma área com que me identifico bastante. No trabalho, Economia é a área de especialização que eu atuo com mais ênfase hoje. Tanto História, como Economia, eram as duas áreas que eu mais gostava na faculdade.

P/1 – E os amigos da faculdade?

R – Das faculdades, né?

P/1 – Na FGV (Faculdade Getúlio Vargas) e lá.

R – Perfis completamente diferentes. Na Getúlio Vargas, eu era de esquerda, me classificavam como de esquerda. Na USP, eu era de direita. Eu estava numa crise de identidade durante a faculdade: “Bom, o que eu sou?” As pessoas me rotulavam. As turmas das faculdades tinham perfis muito diferentes. Eu ficava no meio termo. Na USP tinha gente que veio do Brasil todo pra estudar. Eu estudava à noite, tinha gente que trabalhava durante o dia pra ter condição de estudar à noite. Na USP, a história de amigos que realmente tinham uma dedicação e um esforço a mais. Não tinha um perfil único na USP. Por ser a primeira turma de Relações Internacionais, não tinha ainda um histórico. O perfil da minha turma era de pessoas mais velhas, que estavam no seu segundo curso, mas também tinha pessoas mais novas. Foi bem interessante pelo perfil heterogêneo. E na FGV, não. Na FGV tinha um perfil mais homogêneo. Hoje eu acabo tendo mais contato com a turma da USP. Tem um fator importante: eu me casei com uma menina da USP, que compartilha a mesma turma, o que facilita tremendamente. Não é um esforço estar com a turma da USP, porque os amigos da minha esposa e os meus amigos são os mesmos. Isso ajudou a gente a manter o vínculo.

P/1 – Você conheceu sua esposa nessa época?

R – Foi na época de faculdade.

P/1 – Em que ano você estava?

R – Eu estava no segundo ano e ela tinha acabado de ingressar no primeiro ano.

P/1 – Como vocês se conheceram? Você lembra como foi?

R – Olha, se eu não lembrar, isso pode virar um problema.

P/1 – (risos).

P/2 – (risos).

R – Então, vocês podem...

P/2 – Qual o nome dela?

R – Minha esposa se chama Sara. Ela é de uma família de Minas Gerais. Prestou USP em 2000 e entrou na USP em 2003. Eu já estava no segundo ano, ela estava no primeiro ano. A gente se conheceu nessas festas e eventos de integração, quando os alunos mais antigos preparam os eventos para os calouros. Acabei conhecendo-a em um desses eventos.

P/1 – Começaram a namorar logo de cara?

R – Começamos a namorar. Na verdade, foi meio complicado. Eu conheci a Sara, a gente conversava, mas não começamos a namorar. Depois de uns seis meses, eu ia viajar, fui fazer um intercâmbio no Canadá. Umas semanas antes de viajar, a gente acabou ficando numa festa, mas eu ia viajar em seguida. Ficou aquela situação meio... A gente não estava namorando, mas, enfim, estava se gostando. Eu fui viajar sem a gente namorar. Quando eu voltei...

P/1 – Você ficou quanto tempo fora?

R – Fiquei seis meses. Quando eu voltei, logo em seguida, a gente começou a namorar. Quer dizer que pelo menos perdurou durante a viagem.

P/1 – Nesse período vocês ficaram se correspondendo?

R – Ficamos, por e-mail, porque não existia Skype ou qualquer outra coisa que existe hoje. E mesmo por e-mail, eu não tinha computador, então eu tinha que ir até a faculdade pra mandar o e-mail. A gente não mandava tantos e-mails, alguns poucos e-mails, mas a gente se correspondia contando o que estava acontecendo.

P/1 – Em qual universidade você fez esse intercâmbio?

R – Eu estudei em Manitoba, no Canadá, na Universidade Winnipeg. É uma parceria que a FGV tem com essa universidade. Eu pude fazer um semestre do curso de Administração na Universidade de Manitoba. Minha mãe tinha morado lá, ela recomendou, conhecia muitas pessoas. Acabou recomendando que eu fizesse por lá.

P/1 – Como foi esse período lá?

R – Foi frio. É muito frio lá. Manitoba fica bem no meio do Canadá, e apesar de não ficar tão para o norte, tem a questão geográfica de ser uma planície. É muito frio, muito frio. A gente tá falando, no inverno, de menos 30, menos 40 graus. Um mundo novo de descoberta. Eu já tinha viajado uma vez pra fora do Brasil, pra Argentina, mas nunca ido pra ficar um tempo longo. Muita gente, do mundo inteiro, no Canadá. É um país multicultural e a universidade tinha muitos estrangeiros. Abre muito a cabeça no sentido de conhecer coisas novas. Mas o período de inverno é um período muito difícil pra quem é brasileiro, latino. Mexe muito até com o estado de espírito da pessoa, porque escurece muito cedo. É uma única cor, branco. Tudo fica branco, tudo fica cinza. Eu fui em julho, fiquei até dezembro, o finalzinho foi um período bem difícil. Estar fora de casa eu sabia que ia ser difícil, mas eu não sabia que ia ser difícil pela questão psicológica em relação ao clima. Teve esse aspecto também.

P/1 – Mas em termos de aprendizado?

R – Em termos de... (risos).

P/1 – Você jogou basquete (risos).

R – Você vê que eu me esquivo do aprendizado (risos).

P/1 – (risos).

P/2 – (risos).

R – Não, eu estudava, viu? Não foi o que marcou mais. Em termos de aprendizado, de fato, não foi o que mais marcou. Marcou mais a vivência com os colegas do mundo inteiro do que o aprendizado em si. Algumas matérias eram diferentes, mas poderia também ter feito algumas aqui na Getúlio Vargas, então não foi algo extremamente... Eu acho que a vivência, o estar lá, o interagir, foi o que mais chamou a atenção. A estrutura de uma universidade canadense é uma estrutura absurda de ensino, de biblioteca, de infraestrutura, isso chamou muito a atenção também. Foi essa a minha experiência lá.

P/1 – Você voltou. Você trancou esse semestre nas Relações Internacionais?

R – Tranquei. Tive que postergar para o final do período normal do curso.

P/1 – Quando você voltou, você estava em que ano? Você estava no segundo ano de Relações Internacionais, terceiro?

R – Estava no segundo ano.

P/1 – E acabando a FGV?

R – Foi meio junto. Eu fiz com seis meses de diferença, o que foi bastante puxado. Acho que só com 20 anos você consegue fazer o que eu fiz. Acordava às cinco e meia da manhã, pra ter aula às sete, das sete ao meio-dia e meia. Depois ia pra casa, tinha que estudar, ler, me preparar, e às sete horas da noite na USP, até 11 horas. Isso por quatro anos foi bastante intenso, puxado. Mas acho que valeu a pena. Eu costumo falar que quanto mais você faz, mais tempo você acha pra fazer as coisas. Aprende a dar prioridade. Acho que aprendi, nesse período, a dar prioridade às coisas e a ter muito foco. Até hoje eu sou muito focado nas coisas que faço. Quando paro pra estudar, ou paro pra trabalhar, eu sou muito concentrado e muito focado. Acho que foi o aprendizado dessa época. Eu tinha que ser assim pra conseguir fazer aquilo que eu me propus a fazer.

P/2 – E você ainda fazia estágio?

R – Teve um período que eu fiz estágio, mas daí eu diminuí a carga horária à noite. Acabei diminuindo a carga horária à noite. Teve um período que eu fiz estágio, mas não foi bom, não foi um período bom. Muito intenso, demais. Muita coisa.

P/2 – Nesse percurso de estágio, quando você se profissionalizou mesmo, pra onde você foi? Como foi o seu caminho?

P/1 – O seu primeiro emprego.

R – O meu primeiro emprego?

P/2 – É.

R – Bom, depois de formado, eu tinha uma questão bastante prática. Por uma questão financeira, eu não tinha recurso pra pagar a FGV na época. A gente acabou pegando um empréstimo, que a própria faculdade tem, pra pagar a faculdade e livros. Na verdade, é um fundo que você tem que devolver depois que você se forma. Depois que eu me formei, eu não tinha muito tempo pra pensar sobre pra onde ir, se eu queria tirar um sabático, não tinha essa opção: “Vou tirar um sabático, vou refletir.” Precisava ter uma renda pra pagar o compromisso que eu tinha. Eu acabei entrando rapidamente em uma vaga de emprego numa empresa de comércio on-line. Foi na verdade o meu primeiro emprego, está na minha carteira. Eu fiquei por três meses nessa empresa. É a Flores Online. É uma floricultura on-line. Foi um dos primeiros negócios da onda da Internet. Foi fundada em 96. O que me chamava muito a atenção é que foi um rapaz da Getúlio Vargas, muito jovem, que montou. Naquela época, os negócios de Internet estavam crescendo muito. Esse cara foi pioneiro. Eu falei: “Bom, eu vou entrar com esse cara, não importa o que eu vou fazer.” E fui. Eu toquei a área de marketing. Eu não entendia nada de marketing, mas fui tocar a área de marketing. Tinha call center, a parte de comunicação com o cliente, site, produto, embalagem, publicidade. Fiquei por três meses. Um grande aprendizado, porque em uma empresa de Internet, que estava crescendo muito, tudo é muito rápido, você não tem tempo pra errar. Você pode errar, mas tem que mudar rápido. Foi bacana, mas seguramente não era o que eu sabia fazer. Eu sofria pra tocar essa questão de marketing. Equipe enorme, call center é uma equipe grande e tinha que saber lidar. Foi um aprendizado muito rápido, em três meses. Saí porque eu entrei num programa de trainee do Grupo Camargo Correa, em 2005. Tinha uma vaga pra trabalhar no grupo, ou seja, que ia atender... Naquela época, a Camargo tinha mais de 20 empresas. Era uma vaga na holding do grupo, com foco em inteligência estratégica. Tinha muito a ver com o estágio que eu tinha feito, com esse olhar nos cenários econômicos, cenários políticos, se encaixava quase perfeitamente no que eu tinha feito no último ano, no último ano e meio. Em um grupo muito maior, naquela época, com um crescimento muito acelerado, tendo projetos na África, na América Latina. Eu fiquei um tempo ali no Grupo Camargo Correa nesse primeiro momento, ajudando a estruturar e avaliar novos projetos, fora do Brasil principalmente. Foi um pouco o meu começo de carreira.

P/2 – Como foi a entrada pra essa vaga de trainee? Você circulou por lá ou ficou numa área única? Como foi?

R – Eu fiquei por dois anos nessa área, que era uma área de inteligência.

P/2 – O que você fazia, efetivamente?

R – Análise de países. Existe uma possibilidade de montar um negócio novo num país específico, precisa fazer análise do país, do mercado, do risco político, do risco econômico, das questões jurídicas. A gente montava os casos pra avaliar se valia a pena a empresa investir bilhões de reais, bilhões de dólares, naquele país, naquele mercado, e depois fazia a avaliação dos negócios em si. Por exemplo, tem um projeto de uma empresa de cimento. A Camargo já tinha um negócio de cimento, no Equador, e tinha uma empresa que estava à venda, alguns bilhões de dólares de investimento. Você olha primeiro para o país, depois olha para o negócio, de quem é esse negócio, quem é a família. Avaliava, dava subsídio pra tomar uma decisão. Por um ano e meio, dois anos, eu fiquei ajudando nessa área de planejamento e inteligência. O que foi fascinante é que a Camargo estava crescendo exponencialmente na América Latina e na África. Acabei tendo a chance de visitar alguns países, visitar alguns projetos, projetos de infraestrutura muito relevantes. Acho que estava ali no momento em que o país estava crescendo muito e estava numa empresa que estava no meio do crescimento. Estava vivenciando o crescimento do país. Foi bem interessante e bem diverso. Eram negócios muito diferentes, desde a construção civil, até calçados e têxtil. Pra quem está começando a carreira é um aprendizado acelerado, você acaba vivenciando em dois anos o que demoraria 30 anos pra vivenciar. Foi muito bom para o começo de carreira. Teve outro fator. Eu estava num grupo, os meus chefes, gerentes, diretores, um grupo muito forte em termos de formação. Muitos deles tinham vindo do exterior, acabado o MBA (Master in Business Administration) no MIT (Massachusetts Institute of Technology) e Harvard. Tive chance de estar junto com algumas pessoas da minha chefia com um nível de exigência e um nível de capacidade intelectual muito altas, o que também é muito bom para o começo de carreira. Foi um aprendizado muito acelerado.

P/1 – Tem um desafio, um fato, uma conquista que você tenha tido?

R – Nesse período?

P/1 – É, que tenha te marcado? Ou uma desventura?

R – Olha, algumas viagens que eu fiz nesse período têm histórias interessantes. Eu viajei, ainda nesse período, pra Colômbia pra visitar uma usina hidrelétrica, no Rio Porce, perto de Medellín. Quer dizer, perto não, perto relativamente. Tinha que chegar a Medellín, depois mais quatro horas de carro pra chegar à hidrelétrica. Naquela época, as Farcs (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) estavam muito ativas na região. Pegamos um carro com motorista e fomos, eu e um colega meu, também trainee. Fomos pra usina. Eu reparei que toda hora tinha um cara atrás, uma moto atrás, seguindo a gente. Eu comecei a ficar paranoico achando que ia ser sequestrado pelas Farcs. Comecei a cutucar meu colega: “Rodrigo, estão seguindo a gente. Avisa o motorista.” O motorista não sabia o que estava acontecendo, começou a acelerar, acelerar, acelerar, uma estradinha toda sinuosa no meio do vale na Colômbia. Quando chegamos à hidrelétrica, suando frio, enjoado pelas curvas, a gente entrou e foi falar com o diretor responsável: “O que tá acontecendo? Estão seguindo a gente. Tem que ter segurança.” “Não. É o segurança de vocês.” Eu falei: “Tá, mas vocês não avisam a gente?” “Não, é assim mesmo. É assim mesmo.” O filho da mãe do diretor veio de helicóptero, porque ele não queria correr riscos. A gente passou por três barreiras do Exército nessa estrada e ele não avisou que tinha um segurança atrás da gente. Ele foi de helicóptero pra usina. Eu falei: “Tá bom. Eu vou voltar de helicóptero com você.” Daí: “Não, tal, veja bem....” Era complicado porque eu tinha a função de olhar também alguns aspectos socioambientais, mas a gente não podia sair muito da área da usina. A gente não podia visitar a comunidade porque tinha um risco real de sequestro. Esse foi um caso interessante nessa visita. Nessa época, eu estava no começo de carreira, fiquei morrendo de medo. Depois, na minha carreira, eu tive outras bem piores do que essa, mas para o começo, essa foi boa. Esse foi um caso bom naquela época. O que mais eu posso contar, me ajuda?

P/1 – Você ficou dois anos como trainee?

R – Isso.

P/1 – Depois?

R – Depois, durante esse período, eu acabei fazendo um trabalho sobre mudanças climáticas. Na faculdade de Relações Internacionais, eu tinha feito estudos em relação ao Protocolo de Quioto, negociações internacionais do clima e assim por diante. Quando eu ingressei nessa área, eu comecei a fazer um estudo sobre qual seria o impacto das mudanças climáticas nos negócios que a Camargo tinha, tanto em termos do clima, quanto em termos do assunto crédito de carbono, regulação e emissão de carbono. O que poderia afetar alguns negócios, principalmente os negócios de cimento, que tem muita emissão. Fiquei um tempo estudando esse assunto. O fato é que eu estudei tanto que eu virei o cara que mais entendia do assunto ali na empresa e até, digamos assim, no Brasil, no setor privado. Eu era um dos caras que mais entendia desse assunto. Foi justamente no período que estavam montando uma área de sustentabilidade.

P/1 – Na Camargo?

R – Na Camargo: “Bom, já que você tá sabendo tanto desse assunto, vem pra cá.”

P/1 – Onde você foi estudar esse assunto?

R – Na USP eu já tinha estudado bastante, mas em termos acadêmicos. Depois de formado, eu comecei a estudar, participar de fóruns, fui pra algumas conferências da ONU (Organização das Nações Unidas). Acabei tendo uma velocidade grande. Eu tive uma sorte que ninguém tinha no mercado. Eu tinha, nas empresas do grupo, vários tipos de negócio e de atividade produtiva. Podia fazer análises tanto pra cimento, quanto pra calçados. Eu tinha contato, mais do que contato, acesso a informações que também me permitiam usar esse conhecimento mais conceitual, na prática. Então, foi um pouco esse caminho. Onde mais tive contato acelerado foi nessas conferências. Eu participei da conferência da ONU em Copenhague, que foi a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP 15). Eu já tinha estado em algumas outras conferências internacionais, mas ali, foi de longe, a maior.

P/1 – Você participava pela Camargo Correa?

R – Pela Camargo. Tinha participado em algumas outras conferências, mas ali, eu brinco, o mundo estava ali, de verdade. Todos os países do mundo estavam dentro de um mesmo ambiente. Essas conferências, pra quem gosta de multiculturalismo, de conhecer outras culturas, em uma semana você tem contato com coisas muito diferentes. Em termos de conhecimento, você tá na vanguarda do conhecimento, está vendo o que tem de mais novo no assunto. Quando você volta para o Brasil, você tá em um outro patamar. Eu sempre valorizei muito estar nesses fóruns externos pela experiência pessoal, mas também por essa questão, você sobe seu patamar de conhecimento. E Copenhague foi um caso que seguramente subiu meu patamar de conhecimento. Por exemplo, em relação à energia, visitar usinas eólicas no meio do mar aberto, visitar uma central de controle de carros elétricos em Copenhague. Parecia coisa dos Jetsons, estava olhando 50 anos pra frente do Brasil. Estou meio perdido.

P/1 – A gente estava falando que eles criaram a área de sustentabilidade dentro da Camargo porque você já estava se aperfeiçoando fora, participando de conferências, e aí você destacou a COP 15.

R – Exato. Chamaram pra formar essa área, uma área que servia justamente pra apoiar as empresas, as pessoas de todas as outras áreas, sobre como olhar pra temática socioambiental com um olhar mais de negócios, um olhar mais pragmático e por que isso é importante pra continuidade dos negócios. O meu desafio sempre foi trazer um olhar muito prático pra essa área, porque tem o estigma de ser uma área mais soft. Brincam sobre as pessoas que abraçam árvores. Mas, não, se os recursos que você usa pra sua atividade produtiva estão acabando, você precisa atuar sobre isso senão você não vai ter o que fazer. Trazer o viés de economia pra valorar e monetizar esses aspectos. Nessa época de sustentabilidade, o meu papel maior era trazer alguns casos que pudessem valorar, tanto com relação à água, ao carbono, aos resíduos e assim por diante. Foi um pouco essa abordagem que eu fui trazendo nessa época.

P/1 – Esse desafio que você tinha, você montou essa área em quanto tempo lá na Camargo?

R – Eu fiz parte da equipe que montou a área. A gente conseguiu implementar que todos tivessem as suas áreas e tivessem procedimentos e uma estratégia pra atuar, em todos os negócios da Camargo, em quatro anos. Em quatro anos a gente fez essa primeira etapa, tanto no Brasil, quanto fora do Brasil. Também foi implementado fora do Brasil.

P/2 – Você continua nessa área?

R – Eu continuo com sustentabilidade, em outro grupo. Estou no Grupo AES, grupo de energia, também com esse desafio de tornar esse tema tangível, prático e relevante para o dia a dia. Se você pega um setor de energia, como o que estou hoje, o insumo da energia é o recurso natural. Sem água, não tem a usina hidrelétrica gerando energia na turbina. Então, a sustentabilidade vem nesse sentido, de buscar meios pra que a gente mantenha esses recursos e tome decisões que considerem esses recursos.

P/1 – Você ficou quatro anos na Camargo Correa nesse...

R – No Grupo Camargo Correa fiquei 11 anos, passado pela holding, que é a empresa sede, pela empresa de energia, pela CPFL Energia, e pela empresa de cimento, que é a InterCement. Nesse período, eu fiz uma pausa pra fazer um mestrado. Eu continuei com vínculo com a empresa, mas fiz uma pausa pra fazer um mestrado nesse período.

P/1 – Onde você fez o mestrado?

R – Eu fiz um mestrado justamente com esse viés. O que me chamava a atenção era: “Poxa, eu acho que a gente não tá conseguindo levar as informações em relação à sustentabilidade da maneira correta.” Não adianta dizer que quem toma a decisão não tá tomando a decisão correta, considerando o que deveria considerar, se quem leva todas as informações pra um presidente, para a alta liderança, não tá levando a informação de uma maneira fácil de entender. Principalmente nessa questão, eu falo que é a “tangibilização”, que é você tornar isso quantitativo e monetário. Na Escócia, na Universidade de Edimburgo, tem um curso de Economia Ecológica que liga aspectos de meio ambiente e de ecologia, a relação entre os sistemas naturais com o viés econômico. Esse curso tem toda uma abordagem teórica, mas muito prática também, pra valorar, em termos de dinheiro, aspectos ambientais. Foi muito bacana nesse sentido, conhecer o método pra fazer isso e poder montar casos. “Puxa, mas como você valora o uso da água? Como você valora a floresta em pé? Como você valora a fauna, que tem uma função essencial, por exemplo, pra polinização?” Outro dia – um parêntese aqui – eu estava escutando o Pedro Paulo Diniz, que tem uma fazenda de orgânicos enorme, a Fazenda da Toca. Ele estava dizendo que o vizinho fazendeiro usa muito agrotóxico e estava matando os besouros que polinizam o maracujá da fazenda dele, que é orgânica. Sem o besouro pra polinizar o maracujá, não tem o fruto do maracujá. Eles estão tendo que ir com um cotonete pra fazer uma polinização manual. Foi feito todo um trabalho com a vizinhança pra que deixassem de usar os agrotóxicos, pra que voltasse a ter o besouro que poliniza. O que a economia ecológica faz? Pega um caso desses, coloca no papel e fala: “Bom, quanto custou você deixar de ter o agente natural e passar a ter um agente humano, com um cotonete, fazendo polinização de flores de maracujá?” Isso tem um custo, a natureza estava oferecendo gratuitamente. A beleza da economia ecológica é essa, trazer esses elementos pra mostrar que aquilo que a natureza faz tem um valor. Se o homem destruir isso, ele vai ter um custo e vai deixar de ter coisas que tinha no passado. Teve uma experiência muito prática nesse curso: a gente fez uma viagem para o Quênia, como final de curso, junto com a FAO, que é a Food and Agriculture Organization. Em um lago perto de Nairóbi tinha um conflito pela água. Tinha produtores de flores, tinha a cidade e tinha pastores de cabras. Todos usavam a água do mesmo lago e esse lago estava diminuindo todo ano porque a produção de flores e a cidade estavam aumentando. Aí começou a virar um conflito. Foi muito bacana a gente visitar todas as partes: como era a vida do pastor, como era para o dono das fazendas de flores, se ele estava gerando emprego, estava gerando um monte de coisa. Como era a cidade com racionamento de água. A gente começou a discutir quanto custava pra economia ter esse conflito. Foi muito prático. A gente viu na prática, em campo, qual o valor de você não ter o recurso. Você tem que abrir poço, ter que comprar a água. Comprar água pra tomar banho, não é água só pra beber. Esse curso de Economia Ecológica foi bem interessante. Trouxe coisas que para o século que a gente tá vivendo, seguramente, vão ser muito necessárias. Isso é um pouco o que eu tento fazer hoje, aplicar algumas dessas coisas.

P/1 – Aí você voltou... Você estava fazendo esse mestrado e estava na Camargo?

R – Estava vinculado à Camargo ainda.

P/1 – Você ficou quanto tempo fora?

R – Fiquei um ano. Quando eu voltei, eu já voltei direto pra uma posição na empresa de energia, na CPFL, na área de sustentabilidade.

P/1 – Você saiu da Camargo. Ah, é tudo do mesmo grupo.

R – Tudo do mesmo grupo. Eu fiquei na área de energia.

P/1 – Você foi pra CPFL.

R – Isso. Fui pra Campinas, casei logo em seguida, foi uma mudança bastante grande. Voltar da Escócia solteiro, voltar para o Brasil, pra Campinas, casado e em outra... Com casa, com um monte de coisa. Foi um período meio tumultuado da vida. Até pessoalmente, foi bastante tumultuado porque era muita coisa nova. Cuidar de uma casa, a gente alugou uma casa num condomínio, bonitinho. Era uma casa relativamente grandinha. Tinha que se adaptar a uma cidade que a gente não conhecia. A gente teve dois, três meses, meio de... Certa dificuldade de adaptação.

P/2 – Você nunca tinha morado sozinho?

R – Já tinha morado sozinho. Até na Escócia eu morei sozinho.

P/2 – Sim. Mas aqui no Brasil, não?

R – Não. Mas uma coisa é você morar num apartamentinho pequenininho, outra coisa é você morar numa casa, recém-casado, emprego novo, cidade nova. Foi um pouco tumultuado no começo, na volta para o Brasil. Eu acho que a volta é mais difícil do que a ida, quando você vai morar fora. Voltar para o nosso dia a dia aqui, especialmente em São Paulo, é bastante difícil. Foi um pouco difícil a volta. Eu andava muito de bicicleta em Edimburgo. Edimburgo é uma cidade muito tranquila e muito organizada, como uma cidade europeia. Eu fazia tudo de bicicleta. Tudo. Ou a pé. O trânsito lá é em um ritmo mais devagar. Eu lembro que tinha medo de sair de casa a pé, cruzar a rua. Eu lembro que fiquei uns três, quatro dias, com medo de cruzar a rua porque achava que ia ser atropelado. Os ônibus daqui têm um ritmo muito forte, o trânsito tem um ritmo muito maluco, me deu uma certa agonia, certa ansiedade de sair de casa. Depois, aos poucos, foi acalmando. Mas essa fase em Campinas foi uma fase profissionalmente muito interessante. Pessoalmente, acho que foi um pouco desgastante. Minha esposa trabalhava em São Paulo, a gente morava em Campinas. Pessoalmente, a gente ficou bastante desgastado, muito tempo em estrada. Acho que é isso.

P/1 – Qual era o seu desafio na CPFL?

R – Na CPFL tive um desafio grande. Foi o primeiro momento da minha carreira que eu tive que lidar com equipe, com uma área maior, um orçamento maior. Era um nível de responsabilidade muito maior. Enquanto na Camargo eu tinha um perfil mais especialista, de assessoramento, na CPFL era responsável por muitos projetos, por pessoas. Profissionalmente, essa questão da gestão das pessoas, gestão de equipe, foi algo novo e que requereu certa habilidade e maturidade também. No primeiro momento, dá uma assustada. Lidar com gente é uma arte, especialmente em época de conflitos, em época que você tem que fazer movimentos de escassez. Acho que pra mim marcou muito estar num momento que tinha que lidar com responsabilidades muito maiores e diárias, do dia a dia, do que em outras oportunidades. Então, eu acho que foi um pouco... Energia é um setor de crescimento muito rápido, carro elétrico, usinas solares. Estar na área de sustentabilidade no setor de energia nesse momento que a gente tá vivendo agora é estar muito na vanguarda, é o novo, buscar o novo. Isso me chama muito a atenção, eu acho bastante interessante.

P/1 – Você ficou quanto tempo lá?

R – Fiquei um ano.

P/1 – Nesse um ano, o que você fez? Que trabalho você implantou?

R – Na CPFL tinha um viés bastante institucional e de comunicação. Por exemplo, naquela época ocorreram algumas conferências da ONU, ocorreu a Rio+20 e teve uma série de atuações e de iniciativas da CPFL na Rio+20. Alguns fóruns externos, um papel bastante institucional, de comunicação. Acho que na Rio+20 foi um ponto importante, onde a empresa montou uma série de atividades, ajudou na publicação de alguns livros, alguns posicionamentos da indústria brasileira em relação ao que a ONU estava construindo de objetivo de desenvolvimento sustentável e que agora foram implementados. A empresa teve um papel protagonista puxando o setor empresarial brasileiro pra contribuir de fato com aquele movimento que a ONU estava construindo. Como era no Brasil, a gente teve a oportunidade de ter uma voz ativa. Montamos fóruns com uma série de atores do Ministério de Relações Exteriores, de empresas. Eu acho que o trabalho que a CPFL fez na Rio+20 foi bastante interessante pra dar uma contribuição ativa do Brasil naquele momento que a ONU estava montando um guarda-chuva, um marco conceitual dos objetivos do desenvolvimento sustentável. Acho que foi um dos grandes trabalhos que a gente fez naquela época. Mas foi um trabalho curto, porque eu fiquei um ano. Não é tanto tempo assim. Mas esse foi um que me marcou.

P/1 – Você ficou um ano na CPFL, depois...?

R – Depois o pessoal da Camargo comprou uma empresa portuguesa de cimento, bem grande, e eles estavam precisando de alguém pra montar uma equipe de sustentabilidade nessa nova empresa. É uma empresa que se tornou uma das maiores empresas de cimento do mundo. Precisava ter uma área pra olhar para as questões socioambientais, que no setor de cimento é bastante relevante. Tem um impacto bastante grande com a mineração e um impacto bastante grande também no processamento do cimento. O desafio foi que era, e ainda é, uma área global. Essa empresa estava atuando em dez países, e em boa parte desses países teve uma atuação relevante. O interessante foi que conseguiu, dentro de uma empresa, dentro desses dez países...Tem operações em países na Europa, como em Portugal, onde a sociedade tá num nível de maturidade em relação a sistemas socioambientais muito elevado, segue os padrões, e em Moçambique, que é o penúltimo país no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do mundo, onde pensar em questões socioambientais, em sustentabilidade, passa longe. O significado de sustentabilidade em Moçambique é atender àquelas necessidades humanas mais básicas possíveis. Tinha um espectro de atuação muito desafiador e muito interessante, atuar desde a vanguarda, na Europa, até o mais básico, em Moçambique, Angola, assim por diante. Eu ajudei também a montar a estratégia de atuação social da empresa nesses países, nesses dez países. Eu tive a felicidade de visitar todas as fábricas da empresa, as 40 fábricas nesses dez países. Até à Cabo Verde eu fui. O primeiro brasileiro do Grupo Camargo a ir para Cabo Verde. Pessoalmente, isso é uma riqueza sem tamanho, você poder visitar 40 fábricas, ou seja, 40 cidades em dez países. Traz uma experiência e uma vivência bem bacanas, que não têm preço.

P/1 – Você fez essa viagem, mas você estava assumindo pela primeira vez esse braço social?

R – Eu acabei assumindo a parte social com um viés internacional. O grupo tem um instituto que já tinha uma atuação no Brasil e na Argentina, mas fora desses países não tinha. Tinha vontade de levar essa abordagem social, tão forte aqui no Brasil, para os outros países também. Eu acabei liderando essa vertente. Além da sustentabilidade, eu também fiquei responsável por levar os projetos sociais.

P/1 – Quais eram os projetos sociais? Quais eram os desafios que a Camargo tinha naquele momento nas plantas?

R – Olha, o maior desafio foi uma questão cultural. Os portugueses e a gestão portuguesa têm um olhar pra temática social muito próximo da filantropia. Muito próximo, na verdade, diferente da filantropia, da caridade, que é explicado em grande parte pelo relacionamento com a igreja. A igreja católica tem uma prevalência muito forte em Portugal. A maneira como a gestão portuguesa interagia com essas comunidades nesses países era muito no sentido de dar, de fazer doações, de fazer mecenato, como eles chamam, na parte cultural, mas sempre no viés unilateral. O maior desafio pra mim foi trazer essa abordagem, que eu acredito, de sustentabilidade inclusive na área social, de não só dar, mas ensinar a pescar. Fazer com que as comunidades tenham autonomia e ganhem independência, que se desenvolvam. Foi um desafio interno para mudar a empresa nesses países, e até nas próprias comunidades. Na África também existe uma cultura de receber. A gente falava: “Vamos trabalhar juntos? Vamos construir isso juntos?” Em alguns casos, isso não era bem recebido, porque a cultura era uma cultura de receber: receber do governo, receber das agências internacionais, receber. No caso de Angola e Moçambique, que passaram por supostos governos socialistas, existia uma cultura de trabalhar juntos, mas não com esse viés de sustentabilidade. Por exemplo, voluntariado em Angola e Moçambique funciona bem, porque já existiu no passado a cultura de mutirões. Essa ideia de você ter sustentabilidade econômica, de você produzir a sua atividade econômica pra garantir o seu futuro, em alguns países, culturalmente não existe. Outra coisa que pra mim foi chocante, por desconhecimento, foi a questão do horizonte temporal das pessoas na África, e o poupar, na minha cabeça de economista. Aqui, todo mundo quer estudar, quer poupar pra ter uma vida melhor no futuro, estar bem na aposentaria, ou quer estudar pra conseguir um emprego melhor. Nos países pobres e miseráveis, onde as pessoas têm que matar o leão na hora do almoço pra comer à noite, esse conceito de poupar não existe. Nesses países onde a expectativa de vida é de 35 anos, 36 anos, até a lógica de você lidar com as pessoas, falar: “Puxa, mas por que você tá fazendo isso? Você não pensa no seu desenvolvimento, crescer na empresa?” Tanto internamente, na empresa, quanto fora, na comunidade. Foi algo que foi bastante chocante no começo, porque eu tive que mudar o meu mindset, minha forma de pensar em relação a isso, porque não são os mesmos conceitos. Em termos de projeto, uma série de coisas que se valoriza aqui no Brasil, por exemplo, treinamento, criar fundos, uma cooperativa, por exemplo: “Ah, vamos formar um fundo de reserva, pra o momento que tenha uma necessidade, no futuro.” Lá não tem fundo de reserva, eu preciso ter hoje.

P/1 – Agora.

R – Eu preciso ter agora. Agora. Isso foi um desafio interessante, essa questão do horizonte temporal, sabe? Teve casos práticos sobre isso. Em Moçambique, a gente montou projetos de produção de produtos de cimento: blocos, telhas. Era uma cooperativa e foi muito difícil levar o conceito do cooperativismo, esse conceito de que é necessário ter uma sustentabilidade econômica pra garantir a sua existência por si só. Enfim, esses foram os desafios, principalmente na África, que me marcaram bastante.

P/1 – Mas você ficava indo e vindo, ou você morou lá?

R – Eu ficava indo e vindo. Eu fiquei um tempo maior em Portugal. Fiquei uns dois meses e pouco em Portugal.

P/1 – Como foi culturalmente na África, conhecer outra cultura? Alguma coisa que tenha te marcado?

R – Nossa, a África... Bom, primeiro que a África são Áfricas, são vários países, várias culturas. Acho que na África mesmo, a gente acaba tendo uma integração muito fácil pela questão da língua e todas as questões culturais muito próximas. O brasileiro é muito bem quisto na África, a cultura brasileira é muito bem quista. Tem que agradecer às nossas novelas, que diariamente nos levam pra lá. Eles sabem mais das nossas novelas do que eu sabia. Ás vezes eu passava uma situação assim: “Ah, verdade, essa novela.” Mas eu não tinha a menor ideia do que a pessoa estava falando.

P/2 – (risos).

R – É incrível como a novela tem um poder de penetração absurdo. Absurdo. Isso ajuda muito o brasileiro a estar na África portuguesa. Na África do Sul, a cultura Zulu, tribal, é muito forte. Tem coisas assim... Líderes religiosos da África têm um poder muito forte, muito forte. Você não pode fazer um projeto na comunidade sem conversar com um líder religioso em Moçambique, no Quênia, na África do Sul. É muito doido, porque a estrutura política muda, não é só o líder político formal, você tem que falar com o líder político de fato e com o líder religioso. Acabava tendo três níveis de aprovação das coisas.

P/1 – Você que negociava?

P/2 – Você que ia abrindo essas frentes?

R – Sim.

P/2 – É?

R – Eu ia abrindo as frentes, levava sempre um colega do país. Mas eu que ia abrindo as frentes em todos os países. No Egito também. No Egito, a questão da mulher é uma questão muito complicada na sociedade. A gente queria colocar políticas ou projetos que dessem mais oportunidades para as meninas, e a própria sociedade acaba fazendo com que isso não... Tem que ter habilidade. Respeitar e saber quanto você consegue colocar de algo que você acredita ser importante. É necessário primeiro respeitar, ser aceito como estrangeiro naquela comunidade. No segundo momento você consegue avançar um pouco mais. É uma certa habilidade de saber em cada cultura, saber até onde você pode ir, os limites. Mas em nenhum desses países me senti mal aceito. Em todos os países tem uma aceitação boa dos brasileiros. Isso facilita bastante.

P/1 – Tem algum causo, algum fato marcante?

R – Olha, tenho vários, viu? Por exemplo, eu estava indo do Quênia pra Moçambique e não precisava de visto. Em Moçambique, você pega o visto no aeroporto, você não precisa pegar o visto com antecedência. Por alguma razão, o voo que eu comprei, que era pra ser um voo direto, fez duas paradas, duas escalas. A primeira escala foi numa cidade no norte de Moçambique chamada Pemba. Na hora que foi decolar, um pouco antes de decolar, acabou a luz do aeroporto. Eu precisava pegar o carimbo, por que era a primeira cidade, de Moçambique, que eu estava entrando. Na entrada, você tem que pegar o carimbo do visto. Como acabou a luz, não tinha como imprimir o carimbo. Era um formulário onde tinha que imprimir um carimbo. A autoridade lá em Moçambique falou: “Fique tranquilo. Quando você chegar lá em Maputo, que é a capital, você pega o visto. Tudo bem.” Eu falei: “Tá, mas como eu vou agora? O avião vai decolar sem energia no aeroporto?” “Fique tranquilo. Tá tudo tranquilo.” Eu falei: “Beleza.” Eu, em um avião cheio de chinês, único brasileiro, indo pra Moçambique. Aí fez outra escala não programada. Resumo da história, o que era pra chegar às cinco da tarde, chegou à uma hora da manhã em Maputo, a capital, que era pra onde eu ia. O aeroporto estava fechado à uma hora da manhã. O aeroporto internacional de Maputo fecha às 11 horas da noite. Eu estava exausto, na pista do aeroporto, sem poder entrar no saguão porque não tinha visto pra entrar no país. Deixaram todos numa sala, devia ter uns dez metros quadrados, uns 30 chineses e eu. Comecei a ficar em desespero, fui falar com um guardinha: “Olha, é o seguinte, eu vou para o hotel e amanhã cedo, no primeiro horário, eu volto pra tirar o visto, certo?.” Ele: “Não, não pode.” “Eu vou para o hotel, amanhã você vai....” Ele pegou meu passaporte: “Então, eu fico com seu passaporte, você vai para o hotel.” Eu falei: “Não. Você não pode ficar com meu passaporte. Eu vou para o hotel.” Daí eu peguei meu passaporte e fui para o hotel sem visto. Fui para o hotel, dormi. Na hora que eu acordei, falei: “Meu Deus do céu, estou nesse país sem visto.” Lá em Moçambique, você é parado na rua constantemente pela polícia. Peguei um táxi, voltei para o aeroporto. Cheguei ao aeroporto, fui falar com a autoridade aeroportuária da polícia de Moçambique: “Olha, eu estou sem visto, cheguei ontem à noite, queria tirar meu visto” “Mas como o senhor tá sem visto?” Resumo da história: fiquei seis horas detido para averiguação pela autoridade moçambicana porque eu estava no país ilegalmente, sem visto, porque eu deveria ser preso e pagar uma multa. Conversa pra lá, conversa pra cá, os meus colegas de trabalho conseguiram falar com o ministro e me livraram. Mas nessa conversa pra lá, conversa pra cá, foram seis horas e meia que eu fiquei no aeroporto de Moçambique, detido, porque não tinha visto. Porque tinha faltado energia no outro aeroporto. Essa foi uma...

P/1 – Uma aventura.

R – Um perrengue que a gente passa quando vai pra esses países. O que mais de bom você tem pra contar?

P/2 – Depois desse período, pra onde você foi? O que aconteceu?

R – Bom, depois desse período, que acho que foi o mais rico pessoalmente, de longe, na minha vida – ter contato com todos esses lugares – eu acabei voltando pra área de energia, profissionalmente, agora aqui na região de São Paulo, o Grupo AES, trabalhando com sustentabilidade, mas agora também diretamente trabalhando com o assunto social.

P/1 – Você saiu da Camargo e foi pra AES?

R – Eu saí da Camargo, do Grupo Camargo...

P/1 – Por que você saiu?



R – Eu saí por questões da economia como um todo. A Camargo depende muito de infraestrutura. O país, nesse contexto atual da economia...Se não tem obra, o cimento, que era a empresa onde eu estava, também tem uma queda muito forte. Acabou atrapalhando um pouco todos os planos e as atividades que eu estava desenvolvendo na área de sustentabilidade. O setor de energia, mesmo num contexto de crise, é um setor que tá crescendo muito e tá buscando novas tecnologias, novas fontes de energia, é um setor que tem muitas atividades pra esse tipo de trabalho que eu faço. Foi uma oportunidade nova.

P/1 – Você recebeu um convite pra ir pra...

R – Isso. Eu recebi um convite pra ir pra AES.

P/1 – De que ano a gente tá falando?

R – Do ano passado, 2016.

P/1 – Ano passado.

R – Então eu fiquei de 2005 até 2016 vinculado ao Grupo Camargo. Agora, 16 e 17, no Grupo de Energia da AES.

P/1 – Qual área da energia? Em qual cargo?

R – Na área de sustentabilidade.

P/1 – Sustentabilidade de energia?

R – Isso. Na área de sustentabilidade e no Instituto AES. Hoje eu lidero a área de sustentabilidade e lidero o Instituto AES.

P/2 – O que essas duas áreas têm em comum? Como você administra isso?

R – A sustentabilidade acaba olhando mais para os aspectos ligados ao negócio, todas as questões socioambientais ligadas ao negócio. A empresa tem geração de energia hidrelétrica, tem usinas solares e eólicas. Tem uma série de questões de mensuração, de certificações que a empresa tem. Isso acaba ficando pra área de sustentabilidade. A parte de comunicação e relato pra diversos stakeholders fica com a sustentabilidade. O instituto acaba ficando com a temática social comunitária, especificamente. Enquanto sustentabilidade olha pra públicos diversos, o instituto olha pra questão social comunitária tradicional. São áreas que se conversam, mas que têm enfoques um pouco diferentes. Têm também horizontes um pouco diferentes. A sustentabilidade hoje tá ajudando o negócio em questões comercias, em questões bem práticas. O instituto acaba tendo um horizonte um pouco maior, o compromisso com a comunidade é um pouco mais alargado. Está menos suscetível às pressões do dia a dia e das metas para o negócio. Enquanto sustentabilidade não, tá mais próximo do dia a dia. Ajudem-me.

P/1 – Tem algum desafio que a empresa coloca, você precisa implantar um plano? O instituto tá no começo. Quais são os objetivos do instituto, qual a política? O conceito?

R – Bom, o conceito maior, que tá por trás de tudo para o instituto, é que o setor elétrico e o setor energético estão passando por uma revolução do modelo como um todo. Aquelas coisas que daqui a 20 anos a gente vai olhar pra trás e falar: “Dois mil e quinze foi a época em que virou a chavinha.” Por quê? Porque as fontes de energia que a gente usa vão mudar. A gente usava predominantemente combustíveis fósseis, e no Brasil, por sorte nossa, a geração hidrelétrica. Isso chegou ao limite. Inclusive hidrelétrica, chegou ao limite. Hoje o que se busca são as outras energias renováveis: energia solar, energia eólica e assim por diante. Isso vai trazer uma série de novas interações com comunidades, por exemplo. Diferentemente de uma hidrelétrica, mais concentrada, ou uma termelétrica, quando você faz um parque eólico tem um tipo de interação diferente. Esse é um ponto. O segundo ponto da revolução energética é a questão do cliente. Hoje, você paga sua energia elétrica, não tem opção, você recebe na sua casa, você paga. Daqui a dez anos, você vai poder escolher o que vai fazer. Não só escolher de quem vai comprar, você vai poder vender energia pra rede. Isso vai trazer um papel diferente para o cliente e para a comunidade. O que cabe ao instituto? Trazer projetos que reduzam ou mitiguem impactos. Quando a gente pensa em grandes empreendimentos, como uma hidrelétrica, uma eólica, uma solar, o que auxilia as comunidades a fazer essa transição na energia? Quando a gente olha pra baixa renda, em favelas, como eu faço pra que uma pessoa da favela pague a energia, use a energia de maneira consciente, tenha segurança pra usar a energia? Porque nas favelas é onde mais acontecem acidentes fatais, onde mais acontecem incêndios, porque tem uma questão de irregularidade, de uso informal. O instituto pode ser um agente que pode ajudar essas comunidades mais vulneráveis a terem um relacionamento diferente com o uso da energia. Isso falando em termos mais amplos. Esse é um desafio mais macro: como atuar nesse novo momento, com essas novas infraestruturas e com esse novo papel dos consumidores. Tudo é muito novo e o que vem pela frente ainda tá em construção em termos práticos, o que vai ser feito. Tem muitos projetos de educação em escolas, muitos projetos de regularização de consumidores em favelas, muitos projetos com inovação, com tecnologias inovadoras pra reduzir o consumo e para um consumo mais consciente. O instituto vai poder ajudar nesses aspectos.

P/1 – A empresa tem esse entendimento da necessidade de investimento nessa área pra desenvolver essas diretrizes?

R – Nos grandes empreendimentos é muito fácil entender, até porque o impacto é muito direto. Quando a gente olha para o ambiente urbano aqui da Eletropaulo, é um pouco diferente, porque não existe comunidade, tudo é comunidade, todos os clientes são comunidade. Mas quando a gente segmenta e pega clientes de baixa renda, fica fácil entender, porque pelo lado da empresa não só é um compromisso altruísta, é um compromisso prático. Quando tiver pessoas na favela que não pagavam energia e passarem a pagar, isso traz um benefício prático pra empresa. Começa a ter mais entendimento ou mais interesse em investir em atividades como essa.

P/1 – Quais são seus planos para o instituto e para esse setor de sustentabilidade na AES que você tá dirigindo?

R – É sua primeira pergunta sobre o futuro.

P/1 – É.

P/2 – (risos).

P/1 – Qual o seu desejo?

R – Olha, o que desejo na área de sustentabilidade é que a gente consiga mensurar aquilo que não é mensurado e considerar aquilo que não é considerado hoje, pensando em aspectos socioambientais. Geralmente, quando vejo grandes projetos sendo avaliados pela presidência, eu costumo perguntar: “Bom, mas o que não está sendo perguntado? Quais são as contas que vocês não fizeram?” Aquelas coisas que a gente sabe que têm impacto, que vão gerar passivos, que vão onerar, mas que não estão sendo consideradas. Eu gostaria de chegar a um momento em que a minha área não precisasse forçar a barra, forçar essas perguntas. As próprias pessoas nas várias áreas, nas várias funções, começassem a olhar as coisas com complexidade que têm. Não sei se estou sendo muito abstrato... Gostaria que não precisasse de uma área fazendo essa pergunta: “Que conta você não tá fazendo? Você considerou isso? Você considerou aquilo?” E assim por diante. “Você considerou que essa solução pode ser, num olhar mais simples, mais barata, mas que você vai ter custo com o órgão ambiental, com a remediação do solo, com o replantio de árvore, com o fim da fauna e assim por diante?” Essa semana estava dando um exemplo: quando tem áreas verdes, a empresa pode solicitar a passagem de uma linha de transmissão no meio. Tem que fazer toda a retirada das árvores, conforme a lei. Isso pode ser mais barato, inclusive, do que fazer um desvio. Só que o custo de manutenção de passar numa área florestada costuma ser muito maior. Porque, como uma área florestada costuma retomar, fechar, você tem um custo anual. Em um primeiro momento, você pode falar que é uma opção inicialmente mais barata, mas se você olhar todas as variáveis e todas as complexidades, ela pode ser mais custosa pra empresa e pra sociedade como um todo. Respondendo a sua pergunta, minha visão é que um dia não precise existir a minha área pra ficar indicando que isso é importante, e que tanto a empresa, como as pessoas –

que no fim são pessoas na empresa – entendam a complexidade das coisas, que recursos naturais são finitos e que é importante fazer algumas perguntas. No instituto, acho que me dou por satisfeito vendo projetos que sejam sustentáveis e que transformem comunidades, de verdade. Podem ser pequenas transformações, mas a gente vê que deu um salto, seja ele qual for. Pode ser um grupo de jovens para quem se abriram oportunidades na escola que não existiam até então. Pode ser uma cooperativa onde cada pessoa ganhava 200 reais e passou a ganhar dois mil reais. Eu fico satisfeito por ter realizado projetos que mudam a vida das pessoas. Ah, se isso no futuro vai se manter, se vai ter lá... Seria o ideal, ver que projetos que hoje resultaram numa transformação, perduraram ao longo do tempo. Talvez isso não seja tão necessário, só de ter uma transformação hoje já é importante, já me dou por satisfeito.

P/1 – Hoje, qual é seu cotidiano? Você vai para a AES todo dia, viaja? Como você concilia com a casa? Tem hobby?

R – Hoje o trabalho fica em Barueri, em Alphaville. Todo dia, vou de carro. O transporte público não é tão acessível. Mas tem uma grande coisa, uma vantagem desse mundo moderno, que é, por exemplo, trabalhar de casa. Tem toda uma estrutura de equipamentos e rede pra poder trabalhar de casa como se estivesse trabalhando lá no escritório. Com isso eu posso trabalhar de casa duas, três vezes por semana, e também interagir com mais parceiros aqui na região de São Paulo, tendo em vista que meu trabalho se dá muito por meio de parcerias. Trabalhando em casa sobra mais tempo, a gente consegue fazer coisas da casa, da vida pessoal. Acabo usando o meu fim do dia pra fazer minhas coisas, pedalar, arrumar a casa, coisas da casa, cozinhar com a esposa e assim por diante. Coisas normais da vida. O dia a dia é esse. Fim de semana a gente costuma ficar com os amigos aqui em São Paulo ou ir para o sítio em Atibaia, onde a gente descansa mais. Tem uma infraestrutura boa no sítio.

P/1 – Olhando sua trajetória, de tudo que a gente falou e tudo que a gente não falou também, porque a gente vai selecionando... De quando você fazia as picadas lá em Atibaia até as florestas de agora, se você pudesse mudar alguma coisa na sua trajetória de vida, você mudaria?

R – Não. Não mudaria, não. Sou bem satisfeito com a minha trajetória de vida. Eu acho que, pessoalmente, eu sou bastante realizado com a minha família, e profissionalmente também, bastante segurança na opção de carreira que eu fiz. Quando eu fiz a mudança pra área de sustentabilidade, 90% das pessoas acharam que eu era louco, falaram: “Puxa, mas você vai sair do grupo do pessoal que veio do MIT e vai mudar pra área de sustentabilidade?” Hoje, depois de um tempo... Naquela época eu já tinha bastante segurança, mas hoje cada vez mais eu tenho muita segurança que, profissionalmente, fiz uma opção de carreira bem acertada, de muita satisfação. Ainda mais quando a gente vai pra campo, como vocês, que vão bastante pra campo também, é quando a gente ganha muita energia pra voltar para o escritório, porque a gente vê sentido no que a gente tá fazendo. Você vai pra campo, vê as pessoas contando. Ontem mesmo eu estava em uma escola acompanhando um projeto e vendo um grupo de uns 20 jovens contando sobre eficiência energética. Fiquei abismado com a naturalidade com que eles estavam contando e com o impacto que gerava na escola. Gerava um impacto, nessa escola que a gente visitou, de 40% de redução de consumo de água e de energia e de uns mil reais por mês de economia pra diretora. Eu falei: “Puxa, valeu a pena.” A gente fez um projeto bacana, eu tenho certeza que essa molecada tá em outro patamar, seja ele qual for, trouxe um benefício muito real e prático pra comunidade escolar. Eu voltei para o escritório hoje energizado e seguro que eu tinha feito um... Que a gente estava fazendo um bom trabalho. Não me arrependo de nada na trajetória, nem pessoal, nem profissional.

P/2 – Pensando em toda essa sua trajetória meio classe média, estudar em boas escolas e as oportunidades que você foi tendo na vida, apesar de muito novo, de conhecer o que você conheceu, os países, as pessoas, as culturas...O quanto isso realmente constituiu você?

R – O quanto isso me constituiu?

P/2 – É. Não sei se você imaginava qual seria o percurso pra sua vida. Quanto essas coisas foram te transformando?

R – Eu não fazia a menor ideia. Quando eu queria ser arqueólogo, não fazia a menor ideia que eu iria fazer o que eu faço hoje.

P/2 – É, se pensar nessa relação do arqueólogo...

R – Mas eu não fazia a menor ideia do que eu queria fazer naquela época, o que eu queria fazer hoje. Eu sempre fiz as coisas bem feitas, sem falsa modéstia. Eu sempre quis fazer as coisas bem e me dedicar às coisas que eu estava fazendo. Acho que aprendi muito a correr atrás das coisas e me virar. Acho que os momentos que tive de restrição financeira na minha família também ajudaram a buscar caminhos e correr atrás. A postura dos meus pais não foi assim: “Ah, vamos cortar tudo.” Eles também foram buscando caminhos pra tentar manter as coisas e buscar dar o próximo passo. Acho que essa questão de me dedicar, de querer fazer as coisas bem, de correr atrás, sempre foram meio constantes na minha vida. Quando eu fui fazer mestrado fora, por exemplo, fui com uma bolsa. Demorou três anos pra eu conseguir a bolsa, poderia ter desistido no meio. Foi difícil no primeiro ano, tentar três anos, mas valeu a pena. Valeu muito a pena. Eu ganhei uma bolsa integral. Acho que foi uma constante ir atrás, não desistir. Depois que eu entrei na USP, o curso de Relações Internacionais mudou muito a minha cabeça, abriu a cabeça. Hoje em dia, eu vejo as coisas não só aqui em São Paulo ou no Brasil: “Ah, eu tenho um problema. Puxa, onde no mundo tem a solução para esse problema?” Hoje em dia eu não restrinjo mais as soluções. “Onde no mundo eu posso achar um parceiro, uma linha de financiamento”? Aí, vou atrás. Acho que é isso.

P/1 – Quais são seus sonhos hoje?

R – Meus sonhos? Olha, difícil essa pergunta. Eu tenho como sonho continuar... Realmente, eu sou uma pessoa bem realizada, eu não tenho grandes... Eu tenho o sonho de continuar tendo uma família bem estruturada, tenho o sonho, vontade, de ter filhos, e tenho o sonho, vontade, de continuar fazendo projetos que façam sentido e que tenham sentido para as coisas que eu acredito, que mudem, que gerem algum tipo de transformação. Eu acho que tenho condições, pelo que fui construindo em termos pessoais, depois de formação e profissional, eu tenho condições de fazer coisas que gerem transformação para as pessoas com quem eu estou interagindo. Eu tenho o sonho de continuar fazendo esse tipo de coisa. Não sei nem se é um sonho isso, mas, enfim, uma vontade.

P/1 – O que você achou de contar a sua história aqui para o Museu?

R – Hoje à noite eu vou pensar mais sobre meu sonho.

P/1 – Você vai? (risos) Você volta depois, a gente grava mais um pedaço. É bom pra fazer pensar. As perguntas são boas pra gente pensar depois.

R – Não quero sair daqui: “Puxa, mas o cara não tem um sonho.”

P/1 – Tá ótimo. Tá ótimo. O que você achou da experiência de contar a sua história aqui para o Museu da Pessoa, que tá completando 25 anos este ano?

R – Nossa, foi super... Foi diferente, porque a gente não para pra refletir como a gente foi construindo a vida, a gente vai vivendo. A gente raramente faz isso de parar pra refletir como foi o caminhar da vida, as coisas boas e as coisas ruins. Pelo menos eu, que nunca fiz terapia, nunca paro muito pra dialogar com o outro sobre as questões da vida, contar as memórias, acho que foi muito interessante. Acho que foi bem interessante.

P/2 – Lembra quando eu te chamei, te convidei, você falou: “Ah, mas a minha história, acho que não tem muita coisa.” Como foi, diante da sua história?

R – Eu fiquei meio assim porque eu falei: “Puxa, mas eu sou tão novo.” Eu sou novo, relativamente, pra gravar a história de vida, a memória, parece uma coisa das pessoas mais anciãs, sábias. Falei: “Puxa, mas o que eu vou contar?” Mas sempre tem. Não sei se vocês esperavam mais os causos, ou não.

P/1 – Foi ótimo. Você é um excelente narrador.

R – Eu sou bem linear, né?

P/1 – Não, ótimo.

R – Eu sou bem linear. Minha cabeça é bem linear.

P/1 – Não, tá ótimo. Eu queria agradecer.

R – Tá bom. Obrigado, gente.

P/1 – Obrigada.

P/2 – Obrigada.