Projeto Conte Sua História
Depoimento de Carmo Miguel Arcanjo
Entrevistado por Felipe Rocha
São Paulo, 27/04/2017
Realização: Museu da Pessoa
PCSH_HV559_Carmo Miguel Arcanjo
Transcrito por Karina Medici Barrella
Revisado por Raquel de Lima
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P/1 – Primeiramente, eu queria agradecer a sua presença. Muito obrigado por vir ao Museu hoje contar a sua história. A gente sempre começa perguntando o nome completo, a data e o local de nascimento.
R – Eu é que agradeço o convite, pra mim foi um prazer. Fiquei ansioso por vir. Custou a chegar o dia 27 (risos). Hoje estou aqui, à disposição de vocês.
P/1 – Qual o nome completo do senhor? A data e local de nascimento?
R – Nasci em 29 de setembro de 1951. Sou natural da cidade de Itanhomi, Minas Gerais.
P/1 – Mineiro?
R – Sou. Mas não sou parente do Aécio Neves, não (risos).
P/1 – Qual é o nome completo do senhor?
R – Carmo Miguel Arcanjo.
P/1 – Queria que o senhor falasse um pouquinho sobre seus pais. Quais são os nomes deles?
R – Nasci na roça. Eles também, lógico. Meu pai se chama Francisco Lúcio da Costa e minha mãe, Francisca Corrêa Lúcia. São os culpados por eu estar aqui hoje (risos).
P/1 – Seus avós também são de Minas?
R – São todos mineiros. Não tem mistura.
P/1 – Tanto do lado do pai como da mãe?
R – É.
P/1 – Da mesma região? Onde é esse lugar?
R – Fica no norte de Minas. Um pouco ao norte, um pouco a oeste, próximo de Governador Valadares.
P/1 – O que seus pais faziam, como era a vida deles?
R – Meu pai tocava viola, trabalhava na agricultura. A minha mãe, prendas do lar.
P/1 – Você sabe como eles se conheceram?
R – Geralmente na roça as pessoas se conhecem em baile, festinha. Se casaram e nasceu esta coisa aqui (risos).
P/1 – O senhor se lembra de alguma história de família? Alguém contava alguma história da família?
R – Os nossos avós eram da região do rio Pomba, perto de Juiz de Fora. Meu avô, muito tonto, vendeu as fazendas dele e foi comprar terras lá perto da cidade de Caratinga. Meu pai conheceu a minha mãe e se casaram. Na morte do pai dele, quando dividiram tudo, não sobrou nada pra ninguém porque eram 17 filhos. Meu pai foi morar lá na cidade onde eu nasci, em Itanhomi.
P/1 – Você tem quantos irmãos?
R – Eu tenho só nove. Vivo, só eu, o resto trabalha.
P/1 – O senhor é o mais velho? O mais novo?
R – Eu sou o terceiro.
P/1 – Como era a casa onde o senhor cresceu?
R – Era uma casa de barro, bem pobre. Janelinha pequenininha: se você punha a cabeça pra fora e puxava, a orelha ficava lá (risos). Você já morou na roça? Nunca foi, né?
P/1 – Eu já estive perto de Poço Fundo, sul de Minas.
R – Lá é filé!
P/1 – Como era na roça?
R – A coisa era feia. A coisa era brava, não sei como a gente está vivo até hoje. Só tinha o chão pra pisar e o céu pra olhar. Mas não era ruim, a gente era inocente. A gente vivia bem graças à inocência, isso ajudava a gente.
Fomos crescendo juntos.
P/1 – Você lembra um pouco dessa infância? Como era? O senhor ficava na fazenda, brincava?
R – Fazenda era coisa de rico, lá era roça mesmo. A gente brincava de bola. Esperava a meia ficar velha pra fazer uma bolinha e jogar. Andava a cavalo, pescava. O que você faz na roça de domingo? Vai à missa. Põe o sapato nas costas, vai descalço. Quando chega na entrada da cidade, veste o calçado pra ficar perto do padre. Comia uma coisinha e voltava pra roça de novo. Não era ruim, não. Tem pé de manga lá que tem 200 anos e está dando manga até hoje. Está com mal de Alzheimer e agora está dando mamão, laranja (risos).
P/1 – A roça onde vocês moravam era longe da cidade?
R – Uns seis quilômetros.
P/1 – Vocês iam passear bastante na cidade?
R – Só no fim de semana.
P/1 – Só pra missa mesmo?
R – A gente gostava quando morria alguém pra gente ir até a cidade e comer pão. A gente comia pão quando voltava, depois do enterro. Pão ruim da desgraça, mas era bom.
P/1 – Como era a organização da casa? O que havia na propriedade, na roça?
R – Geralmente a casa na roça é grande. Cada menino que nasce é feito um puxadinho. Tinha uns oito cômodos. A fechadura era uma tramela. Fechavam a porta não por causa de ladrão, mas por causa dos animais que entravam, como as cobras. Não tinha violência. Era terra de gente brava, mas eu nunca vi ninguém dar um tiro. Todo mundo andava com revólver na cinta, você acredita?
P/1 – É mesmo?
R – Todos com o revólver na cinta. Eu falei: “Por que esses caras andam com isso? Não serve pra nada isso aí, nunca vi dando tiro.” Os mais bravos...
P/1 – Tinha alguém conhecido por ser bravo lá na cidade?
R – Sempre tem uns bravos. Mas a braveza termina. Você sabe, o bravo no banheiro como é: o orgulho se acaba (risos). Essa história de braveza tem em todo bairro, sempre tem um cara que gosta de ser terrorista. Mas quando fica velho, acaba a bravura.
P/1 – Você falou que a tramela era pra evitar que os bichos peçonhentos entrassem em casa. Aconteceu alguma vez?
R – Às vezes aparecia alguma cobra. Elas andavam no telhado. Os telhados eram simpáticos, de sapé. Você conhece sapé?
P/1 – Como é?
R – É igual a uma folha. O que é o sapé? É igual a uma folha de bananeira, que se faz...
P/1 – Faz um trançado?
R – Sempre aparecia uma cobra querendo fazer um lanche. Mas acho que ela tinha nojo da gente. Ela olhava e ia embora (risos).
P/1 – O que o senhor mais gostava de fazer quando era criança?
R – Eu gostava de jogar bolinha de gude. Pra mim, lá na roça, era novidade, coisa moderna.
P/1 – Você tinha bastante?
R – Tinha bastante. Usava muito estilingue no pescoço, mas nunca matei um passarinho. Era ruim de pontaria. Dei muita sorte, se tivesse matado, hoje seria um cara triste.
P/1 – Ia se arrepender depois?
R – É, ia ficar triste. Eu gostava muito de pescar.
P/1 – Como você ia pescar?
R – Tinha uma varinha, a gente colocava uma minhoca, a minhoca ficava se batendo e pegava um lambari. Depois ele virava vítima da gente.
P/1 – Você ia com seu pai, com seus irmãos?
R – Não, quem mais pescava era eu. Acho que eu era o vagabundo da família, sempre ia pescar.
P/1 – Tinha um riacho ali por perto?
R – Tinha. Minas Gerais tem muitas minas d’água. Não sei como, tem muitas montanhas. Pegava os bichinhos lá.
P/1 – E quanto à escola, Seu Miguel? O senhor estudava lá na roça?
R – Estudei 16 anos: quatro anos o primeiro ano, quatro anos o segundo ano, quatro anos o terceiro ano... Não gostava de passar de ano, eu adorava as professoras. É verdade! Depois, eu comecei a saber mais do que a professora e meu pai me tirou da escola: “Você vai trabalhar, já sabe muito.”
P/1 – Onde que era essa escola?
R – Era longe de casa, tinha que andar bastante a pé.
P/1 – O senhor ia com seus irmãos ou ia sozinho?
R – Ia sozinho.
P/1 – Ia a pé mesmo?
R – Ia. Tinha cavalo, mas era só pro fim de semana.
P/1 – Caminhada mesmo?
R – É, na canela.
P/1 – Era uma caminhada longa?
R – Dava uma meia hora. Era só morro.
P/1 – Mas valia a pena depois? Era legal ir à escola?
R – Eu gostava de ir à escola. Mas, se você já aprendeu a ler e escrever, você já sabe tudo. Não precisa estudar mais, está bom demais.
P/1 – Tem lembrança de algum professor, alguma professora?
R – Eu não gostava da primeira. Eu odiava, joguei tanta praga naquela mulher. Ela puxava muito a minha orelha. Minha mãe liberou a professora pra bater em mim e ela sentava a mão na minha orelha, puxava. Naquele tempo, você tinha que saber ler o abecedário de cabo a rabo. Vige Maria, saber aquilo era a coisa mais complicada do mundo. Uma época, teve desfile do dia sete de setembro. O diretor da escola era bravo por qualquer coisa. Se chamasse o diretor de Chacrinha, ele batia na gente. Um dia, ele tinha tomado umas canas e um cara chamou de Chacrinha. Quando ele virou, de um nariz, ele achou que tinha sido eu. Rapaz! Complicou pro meu lado, viu (risos)? Droga de professor!
P/1 – Ele se parecia com o Chacrinha? Por que você chamava de Chacrinha?
R – Não era só eu, todo mundo chamava. Quando chamaram de Chacrinha, ele virou pra mim. Virou e achou que fui eu.
P/1 – Por que vocês chamavam de Chacrinha?
R – Porque ele se parecia com o Chacrinha. Ele era a cara do Chacrinha. Eu era um dos mais velhos da classe, aqueles meninos bobões, que não passam de ano. Quando ia ensaiar pro dia sete de setembro, ficava na frente. Onde a gente ia ensaiar pro desfile, tinha um brejo. A voz de comando mandava parar, a gente não parava e entrava dentro do brejo. Ele ficava tão bravo, Nossa Senhora (risos)!
P/1 – Você falou que era uma fase boa por conta dessa inocência. Quando começam a aparecer as primeiras namoradas, Seu Miguel?
R – Aí é bom, hein? Aí o trem era bom. Mas só namorava com os olhos. Era bom, bom demais.
P/1 – Onde namoravam?
R – Ficava sentadinho naqueles bancos que cabiam várias pessoas, jogando aquelas conversinhas fora, o pai vigiando. O sogro é sempre bravo. A gente namorava lá. Eu sempre gostei de namorar, sempre gostei de mulher. Continuo gostando até hoje.
P/1 – Você falou que na roça, pra conhecer alguém, tem que ser no baile. Você ia muito a bailinhos?
R – Eu ia. Baile antigamente se chamava pagode. Qualquer festa era pagode. Hoje pagode virou samba: “Vou no pagode.” Festa de casamento era pagode, festa de aniversário era pagode. Quando terminava a colheita, faziam festa também. Quando terminava a colheita de café, a colheita de arroz, faziam festa. As galinhas sofriam porque matavam um monte e faziam aquela festinha, soltavam fogos. Pra gente era muito bom, muito legal. Você falou da fase de namoro, mas quando chegou a fase boa de namoro, eu vim pra São Paulo. Deixei as mineirinhas bonitas lá e vim pra São Paulo. Aqui tem mais mulher bonita ainda.
P/1 – Você saiu de lá com quantos anos?
R – Eu saí de lá com 18 anos.
P/1 – Você já estava trabalhando? Não estava mais na escola?
R – Não. Na verdade, eu estudei até uns 12 anos, depois comecei a trabalhar.
P/1 – Trabalhava ajudando?
R – Eu trabalhava na roça, mas depois mudamos pra uma cidade chamada Coronel Fabriciano. Lá eu fui trabalhar, tinha um comércio, um trem chamado mercearia. Fiquei trabalhando lá até que a velhinha... Com 18 anos eu vim pra São Paulo.
P/1 – Esse trabalho na cidade foi o seu primeiro emprego?
R – Oficial, né?
P/1 – Como foi o primeiro dia de trabalho?
R – Foi muito emocionante porque eu nunca pensei que iria trabalhar assim. Uma mulher chegou e pediu um Guaraná. Eu não conhecia Guaraná. O meu patrão: “Pega pra mim o Guaraná.” Eu não conhecia, achei estranho. Achei uma garrafinha lá, era o próprio. Depois ele mandou comprar pão. Sabe aquelas bicicletas que levavam a mercadoria na frente? Fui lá na padaria comprar pão. Um balaio grande de pão. Eu sou pequeno hoje, naquela época era menor ainda. Estava subindo o morro com a bicicleta e capotei, não aguentei a bicicleta. Os pães rolaram morro abaixo. Peguei aqueles pães e joguei tudo dentro do balaio de volta. Fui entregar o pão na casa de um médico, ele perguntou: “Esse pão que você está trazendo não é aquele que estava rolando no morro?” “Não senhor, de jeito nenhum (risos).” Teve um outro lance: fui levar ovos pra padaria, com essa mesma bicicleta. Estava descendo o morro, a bicicleta perdeu o freio. Eu rasgando morro abaixo, sentei a minha cara e meu traseiro no chão, arregacei tudo. Peguei aqueles ovos melecados, joguei dentro da vasilha. Chegando na padaria, a mulher perguntou: “Quebrou quantos ovos?” Não perguntou se eu senti dor, se me machuquei. Eu falei: “Nossa, os ovos são mais importantes do que eu aqui (risos).”
P/1 – Por que o senhor acabou decidindo sair de lá?
R – Pra vir pra São Paulo? Eu fiquei em uma barbearia lá, aprendi um pouco a cortar cabelo e vim pra São Paulo.
P/1 – Como aprendeu a cortar cabelo?
R – Ficava no salão, varrendo. Quando chegava um pobre, mais pobre do que eu, cortava o cabelo dele e ia aprendendo. Fiquei lá quatro meses, aprendi um pouco: “Vou pra São Paulo.” Então, cheguei a São Paulo.
P/1 – Você veio sozinho?
R – Vim sozinho, mas meu irmão já estava aqui. Cheguei na rodoviária antiga que tinha na Avenida Duque de Caxias. Não é do seu tempo. Fui parar em uma barbearia na Avenida São João. Cheguei lá, falei que era barbeiro. Eles acreditaram e comecei a cortar cabelo.
P/1 – Como que foi a viagem?
R – Viemos num Fusquinha. Sabe como é o Fusquinha? Você chega surdo e morto. Foram umas 14 horas de viagem. Paramos em Barbacena, cidade de louco, o cara que estava me trazendo tinha que passar lá. Vi um monte de gente diferente no chão. “Cara, o que é esse povo aí?” “Todos loucos.” “Vige, deixa eu sair fora daqui rápido ou eles não vão me deixar sair (risos).” Continuamos a viagem, em 14 horas chegamos à rodoviária de São Paulo.
P/1 – Qual foi a primeira impressão que o senhor teve chegando a São Paulo?
R – A coisa mais linda do mundo. Parecia que eu estava sonhando. Eu via São Paulo nas revistas lá em Minas Gerais, via na televisão preto e branco e achava lindo demais. Achava que era um sonho: “Será que um dia vou a esse lugar?” Aconteceu.
P/1 – Tinha alguma coisa aqui na cidade que você tinha muita vontade de conhecer? Que quis ir direto quando chegou?
R – Eu já achei bonito chegando na rodoviária. Acho que eu nunca tinha visto tanto carro indo pra lá e pra cá. Eu nem sabia que existia farol, semáforo. Parei: “Vige Maria, agora me ferrei mesmo, estou complicado nesse trem aqui.” Perguntei pra uma pessoa: “Pega esse ônibus aqui que você vai aonde você quiser.” Eu desci na Rua Lopes de Oliveira mesmo, onde eu estou até hoje. Mas fui trabalhar na Avenida São João.
P/1 – O seu irmão estava nesse endereço na Rua Lopes de Oliveira?
R – Meu irmão estava lá. Eu falei: “Agora tenho que me virar. Aqui não tem batata doce saindo do chão, nem mandioca, nem nada. Aqui você tem que arrumar dinheiro pra buscar as coisas.” Fui trabalhar na Avenida São João.
P/1 – Como era essa barbearia?
R – Ela era considerada a barbearia chique da época.
P/1 – Desculpa, que época foi isso?
R – Isso foi de 69 pra 70. Era considerada a barbearia chique da época, só ia bacana lá. Eu não sabia de nada, cheguei inocente. Falei: “É aqui mesmo.” O cara me aceitou e fiquei cortando cabelo lá.
P/1 – Como era a freguesia?
R – Era só a elite, só bacana. O irmão do Silvio Santos, até o Silvio Santos ia lá. O dono da Casas Bahia, o pessoal da loja que pegou fogo no Ipiranga, esqueci o nome dela agora. A Pirani, Lojas Pirani. Só esse pessoal considerado elite de Higienópolis, Santa Cecília. Todos iam lá.
P/1 – Como é o nome da barbearia?
R – Chamava-se Salão São Paulo.
P/1 – Como era a Avenida São João naquele tempo?
R – A Avenida São João era uma avenida chique, cartão postal de São Paulo. Avenida São João e Avenida Ipiranga, onde desfilavam os grandes artistas, todo mundo gostava de ir. Naquele tempo se usava muito chapéu, o pessoal de chapéu, sapato de cromo alemão, sapato que hoje você nem vê mais. Era um desfile de gente bacana. O problema é que desfilavam vários tipos de gente: rico, pobre, gente metida a besta. Era um lugar que todo mundo gostava de ir.
P/1 – O senhor via tudo da barbearia?
R – Eu via. Mas era bem, bem caipira mesmo. Sou até hoje. A Avenida São João fazia ligação com a Praça Marechal Deodoro. Todo mundo gostava de ir até a Praça Marechal Deodoro e a Avenida São João, onde tinha o cinema. Era chique ir ao cinema.
P/1 – O senhor ia ao cinema?
R – Eu ia.
P/1 – Foi a primeira vez que o senhor foi ao cinema?
R – Não, eu já tinha ido lá em Minas Gerais. Lá em Minas Gerais eu ia ao cinema. Não sabia por que, mas eu ia. Vim pra São Paulo e tinha vários cinemas importantes na Avenida São João. Tinha uma fila grande pra entrar no cinema.
P/1 – Que filmes passavam?
R – Passava muito bangue-bangue. Eu entrava no cinema e saía duro, com o revólver na mão (risos). Era muito engraçado. Tinha também o Teatro das Nações, onde a Dercy Gonçalves perdeu a virgindade.
P/1 – É mesmo?
R – Coitadinha. Depois do Teatro das Nações, vieram outros teatros. A vinda do Minhocão foi detonando a avenida. O Minhocão foi o primeiro estupro que tivemos em São Paulo: na Avenida São João e na Santa Cecília. Detonou a Avenida São João e a Praça Marechal Deodoro. O pessoal gostava de descer até a Praça Marechal Deodoro, tinha uma casa de sorvete muito famosa, a Casa Whisky. A fila era de dois quarteirões pra tomar sorvete. Era uma fila grande mesmo. O pessoal gostava dali, tinha uma boa churrascaria, pizzaria. O pessoal gostava de vir e ficar circulando por ali.
P/1 – Você viu a construção do Minhocão?
R – Eu assisti à construção do Minhocão. O Minhocão foi um crime que fizeram com a cultura de São Paulo.
P/1 – Como que era essa casa na Barra Funda onde o senhor foi morar com seu irmão?
R – A casa tinha mais de 120 anos. Hoje o pessoal que é dono da casa é da quarta geração, o mais jovem tem quase 80 anos. Hoje é patrimônio tombado. Era uma garagem. Eles emprestaram a garagem pra pôr uma barbearia pra um tal de Seu Domingos. Seria por pouco tempo, só por uns meses. Essa barbearia está lá há 70 anos. Antes de ter o Minhocão, circulavam judeus, italianos, todas as raças. Esse pessoal estrangeiro chamava a Barra Funda de barafunda porque era uma fuzarca, uma bagunça, situação sem controle. Tudo no bom sentido. Vinham pra Praça Marechal Deodoro e faziam as compras na Barra Funda, no Largo da Banana. Tudo vinha do interior e ia pro Largo da Banana.
P/1 – Onde é esse Largo da Banana?
R – Fica no fim da Rua Brigadeiro Galvão com a Avenida Pacaembu. É onde o bonde passava, o bonde puxado a cavalo ou burro, sei lá o que. Era ali que davam a água e os alimentos pra o cavalo, a gasolina (risos).
P/1 – Como o senhor fazia pra se deslocar, já que o senhor morava ali na Rua Lopes de Oliveira e ia pro centro todo dia?
R – Era pertinho, coisa de cinco minutos. Era rapidinho, não tinha problema, não.
P/1 – Mas você ia de bonde, de ônibus?
R – Quando eu cheguei já não tinha mais bonde. Já tinham tirado o bonde. Só tinha o ônibus elétrico que ia até o Bairro do Limão. Andava a pé mesmo. Então, o que veio pra Barra Funda, pro Brasil? As fábricas de automóveis. A primeira foi instalada no Bom Retiro, a Ford. Os mecânicos eram italianos, sei lá, pessoas da Europa. Eles instalavam as oficinas na Barra Funda. Todo mundo trazia os carros pra arrumar na Barra Funda. Eles traziam os carros e aproveitavam pra cortar o cabelo. A gente ficava feliz, né?
P/1 – O senhor chegou e começou a trabalhar na Avenida São João? O seu irmão já tinha barbearia?
R – Meu irmão já estava lá. Ele trabalhava com outro pessoal. Eu comprei a parte dos outros e fui pra Barra Funda.
P/1 – O senhor ficou na barbearia da Avenida São João até conseguir...
R – Até aprender, porque eu não sabia coisa nenhuma de cabelo. Eu falei que era barbeiro, eles acreditaram (risos).
P/1 – Foi um bom aprendizado?
R – Deu pra sobreviver até hoje.
P/1 – Tem algum corte de cabelo, algum cliente, que você se lembra? Uma coisa que ficou guardada na memória?
R – Por exemplo, falando de moda. A Jovem Guarda foi o que mais me marcou. O Roberto Carlos era jovem, o Ronnie Von, o Vanderlei Cardoso, o Jerry Adriani: o pessoal gostava muito de copiar. Todo mundo queria se parecer com os Beatles, fazia aquele corte, aquela franjinha. Então, era legal pra caramba. Naquela época, os barbeiros antigos, bem antigos, não gostavam de cortar esse tipo cabelo. Eles empurravam todos pra mim. Eu gostava porque falava a mesma linguagem da pessoa. Então, dava certo.
P/1 – Por que o pessoal mais antigo não gostava?
R – Eles não tinham noção, eles não entendiam o cliente, o que o cara queria. Eles fugiam quando chegava um cara cabeludo. Eles saíam fora, eu pegava.
P/1 – Você gostava dessas coisas da Jovem Guarda?
R – Gostava. Era a minha época de jovem. Era muito bom.
P/1 – O que o senhor gostava de fazer na juventude, Seu Miguel?
R – Na juventude eu gostava muito de ir ao cinema. Eu gostava de namorar. Se tinha mulher, eu estava perto. Mas nunca catava ninguém, só ficava perto. Sabe aquele tonto, aquele bobão? Se tinha baile, festa, eu gostava de ficar sentado, tomando uma caipirinha. Só fazendo pose e vendo o pessoal dançar. Nunca gostei de dançar. Uma moça queria dançar, queria ir a um lugar chamado Garitão. Eu falei: “Eu não gosto de dançar, o que vou fazer lá?” “Você vai, fica sentado, bebendo e eu vou dançar com todo mundo. Depois, o final é nosso.” Melhorou, gostei da conversa. Fiquei tomando Campari. Tomava Campari porque demorava pra ficar ruim. Enchia de gelo, ficava lá bebendo, e os caras dançando. Eu era bem pequenininho, bem ajeitadinho. O cara achava que a moça ia ser dele. Sabe quando fica disputando? Na hora de ir embora, ela falava: “Carmo, vamos embora (risos).” Ia embora e os caras ficavam muito bravos (risos).
P/1 – Você falou que gostava de ir ao cinema. Qual o filme que mais gostou de ver?
R – Django, Giuliano Gemma, Terence Hill, esse pessoal aí. Fernando Sancho, que era bandido. Era minha paixão ficar vendo aquilo, achava que era de verdade.
P/1 – Então, era mais faroeste?
R – Faroeste. As balas do cara nunca acabavam. A espingarda do cara dava 50 tiros, matava índio pra caramba (risos).
P/1 – O senhor falou que se sentia meio caipira. Qual foi o impacto de sair da roça e vir pra São Paulo?
R – Bem caipira. Quando cheguei em São Paulo, o primeiro impacto foi o tal do bife. Eu nunca tinha visto. Fomos almoçar e veio aquele bife comprido. Eu falei: “Nossa, esquisito (risos). Vou comer esse bife.” Comi e achei muito gostoso. Muito bom. Fui me adaptando. Tenho facilidade pra me adaptar, não sofro nem um pouco.
P/1 – Quando começou o negócio da barbearia com seu irmão?
R – O nosso famoso viaduto, que eles chamam de Minhocão – o nome era Elevado Costa e Silva – destronou a Avenida São João. A Avenida São João virou uma bagunça. Destruiu a Avenida São João. Uma parte do pessoal foi pros bairros dos ricos, ficaram ricos. Eu fui pra lá com meu irmão. Estou lá e não fiquei rico (risos).
P/1 – Quando foi isso?
R – Isso foi na faixa de 72, mais ou menos, 72 ou 73.
P/1 – Você falou que o pessoal ia pra Barra Funda pra fazer compras, arrumar o carro. Como era o bairro nessa época, como era a rua?
R – Era bem familiar, bem tradicional, um povo muito bom. Bem comercial também. Ninguém comprava nada, a não ser na Barra Funda. Não existia a feira, os grandes supermercados. Era no máximo uma vendinha. O principal era comprar na Barra Funda. O povo era muito bom. A maioria era estrangeiro, de raça italiana, espanhola. Tinha muito espanhol, esse pessoal. Inglês, que veio fazer o trem e ficou ali.
P/1 – As ruas eram asfaltadas?
R – Até há pouco tempo ainda tinha os trilhos do trem. Asfaltado, tudo arrumadinho, tudo certinho. Era outra educação.
P/1 – Falando um pouco dos namoros, como o senhor conheceu a sua esposa?
R – Foi nessas festinhas. No final, a gente começou a namorar e tive que casar por amor. Amor à vida, senão o pai dela matava a gente. O sogro, né?
P/1 – Vocês casaram e continuaram morando na Barra Funda?
R – Não, agora moro na Cachoeirinha, em uma casa que é minha.
P/1 – O senhor comprou a casa quando casou?
R – Assim que eu casei, eu comprei. Uns seis anos depois, eu comprei.
P/1 – E como que foi o casamento? O senhor se lembra do dia?
R – Foi no dia da mentira, dia primeiro de abril. Foi de lascar. Eu ganhei tanto presente que você nem imagina. Eu pensei que ia montar uma marcenaria ou uma loja de presente de casamento. Tábua de bater bife, aquele negócio de fazer macarrão. Eu ganhei 15 jogos de caipirinha. Falei: “Nossa, estão me chamando de alcoólatra.” Relógios que despertam, que fazem barulho, ganhei uns oito. “Nossa, esse cara está me chamando de vagabundo, de preguiçoso, me dando relógio assim”.
P/1 – Vocês se mudaram pra Vila Nova Cachoeirinha?
R – É, Cachoeirinha.
P/1 – Quando foi essa mudança?
R – Essa mudança foi em 77 mais ou menos, 78.
P/1 – Você continuou trabalhando na barbearia?
R – Continuo lá.
P/1 – Você segue na profissão de barbeiro até hoje?
R – Estou tentando. Jogo na loteria, mas não dá.
P/1 – Quando o senhor teve contato com o teatro?
R – A Companhia São João de Variedades se instalou lá perto, na Rua Lopes de Oliveira. Eles precisavam de uma pessoa que conhecesse um pouco do bairro e foram atrás de mim. Eu contei a história, foram várias reuniões. Teve uma reunião chamada Sopa e Cachaça pra falar sobre o bairro. Eu participei dessa reunião e eles gostaram do que eu falei, da história. A Georgette Fadel, a principal do teatro, me convidou pra participar da peça. Era teatro itinerante.
P/1 – Que tipo de história o senhor contou que fez com que eles se interessassem?
R – Histórias dos personagens do bairro, dos personagens famosos. Eles juntaram e fizeram a peça.
P/1 – Então a peça era sobre...
R – O bairro Barra Funda. O nome seria Barafonda.
P/1 – E o senhor conhecia essas personalidades? Eles frequentavam a barbearia?
R – Só dois frequentavam: o Raphael Galvez e o Conrado Wessel.
P/1 – A barbearia?
R – É.
P/1 – O senhor cortava o cabelo deles?
R – Cortava.
P/1 – Como que eles eram?
R – Mão de vaca (risos).
P/1 – Fale um pouco sobre eles.
R – O Raphael Galvez era escultor, artista plástico e desenhista. Foi professor na Belas Artes, tem várias obras dele lá. O Raphael frequentou até morrer, até os 90 anos. Ele falava: “Eu falo pro meu irmão: a gente se lembra de tudo e não se lembra que tem que morrer. Estou aqui.” Tinha um paletó que ele andava arrastando pela rua. O paletó dele não podia ver um tanque que já queria entrar. O Conrado Wessel, foi o inventor do material fotográfico. Não sei se foi o negativo, não sei o que foi. Ele inventou em 1954. Até 1954, a Kodak do mundo inteiro usava o produto dele. Todos os fotógrafos eram obrigados a usar o produto inventado por ele. A Kodak comprou a patente e com essa venda ele fez fortuna. Fez uma fortuna imensa. O terreno do Shopping Higienópolis, que tem 9,6 mil metros quadrados, era desse Wessel. Com 90 anos, ele cismou de fazer o testamento. Pegou toda a fortuna e deu pra creche, asilo, hospital do câncer e corpo de bombeiros. O advogado que fez o testamento cismou de colocar em seu próprio nome, pra ele mesmo. E cismou de adiantar a morte do Conrado Wessel. Todo sábado, tinha um colégio que levava pizza pro Conrado. O advogado falou: “Deixa que eu levo a pizza” e colocou veneno na pizza. Chegou lá, o Wessel sentiu que não estava bom. Como era químico, arrumou um jeito de vomitar a pizza. Viveu mais uns dez, 15 anos. Morreu com cento e poucos anos. O cara que tentou envenená-lo foi preso. Seria o maior golpe do mundo e de todos os tempos, disse o jornal A Folha.
P/1 – Pegaram o cara?
R – Pegaram, ficou preso. O cara perdeu. Se ele deixasse correr normalmente, teria ficado pra ele. Hoje quem toma conta é o Banco Safra. Acho que ele não é pouca coisa não. Banco Safra (risos)! O Galvez era muito amigo do Mario de Andrade. O Galvez contava as passagens dele com o Mario de Andrade.
P/1 – Contava pra vocês na barbearia?
R – Contava. O Galvez gostava de dançar. O Galvez e o Mario de Andrade. Na Avenida Ipiranga, tinha um lugar que se chamava Tac Dança: comprava-se ficha pra dançar com as moças. O Galvez e o Mario de Andrade iam lá, compravam ficha e ficavam dançando com as meninas.
P/1 – Que mais ele contava do Mario de Andrade?
R – Quando acabava o baile, a única condução que tinha era o bonde. Tinha que descer a Alameda Barão de Limeira a pé. O Mario de Andrade xingando, falando palavrão e o Galvez dando risada. Passavam em frente à minha rua, na barbearia, desciam a Rua Brigadeiro Galvão. Na Rua Lopes Chaves, o Mario de Andrade ia pra casa dele, no número 546. O Galvez morava lá pra baixo, colado no Largo da Banana.
P/1 – Eles eram quase vizinhos?
R – Vizinhos, colegas de infância. O Galvez, com as histórias dele, era muito engraçado.
P/1 – Quais?
R – Ele gostava de pintar. Uma vez ele queria me pintar. Eu falei: “Eu?” “É, vou pintar você.” “Mas como?”
“Você vai ficar pelado.” “Eu? Você não vai pintar droga nenhuma (risos)!” Não quis de jeito nenhum. “Mas o que é que tem você ficar pelado?” “Todo mundo vai ver e falar: a mulher dele se casou por interesse.” Não aceitei, não. Mas eles gostavam muito de passar nas casas famosas. O Mario de Andrade gostava de sacanagem. Tinha aquelas casas das primas ali na Rua da Tibira, Rua Aurora, eles passavam sempre ali. Já falaram que o Mario de Andrade não era chegado na fruta... Não dá pra entender mais nada, né?
P/1 – Quando o pessoal do teatro falou sobre interpretar também, o que o senhor achou?
R – Da minha interpretação?
P/1 – De participar do teatro.
R – Eu gostei. Fiquei um pouco assustado porque era muita gente, nunca tinha passado por isso. Fiquei um pouco assustado, mas, no final, fui acostumando. Foram 31 apresentações.
P/1 – Ela chamou o senhor diretamente pra participar da peça?
R – É, não teve ensaio, não teve nada. Eu falava de improviso. Na próxima apresentação, eu mudava a conversa.
P/1 – Como foi a primeira apresentação?
R – A primeira no Barafonda?
P/1 – A primeira vez que o senhor interpretou.
R – A primeira vez que eu fiz o Raphael Galvez? Foi muito emocionante pra mim. Eu ficava fazendo a obra, batendo na parede, e a mulher atrás ficava narrando a minha vida. Foi bem, bem emocionante.
P/1 – Como foi essa sua primeira experiência? Você nunca tinha atuado?
R – Nunca tinha atuado. Nunca imaginei que iria fazer isso. Depois dessa, eu participei da Barafonda. Eles me convidaram também. Eles gostaram, né?
P/1 – Como foi interpretar o Raphael Galvez que ia na barbearia do senhor?
R – Fiquei um pouco emocionado na hora. Enquanto a mulher falava, eu batia na parede e pensava comigo: “O que estou fazendo aqui?” E batendo: pá-pá-pá. Eu fiquei até tonto na hora, sabe? Quando eu olho pra esquerda, vejo um cano d’água. Eu falei: “Nossa Senhora, isso ia ser o fim (risos).” Usava uma marreta mesmo!
P/1 – O senhor conhecia o Raphael. Como foi fazer o papel de uma pessoa que você conhecia?
R – Achei legal porque eu tinha muita admiração pelo Raphael. Aquele jeito dele, aquela humildade. Ele era um cara muito humilde. Sinceramente, a gente atendia o Raphael na barbearia, mas não sabia da grandeza dele. No Cemitério da Consolação, ele fazia aquele negócio de cemitério...Lápide, né? Ele vivia disso, fazia lápide de gente famosa. Depois da morte dele, fui saber direitinho quem era o Galvez. Porque quando eu ia almoçar, via uns carrões buscando o Galvez. Naquele tempo, andar de carrão não era pouca coisa, não. Eu falei: “Esse velho deve ser parente de algum milionário, não é possível, ficar andando nesses carrões!” Era BMW, Mercedes. Punham o Raphael direitinho no banco. Falava: “Nossa, pra onde é que vão levar o velho (risos)?” Eu não imaginava que ele era dessa grandeza.
P/1 – Nem que o senhor iria interpretá-lo depois?
R – Não imaginava, nunca passou pela minha cabeça. Eu fiquei vermelho igual a um peru (risos).
P/1 – O senhor ficou muito envergonhado?
R – Bastante. Fiquei meio assustado. Aquele montão de gente atrás de você, olhando, e você ali. Eu falei: “Nossa, o que eu estou fazendo aqui?”
P/1 – Como era a peça? O que ela contava?
R – Contava a história do Galvez, quem ele era. Contava que, quando era menino, ele falava que não venderia nenhuma obra de arte porque cada obra de arte que ele fazia era um filho que ele tinha. Ele não vendia obra de arte.
P/1 – Nenhuma?
R – Nenhuma. Ele fazia e ficava lá. Não vendia mesmo. Ele sobrevivia das obras do cemitério, eram o ganha pão dele.
P/1 – A peça inteira era sobre a história do Galvez?
R – Era. Ele tinha uns óculos, aqueles óculos antigos, colado com Durepox. Os óculos dele eram bem legais.
P/1 – Era colado mesmo?
R – Verdade! Coisa dele mesmo.
P/1 – O senhor usou os óculos dele na peça?
R – Não usei, não. Gostaria de ter usado. Mas era muito...
P/1 – O senhor falou do paletó dele...
R – Aquele paletó dele não podia ver um tanque que já queria entrar, pra ver se saía um pouquinho da...
P/1 – Deu super certo a peça?
R – Do Galvez? Foi muito comentada, o pessoal gostou muito.
P/1 – Teve bastante público?
R – Lotou. Não era feita dentro do teatro, era na porta do teatro. O pessoal assistia da rua. Tinha bastante banco, o pessoal ficava sentado. Lotou, tinha muita gente vendo. Eu falei: “Onde é que arrumaram tanta gente pra vir aqui?”
P/1 – Teve uma repercussão legal?
R – Teve. As pessoas falavam assim: “O que o Miguel está fazendo ali? O que ele está fazendo ali?” Tinha uma moça que ficava com o seio nu. Aí é que acabou comigo mesmo. A gente não se acostuma com essas coisas, na rua assim, né? “Nossa, nossa.”
P/1 – Como foi isso de improvisar? Como foi pra você?
R – Improvisar no Barafonda?
P/1 – Você falou que era tudo improvisado.
R – Era improvisado. Eu tinha que falar coisas que se referissem à Barra Funda.
P/1 – Essa já é a segunda peça?
R – Essa é a segunda peça: Barafonda.
P/1 – A primeira deu tão certo que te convidaram pra segunda?
R – É. Eles gostaram da primeira e me convidaram pra segunda peça.
P/1 – Na segunda, qual era o seu papel?
R – Foi difícil: eu fazia eu mesmo. Participei de um curta metragem também.
P/1 – Qual curta metragem?
R – Eu não assisti, mas eu participei (risos). Chamava-se “A incrível história de Cândida.”
P/1 – Qual era a história?
R – Cândida era uma mulher famosa, uma prostituta famosa, que todo mundo queria. Eu participei do filme e eu não vi essa Cândida até hoje. Estou procurando até agora (risos). Para mim, ela era invisível (risos).
P/1 – Chamaram pra a Barafonda, a segunda peça. Você teve que interpretar você mesmo. Como era isso? Você falou que eram falas sobre o bairro. Você tinha que improvisar?
R – Então, era de acordo com a pergunta do Rogério Capuano. O Capuano fazia a pergunta da rua e eu respondia de dentro da barbearia. Eu ficava fazendo a barba ou cortando cabelo do cara. Ele fazia a pergunta pra mim e eu respondia.
P/1 – A barbearia atendia aos clientes normalmente?
R – Sempre tinha cliente. Não tirava nem da cadeira. “Sai daí que vai entrar um artista (risos).”
P/1 – Eram personalidades do bairro, ou que estavam por ali, que nem o Mario de Andrade?
R – O teatro era itinerante. Quando eles chegavam no salão, já estava com uma média de 200, 300 pessoas. Tinha dia que a rua ficava parada, tinha que dar ré pra ir pra outro lugar, os carros não passavam.
P/1 – Faz tempo que A Companhia está ali no bairro?
R – Ela ficou lá por uns oito anos. O prédio estava muito ruim e o proprietário não quis arrumar. Foram pra um barracão deles na Freguesia do Ó. As perguntas do Capuano eram: “E aí, vem gente famosa aqui?” “Vem.” “Quem vem?” “Veio o Raphael Galvez.”
“Mas ninguém conhece o Raphael Galvez.” “Vai na Belas Artes que você vai ver as obras dele lá.” Eu estava cortando o cabelo do cara, perguntava como ele queria que cortasse. E fazia a barba. Eu falava: “Eu vou fazer a sua barba, mas eu tenho Mal de Parkinson. Não tem problema não, né (risos)?” “Não! Só corta com a tesoura. Está bom assim.” O cara achava que eu ia fazer a barba dele...
P/1 – O senhor pretende continuar com o teatro?
R – Eu estou num curso de teatro. Fui convidado, chama-se Curso de Teatro Stanislavski. Vou ficar lá e ver o que vira. É só pra brincar, ficar de noite bebendo cachaça no boteco.
P/1 – O senhor gosta do teatro?
R – Eu gostei, viu? Foi legal.
P/1 – Quando aconteceu esse primeiro contato com o teatro?
R – Foi em 2011 mais ou menos. De 2010 pra 2011.
P/1 – O senhor fez essas duas peças?
R – Fiz.
P/1 – Além disso, o senhor ainda fica na barbearia?
R – Continuo.
P/1 – Com o seu irmão ainda?
R – Com o irmão.
P/1 – Como é tocar um negócio com o seu irmão?
R – É casqueta e ranheta depois de velho. Sabe como são dois velhos juntos, né? Mas dá certo.
P/1 – Ele também corta?
R – Corta.
P/1 – O senhor tem filhos, Seu Miguel?
R – Dois filhos.
P/1 – Quais são os nomes deles?
R – Alexandre Miguel Arcanjo e Adriano Miguel Arcanjo.
P/1 – Você manteve o Miguel Arcanjo nos dois?
R – Mantive.
P/1 – Por que você decidiu manter nos dois?
R – Como a mulher não se opôs, decidi manter (risos).
P/1 – Quando o senhor teve o primeiro deles?
R – O Alexandre foi em 1980.
P/1 – E o outro?
R – O Adriano em 85.
P/1 – Como foi quando o senhor soube que ia ser pai?
R – Olha, foi uma emoção muito grande. Fiquei muito emocionado e fiquei mais emocionado ainda quando nasceu. Foi um susto muito grande. Eu tinha muito medo de nascer com problema, porque eu via gente sofrendo com criança com problema. Eu morria de medo de nascer assim. Chorei o dia todo quando o Alexandre nasceu, com medo. Chorei de medo mesmo. E graças a Deus ele nasceu bem, está bem até hoje. O segundo, bem também. São bons filhos.
P/1 – Você lembra do dia do nascimento? Você falou que ficou chorando, foi muito tenso. Você lembra como foi?
R – Nasceu no domingo. Nossa, eu chorei o dia todo. Cheguei e vi aquela coisinha pequenininha lá, falei: “Nossa, é meu filho”. Está tudo normal, tudo beleza. Eu falei: “Nossa, que presente”.
P/1 – O que eles fazem hoje?
R – O mais velho tem uma empresa distribuidora de alho. O mais novo é biólogo, faz pós-graduação na USP e é pesquisador no Hospital das Clínicas.
P/1 – O senhor ainda vive com a sua esposa na Vila Nova Cachoeirinha?
R – Continuamos juntos.
P/1 – O que você acha do bairro?
R – É um bairro bem misturado. De classe média pra baixo, mas tem uns ricos que não saem de lá. Não é ruim, não.
P/1 – O senhor sente falta de morar na Barra Funda?
R – A Barra Funda é boa, mas eu prefiro morar lá na Cachoeirinha. É um bairro mais familiar, mais residencial. Não que a Barra Funda seja ruim. A Barra Funda se tornou um bairro muito comercial, tem muito trânsito. Lá onde eu moro, dentro de casa não escuto um barulho.
P/1 – É mais tranquilo?
R – É. Não é tão sufocante.
P/1 – O que o senhor gosta de fazer hoje em dia, nos seus momentos de lazer?
R – Gosto de churrasco, cerveja e de escutar música sertaneja.
P/1 – Você gosta de sertanejo?
R – Bastante.
P/1 – Desde que você era menino?
R – Desde o tamanho que eu tenho até hoje.
P/1 – Tem algum lugar que você goste de ir pra ouvir sertanejo?
R – Não tem mais, não. Hoje sertanejo virou “sertanojo”, né? Eu gosto do sertanejo original, de raiz.
P/1 – Você falou que o seu pai tocava viola. Você se lembra?
R – Meu pai tocou bastante viola, mas era familiar.
P/1 – Você se lembra disso?
R – Lembro. Ele tentou me ensinar a tocar, mas não aprendi. Até hoje não aprendi.
P/1 – Que artista do sertanejo você gosta mais?
R – Hoje?
P/1 – De todos os tempos.
R – Eu gosto muito do Mococa e Paraíso, Rio Negro e Solimões, Chitãozinho e Xororó. Daqueles que existem hoje. Tião Carreiro pra mim é o Pelé da música sertaneja. Lourenço e Lourival, Chico Rei e Paraná, esse pessoal aí.
P/1 – O senhor falou que pretende continuar com o teatro. Quais são as coisas que o senhor considera mais importantes hoje?
R – Hoje? É acordar. Acordar e falar: “Estou vivo”. Está bom demais pra mim.
P/1 – O senhor tem medo da morte?
R – Nem um pouco. Tem que procurar viver bem todos os momentos pra não ter arrependimento de nada.
P/1 – Quais são os sonhos que o senhor tem hoje?
R – Sonho hoje? Depois de 60 não tem sonho, não (risos).
P/1 – Não tem algo que o senhor espera fazer ainda?
R – Fazer?
P/1 – Algo que o senhor acha que está faltando correr atrás?
R – Eu queria me aposentar e viajar um pouco, sair um pouco. Mas está complicado, a aposentadoria hoje só dá pra ir ao mercado.
P/1 – O senhor queria viajar pra onde?
R – Queria conhecer o Brasil. Conhecer Mato Grosso, Santa Catarina, Rio Grande do Norte, Fernando de Noronha.
P/1 – Tem algum lugar específico?
R – Eu tenho vontade de conhecer Bonito, no Mato Grosso do Sul. Eu gostava de pescar quando era jovem. Outro dia meu irmão me levou num pesqueiro. Eu fiquei com dó daqueles peixes, você puxa e ele fica se batendo: “Puxa, ele não queria sair da água.” Um cara do lado pegou um peixe que é uma cobra, uma cobra que se come. Não sei como se chama aquele trem lá.
P/1 – Enguia?
R – Acho que é isso aí. Quando foi tirar a cobra, a cobra ficou se batendo. Eu olhava...E falava: “Que judiação, maltratando o bichinho”. Sabe, eu não gostei, fiquei chateado! Ver aquela cobra sendo enganada.
P/1 – Quando a gente estava olhando as fotos, o senhor mostrou uma foto com o Pascoal da Conceição.
R – É, o Doutor Abobrinha.
P/1 – Ele participou da peça?
R – Participou. Ele fazia o Mario de Andrade.
P/1 – Ah, o Mario de Andrade era o...
R – O Pascoal da Conceição.
P/1 – Ele faz o Mario de Andrade em várias...
R – Em qualquer lugar, ele era o Mario de Andrade. Eu participei com ele agora, dia 25 de janeiro, em um evento na casa do Mario de Andrade. Eu participei com ele do Cronistas da Cidade. Ele fazendo o Mario, faz igualzinho ao original. Mostrou o piano do Mario de Andrade, mostrou tudo lá. Era ele que fazia o Mario de Andrade na peça.
P/1 – O senhor era bem conhecido ali na Barra Funda?
R – Bastante. A Barra Funda muda todo dia porque virou um bairro empresarial. Não é um bairro residencial. Hoje tem uma empresa, daqui a seis meses não tem mais. Aquela empresa vai embora, vem outra. Hoje empresário virou aventureiro. O empresário não tem o que fazer, ele monta alguma coisa: ele se acha empresário, abre uma porta, ele é empresário. Só que ele não aguenta seis meses, um ano, dois anos. Então, está sempre trocando de gente.
P/1 – O senhor comentou que teve que ir pro hospital em algum momento. Teve alguma coisa marcante nesse sentido?
R – Eu tive uma infecção de medicamento. Tinha um médico que ia lá todo sábado e me falou:
“Seu Miguel, o senhor não está bem. Vou levar você pra o hospital.” Eu fiquei lá dez dias. Foi uma experiência diferente (risos). O pastor ia orar por mim falou: “Seu Miguel, Jesus está te chamando.” Eu falei: “Chama este outro aqui. Deixa eu quieto aqui, pelo amor de Deus (risos).”
P/1 – Seu Miguel, tem alguma história que o senhor queria contar e que não abordou ainda?
R – Não abordou? História da Barra Funda?
P/1 – Ou do senhor mesmo, sua história.
R – Eu sempre gostei de gente. Tem gente que fala assim: “Eu gosto de animal”. Eu falo: “Eu gosto de gente”. Porque eu sobrevivo de gente. Gente que tem cabelo, gente que tem barba. Então, eu tenho que gostar de gente, não é? Eu debato muito isso. Uma mulher parou com um cachorro, ele levantou a pata e deu um trato no poste. Ela viu que eu não estava feliz com aquela situação e falou: “Eu gosto mais de animal do que de gente”. Eu falei: “É? Quando você desmaiar e cair na rua manda um animal levar você pro hospital.” Dei uma bronca nela. Ela passa lá e olha feio pra mim (risos). Eu gosto de animal também, mas não posso trocar o ser humano por animal. Eu acho que cada um tem o seu... não é? Eu sempre gostei de tudo, sabia? De tudo um pouco. Se você falar: “Você gosta de música sertaneja?” Eu gosto de sertanejo, gosto de samba, tudo o que vier no momento está bom pra mim. Tem gente que tem uma escolha: “Não gosto disso, não gosto daquilo”. Sempre um sabe mais do que o outro. O amigo do Conrado Wessel ficou com Mal de Alzheimer. O bicho era grande. Quando fui fazer a barba dele, ele me deu um soco. O velho era forte, me jogou longe. Mas eu gostava dele. Na época da escola, eu gostava muito da palhaçada que a gente fazia. Eu era sempre aquele cara que errava. Uma mulher foi dar aula de inglês, contar até dez em inglês. Eu era o último da classe. Ela falava: “Agora você sabe sozinho.” Aí era aquela risada dentro da escola porque eu chegava no número cinco e não sabia mais nada (risos). Eu gostava pra caramba disso.
P/1 – E essas aulas de teatro que você está fazendo agora?
R – São bem fortes. Fico enrolando, porque os caras falam cada coisa pra eu fazer! Eu falo: “Vige Maria.”
P/1 – Por exemplo?
R – Assistir a filmes, ver tal peça, ver não sei o que mais. Vige, eu não tenho tempo nem pra... Minha família é toda religiosa: “Você não vai à igreja?” Meu pai falava: “Você foi à missa hoje?” Se perguntasse à tarde, eu falava: “Fui de manhã.” Se falasse de manhã: “Você foi à missa agora de manhã?” “Não, eu vou à tarde.” Eu sempre gostei muito de ir a velório. Uma vez morreu uma pessoa e o cara falou que queria que eu fosse ao velório. Eu disse:
“Aquele defunto, não quero saber de velório nenhum”. Foi quando começou uma guerra de veneno: um matava o outro.
“Ô, Fulano morreu.” “Fala que eu estou dormindo.” Corri, deitei na cama e me cobri pra não ir ao velório. Porque não pode contar piada, não pode rir. Se o cara risse, eu seria o culpado (risos). Não ia, não.
P/1 – Seu Miguel, já encerrando, eu queria agradecer a sua presença. O que o senhor achou dessa experiência de contar a sua história pra gente?
R – Olha, eu fiquei muito contente, fiquei muito feliz. Fiquei honrado com esse convite. Eu não esperava que seria bom, legal assim. Eu não imaginava o que seria. Eu falei: “O que eu vou fazer lá?” Eu gostei muito, fiquei muito feliz com o convite. Só tenho a agradecer.