Programa Conte Sua História
Depoimento de Jefferson Silva Santos
Entrevistado por Felipe Rocha
São Paulo, 13/04/2017
Realização: Museu da Pessoa
PCSH_ HV555_ Jefferson Silva Santos
Transcrito por Karina Medici Barrella
Revisão: Paulo R. Ferreira
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P/1 – Primeiramente eu queria agradecer, Jefferson, pela sua participação no Programa Conte Sua História. A gente sempre começa perguntando o seu nome, o local e a data de nascimento.
R – Meu nome é Jefferson Silva Santos. Eu sou de São Paulo, Capital, nascido no dia 22 de setembro de 1978 e é uma honra, um privilégio estar aqui; eu é que agradeço a oportunidade de contar minha história para o Museu.
P/1 – E fala um pouquinho sobre seus pais, Jefferson. Qual o nome deles?
R – Minha mãe, falecida, chama-se Eleniusa Silva Santos; meu pai, Cosme Batista dos Santos. Ambos são falecidos.
P/1 – E o que eles faziam?
R – Meu pai era motorista, trabalhou muitos anos como motorista e depois se tornou comerciante, tinha comércio, bar, no bairro onde a gente morava. Minha mãe, costureira, trabalhou muitos anos como costureira, e no término da vida dela, estava trabalhando como empregada doméstica também.
P/1 – E como era o convívio na sua casa, como você descreveria a relação?
R – O nosso convívio era um convívio bem familiar mesmo, tinha um convívio bacana entre meu pai e minha mãe, eu e minha irmã; tínhamos um convívio normal, de uma família simples, de pessoas batalhadoras. Meu pai e minha mãe vieram da Bahia para trabalhar em São Paulo e eles se conheceram aqui em São Paulo. Então, construíram essa família e tinham um objetivo que era conseguir ser alguém na vida. Eles vieram para batalhar mesmo em São Paulo, meu pai como caminhoneiro, sempre trabalhando, minha mãe também. Meu pai tinha um lado, que eu herdei dele, que é a parte da generosidade - ele era muito generoso - tinha esse lado bom da generosidade. A minha mãe, uma pessoa de fé, aquela alegria, era a base ali, era a estrutura da família, era a minha mãe. Isso é o que eu tenho.
P/1 – Você sabe como eles se conheceram?
R – Eu sei pouco a história porque eles mudaram para um bairro, Jardim Dona Sinhá, e eles se conheceram lá. Ambos eram da Bahia, começaram a se
conhecer e depois foram para a Bahia para pedir a mão da minha mãe em casamento para os pais dela lá. Eles voltaram para São Paulo depois, e aí foi quando construíram a família, tiveram eu e minha irmã.
P/1 – Você falou que os dois vieram da Bahia. De onde que eles vêm? Você sabe um pouco sobre seus avós? Conhece a origem da família?
R – Sim. Minha mãe era de Itarantim, os pais dela de lá também, no interior da Bahia. E o meu pai era de uma cidade já um pouquinho maior, Ilhéus, já mais conhecida. Eles vieram e se encontraram aqui e, por coincidência, os dois eram baianos. O pouco que eu sei da história foi isso aí.
P/1 – E você falou um pouco da sua irmã. Você é o caçula, como que é?
R – Eu sou o mais velho, minha irmã é a caçula. Ele teve os dois filhos - eu, o Jefferson, e a Cristina, ambos do mesmo pai e da mesma mãe.
P/1 – Você sabe quando eles vieram para São Paulo?
R – Meados dos anos 1970 - 1975, 1976 - a data eu não lembro.
P/1 – E como você descreveria eles, de lembrança do convívio mesmo?
R – O que eu descrevo da minha mãe é aquela pessoa sempre alegre, batalhadora, uma pessoa que passou para nós a importância de fé, de acreditar num poder superior, de acreditar em Deus. Uma mulher que sempre teve... A imagem que me vem dela assim sempre foi batalhando, sempre trabalhou, sempre correu atrás para dar o melhor para os seus filhos, sempre incentivou o estudo, a leitura. Apesar da época, ela era uma mulher mais à frente, ela sempre tinha uma energia diferente, ela tinha uma espiritualidade diferente. E o meu pai já era aquele cara mais trabalhador braçal, aquele cara mais rústico, mais forte, mais enérgico, mais bravo, mais agressivo. Mas tinha um coração muito grande também; então, trago do meu pai essa imagem: um cara bravo, rústico ali, porém, de um coração muito bom.
P/1 – Você falou da casa no Jardim Dona Sinhá. Você lembra dessa casa?
R – Lembro, foi minha infância. Ali foi onde eu vivi toda a minha infância, foi lá que eu nasci. Jardim Dona Sinhá é uma periferia da Zona Leste, e nós nascemos lá. Então, nós vimos muitas coisas, muita situação difícil, muita dificuldade, pessoas ali com ‘n’ problemas com bebida, droga. A gente passou por tudo aqui, viu tudo aquilo e minha mãe sempre mostrava:
“Tá vendo isso? Eu acho que é uma coisa que vocês não devem ter na vida de vocês, esse caminho da bebida, das drogas, porque aqui tem muito isso, então você tem que ir para o outro lado, o lado do estudo, o lado do conhecimento, o lado da religião, o lado do esporte”. E o meu pai também tinha essa sabedoria. E ele até me botou para praticar esporte, com seis anos de idade. Então, ele já queria encaminhar seus filhos para um outro caminho, porque ele via que ali onde a gente estava você pode fazer parte do fruto do meio mesmo. Mas você pode, também, sair. Então ali eu vi muitos amigos meus se perderem na bebida, na droga, não tiveram oportunidade de fazer uma faculdade, de estudar, de ter um emprego. Então o bairro ali, o Jardim Dona Sinhá, é muito limitado nessa parte cultural, é um bairro bem, bem carente.
P/1 – Fica próximo a que região?
R – Na região de Sapopemba, próximo do Jardim Grimaldi, Barreira Grande.
P/1 – Você falou que teu pai te levou. Que esporte ele...?
R – O primeiro esporte que eu comecei a praticar foi a capoeira, eu tinha seis anos de idade. Eu entrei na capoeira e com dois, três meses ele me colocou para lutar com o filho de um amigo dele, o menino já treinava há dois, três anos. O moleque me bateu lá, tomei um pontapé no estômago. E aí ele falou: “Não, levanta! Não chora, não! Não chora, não”. Vamos, vamos, continua!” Aí eu fiquei meio assustado, com um pouco de medo ainda, mas fui, continuei. Depois eu entendi que ele queria que eu tivesse coragem, que eu não desistisse tão fácil das coisas, que o primeiro empecilho que aconteceu, o primeiro pontapé você já desistir... A minha vontade, realmente, na hora... Eu lembro desse sentimento agora ali, que eu chorei, e aí ele me fez engolir o choro e falou: “Não, homem não chora, vai lá, vai lutar”. E aí eu fui pegando um amor pelo esporte ali. E depois de um tempo treinando, esse menino ainda, mais para a frente a gente lutou de novo, e eu acabei ganhando dele várias outras vezes. Mas era tudo amigável; na verdade, nós éramos amigos de escola. Mas acabei ganhando dele na roda de capoeira ali, mas a lição que eu tirei foi que não pode desistir, não é? No primeiro obstáculo que tiver você desistir...
P/1 – Seu pai lhe levou para a capoeira, era uma... você falou que a região é carente. A capoeira era uma coisa que dava uma certa estrutura ali, nesse sentido de atender a essas necessidades?
R – Então... como você mora na periferia, você tem poucos lazeres, o governo não dá muitos benefícios, não tem escolinha de futebol. Então, lá, era o quê? O futebol na rua ou no campo. E aí tinha esse amigo do meu pai, que era o Mestre Itabuna, na época, e ele tinha uma Associação - Associação do bairro - e atendia o pessoal lá, que era uma forma também dele ganhar alguma coisa. Então o pessoal pagava e a gente ia lá fazer capoeira. E eu entrei desde pequeno já nessa Associação para praticar capoeira.
P/1 – Você gostava? Como era esse Mestre Itabuna para ensinar?
R – Não, gostava muito. Era um exemplo, porque você via a didática, a forma que ele abordava, e você via o pessoal mais velho que já praticava capoeira. Então você falava: “Puxa, eu quero chegar, eu quero ser igual a esse cara. É muito legal esse salto que ele está dando, como ele faz isso com o corpo?” A gente ficava deslumbrado, achava bonito isso. A capoeira é uma dança tradicional brasileira, que veio da Bahia, e tem toda uma origem, uma origem brasileira legal. E é gostoso você conhecer e praticar as músicas, escutar, eu gostava muito. Foi um momento da minha infância super marcante que eu vou guardar com muito carinho.
P/1 – E da casa em que você morava, você lembra como era a casa?
R – Lembro, lembro bem da casa onde nós morávamos. A primeira casa em que moramos, morava a minha família - que era meu pai, minha mãe, minha irmã e eu. Nos fundos, tinha a casa do primo dele, onde moravam o primo, a esposa e mais os filhos. Na casa da frente tinha o irmão dele, que morava com a esposa e mais a família. A mãe dele, quando veio da Bahia, ficou morando nesse mesmo quintal. Eu lembro que era um quintal grande, que tinha umas quatro, cinco casas, todas as casas com bastante crianças. Então, a gente vivia no quintal o tempo inteiro, com meus primos, tios... Era a família toda ali, a família toda do meu pai morava num quintal só, porque o pessoal vem do Nordeste para cá e vem trazendo, não é? Ele vem, aí traz o tio, traz o primo, traz o irmão, traz o cunhado e vai colocando tudo dentro de casa, não é? Vai colocando todo mundo lá. Então era um quintal cheio de crianças, brinquei muito com meus primos nessa época, no quintal.
P/1 – E do que vocês brincavam?
R – “Meu”, toda brincadeira de criança. Pega-pega, esconde-esconde, polícia e ladrão, ‘n’ brincadeiras - era o tempo inteiro correndo.
P/1 – Tinha alguma coisa dessa convivência com família, primo, tal, que te marcou? Algum momento que você fala: “putz”.
R – Ah, o momento gostoso era o convívio mesmo, não é? Estar todo mundo junto, dividir tudo o que tinha; se ia comer uma coisa, todo mundo comia o que tinha. No almoço sentava todo mundo junto para almoçar. Então, a lembrança que tenho é isso daí. E hoje, passado o tempo, nem tenho tanto contato mais porque cada um tomou um rumo e você acaba tendo as suas coisas também, então você acaba perdendo um pouco isso e cada um vai para um lugar e você não tem tanto contato, só quando relembra essas histórias aí.
P/1 – Tem alguma coisa meio tradicional que vocês costumavam fazer sempre?
R – Não, não tinha nada tradicional, não.
P/1 – E o que você mais gostava de fazer nessa fase da infância?
R – Eu sempre gostei muito de esporte. Eu gostava muito da capoeira e gostava muito de ficar correndo. Tinha as ruas lá e eu gostava de correr em volta das ruas, ficava correndo o tempo inteiro, era uma coisa que eu gostava muito. E o futebol, que era de praxe para a criança que morava na periferia; gostava muito de jogar futebol na rua, o tempo inteiro.
P/1 – Jogava na rua mesmo.
R – Jogava na rua. Fazia os golzinhos ali de pedra e jogava na rua. Descalço, estourava o dedão, machucava, arrancava a unha do dedo, chutava pedra.
P/1 – Tinha um timinho do bairro?
R – Tinha o timinho da rua, não é? Porque como eram várias ruas, a gente reunia a criançada da rua ali e fazia dividir o time, jogava ali. Rua de terra e futebol correndo.
P/1 – E quando você começa a estudar, você tem alguma lembrança do seu primeiro dia na escola?
R – Lembro. Lembro que para eu ir à escola era uma dificuldade porque eu não gostava muito de estudar, gostava mesmo era de brincar, de correr. Eu lembro de sair, até era um pouco mais longe, a gente tinha que fazer uma caminhadinha de uns dois, três quilômetros e eu lembro indo para a escola, lembro da minha infância, de não querer ficar na escola, sempre brigava na escola. Era um aluno bem peralta na época, então sempre tinha reclamação porque eu era hiperativo e não gostava de parar na sala, levantava, respondia o professor, tinha esse lance que eu era bem casca mesmo, era um moleque bem levado.
P/1 – Tem alguma passagem que foi meio marcante dessa escola aí? Algum professor, alguma coisa que você fez?
R – Ah, os professores a gente lembra com bastante carinho porque eles tinham muita paciência, muita criança. E a criançada bagunceira, todos bagunceiros, todo mundo já traz alguma coisa de casa ou da convivência, não sei, mas ia para a escola, chegava lá era o momento de todo mundo extravasar, todo mundo correr, e gritar, e brincar. Então, eu lembro muito de uma professora, Iara, que ela tinha uma paciência que era sobrenatural. Você via a forma como ela lidava, o carinho que ela tinha com cada um, aquele amor de cuidar daquelas crianças. Porque hoje, olhando, eu vejo que não era fácil, mas ela tinha toda essa didática aí, todo esse carinho para cuidar das crianças.
P/1 – E como era a escola? Como você ia?
R – Como eu falei, pelo fato de a gente ser bem simples eu ia de sapato, um sapatinho bem simples, aquele Conga - na época, era o Conga, o Kichute - o short vermelho e uma camiseta branca. E depois que a gente saiu do pré para a escola normal, era uma roupa normal mesmo, bem simplesinha, tênis. Já teve vez de ir de chinelo, mas geralmente era um tênis.
P/1 – Você ia a pé?
R – Ia a pé, sempre a pé.
P/1 – O que você queria ser quando você crescesse?
R – Desde criança eu sempre tive muita vontade do lado do sucesso, de ser alguém importante, de fazer... sei lá, ser um jogador de futebol. O meu sonho era ser um jogador de futebol, quando criança.
P/1 – Quem era o seu ídolo?
R – Na minha época tinha o Zico, que eu gostava bastante; depois veio o Romário. Tinha um jogador do Santos que eu me espelhava muito, que era o Almir, um jogador que eu achava fantástico. Então, eram pessoas que eu olhava e mexia muito comigo. Então, futebol era aquela coisa que eu tinha aquela paixão, aquele desejo de ser um jogador de futebol, que eu acho que é o sonho de toda criança da periferia, que sonha dar uma vida melhor para os seus pais, dar uma casa melhor. Ou é trabalhando, estudando, ou sendo um jogador de futebol. A gente via isso, que era uma forma de conseguir vencer na vida, através do futebol, do esporte.
P/1 – Para qual time você torce?
R – Eu sou santista.
P/1 – Santista.
R – É, eliminado pela Ponte (risos), santista.
P/1 – E você acompanhava jogo desde criança.
R – Acompanhei bastante. De uns anos para cá eu dei uma parada, mas sempre acompanhei, sempre gostei do futebol. Por eu estar muito ligado ao esporte desde criança, então assim... sempre gostei de estar praticando e sempre gostei de acompanhar. E o futebol é uma coisa que eu tive muita paixão, é uma coisa que foi muita paixão, foi uma paixão muito forte na minha vida. O futebol, sempre gostei muito, frequentei estádio, ganhei camiseta de jogador, frequentei na rua Javari, o Juventus. Tinha uma torcida organizada, que a gente saía do bairro todo mundo - tinha um rapaz que levava a gente para torcer para o Juventus, na Mooca. Então, foram os momentos mais alegres da minha infância ali, poder entrar naquele ônibus, fazer aquele batuque, o samba, poder ir para o Juventus, para a rua Javari, assistir ao jogo, voltar, xingar o pessoal na rua, sabe? Aquela coisa de estádio, de molecada. E terminava o jogo, a gente pulava o alambrado, ia lá, corria na grama, jogava bola, ganhava camiseta do jogador, ganhava meião. Então, isso para mim era muito legal, estar ali perto daquele foco do futebol, eu gostava muito disso daí. E em 2011 eu fiz uma cirurgia do joelho e parei com o futebol, não tinha mais condições de jogar. Aí eu acabei parando com o futebol, que era uma das paixões.
P/1 – Tem algum jogo marcante que você assistiu, que foi o...
R – Teve. Teve um jogo marcante, que foi Juventus e Corinthians, no Pacaembu. O Corinthians estava ganhando do Juventus e a gente estava na torcida, torcendo lá. Faltavam poucos minutos para acabar o jogo, o Juventus empatou e depois um jogador do Juventus fez um gol de bicicleta, o Silva, e foi a virada. Para mim aquilo foi uma coisa deslumbrante, que eu não esqueço nunca mais. O Pacaembu calou, todo mundo quieto e só meia dúzia de torcedores, um ônibus gritando. Foi uma coisa que me marcou muito. E uma outra, também, foi um jogo do Brasil e Uruguai, em 2003, uma eliminatória, em que o Romário fez dois gols. Essa também foi marcante, eu era criança, vi aquele jogo e falei: “Caramba, que fenômeno, o cara é demais”. Para mim foi muito marcante esse jogo também, Brasil e Uruguai.
P/1 – Qual estádio você gostou mais de frequentar?
R – Ah, o estádio que eu mais gostava, que tenho memórias boas, é o Pacaembu, um estádio que eu gosto muito, que fui mais vezes aqui. E o da rua Javari, na Mooca, também era a minha casa ali; quando eu era criança, adolescente, vivia lá o tempo inteiro. Então, foram os estádios que marcaram bastante aí.
P/1 – Então quando você vai entrando na adolescência, o que você mais faz, na verdade, é fazer esses passeios de futebol e acompanhar a torcida.
R – Isso. Na minha parte de adolescente foi isso, essa parte de futebol, torcida. Não era aquele cara muito chegado aos estudos. Então eu cabulava aula para fazer alguma coisa, para jogar bola, para correr. E meu pai falava: “Putz, esse menino não quer saber de nada”. Meu pai tinha um bar e ele pedia que eu ficasse no bar ajudando, mas eu sempre dava minhas escapadas. Eu ficava um pouquinho e sumia, ia jogar futebol, eu estava atrás de futebol aí. Brinquei bastante na minha infância, aproveitei.
P/1 – Como era esse bar do seu pai? Onde era? Lá no...
R – Era lá no Jardim Dona Sinhá, bem no meio da periferia mesmo. Então ali a gente conviveu, esse é um momento meio triste porque você via muitas pessoas se afundando muito na bebida, cigarro. E aí, você vê que o histórico de vida de todos acaba girando do mesmo jeito: bebida, cigarro, vai para casa e briga com a família. E aí acaba, com o passar do tempo, tendo doenças crônicas. Que hoje eu vejo assim: a família do meu pai, a maioria, com diabetes, hipertensão, cirrose, tudo relacionado à bebida, a uma alimentação não saudável. E eu acho, por tanto ter visto isso, eu acabei indo para o outro lado, o lado contra a bebida, contra as drogas, acabei indo para um lado mais da saúde, buscar uma alimentação mais saudável.
P/1 – E o bar era do seu pai mesmo?
R – O bar era do meu pai. E ele ficava o tempo inteiro lá, trabalhava lá, até que ele veio a ficar doente. Teve uma fase da vida dele que ele começou a ficar muito doente, até relacionado a isso, muita bebida, comida, gordura. E aí meu pai pegou diabetes, depois hipertensão. Então, meu pai teve uma série de complicações antes de vir a falecer. E tudo doenças crônicas relacionadas com hábito de vida sedentário, bebida e comida. Então eu acabei perdendo meu pai muito cedo por questão desses hábitos aí, cigarro...
P/1 – Quando seu pai veio a falecer?
R – Eu tinha dezesseis anos, foi no ano de 1997.
P/1 – E como foi para você enfrentar esse momento?
R – Para mim esse momento, quando eu soube da morte do meu pai, foi um momento que eu fiquei triste, lógico, você fica triste, você perde uma pessoa de quem você gosta muito. Mas, naquela situação, todo mundo entendeu que foi mais para ele descansar, porque ele vinha sofrendo demais, ele já vinha há alguns anos - quatro, cinco anos em cima de cama, doente. E como eu era o filho mais velho, tendo que fazer a barba dele, dar banho nele, levantar ele para ir até o banheiro, trocar a roupa. Então, assim... ele ficou completamente impotente em cima de uma cama, sendo cuidado pelos filhos. Minha mãe tinha que trabalhar, tinha que sair cedo, pegar o trem, trabalhar e eu ficava dentro de casa com a minha irmã porque eu não estava trabalhando ainda. Eu corria atrás de algumas coisas para cuidar do bar, e tal. E, ao mesmo tempo, ali cuidando dele. Então, quando eu soube que ele faleceu, nós já estávamos morando em Suzano, meu tio encostou o carro e eu falei: “Meu pai faleceu”. Na hora veio isso. Só que ele faleceu em Campos do Jordão, porque ele pegou uma tuberculose e foi para lá para tratar. E ficando lá, ele ficou uma semana em tratamento no Sanatorinhos lá e acabou vindo a falecer. Então essa época foi difícil, mas a gente entendeu assim: pelo menos ele descansou e que Deus guarde e fique em paz porque ele estava sofrendo demais aqui. E fazendo todas as pessoas que gostavam dele, automaticamente, sofrerem também. Então, para nós, foi esse momento.
P/1 – E você falou que vocês estavam em Suzano, por conta do seu pai...
R – Nós já tínhamos mudado. Mudamos do Jardim Dona Sinhá para Suzano, nessa fase em que meu pai veio a falecer, que era a época que eu tinha de dezesseis para dezessete anos.
P/1 – Por que vocês mudaram?
R – Nesse período, meu pai e minha mãe se separaram. Eles vieram a se separar e minha mãe ficou morando na casa de um tio, de aluguel, e meu pai ficou morando em um outro lugar. E eles vieram a se separar. E com essa separação, meu pai ficou mais doente porque não tinha quem cuidasse; aí ele se entregou mais às bebidas. E aí, um dia, minha mãe falou: “Vai ver seu pai porque ele está muito doente, não está legal”. E aí eu saí de onde nós morávamos, que era São Mateus, e fui até o Jardim Dona Sinhá. Quando eu cheguei, que eu o vi, eu não reconheci. Eu olhei, meus olhos encheram de lágrimas. Eu falei: “Nossa, meu pai? Caramba, ele está acabado, está destruído”. Aí falei com ele, dei um abraço e ele me levou onde ele estava morando. Quando eu vi a situação dele, o lugar onde ele estava dormindo, o que ele estava comendo, aquilo me gerou um sentimento de muita tristeza, eu falei: “Puxa, não é possível”. Eu voltei e contei para minha mãe. E aí a minha mãe falou assim: “Não, vamos pegar e colocar ele em casa de novo, não vamos deixar morrer assim”. E aí a minha mãe trouxe ele para dentro de casa de novo, ele ficou morando com a gente. E nisso, como ele já tinha desfeito tudo, separado, dividido os bens, a minha mãe, falando com uma prima dela, que morava em Suzano, falou que queria mudar. E aí eles conseguiram uma casa em Suzano, no bairro do Miguel Badra. E aí nós fomos morar em Suzano. Uma casa muito simples, muito simples mesmo, uma casa que tinha dois cômodos e um banheiro, uma coisa pequena, mas era uma coisa nossa. Então minha mãe pegou meu pai de volta, trouxe, começamos a tratar. Aí nós fizemos uma reunião na família e falou: “Não tem condições, porque a gente está longe, não tem ninguém perto, duas crianças, eu não tenho como sair do meu emprego para cuidar dele, vamos achar algum lugar que possa cuidar”. E os irmãos dele falaram: “Vamos fazer isso”. Aí conseguimos um lar que cuida de pessoas doentes e levamos meu pai para lá, e eles começaram a cuidar do meu pai. E todo final de semana a gente ia visitá-lo. Só que o estado dele foi se agravando e esse lugar mesmo onde ele estava, mandou ele para Campos do Jordão para fazer o tratamento. E aí foi quando ele não resistiu e veio a falecer lá em Campos do Jordão. E aí ficamos só eu, minha mãe e minha irmã em Suzano, morando nessa casa.
P/1 – Nessa época, sua mãe é que acabou sustentando.
R – Minha mãe que sustentava todo mundo. Ela trabalhava como costureira, numa fábrica onde ela trabalhou por vinte e cinco anos. E aí ela acabou sustentando todo mundo ali.
P/1 – E nesse meio tempo, você falou que estava ajudando seu pai com o bar, de vez em quando, aí ele veio complicar, etc. De vez em quando você dava umas fugas da escola. O que você foi arranjando nesse período?
R – Então... nesse período em que meu pai veio a ficar doente, eu comecei a perder essa infância, esse lado da brincadeira, de futebol e comecei a ter mais responsabilidades. Porque eu precisava ajudar minha mãe, eu precisava trabalhar, eu precisava correr atrás para poder ajudar de alguma forma. Meu pai estava no hospital, eu ficava a noite inteira lá cuidando dele, na visita eu tinha que ir, essas coisas que eu comecei a tomar mais conta. O bar, eu tive que ficar um período tomando conta. Depois tive que vender o bar para a gente mudar. E aí entrou um período em que eu comecei a ter mais responsabilidade, porque aí eu já comecei a fazer alguns bicos, tudo o que entrava era para ajudar em casa. Foi quando, logo em seguida, veio a morte do meu pai. E aí foi onde a gente aumentou mais ainda a minha responsabilidade porque era arrimo de família, não tinha mais o meu pai, só era eu, minha mãe e minha irmã. E eu precisava ajudar minha mãe porque a renda dela, sozinha, também ficava muito apertada.
P/1 – Que tipo de bico você ia fazendo?
R – Cara, eu já trabalhei de tantas coisas nessa vida, “meu”. Desde servente de pedreiro, fazer colchão, trabalhei em fábrica de descascar cana para vender cana para o pessoal que faz caldo de cana…. Trabalhei em gráfica, trabalhei também como vendedor, trabalhei com sucata de caminhão - levar e buscar, comprar sucata com um outro senhor que tinha. Então, já fiz bastante coisa na minha vida nessa questão de trabalho, já trabalhei em bastantes lugares, fiz bastante bico.
P/1 – Você lembra qual foi seu primeiro dia de trabalho, como foi?
R – Meu primeiro dia de trabalho eu tinha seis anos para sete anos de idade. Meu pai falava que o homem tinha que trabalhar, então ele já queria educar que a gente começasse a trabalhar cedo. E tinha um primo dele que era padeiro. Quando eu entrei na escola, sete anos, nas férias da escola eu ia para a padaria com esse meu primo. Então, acordava quatro horas da manhã, pegava o ônibus com ele, chegava e ficava lá na padaria. Então, tudo o que tinha que fazer para ajudar dentro da padaria. Ele era padeiro: “Ah, pega tal coisa”, eu ia, pegava. “Pega os pãezinhos, faz isso, limpa a masseira”. Então, eu sempre estava ali trabalhando, ajudando. Aí trabalhava até umas três, quatro horas da tarde e depois vinha embora.
P/1 – O primeiro dinheirinho que você ganhou você deu para ajudar em casa, ou você...
R – Nessa época aí da padaria eu nem lembro de ter pego dinheiro, em espécie, na mão. Lembro que eu ia, ganhava chocolate, tal, não tinha muito essa... era mais essa responsabilidade de acordar cedo e estar ali. E o meu primeiro empreendimento foi vender vela. Um dia de finados, eu peguei um dinheirinho do bar do meu pai, comprei uma caixa de velas e fui para o cemitério da Vila Formosa vender velas lá. E aí eu vendi velas e lembro que a gente não vendeu muito - eu levei um amigo meu. E a gente dividiu, foi o primeiro dinheirinho que eu conquistei. Voltamos com um monte de pacote de vela, mas ganhamos alguma coisa, entendeu? Deu para comprar algumas bolinhas de gude e um sorvete na rua.
P/1 – Legal. E voltando a essa fase pós falecimento do seu pai. Você estava ali, fazendo os bicos, com a sua mãe, e como foi enfrentar essas responsabilidades todas?
R – Então... aquela situação... você vai fazendo meio que no automático, você não tem outra opção, você não tem aquela opção de: “Ah, não vou fazer”. Não, quando você precisa ser forte, a única opção é ser forte; você não tem opção de pensar. E não tinha muito o que fazer. Então eu tinha que ir para a luta, tinha que trabalhar, tinha que ajudar mesmo, não tinha muito.... Tinha que acordar cedo, tinha que aceitar o primeiro emprego que aparecesse. “‘Meu’, é para encher laje”. “Então vamos encher laje”. Eu lembro, nessa fase, antes do falecimento do meu pai, que tem uma época bem marcante da minha vida, que eu vendi sorvete. Então, foi uma época assim -
porque você perguntou do dinheiro - foi onde eu ganhei gosto em ganhar dinheiro, porque eu vendia muito sorvete e ganhava uma porcentagem, ficava vendendo sorvete. Eu era um dos meninos que mais vendiam sorvete, então eu conseguia, para aquela época, para a idade que eu tinha, uma quantia significativa: “Nossa, ganhei muito dinheiro”. Na época, foi uma coisa que eu peguei gosto em batalhar e conquistar esse dinheiro. Então eu já sabia como que tinha que ser. E depois da morte do meu pai não tinha tempo ruim, eu não escolhia serviço. E eu sempre gostei de fazer esporte, tinha um corpo forte, então eu pegava o que aparecia. “Ah, é para descarregar e carregar fralda”. Eu ia. “É para trabalhar de servente de pedreiro”. Eu ia. “Ah, é para vender tal coisa”. Eu ia. Então não tinha tempo ruim, sempre estava fazendo alguma coisa.
P/1 – Tá legal. E você teve alguma namorada nessa fase de juventude?
R – Nessa época, não. Tinha as menininhas que beijavam ali, tal, mas nada de namoro sério - nessa época, não.
P/1 – E quando você começa a ter contato com as drogas, etc?
R – O contato que eu começo a ter com as drogas já é na fase adulta, na fase de vinte e cinco, vinte e seis anos anos, já na fase da faculdade, no período em que eu já tinha entrado na faculdade. Já tinha passado esse período de perder meu pai, o período de estar conquistando ali o meu espaço, trabalhar. Aí aparece uma oportunidade, num churrasco, de eu ir e fazer uma faculdade - ganhei uma bolsa de 40%. E aí, dentro da faculdade, eu via o pessoal conversando, tal, fumar maconha, então já tinha aquilo ali, já acontecia, já estava no meio. Só que o período crítico da minha vida com as drogas foi após a morte da minha mãe, foi o período em que eu descobri que a minha mãe estava doente e, após três meses que descobrimos que ela estava doente, ela veio a falecer. Então eu entrei em depressão. E esse sentimento de tristeza, esse sentimento de inabilidade de lidar com perder alguma coisa, eu fiquei muito fragilizado. E aí eu já conhecia, uns amigos chamavam: “Vamos aí, vamos sair, vamos fazer tal coisa”. Eu ia e sempre usava, porque o meio que a gente andava, um ou outro não usava, e esse um ou outro era eu e mais uns dois, que nunca usavam droga. E aí eu comecei a usar. E foi quando eu comecei a ter conhecimento das drogas e fui aumentando o grau, e foi aí que eu comecei a entrar por esse caminho, que é um caminho sem volta, mas, graças a Deus, consegui voltar.
P/1 – Voltando um pouquinho, que curso você fez na faculdade?
R – Eu fiz Educação Física.
P/1 – Você gostava do curso?
R – Muito, amava. Eu enxerguei que a Educação Física era uma oportunidade que eu tinha de ser alguém na vida, de ter uma formação, de poder ter uma vida melhor, de ter uma profissão. E depois que eu entrei, eu comecei a enxergar que a Educação Física para mim era uma missão de vida porque eu era gordinho quando criança e tinha uns traumas com isso. E quando eu comecei a trabalhar com isso, eu vi que era minha missão ajudar outras pessoas a cuidarem da saúde, a cuidarem da vida. Inclusive muitas pessoas que passaram pela minha mão como personal, eu via ali o meu pai, via a minha mãe. Então, eu colocava todo o amor, todo o carinho para eu poder ajudar, para tentar melhorar, dar uma longevidade, dar uma pouco mais de saúde.
P/1 – Você sofreu algum tipo de bullying, alguma coisa do tipo?
R – Ah, mas coisa normal, bem simples, nada que marcasse, não. Porque era meio gordinho, eu mesmo era meio preconceituoso comigo, não é? Mas não que as pessoas brincassem. Isso não chegou a ter, não.
P/1 – E foi uma experiência legal quando você entrou na faculdade?
R – Foi, foi uma experiência legal, foi uma experiência diferente, poder, de toda a família, ser o primeiro cara a estar entrando numa faculdade, estar fazendo um curso superior, que, para todos da família do meu pai, da minha mãe, era uma coisa meio impossível naquela época. Então, eu estar fazendo isso, foi algo legal para mim. Não pelo outro, mas por mim mesmo, porque eu enxergava ali a minha oportunidade de vida, não é?
P/1 – E teve algum momento marcante nesse curso?
R – Teve. Teve vários momentos marcantes, mas o que mais me marcou foi no último semestre, que foi a entrega do TCC. Porque foi tudo acontecendo. Eu trabalhava já na área, estava trabalhando em São Paulo. Eu fui entregar e a faculdade sumiu com o meu TCC, com meu trabalho. O coordenador do curso falou que sumiu. Então, isso me gerou uma tristeza muito grande, eu não recebi a nota na hora. E isso foi no ano de 2005. No ano de 2006 entrou a morte da minha mãe. Então, esse turbilhão de sentimentos foi uma coisa que marcou não positivo e me sobrecarregou, me gerou um estresse. E aí eu acho que, decorrente de todo esse estresse, eu acabei descarregando tudo nas drogas ali.
P/1 – Onde você fez o curso?
R – Em Suzano, na faculdade Unisuz.
P/1 – Que não é a mesma que depois você lançou o livro, não é?
R – Não.
P/1 – E vamos falar um pouco mais agora: como foi esse período? Como vocês descobriram sobre a doença da sua mãe?
R – Então... minha mãe, na virada de ano de 2005 para... reclamava de muitas dores. E a gente sempre via ela sentada com a mão no abdômen, ela ia muitas vezes ao banheiro e ficava quieta, estava ficando meio abatida, começou a perder muito peso e a gente perguntou: “Mãe, está tudo bem? O que está acontecendo?” E ela: “Não sei, não estou legal, estou indo no banheiro direto, qualquer coisa que eu como me dá vontade de ir ao banheiro”. Aí ela começou a fazer uns exames pensando que fosse hepatite e não era. Aí falou: “‘Meu’, que será?”. Aí ela me falou, a gente conversou e fez uns exames e veio... no exame falou que ela estava com câncer. Eu liguei para um amigo meu, de São Paulo, que era onde eu trabalhava, fazia estágio, eu contei e ele falou: “‘Meu’, vamos ver se a gente consegue arrumar uma vaga para ela no hospital”. E conseguiram, no Beneficência Portuguesa. E fazendo todo o diagnóstico descobriu que ela estava com câncer. Esse dia foi o dia em que eu chorei tudo o que eu tinha para chorar. Quando o médico chamou, precisava falar com alguém da família, e aí eu fui até lá. E minha mãe já estava internada, tinha acabado de sair todos os exames dela e o médico olhou para mim, pôs a mão no meu ombro e falou assim: “Você é o filho dela mais velho?” “Sim”. “Então... a situação da sua mãe é grave, não tem mais o que fazer, o câncer já tomou todos os órgãos vitais dela, todos os órgãos estão comprometidos. Se você tiver fé em alguma coisa, pede para Deus porque o que a gente vai poder fazer é uma quimioterapia, uma radio, para tentar matar um pouco, mas já está tudo tomado, então”. Então já sabia o final, não é? Então, quando eu voltei para o quarto, eu engoli o choro, olhei para ela, ela me perguntou: “E aí?”. Eu falei: “Mãe, a senhora vai ficar bem, a única coisa é que a senhora vai ter que ficar carequinha igual eu, vai ter que cortar o cabelo”. Minha mãe era muito vaidosa. Eu falei: “Vai ficar bonita, tal, a senhora raspa carequinha, mas a senhora vai ficar bem, vai sair dessa”. Ela ficou meio assim, minha mãe não era boba, ela entendeu, e eu vim embora. E eu vim embora com essas informações. E eu vim na Ayrton Senna chorando o tempo inteiro na moto - peguei a moto de um primo meu emprestada - e vim chorando a viagem inteira, sabendo o final. E aí, chegando em casa, como é que eu ia contar isso para a minha irmã? Dar essa notícia? Aí eu omiti: “Não, a mãe está bem, vai fazer a quimio, vai ficar boa, tal”. Mas minha irmã entendeu que não era bem aquilo. E, com o passar do tempo, minha mãe saiu do hospital. Aí ela teve uma melhora, ela teve aquele suspiro, ficou uma semana bem, fez um almoço, convidou os familiares, ela cozinhou para todo mundo. E aí aquele almoço parecia que foi um almoço de despedida mesmo, ela fez um almoço para se despedir de todo mundo que estava ali. E nessa semana, depois do almoço, ela veio a falecer, numa quarta, quinta-feira.
P/1 – Como que foi esse almoço, o dia?
R – Foi um dia muito alegre, porque estavam as pessoas de que ela gostava. Estavam os parentes do meu pai, algumas pessoas, a irmã dela, o marido, as sobrinhas dela. Porque ela tinha um amor muito grande pelas sobrinhas, estava todo mundo ali. Então, ela cozinhou bastante, fez bastante almoço, almoçou, o pessoal ficou o dia inteiro ali e depois foi embora. E aí ela já começou a segunda-feira meio ruinzinha, voltou para a cama, aí à base de morfina, sentindo dor o tempo inteiro. E eu chegava do serviço tarde, olhava, ela na cama, gemendo de dor, a gente dormia e acordava de madrugada com ela gemendo, sempre com muita dor. E aí, no decorrer dessa semana, eu saí porque eu já tinha uma academia nessa época, eu saí para ir para a academia. Minha irmã ficou em casa e depois minha irmã saiu para fazer algumas compras e deixou uma tia e uma prima cuidando da minha mãe. Aí, minha prima me ligou e falou: “Vem para casa que sua mãe não está legal, ela está estranha, não está bem”. E ligou para minha irmã também. Minha irmã falou: “Já estou indo, calma aí”. Minha irmã foi, chegou primeiro do que eu. Entrou, tal, olhou minha mãe, e quando eu cheguei ela estava na cama já, assim nos últimos suspiros. Assim que eu entrei no quarto, que eu peguei na mão dela, ela terminou de fechar os olhos, foi a hora que ela... parecia que ela estava esperando eu chegar para falecer mesmo, para terminar de fechar os olhos. Ai, minha mãe faleceu e começou todo aquele processo de ligar, de correr atrás, de velório, enterro, sua cabeça fica a duzentos por hora. Eu liguei para um amigo meu, para ele me ajudar a fazer isso porque eu não tinha estrutura emocional para fazer nada, estava meio perdido. E tinha que cuidar da minha irmã, a minha avó estava ali, a mãe dela, as minhas tias. Foi um dia bem difícil, um dia bem doído.
P/1 – E esse momento de você chegar, você tem ele bem vivido.
R – Eu revivi ele agora, esse momento de entrar no quarto, de ver minha mãe naquela situação, de pegar na mão dela e de ver os olhos dela fechando, foi um momento de partida, de despedida, muito doido. A morte, por mais que a gente espere, no momento ela é muito dolorida, não é?
P/1 – Você falou que a sua mãe sempre teve uma força espiritual muito forte. Você acha que ela, ao longo desse processo, você acha que ela se apoiou bem nisso?
R – Sim, eu acredito que sim. Ela sabia que estava para partir, ela entendia isso. Ela aceitava isso, ela tinha que aceitar e ela tinha essa aceitação da morte; ela não era uma pessoa mal resolvida. Só que ela sabia que era uma doença grave, que a situação dela estava difícil. A gente não sabe medir o quanto ela estava sofrendo, a gente sabe pelas dores, pelo gemido, mas a gente não sabe o quanto ela estava sofrendo, o quanto ela estava se preparando ali para ir e tal.
P/1 – E qual o momento posterior a essa perda que você acha que foi o gatilho para você entrar em depressão?
R – Acho que a partir do momento que você volta para casa, que você olha e não está mais ali aquela pessoa, que passa uma semana e você fala:
“Caramba, cadê a minha mãe? É real mesmo, ela morreu, não vai voltar, cadê minha mãe?”. Então, você começa a se perguntar um monte de coisa, você começa a questionar um monte de coisa, você começa a se culpar, de repente, por alguma coisa, você não entende, não é? Então você fala: “Pô, poderia ter feito isso, poderia ter feito aquilo, não poderia ter feito isso”. E aí eu acho que essa confusão de sentimento, de pensamentos, começa a te levar para um lado mais negativo, começa a abaixar a sua vibração, a sua energia, e você começa a ficar mais... tende a ficar mais sozinho, não é? Porque a depressão, na verdade, é isso. É você se isolar das outras pessoas e entrar no seu mundo. E aí você começa a viver no mundo dos seus pensamentos, sua cabeça ali, que eu acho que é onde você acaba se afundando, quando você acha que quer viver só os seus pensamentos. E, naquele momento, é um pensamento destrutivo, é um pensamento negativo, vai te atrair mais coisas negativas, você vai para o lado mais negativo. Foi aí que eu comecei a fazer mais uso, porque a droga te dá uma sensação de bem-estar. Mesmo que seja pouca, aquela euforia, aquele prazer imediato, ele existe. É ilusório? É ilusório, o problema não vai resolver, só que você não enxerga isso na hora. E você vai anestesiando aquela dor, todo momento que você está com aquela dor, a tristeza, a falta, o vazio, você vai preenchendo. Só que com isso a droga te causa uma dependência química também, porque esse lado emocional ela preenche, mas e a dependência química que o seu corpo começa a ter? Porque a substância da droga, do crack, da cocaína, ela te dá isso, então você começa a ficar dependente quimicamente. E em terceiro vem a parte mental, então a sua sanidade você já começa a perder. Você começa a ter as atitudes que não são atitudes de uma pessoa que está normal, uma pessoa que está lúcida. Até porque você não está lúcido, você está usando um entorpecente que tira o seu estado normal; então você começa a ter atitudes de uma pessoa que não está lúcida. E você vai se afundando e, quando você vê, já está no fundo do poço mesmo - literalmente no fundo do poço.
P/1 – E como você começou a buscar...
R – Buscar a usar a droga?
P/1 – Isso.
R – Foi através de companhias. De amigo. E assim, você acha: “‘Meu’, a hora que eu quiser parar eu paro, eu vou sair hoje, vou usar, não tem problema”. E aquele auto engano, que você acha que, realmente, você vai parar na hora que você quiser. Como eu acabei de dizer, essa dependência química não te deixa parar a hora que você quer, seu corpo faz você usar sem querer. E, a partir do momento em que você descobre que isso é uma doença, que você já não tem mais controle sobre essa doença, aí você já está no automático, você já está usando sem saber por quê, você já começa a ficar escravo da droga. Porque a adicção é a escravidão. Então você começa a ser um escravo da adicção, que é a dependência química. E eu comecei a buscar, através de amigos, pessoas que estavam ali, que encostei, que usavam. “Vamos, vamos”. Como está próximo, você acaba fazendo mais uso. Não os culpo, a responsabilidade foi minha; porém, estava ali de fácil acesso. De repente, se estivesse com outros tipos de amigos, com outras pessoas, não teria acontecido isso. Mas, hoje, eu acredito que tem um porquê, tinha que passar por tudo isso. Então, adquiri muita sabedoria, muitas coisas eu tive que aprender nesse período.
P/1 – Você falou agora que teve um momento em que você tomou consciência, mas que já é difícil voltar atrás. Teve esse momento? Quando você olhou e falou: “Putz”.
R – Teve esse momento. Teve um momento que eu achava que eu ia parar. Eu falei: “‘Meu’, a hora que eu quiser parar, eu paro”. E nesse período, minha mãe já tinha falecido, estávamos eu e a minha irmã morando e eu arrumei um emprego numa academia. E aí o cara falou para mim: “Você começa na segunda-feira”. Eu fui na quinta-feira, fiz entrevista, o cara gostou, olhou meu currículo, tal, tinha boas referências porque já tinha trabalhado em bons lugares. E ele falou: “Você volta na quinta-feira”. Eu voltei e falei: “‘Meu’, a partir de agora eu não vou mais usar. Eu já arrumei um emprego, agora está na hora de eu estabilizar e começar minha vida de novo. Parei”. Só que eu falei isso lá na hora em que eu saí. Quando chegou em casa, eu falei: “Não, mas eu vou fumar um para comemorar, não é? Vou usar para comemorar”. Que é uma justificativa que o usuário tem. “Puxa, se está bom ele usa porque está legal. Se está triste ele usa porque está triste”. Aí eu fui e usei. Eu falei: “Ah ‘meu’, já que já usou, agora vou direto”. Eu entrei dentro da garagem da minha casa e fiquei usando até altas horas. E a minha irmã chegou e viu aquela situação e falou: “‘Meu’, acho que é hora de você procurar uma ajuda, você não tem condições”. Eu falei: “Não, eu tenho”. Ela falou: “Você não tem”. Aí, beleza, passou. No outro dia, eu falei: “Hoje eu vou ficar tranquilo, não vou usar”. Fiquei o dia inteiro e, no final do dia, usei. “Mas aí é sexta-feira, não é, ‘meu’? Sexta-feira, beleza, vou sair com os amigos e vou arrebentar porque na segunda-feira eu paro de vez”. No sábado: “Ah ‘meu’, estou no campo, vou jogar futebol, mas aí eu uso porque é sabadão também, não é, ‘meu’? Já é sábado, já uso e pronto”. Falei: “Mas domingo não vou usar, porque segunda-feira eu começo de cara limpa e começo uma nova história’. E acordei nesse pensamento no domingo. Aí a sua mente para você. E nesse mesmo domingo eu falei: “Não, mas é o último, é o último domingo, tenho que fechar. Hoje é o último dia, então vou parar aqui, vou fumar o último para acabar”. Aí fumei no domingo. Na segunda-feira eu acordei e falei: “Não, agora hoje é cara limpa, realmente eu não preciso mais disso, vou começar minha nova vida”. Eu acordei, aí foi o momento mais doído, que é quando você usa a droga sem a vontade de usar, porque aí eu comecei a lutar: “Não vou, não vou fazer isso, não vou”. Eu tinha consciência de que eu não podia usar, eu tinha consciência de que eu precisava estar de cara limpa para poder começar, ingressar no novo emprego. E ali era a minha chance de começar o novo serviço, era a minha oportunidade. E aí eu comecei a lutar, lutar, e essa luta começou nove horas da manhã e foi para as dez, 10:10, 10:05, e aquilo, uma força maior do que eu me tomava, eu falava: “Não quero, não posso, eu não vou, não vou, não vou”. Até que eu fui mais fraco, não consegui e acabei usando. E aí eu comecei a usar em meados de meio-dia, uma hora e fiquei até à noite, não fui no emprego, perdi a oportunidade do emprego. Fiquei lá dentro da garagem, quando minha irmã chegou, ela falou: “‘Meu’, realmente não dá, você precisa de ajuda, você não tem condições, você não vai conseguir parar”. Foi a hora que eu tive o ‘start’ e falei: “Realmente, eu não consigo parar, eu preciso de ajuda”. E aí eu resolvi fazer uma internação, que foi minha primeira internação na casa de recuperação. Que daí, dessa casa de recuperação, nessa casa de recuperação é que eu vim a conhecer o que era a doença, o que era uma dependência química. Como poderia fazer para estabilizar essa doença, quais ferramentas eu teria que usar, por que razão eu fui parar ali, para quê. Então, comecei a entender algumas coisas. E aí eu entrei, mas mesmo para eu entrar na clínica, para chegar até ali, foi uma luta. Porque eu achava que não ia. Como assim? Eu era atleta, fazendo faculdade, personal, como eu vou ser internado? Não tem como, não dá, não vou fazer isso, que lugar é esse? Esse lugar não é para mim. Não é aqui que eu quero, não vou ficar aqui. E o meu amigo chegou oito horas para me internar, ele acabou me levando, eram quase onze horas da noite, porque eu entrava e saía da porta: “Eu vou. Não, não vou. Vou, não vou”. E fiquei nessa ambivalência por horas, até que fui. Chegou na clínica, a mesma coisa: “Não vou ficar, vou ficar; não vou, vou”. Completamente insano, porque uma parte racional fala para você: “‘Meu’, você tem que ficar”. Só que aquela parte que eu estou falando, de dependência da química, fala: “‘Meu’, eu quero usar”. E eu fiquei nessa até que um senhor que estava lá falou: “Se permita. Se permita ficar”. Eu falei: “‘Meu’, vou escutar o que esse cara está falando, vou ver”. Foi quando eu fiquei e comecei a entender o que estava acontecendo comigo, comecei a entender sobre o processo, sobre a dependência química. E aí eu fiz um tratamento de quatro meses, que é o período mínimo, saí. Quando saí, já comecei a trabalhar, já comecei uma vida normal, e não sabia ainda lidar com as coisas no mundo aqui fora. Eu fiquei uns quinze dias bem e depois eu tive uma recaída de novo.
P/1 – E o que você usava?
R – Como todo mundo, eu comecei usando a maconha. Da maconha veio o mesclado, que é a maconha com crack. E aí eu comecei a fazer uso da maconha com crack, que foi o que me pegou mesmo nesse período, que foi um período maior aí de uso; foi essa maconha com crack que gerou toda essa dependência. E no final, que foi o final mais destrutivo, foi onde eu comecei a usar o crack puro, que é só o crack, o cachimbo, essas coisas todas aí. Que foi quando eu comecei
a destruir tudo, quando eu comecei a vender casa, vender carro, vender academia, vender moto, vender batente de porta, vender geladeira, vender fogão, vender as panelas, vender a soleira, vender pia de mármore, torneira, chuveiro. Eu cheguei a depenar a casa inteira que minha mãe deixou, eu vendi tudo. Você já não tem mais consciência do que está fazendo, já vive em prol da droga, você só respira aquilo, você só pensa como você vai conseguir dinheiro para usar a droga.
P/1 – Isso foi depois dessa recaída que você teve?
R – Isso.
P/1 – Como foi essa recaída?
R – Essa recaída... Eu comecei a trabalhar e, trabalhando, peguei um dinheiro, o primeiro pagamento que eu recebi ali eu passei em frente ao lugar que vendia, olhei, vi a biqueira. Já me deu uma sensação, poderia experimentar, mas: “‘Meu’, eu posso usar”. O cara acha que ele pode, ele não tem consciência de que, a partir do momento em que você parou, você não pode mais voltar, porque você não tem controle sobre aquela situação. Só que, até então, eu não sabia disso. E aí eu falei: “Ah, eu uso hoje, e amanhã eu vou trabalhar normal”. Eu usei um dia, usei o outro, usei o outro. E a moça que tinha me dado o emprego falou para mim: “Jeff, se você voltar, me avisa, porque a gente já te interna automaticamente para você não fazer besteira”. Eu falei: “Tá bom”. Eu cheguei nela e falei: “Estou recaído”. Ela falou: “‘Meu’, volta para a clínica, vai se tratar e tal, não é tão fácil assim”. Eu voltei para a clínica e fiquei mais uns dois meses, saí. Não lembro se foram dois meses. Saí, fiquei bem mais um tempo, conheci essa moça, que é a mãe do meu filho, a Tatiane. E ela sabia um pouco da minha história. Comecei a trabalhar, comecei a me estruturar de novo, fiquei uns meses, três, quatro meses limpo. E com a inabilidade também de lidar com relacionamento, com sentimento, nós brigamos, veio a desconfiança, eu vim a brigar com ela e voltei a usar de novo, que foi a queda que chegou no fundo do poço, a queda mais forte para mim, que foi a última recaída.
P/1 – E como que foi... o que é esse fundo do poço?
R – Foi onde eu já senti que não tinha mais para onde eu ir, não tinha mais ajuda, não é? Porque já tinha sido internado, as pessoas já tinham tentado ajudar, minha irmã já tinha ido embora de casa. Então aí, eu acredito que essa recaída foi para morrer, foi para a morte, eu vou usar até morrer. E quando eu comecei a usar compulsivamente foi onde entrou o período de eu começar a vender todas as coisas de casa, vender tudo e usar compulsivamente até chegar o número de oitenta pedras de crack no dia. E foi onde eu comecei a vender casa, vender carro, vender tudo. Comecei a morar de aluguel, de morar de aluguel eu fui morar na rua, dormir no banco de praça de Suzano, depois comecei a dormir dentro dos trens. E até que eu fui parar na Cracolândia e fui morar na Cracolândia. Fiquei morando lá durante três, quatro meses, morando nas ruas de São Paulo.
P/1 – Você se recorda dessa fase?
R – Recordo, recordo muito bem de toda essa fase aí. Porque como estava muito escravo das drogas, o lugar onde tinha drogas? Era ali. Então, inconsciente ou consciente, você vai mais próximo do seu semelhante, você vai buscar os semelhantes. E o que eu buscava era usar, o que eu queria era crack. E onde tinha o crack, o tempo inteiro, 24 horas por dia? Na Cracolândia. Então eu entrei ali e não tive mais força para sair. Porque era ali que eu queria estar, era ali que eu buscava, era aquilo ali que eu queria. Ali eu vi muitas coisas, eu sofri demais, muitas histórias de vida ali, muitas pessoas que saíram para comprar um cigarro e não voltaram mais; pessoas que vieram de outro estado para fazer uma entrevista de emprego, para trabalhar e chegaram ali, viraram moradores de rua e estão lá até hoje - ou não estão mais. Mas muitas pessoas como eu, pessoas boas, de coração bom, que chegaram ali e não conseguiram sair. Vi morte ali dentro, pessoas chegarem de terno e
gravata e morrerem ali dentro. Você vê artista ali dentro, você vê muita coisa nas ruas, vê muita coisa ali dentro da Cracolândia.
P/1 – Qual foi a história que você viu lá que marcou mais?
R – A história mais marcante para mim ali foi ver as crianças. Criança mesmo, de dois, três anos de idade, completamente dependente químico do crack. Você falava: “Putz, o menino não vai ter um futuro”. E olhava aquilo ali, as mulheres grávidas usando, as brigas, aquela loucura. O pessoal se matando por causa de uma pedra de crack. Mas teve uma história que me marcou demais, uma, duas histórias. Uma foi um rapaz que chegou de terno e gravata, começou a usar e sentou na marquise ali para usar a droga e aí outros usuários viram o cara com dinheiro, terno, acabaram esfaqueando o cara e matando o cara lá. O cara ficou caído e eles levaram o celular, tomaram tudo e o cara ficou lá como indigente, até a polícia chegar. Foi uma coisa que eu falei: “Nossa, o negócio aqui é sério, é feio”. E a outra foi um rapaz, um adolescente, que chegou com a mochila, começou a usar e saiu com uns rapazes e depois nunca mais eu vi aquele menino ali. E aí perguntei dele e ninguém queria falar, não sei para onde foi, se ele voltou para a casa dele, se não voltou nunca mais, eu não sei. Sei que ele saiu e eu fiquei pensando: “Pô, o que será que aconteceu com esse rapaz?”. Depois eu perguntei e vi que o pessoal disfarçava a conversa, não sei qual o fim dessa história. Mas foram coisas que me marcaram muito, e eu sabia que se você vacilasse um minuto ali você poderia ser o próximo. Ali é briga o tempo inteiro, o ambiente é hostil. Então, você tem que viver sempre esperto, sempre de olho, porque ali a confusão é o tempo inteiro. Mas as coisas que me marcaram, que doía demais, era ver as crianças. Era ver aquelas crianças usando drogas com quatro, cinco anos de idade. É desumano! É muito triste ver aquilo, é muito triste você olhar para um ser humano e saber que não... você não consegue ver um futuro, você não consegue ver aquela criança amanhã fazendo nada. Você não sabe. Você vê a criminalidade hoje, você vê como está aquela criança, é aquele adolescente que vai estar roubando no farol, aquele menino que vai estar matando um pai de família. E aí você vê que o governo é tanta coisa, tanta roubalheira, e você fala: “Com tão pouco poderia fazer alguma coisa por quem está ali. Putz, será que se tivesse um projeto, alguma coisa para ajudar...”. Você fica completamente impotente, é muito ruim, muito triste.
P/1 – E como era o dia a dia ali, acordar, a rotina? Como era viver ali?
R – Então... o dia a dia ali, para todos, eu acredito que seja igual: todo mundo acorda pensando como que vai conseguir a primeira pedra de crack, como você vai conquistar aquilo, como você vai comprar. Um sai para vender, o outro sai para limpar o parabrisa de um carro, outro sai para roubar, outro sai para pedir. Cada um sai fazendo, como diz na gíria deles, o seu ‘corre para conseguir’. Um sai para traficar, e aí vai da coragem de cada um. Eu nunca tive coragem de roubar, de fazer essas coisas, então ia pedir nas estações dinheiro para pegar um trem e manipular pessoas e falar que ia vender um livro, pegava um dinheiro e acabava voltando para usar. Tinha uma história que eu fazia sempre, era um cartão telefônico e eu chegava na estação do Metrô e ficava oferecendo para as pessoas comprarem o cartão, o cartão não tinha unidade. E aí as pessoas davam um real, dava cinquenta centavos, eu ia juntando dinheiro até conseguir a quantidade que eu precisava para usar e ia fazer uso da droga.
P/1 – E como você sai disso?
R – Eu saio após a minha prisão, após ter ficado preso um ano e quatro meses por furto. Eu fui preso na Cracolândia, fiquei quarenta e cinco dias preso; saí, pedi ajuda para minha família. E eles com medo, sem confiar, não ajudaram. E eu continuei mais doze dias na rua e fui preso novamente. E aí, nessa segunda prisão, eu entendi que ali era o que eu precisava, aquela prisão ali. E foi onde eu tive um contato maior com Deus, com um poder superior, foi onde eu me agarrei muito a uma força maior, a Deus, e falei: “Deus, se realmente você existe, se você ajudou tanta gente, faz isso na minha vida, muda, eu não aguento mais, onde eu vim parar. Olha, o cara que sonhava ser um jogador de futebol, aquele cara que viveu do esporte, aquele cara que estava fazendo faculdade, dando personal, olha onde eu vim parar, dentro de uma viatura. Me ajuda, eu não consigo mais”. E, chegando ali na delegacia, liguei para um amigo meu e ele pegou um dos melhores advogados de Suzano, foi lá. Esse advogado olhou para mim, olhou para ele e falou: “‘Meu’, eu não posso fazer nada. Eu poderia montar aqui e tirar você, mas não sei se é a coisa certa”. E depois ele falou para esse meu amigo... eu fiquei sabendo agora, essa semana, que ele falou assim: “Se eu fizer isso, amanhã ele vai estar prejudicando outra pessoa. E eu não quero ser cúmplice disso. Deixa ele aí, é o melhor lugar para ele, hoje”. E depois eu vim a entender que, realmente, era o melhor lugar para mim. Foi aquele remédio amargo, era o remédio amargo de que eu precisava, era aquela prisão. Foi ali que eu consegui ficar por um bom período limpo, sem drogas, um bom período, passar todas as fases da abstinência ali dentro. Então, foi ali que eu consegui tratar a parte química, a parte fisiológica. E, com a parte da oração, da parte espiritual, eu consegui também tratar a minha parte, que é a parte mental. Quando eu saí da prisão foi quando eu comecei a mudar a minha vida. Só que dentro da prisão eu já fui estruturando ela. Então, eu já sabia o que queria, já comecei a ler bastante, já sabia para onde ia, o foco, qual era o meu objetivo. Então, o tempo que eu fiquei preso, eu fiquei me ressignificando, me estruturando para quando eu saísse eu colocasse em prática aquilo. E tinha uma das coisas que eu sabia muito, que era muito claro: que a sociedade não ia estar de braços abertos para mim, que nem todo mundo ia estar me esperando. Eu fiquei um bom período sem ir em churrasco, um bom período sem ir no meio porque, se sumisse alguma coisa... se falasse alguma coisa, poderia me contrariar e eu falar: “Putz”. De repente, some um celular num churrasco. Mesmo que você não tenha feito nada, a culpa vai em quem? Acaba indo em você. Aconteceu até um lance desse numa academia, sumiu um celular e aí: “Puta, quem será?” “Deve ter sido esse cara”. Porque o cara já tem uma mancha ali, não é? Então, eu sabia que tinha que me afastar de tudo isso. E quando eu saí, no ano de 2010, no dia 30 de abril, eu saí com uma calça jeans, um tênis e uma camiseta, mais nada. Saí e eu tinha duas certezas, só duas coisas eu tinha certeza: que eu não queria mais voltar para a prisão e que eu não iria mais usar drogas. Essas duas coisas eu tinha. Como ia ser minha vida dali para frente, eu não sabia, eu tinha entregue totalmente a minha vida a um poder superior, tinha entregue a minha vida a Deus e falei: “Deus, seja feita a sua vontade, vou para um albergue, vou trabalhar, vou fazer o que for, eu nunca tive medo do trabalho, nunca tive dificuldade em conversar, em fazer alguma coisa, mas eu quero uma nova vida, eu vou começar uma nova vida”. E eu, saindo numa sexta-feira, fui para Suzano. Tenho um amigo meu, cabeleireiro, fui até o salão dele, fiquei lá o dia inteiro. A sobrinha dele foi uma pessoa que me ajudou muito dentro da prisão. Eu, preso, ela me mandava o que o pessoal chama de jumbo, não é? Mandava para lá, ajudava com uma pasta de dente, sabonete, ia me visitar, me levava alguma coisa. E quando eu saí eu fiquei esse dia no salão. No sábado pela manhã, quando eu acordei, um casal de amigos meus - o Rodrigo e a Lamara - o Rodrigo veio e falou assim: “Eu não sei por que eu estou fazendo isso, mas Deus mandou fazer, vamos até o shopping”. Eu fui até o shopping com ele e ele chegou lá e me comprou calça, camisa, tênis, meia, cueca e falou: “Deus está mandando te dar, é seu”. Aquela roupa que eu tinha só uma peça já se multiplicou em três, quatro. E aí eu comecei a acreditar, realmente, que tinha uma força maior que estava me ajudando ali. E nesse mesmo dia, naquele sábado, dia 31, teve o casamento de uma amiga minha e ela falou: “Jeff, você já saiu, vai lá no casamento”. Falei: “Vou sim”. E essa moça foi comigo, eu fui até o casamento. E, no casamento, eu encontrei outras pessoas, encontrei inclusive um amigo meu, Genildo, que foi o cara que me internou pela primeira vez. E aí o Genildo falou: “Pô, que legal que você está bem, engordou, está legal. O Júlio perguntou de você”. O Júlio é o dono da clínica onde eu fiquei internado. E ele queria saber como eu estava, por onde eu tinha andado, e ele falou: “Ele está começando uma vida nova também, o Júlio está montando uma outra clínica e ele perguntou de você, se você estava por onde, tal. “Pera” aí”. Chamou ele no rádio, conversou com ele e falou: “Sabe quem está aqui do meu lado? O Jefferson”. “Pô, esse negão está aí? Que legal, bacana. ‘Meu’, ele não quer vir trabalhar comigo?” Eu falei: “Puxa, lógico que eu quero, cara. Eu preciso disso”. No sábado, a festa; no domingo de manhã Genildo me pegou, me levou para a clínica e eu comecei a trabalhar na clínica desse rapaz. O meu salário lá era um banho e um prato de comida e um lugar para dormir, porque eu não tinha isso. E eu fui trabalhar na clínica para ajudar outros dependentes. Fiquei um tempo lá, até que as coisas lá... Eu comecei a ver muita coisa bagunçada, enfim, eu comecei a procurar algo diferente, eu queria algo mais. Eu falei: “Vou entregar currículo nas academias”. Eu comecei a entregar currículo nas academias do Tatuapé e a mulher dele falou para ele: “Esse cara está aqui, mas ele não vai ficar porque ele já está entregando currículo, ele quer ir para a área dele, não sei se vale a pena dar comida, roupa lavada e estadia para ele aqui, se ele já está procurando outra coisa”. Naquele sábado o cara me mandou embora. E eu saí, fui para uma sala de NA, que é onde os dependentes químicos se encontram para fazer reuniões, para participar, para partilhar.
P/1 – Você estava indo às sessões?
R – Sim, estava indo a todas as sessões.
P/1 – Quando você começou a frequentar?
R – Assim que eu saí, eu fiquei... o máximo de reuniões que eu pudesse ir, eu ia. Só que, na sala de NA, tinha um outro lance que me pegava muito, a parte da espiritualidade. Eu achava legal, mas, ao mesmo tempo, eu achava pesado. Então, eu ia mais na igreja, eu ia mais buscar a parte espiritual dentro da igreja e pouco na sala, mas frequentei bastante a sala de NA.
P/1 – E como era esse trabalho em que você ficou esse tempo com o pessoal na clínica, como que era você trabalhando com o pessoal que está numa condição em que você já esteve?
R – É legal porque ali você vê que são todos semelhantes, não é? Só que eu estou um tempinho sem uso e eles estão no uso, mas a doença é a mesma, o comportamento, aí eu tenho que me observar para não fazer igual. E eles têm que ver em mim um comportamento diferente para eles seguirem, não é? Aí a minha ajuda era ajudar eles mesmos, fazer as tarefas diárias deles ali. E aí corria esse trabalho dentro da clínica para ajudar os outros dependentes.
P/1 – E você falou que depois ele lhe mandou embora e você foi para a sala de NA.
R – Fui para a sala de NA. Saindo da sala de NA eu não tinha mais para onde ir porque ele já tinha me mandado embora, eu estava com uma bolsa com algumas peças de roupa que eu tinha ganho, inclusive com a que o Rodrigo me deu. E aí eu tinha um celular, que essa moça tinha me dado, o Rodrigo me ligou, pedindo para eu voltar para Suzano que ele precisava conversar comigo. E eu nem pensei, peguei o trem e voltei para Suzano. Chegando em Suzano, foi aquela grande surpresa: “E aí, Rodrigo, tudo bem, tal?” “Minha sogra está te convidando para morar com ela”. “Mas como assim? Eu nem conheço sua sogra”. Aí você vê que, realmente, Deus põe pessoas na sua vida. Colocou a dona Dorcas, que é uma senhora que eu amo, que eu coloquei como minha mãe, que ela fez um papel que eu acredito que poucos seres humanos possam fazer: pegar uma pessoa que está saindo de uma prisão, de uma clínica, e pôr dentro de casa. E eu estava lá embaixo, ela me colocou no último andar, naquele apartamento, e a família toda dela aceitou. As filhas dela - ela tinha duas filhas, já mulheres, os filhos, e todo mundo: “Mas quem é esse rapaz? De onde ele veio, quem que é?” “É amigo do Rodrigo. O Rodrigo me contou a história dele e eu trouxe ele pra morar aqui”. E ficou morando eu, o Rodrigo, a esposa e a sogra dele. E eu fiquei um período ali, uns três, quatro meses, e todo o dinheiro que eu pegava - eu voltei a trabalhar - eu dava para dona Dorcas, colocava esse dinheiro na mão dela. Até que eu consegui juntar 750 reais. E aí, um dia, eu acordei, deu um estalo e eu falei: “Meu’, vou embora”. Eu fiz uma oração e falei: “‘Meu’, vou embora”. “Mas como assim você vai embora?” “Eu vou embora”. Eu saí na rua de Suzano, a Rua Tiradentes, fui andando e perguntei para uma amiga minha: “Você sabe onde tem um quitinete, alguma coisa para alugar?” Ela falou: “Sei, aqui do lado da farmácia tem”. Aí cheguei lá, bati palma, saiu uma senhora, dona Maria. “A senhora tem quitinete?” Ela falou: “Tem”. “Posso dar uma olhada?” “Pode”. Eu olhei, um cômodo com banheiro. “Por quanto a senhora aluga?” Ela falou o valor, eu falei: “A senhora não pode fazer mais barato, tal, eu estou começando a minha vida, não sei o quê”. Ela falou: “É 300 reais, mas eu faço por 250 se você pagar dois meses adiantado”. Eu falei: “Tá bom”. Voltei para a casa da dona Dorcas e falei para ela: “Dona Dorcas, eu estou indo embora”. Ela ficou assustada, todo mundo ficou assustado. “Como assim, você está indo embora para onde? O que você vai fazer da sua vida, você está maluco? Não é assim”. Eu falei: “Não, eu estou indo embora e eu preciso dar um passo, eu preciso caminhar sozinho, eu preciso ser homem e assumir minha responsabilidade. Obrigado, a senhora me ajudou demais até aqui, mas eu preciso seguir”. “Tá bom”. Ela tinha 750 reais, me deu, eu fui lá e paguei 500 de aluguel e fui morar nessa quitinete, que só tinha uma cama e mais nada. E eu entrei e, nesse mesmo dia em que eu estava lá, eu debrucei sobre a janela, fiquei parado. E aí parou um carro, eu vi um rapaz mexendo no carro no chão ali, tal. Quando eu vi era um amigo meu, Thiago. Ele falou: “Oi Jeff, tudo bem?” Eu falei: “Tudo bem, e você?” “O que você está fazendo aí?” “Eu estou morando aqui”. “Você está morando aí, é?” Porque ele nem sabia que eu tinha saído da prisão. “Estou, estou morando aqui”. “Puxa, que legal, faz quanto tempo que você saiu?” Ele entrou, viu minhas condições, não falou nada, ele falou: “Você tem algum celular?” “Tenho”. Passei o número do celular para ele, ele foi embora, passou uns quarenta minutos mais ou menos, ele me ligou: “Jeff, estou com umas coisas aqui da Nestlé, cara, que a gente tirou do mercado, não sei se eu jogo fora, mas são coisas que estão boas, não estão estragadas. É porque amassou a lata e não pode deixar na gôndola e meu chefe falou que eu podia levar embora. Tenho muita coisa dessa em casa, muito chocolate, muita farinha láctea. Você não quer?” Eu falei: “Poxa vida, lógico que eu quero!”. Ele trouxe, eu olhei assim e falei: “O aluguel está pago dois meses, tenho comida aí, não vou passar fome, agora só depende de mim, só depende da minha força de vontade, de eu querer mesmo”. E foi onde eu comecei a correr atrás de emprego, comecei a entregar currículo, comecei a ir nas academias. Até que uma amiga minha falou: “Jefferson, tem uma academia no Tatuapé que vai pegar, eles estão precisando de um professor”. Eu vim até a academia, entreguei um currículo, no outro dia liguei. “Não, calma, não é assim, tem todo um processo”. Passou o outro dia eu liguei de novo, aí de novo, o rapaz já estava até falando: “Cara chato”. Eu falei: “Eu posso ir aí conversar com o senhor?” Ele falou: “Pode”. Eu falei: “Eu só preciso trabalhar, me dá uma oportunidade para eu trabalhar, eu só quero isso, mais nada. O senhor me dá uma chance?” Aí o rapaz começou a entender. Eu falei: “Vamos fazer o seguinte: que horário o senhor precisa?”. Ele falou: “De uma até às dezoito”. Eu falei: “Me dê a oportunidade de um dia. Se o senhor não gostar do meu trabalho não tem problema, eu não peço mais, eu não venho mais aqui, mas me dê uma oportunidade”. Ele falou: “Está bom, então pega o uniforme e vem amanhã”. Eu voltei no outro dia, cheguei lá meio-dia e vinte, esperei, quando deu uma hora eu comecei a trabalhar. E aí, todo ansioso, querendo mostrar serviço. Deu uma hora não apareceu ninguém, duas horas ninguém, três horas da tarde ninguém, quatro horas da tarde ninguém. Eu falei: “Puxa vida, não vai vir ninguém na academia nesse período, como que eu vou mostrar o serviço para o cara?”. Cinco horas da tarde chegou uma aluna, depois chegaram mais duas, aí eu comecei a mostrar serviço, comecei a trabalhar. Quando deu seis horas, a academia encheu. Que é o horário de pico, realmente, da academia. A academia encheu, aí era a hora de eu ir embora. Ele veio e eu falei: “Não, não, vou ficar até fechar”. Eu comecei a trabalhar e vai, corre para lá, vem para cá, comecei a mostrar exercício, corrigia a postura, respiração, e o pessoal começou a falar: “Quem é esse cara, ‘meu’? O cara chegou aí mexendo no treino das pessoas, dando dica, ajudando, falando sobre respiração, sobre a postura corporal. ‘Meu’, legal esse professor aí, gente boa, dá uma atenção”. Aí o senhor ficou lá de cima só me vendo. E nisso que eu trabalhei, terminei, fui embora e ele: “Você está contratado, você começa amanhã”. Ele me deu essa oportunidade. E quando eu fui sair de lá eu contei para ele a minha história, por que razão eu precisava tanto daquele emprego. Que aquele emprego, para mim, era uma porta de um novo começo, de uma nova vida, porque o homem sem emprego também não é nada. E aí, depois desse emprego, eu comecei a fazer o que eu sempre fiz, que era trabalhar como personal. Até que eu comecei a conquistar clientes, clientes, clientes e eu cheguei num número de clientes de personal muito difícil para um personal atender - 35 pessoas. E eu tinha 35 alunos. Então eu comecei a ter uma receita boa, comecei a ter uma aceitação legal, comecei a trabalhar com pessoas de um poder aquisitivo melhor, empresários, políticos, todo esse pessoal. E aí o meu nome foi ficando mais forte e a minha história foi passando, eu fui conquistando, até que eu conheci uma moça, foi onde a gente montou a Performance, que é o centro de treinamento. Montamos em sociedade, que é onde eu tenho a academia hoje, montamos em sociedade e ficamos dois anos juntos de sociedade, até que nós terminamos a sociedade, eu comprei a parte dela e hoje a Performance está tocando, estou sozinho.
P/1 – Como que foi nessa primeira academia, voltar a trabalhar? A fazer o que você gosta, depois de tanto tempo?
R – Então... para mim, ali eu só via a minha oportunidade de voltar para a sociedade. Deus está me dando uma chance de fazer o meu melhor, então é padrão de excelência, vou dar o meu melhor. E aí, depois desse meu começo, eu coloquei isso como meta na minha vida: fazer tudo bem feito, fazer com maestria. Então, na minha parte profissional eu me dedicava demais, não tinha preguiça, não tinha horário, não tinha frio, não tinha calor, não tinha nada. Até porque, tudo isso eu passei dentro da prisão: passei frio, passei fome, passei calor. Então qualquer coisa que eu tivesse que superar fora da prisão, para mim era fichinha. Eu superava qualquer trem lotado, qualquer dor de cabeça, qualquer feriado, qualquer Carnaval. Para mim não tinha dia, só tinha trabalho, trabalho, trabalho, trabalho. E não saía. Só em busca de conseguir alguma coisa, de batalhar para voltar a conquistar o meu caráter, conquistar a minha imagem perante as pessoas também. Mesmo eu sabendo o que eu queria, mas muitas pessoas desconfiavam, muitas pessoas falavam: “‘Meu’, esse cara, é só questão de tempo ele vai recair, esse cara aí não tem jeito, não vai ficar limpo não”. Isso são as adversidades que você tem que enfrentar depois que você passa pelo mundo das drogas, não é? Porque as pessoas não confiam em você.
P/1 – E personal? Como foi esse começo?
R – Foi um começo que uma amiga minha, ela me viu passando, ela tinha uma auto-escola e me viu passando: “E aí, Jeff, tudo bem? Você está de volta?” “Estou”. “Como que é, tal?”, contou. Eu falei: “Então, Roberta, eu estou tirando meus documentos”. Estava trabalhando na clínica nessa época. Eu peguei e falei para ela: “Estou tirando meus documentos, estou sem habilitação e estou correndo atrás”. Ela falou: “Ah é? Então vou te ajudar. Você vai tirar a habilitação, você vai pagar só o atestado médico, pode deixar que o resto eu te dou”. Eu falei: “Tá bom, Deus a abençoe”. Aí tirei minha habilitação, comecei a ter mais contato com ela e ela falou: “Mas você já voltou a dar aula? Você está como personal?”. Eu falei: “Estou”. Ela falou: “Quanto você cobra?”. Eu falei. Ela: “Então vou ser sua primeira aluna”. Falei: “Legal”. E peguei ela como aluna. E já estava dando aula nessa academia, no Tatuapé. Eu fiquei com ela de personal, em Suzano, e dando aula nessa academia. Chegou o final do ano, teve uma academia em Poá que precisou de professor para cobrir férias, eu fiquei dando aula, preenchendo essas férias também. Terminou esse período em Poá e eu peguei uma outra aluna em Poá, por indicação. Eu peguei essa aluna, que também já sabia da minha história, e falou: “Sua amiga me contou de você, tal, vou te dar uma força”. E eu fiquei com essas duas alunas. E essa Roberta, eu atendia numa academia. Chegou um dia que não deu certo, tivemos que sair da academia e a gente começou a procurar um monte de academia em Suzano para atendê-la. E ela não se identificou. Até que chegamos em uma academia, a Fitness Center, ela entrou e falou: “Gostei daqui, me identifiquei”. Eu conversei com o dono, ele pediu que eu levasse o Cref, a documentação, se estava tudo ok, e eu comecei a atender ela lá. E, a partir do momento em que aquela porta se abriu, eu comecei a atender ela ali dentro, começaram a aparecer muitos alunos. Apareceram duas moças que queriam fazer personal, que já tinham ouvido falar do meu trabalho, começaram a fazer personal comigo. E um dia, do nada, eu vi um casal, o Felipe e a Karina, estavam sentados, eles tinham acabado de chegar de lua de mel, estavam bem obesos e eu os abordei, falei:
“Se vocês quiserem fazer um trabalho, tal, eu sou personal”. E eles: “Não, vamos fazer”. E os dois começaram a fazer um trabalho comigo e minha cartela de cliente começou a vir. E eles dois deram resultado: ela emagreceu muito, ele perdeu vinte e cinco quilos em três meses. Todo mundo falou: “Nossa, o trabalho desse cara é bom”. E eu comecei a fazer meu nome de novo e começou essa volta, o pessoal começou a procurar e conhecer novas pessoas. Comecei a atender dentro dos prédios, comecei a atender dentro das academias, então saía de uma cidade e ia para outra. Eu acordava cinco horas e chegava em casa às dez, então era o tempo inteiro correndo, atendendo os alunos de personal.
P/1 – E você achou que estava na hora de começar um negócio próprio?
R – Eu senti que já não tinha mais para onde expandir. Senti que eu já estava limitado - trinta e cinco alunos - só que eu não tenho vida, não saio, não durmo direito, estou comendo mal, não tenho tempo para treinar, só trabalho, ganho uma quantia ali legal, mas e aí? O que eu faço? Eu preciso ampliar a minha mente, os meus horizontes. Foi quando eu comecei a ter uma ideia de montar alguma coisa, um espaço para atender, porque em vez de eu ficar me deslocando, se eu tivesse um espaço meu seria melhor. E eu conversei com um amigo meu, ele falou: “Vamos ver”. Mas acho que ele não acreditou muito. Eu conversei com um outro amigo meu: “Ah, vamos ver”. E também não acreditou muito. Foi quando eu conheci a Marcela, que essa moça pegou e falou: “Mas você tem algum projeto? Você tem alguma coisa?”. Eu falei: “Tenho. Eu tenho isso aqui, minha ideia é essa. E eu tenho tanto de dinheiro”. Ela falou: “Eu tenho a mesma quantia”. Falei: “Então vamos montar uma academia”. “Vamos, vamos procurar ponto”. Começamos a procurar ponto, ela falou: “Minha tia tem um ponto para alugar, vamos lá dar uma olhada?” “Vamos”. Olhamos e falamos: “‘Meu’, é aqui, então vamos começar”. E num período de um mês, um mês e pouquinho, montamos uma academia junto. E a gente começou desde o comecinho mesmo, pintar, puxar grama, pegar aparelho, montar, nós dois ali, os dois trabalhando das seis da manhã - que era a hora que a gente abria a academia - até às nove da noite. Então, a gente trabalhava das seis às nove, os dois ali o tempo inteiro juntos. E a gente fez isso por quase um ano. E também eu vi que eu estava trocando seis por meia dúzia, estava como personal e estava desgastando, estava como empresário e também estava desgastando. Eu falei: “Marcela, preciso pegar um professor para ajudar”. “Beleza”. Contratamos um professor e começamos a dividir as tarefas. E ficamos nessa sociedade por dois anos, até que terminou a sociedade e eu acabei comprando a parte dela e ela saiu da sociedade, foi onde eu comecei a tocar sozinho e viver esse lado de empresário, de empreendedor.
P/1 – O que é a Performance Training para você?
R – Ah, é uma conquista, cara. É uma satisfação, é você falar assim:
“Valeu a pena, valeu a pena ter batalhado tanto e hoje eu estou com essa responsabilidade”. Porque não é fácil, não está nada garantido, mas é uma responsabilidade. Você vê as pessoas ali dentro que dependem de você para o salário, para comer, para tudo. Você fala assim: “Eu tenho uma responsabilidade a mais de ser líder dessas pessoas aqui”. Eu tenho essa satisfação de olhar hoje a nova Performance e ver tudo aquilo ali e falar: “Putz, valeu a pena ter batalhado tanto e é fruto do meu esforço, fruto do que eu corri atrás aí e sempre busquei”. E deixar claro que todo mundo pode também, basta você correr atrás e batalhar.
P/1 – E quando você decidiu escrever o livro? Como veio essa ideia?
R – Essa ideia do livro veio dentro da prisão. Eu via muitas coisas e ia anotando, ia escrevendo. Como eu disse, lá dentro, foi um momento de me ressignificar. Então, ali dentro a cabeça não pode ficar vazia porque você está ali dentro mas você tem que saber o que você quer da sua vida, não é? Então eu estava lá dentro e eu sabia que era uma passagem, mas eu não era fruto do meio, eu não era um bandido, eu não era um cara que ia sair dali e continuar naquela vida, não ia sair dali e fazer coisa errada. Ia sair dali e começar uma nova vida. Então eu comecei a estruturar minha vida dentro da prisão, eu comecei a escrever um livro pelas histórias que eu vi lá dentro, pelo que eu passei na clínica, pelo que eu vivi na rua. E eu comecei a escrever e a ideia foi tentar escrever um livro para ajudar outras pessoas, para deixar esse livro para uma pessoa que vai ler e vai falar: “Putz, esse cara conseguiu sair dessa, eu também posso. Se esse cara passou por tudo isso e saiu, eu também posso”. A ideia foi essa. Então, foi daí que veio a ideia do livro, Desequilíbrio Constante.
P/1 – E como foi para você escrever e colocar tudo isso no papel?
R – Então... como eu já vinha fazendo, foi mais fácil. Só que a parte gramatical, a parte de correção tinha que ser alguém profissional, tinha que ser alguém que faça isso. Foi quando eu conheci o Sady, que é um escritor, um cara que faz isso, trabalha com isso e Deus colocou o Sady ali na minha vida. A gente conversou, acertamos valores, ele falou: “Eu vou fazer e vou te ajudar aí, cara, estou com você”. O Sady assumiu essa parte e me entregou aquilo ali mastigado, indicou uma editora, mandamos para a editora, aí conseguimos alguns apoios para ajudar a imprimir, para ajudar a encadernar, ajudar a fazer o livro. Fizemos o lançamento e foi um sucesso, porque eu esperava vinte, trinta pessoas e a menina falou: “Se vierem cinco, seis não fique chateado porque lançamento de livro é assim”. A surpresa foi tão grande que teve trezentas pessoas no lançamento, foi uma coisa que todo mundo falou: “Nossa, como assim?” Foi uma coisa bacana também, foi uma conquista bem legal.
P/1 – A gente estava comentando lá fora, nesse meio tempo você volta e retoma também os esportes, não é?
R – Sim.
P/1 – Como foi essa volta a fazer os esportes? Você já praticava jiu-jitsu antes, você volta e começa a praticar depois. Como que é?
R – Como eu disse, a minha infância toda teve a parte do esporte. Houve o período em que eu tive que parar algumas coisas, mas eu nunca parei cem por cento. E o jiu-jitsu foi assim: meu pai faleceu, eu tinha que trabalhar, ajudar em casa, mas teve período que eu trabalhava e o dinheiro que eu ganhava era só para pagar o jiu-jitsu. Eu conheci o jiu-jitsu através de um amigo meu, que ele gostava, ele praticava e ele precisava de alguém para ele treinar. Então, chegava no sábado e no domingo, ele montava o tatame na garagem dele, me levava, chegava lá e me batia, me espancava bem lá, me mostrava como era e eu fui pegando o gosto por isso, não é? E eu consegui entrar para a academia, e conseguia pegar a bicicleta, ir até a academia, pagava. Aí, teve um outro amigo meu que eu levei para o jiu-jitsu, a gente já ia de motinho. O jiu-jitsu foi uma coisa bem legal, só que eu tive que interromper. Na melhor fase minha, do jiu-jitsu, que eu estava já ali para graduar, indo para os campeonatos, era novo, era forte, aí veio a parte da faculdade e ficou aquela situação: a faculdade, o jiu-jitsu. Vou viver do jiu-jitsu? A faculdade pode me dar um futuro, o jiu-jitsu também. Pode ser que se eu tivesse continuado, teria tido um futuro no jiu-jitsu, ou não. Eu tive que optar e a vida é feita de escolhas. E a minha escolha foi a faculdade e eu parei realmente o jiu-jitsu. Mas falei: “Um dia eu volto”. E eu parei, fui para a faculdade, aí veio o período da morte da minha mãe, veio todo esse processo das drogas, internação, e eu fiquei longe. E em 2012, 2013, eu já pensei em voltar, já estava com a vida mais estruturada, eu falei: “‘Meu’, eu preciso voltar”. E eu voltei para o jiu-jitsu em 2013. Voltei, fiquei, parei, voltei, continuei. E ia indo, mas estava ali. Só que, em 2014, depois que eu montei a Performance, eu falei: “‘Meu’, vou pegar firme, eu quero voltar”. Eu voltei firme e já voltei treinando direto, sempre, aí comecei: ia treinar com o Leandro, que é um cara do jiu-jitsu top, um mestre mesmo, um cara que é conhecido, e comecei a treinar e me inscrever nos campeonatos, me federei, fui na Federação, fiz minha filiação, comecei a participar e começaram a vir os resultados, fruto do esforço. Comecei a participar e comecei a ganhar - campeão panamericano, sulamericano, vice-campeão, vários campeonatos, e começaram a vir os resultados. Mas é uma paixão que eu tenho desde criança e que hoje ainda pratico, gosto daquela adrenalina, daquela competição, eu gosto daquela vibe, daquela energia, eu gosto daquilo, eu tenho isso dentro de mim, essa adrenalina. Então o jiu-jitsu para mim é uma válvula de escape hoje, meu trabalho, mas o jiu-jitsu é o que me faz reviver.
P/1 – Por que você acha que escolheu o jiu-jitsu?
R – Acho que muito está ligado a essa luta, luta mesmo; a minha vida sempre foi uma luta. Então, acho que está muito ligado a essa luta, a esse ganha-perde-cai-levanta-apanha-chora. Que nem quando eu falei que era criança lá e tomei o chute, tentei desistir, mas não desisti, voltei. E o jiu-jitsu é aquele contato, contato ali pessoal, não sei, é uma coisa de que eu gosto muito, não sei uma explicação.
P/1 – E disputar um campeonato de peso, que nem o Panamericano que você ganhou, como é disputar um campeonato desses?
R – É difícil porque quando eu fui para esse campeonato, em Ubatuba, tem toda uma pressão - apesar de você não querer sentir, mas tem. Você está ali, tem outras pessoas querendo ganhar também, então o cara quer dar o melhor dele, você tem que dar o seu melhor. E esse campeonato, no dia em que eu fui para o campeonato, eu soube do falecimento de um amigo nosso, que era do jiu-jitsu, e eu falei: “‘Meu’, eu vou ganhar esse campeonato de qualquer jeito, em homenagem ao Frank. Porque é um cara que treinou com a gente, um senhor, e hoje não está mais aí, mas eu vou dar o meu melhor”. Então foi um campeonato marcante para mim, foi um campeonato em que, realmente, eu lutei com a alma, que você luta com aquele sentimento: “Aconteça o que acontecer, eu não vou perder, cara”. E teve situação, na segunda luta, de eu sair perdendo a luta, o cara estar ali forte e eu falei: “Não”. Eu tirei força de onde eu não imaginava, eu fui mais forte do que tudo para dar a volta por cima ali, para reverter o jogo. Então eu consegui reverter e acabar sendo campeão. Eu gosto dessa garra, dessa luta, eu gosto de lutar.
P/1 – Voltando um pouquinho agora, eu queria que você contasse essa história do seu filho, como se dá melhor, esse negócio de perda, reencontro.
R – Então... a história do meu filho, foi no momento mais conturbado ali que eu soube que a mãe dele estava grávida. Eu não estava lúcido. Quando ela me falou, eu já estava recaído, estava no meio das drogas. E eu estava morando com ela. Recaí, depois de um mês ela apareceu e falou: “‘Meu’, estou grávida”. Para mim aquela informação... Até porque o pessoal que está nas drogas é super desconfiado. Eu falei: “Não, você está grávida, mas não é meu”. “É”. “Não é”. Ficou naquela briga, e ela falava que era e eu falava que não era. E começaram as brigas - eu, ela, a mãe dela, família. Toda aquela energia ali e ela passando por esse processo. Depois eu soube que nasceu a criança, quando eu já estava preso. Quando eu saí, que tem a parte de ressocialização, que você sai para visitar a família, eu fui, visitei, voltei. Só que eles não
queriam muito contato até porque, ‘meu’, presidiário... Ela já estava com outra pessoa, já tinha casado. Então, eu senti que tinha uma barreirinha aí. Eu tentei algumas vezes reconciliação, ir lá, ver. Só que eu, pessoalmente, sempre ficava com aquela pulga atrás da orelha: “Mas será que é meu filho? Eu estou fazendo tudo isso, mas será que é meu filho?” Aí eu falei: “‘Meu’, eu preciso tirar essa dúvida, é uma dúvida minha, uma coisa que eu preciso ficar bem esclarecido, não posso deixar”. Eu liguei para a mãe dele, tentei, e ela não queria fazer o teste de paternidade. Eu consegui uma advogada que falou: “‘Meu’, eu consigo isso, deixa comigo”. E ela é especialista nisso, ela foi lá, conversou e conseguiu fazer com que ela fizesse o teste. E aí veio o resultado, realmente Samuel é o meu filho. Aí vem a outra parte: como registrar? Fazer tudo o que tem que ser feito na lei, com todos os conformes? Quanto tem que dar de pensão, como tem que ajudar, como que eu faço? E aí fui fazendo todos os trâmites legais para poder registrar e ter meus momentos de pai. Só que, assim... parecia ser muito fácil, só que você está lidando com uma outra vida, com uma outra pessoa, com uma outra família. Eu cheguei, para ele foi tudo diferente, para ele foi assim:
“Quem é esse cara? O cara chega aqui agora e fala que é meu pai?”
P/1 – Quando você voltou e ‘pintou’ esse contato mais direto, qual era a idade dele?
R – Já estava com seis para sete anos, ele já entendia algumas coisas e já tinha uma referência de pai, que é o marido da mãe dele. Então ele me viu e ficou meio assustado, meio desconfiado. Até porque ele deve ter escutado muitas coisas nesse período, quando era criança. E a gente ficando ali, eu tentei, levava ele para sair, ele ia. Depois eu vi que estava fazendo mal para ele, que ele não estava se sentindo bem do meu lado, que a minha pessoa para ele incomodava. De repente, ele voltava para casa, olhava para o outro pai e achava que estava traindo ele, sabe, um sentimento assim, uma coisa? Eu falava: “Meu”. Eu tentava estudar ele: “O que será que está acontecendo?”. Aí, um dia, eu perguntei para ele. Eu falei: “Samuel, você não gosta de sair com o papai?”. Ele: “Não”. “Você não se sente bem?” Ele falou: “Não”. Eu falei: “Então faz assim: para você não ficar mal, para você não se sentir mal, quando você sentir vontade e quiser sair com o pai você fala para a sua mãe, ela me liga e eu vou te buscar, tá bom? Mas eu vou deixar no seu tempo, deixa você falar que é a hora certa, o momento, não vou forçar isso, porque não está legal”. Ele: “Tá bom”. Aí chegou o final do ano, fomos passar o Natal na minha casa. Aí vieram minhas tias, primas, e ele foi. E ele ficou, interagiu, brincou. O pessoal começou a ir embora, minha tia: “Mas você não vai ficar?” “Não”. “Você não vai dormir?” “Não”. Aí ele começou a chorar porque ele queria ir embora: “Eu quero a minha mãe, eu quero a minha mãe. Eu não durmo fora de casa, eu quero a minha mãe”. Liguei para a mãe dele, a mãe dele não atendeu, eu falei: “Samuel, vai ter que dormir aqui”. Ele deitou comigo, dormiu, mas acordou cedo, já arrumou as coisas dele e queria ir embora. Então eu vi que incomodava ele. Hoje eu não sei se é a coisa certa dar esse espaço e deixar ele amadurecer mais, ou se tem que insistir. Eu falei: “Eu vou deixar no tempo ele, eu vou deixar as coisas acontecerem naturalmente”. E hoje eu tenho um contato bem pouco, vou, vejo, falo, mando a pensão, mas não saio muito. Porque é um trabalho de reconquistar. Então eu vou deixar ele, realmente, sentir essa necessidade de conhecer e de ser amigo do pai dele, porque não vai preencher o buraco, o espaço que ficou. Mas, de repente, ele dá oportunidade da gente ser amigo e começar uma nova história aí. Essa foi a história minha com o Samuel.
P/1 – E nesse mesmo tempo você tem uma retomada de tentar. Você falou que entre prisões aí foi um momento difícil de você tentar se aproximar da família de novo e ter um pouco de, como vou dizer, de receio.
R – Da família dele?
P/1 – Da sua também. Como foi essa retomada?
R – Então... é uma outra coisa que eu saí bem resolvido da prisão: eu sabia que tinha prejudicado algumas pessoas, sabia que muitas pessoas também tinham me prejudicado, só que eu resolvi sair sem sentimento de mágoa, de raiva, de... “Ai, poderia ter me ajudado, não poderia, ou não poderia ter me virado as costas, ou poderia”. Eu quis, realmente, começar uma nova vida, e tudo o que era passado ali eu resolvi virar uma página. Então eu não guardei mágoa de ninguém. Quem eu prejudiquei, eu fiz uma reparação, eu falei: “‘Meu’, me desculpa, eu estava numa situação difícil, me perdoa, eu errei com você, me desculpa”. Pedi desculpas para minha irmã, pedi desculpas para minha prima, pedi desculpas para o meu amigo, pedi desculpas para o outro. As pessoas que eu encontrava, eu falava: “Me perdoa aí pelas coisas que eu fiz, tal, me desculpa”. E pronto. E as pessoas que, de repente, num momento também fizeram alguma coisa eu não guardei nenhum tipo de ressentimento, nenhum tipo de mágoa, porque eu sabia que isso ia fazer mal para mim mesmo. Então resolvi passar uma borracha e começar uma nova história aí. Essa é a minha reconciliação. Lógico, você não consegue ter aquele convívio todos os dias, até porque você tem suas atividades diárias, eu começo às seis horas da manhã e paro dez da noite, eu estou trabalhando. Mas a minha tia manda mensagem, minha irmã vai na minha casa, me liga. Uma prima fala comigo sempre. Então assim... a gente não tem aquele contato de se ver todos os dias, de estar junto, mas tem contato, graças a Deus ainda tem contato, que a família é uma base, é importante, não é?
P/1 – E quais são as coisas mais importantes para você hoje?
R – As coisas mais importantes para mim hoje... em primeiro lugar é Deus. Eu coloco... a fé, a minha espiritualidade é uma parte muito importante, eu tenho que estar com isso bem palpável, bem forte, que é o que me dá uma base. Importante para mim hoje é meu trabalho, minha empresa, meus funcionários, as pessoas que estão ali dentro, meus alunos. Eles são importantes para mim porque é uma troca: eles dependem de mim e eu dependo deles. Então é importante para mim. E a pessoa mais importante sou eu, eu que tenho que estar bem, eu tenho que estar lúcido, eu tenho que estar sereno, eu tenho que estar limpo para as outras coisas acontecerem na minha vida.
P/1 – E quais são seus sonhos hoje?
R – O meu sonho hoje é me tornar um palestrante. É um desejo, um objetivo me tornar um palestrante, poder contar minha história para mais pessoas com o intuito não de me promover, mas de ajudar as outras pessoas. Não só pessoas que estão passando pelo mundo das drogas, mas pessoas que, às vezes, têm um problema na vida e acham que não têm mais como sair daquele problema, que é o fim do poço. De repente, ela escutar a minha história e falar: “‘Meu’, se esse cara conseguiu dar uma volta por cima, ele também consegue”. De repente, essa mensagem chegar naquele menino que está na Cracolândia, é chegar naquele cara que está ali no Sinhá, num bar, que tudo está entregue, e ele falar: “Não, ‘meu’, eu consigo sair dessa também, eu consigo dar a volta por cima, eu consigo fazer boas escolhas para a minha vida, eu consigo mudar a minha vida, eu consigo mudar minha história, eu consigo me ressignificar, eu consigo algo mais. É só eu ter fé, batalhar e correr atrás que eu consigo mudar a minha história também, assim como esse cara mudou a história dele”.
P/1 – E para encerrar, o que você achou dessa experiência de contar a sua história, de lembrar tudo isso aqui hoje?
R – Então... foi muito, muito legal. Esse convite para fazer parte de contar... Eu nunca tinha contado essa história assim. Eu já dei uma entrevista, já falei numa rádio, mas hoje foi diferente a forma como foi conduzida, a busca de coisas que estavam adormecidas lá atrás. Então gerou bastante sentimento legal, trouxe muita coisa à tona, da minha história. E aí eu consigo reviver, realmente, quem eu sou, de onde eu vim, por onde eu passei, as pessoas que passaram pela minha vida. Então, essa oportunidade de estar falando aqui é um momento único, foi uma coisa assim, para mim, hoje, muito marcante, muito legal. Muito satisfatório poder reviver a minha história. Eu acho que eu ganho muito em poder lembrar de tudo isso, ganhei demais hoje, nesses momentos de reviver minha história de vida.
P/1 – Beleza então, acho que a gente pode encerrar.