Programa Conte Sua História
Depoimento de Carlos Alberto Spagnolo Stahl
Entrevistado por Joice Paz
São Paulo, 25/02/2016.
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV526_Carlos Alberto Spagnolo Stahl
Transcrito por Karina Medici Barrella – MW Transcrições
Revisado por Gustavo Kazuo Yamashiro
R – Carlos Alberto Spagnolo Stahl. Local, Limeira. 31 de maio de 1957.
P/1 – E seus avós, paternos e maternos?
R – Paternos. O meu avô é José Stahl e dona Santina Matos Stahl. Maternos, Francisco Spagnolo e Helena Spagnolo.
P/1 – Onde eles nasceram?
R – Meus avós paternos nasceram em Limeira mesmo. Agora os maternos, a minha avó era grega, mas viveu muito tempo na Turquia e o meu avô era italiano, mas nasceu na Turquia. Mas o passaporte dele era passaporte italiano mesmo.
P/1 – E o que os seus avós faziam? Como foi essa chegada dos seus avós aqui no Brasil?
R – Então, veja bem, vamos começar com o paterno, que eles eram de Limeira. O meu avô, o pai dele tinha dinheiro, era de uma família rica, tal, mas ele perdeu tudo no jogo. Isso em 1900 e pouquinho, meu avô nasceu em 1903. Aí o meu avô se virou, teve que ir trabalhar como tipógrafo, aprendeu a tipografia, que hoje é gráfica. E era músico também, tocava quatro instrumentos, tocava flauta, flautim, clarinete, saxofone. E do lado dos meus avós maternos o meu avô, o pai do meu avô, o meu bisavô trabalhava como jardineiro numa família muito rica na Turquia e o meu avô ficou amigo do filho do dono da casa lá. E com isso, por ser amigo do filho do dono, o meu avô conseguiu uma bolsa de estudos no mesmo lugar que o menino estudava. Só que o seguinte, ele não podia sentar nas carteiras, ele tinha que ficar no fundo da classe e assistir as aulas em pé. Mas ele aprendeu muita coisa, inclusive aprendeu francês, então meu avô falava cinco línguas: falava o turco, o grego, o italiano, o francês e depois o português porque veio pra cá. E com o tempo ele foi trabalhar como motorista dessa família rica. E a minha avó foi trabalhar como cozinheira. Então eles acabaram se conhecendo e acabaram casando. E teve uma guerra, eu acredito que por causa da ilha de Creta, entre Grécia e Turquia, na época, em 1920 e pouco. E aí meu avô casou com a minha avó pra ela ter o passaporte. Eles acabaram vindo, eles tinham amizade com um padre... porque lá na Turquia a maioria é muçulmana, 99% é muçulmana e como eles eram cristãos o meu avô católico tinha muita amizade com os gregos que eram cristãos ortodoxos. E teve um padre que veio pro Brasil, foi pra Limeira e esse padre mandou uma carta pro meu bisavô falando que lá dava para eles irem, tinha uma referência, pra sair da guerra. Veio o pai dele, os irmãos, mas o meu avô não estava querendo sair da Europa, eu sei que parece que ele ficou seis meses em Marselha, ele foi vindo e como ele sabia o francês ele acabou ficando seis meses em Marselha.
P/1 – Mas ele foi fazer esse percurso com a sua avó já?
R – Com a minha avó já.
P/1 – Qual é a origem dela?
R – Grega, ela é grega.
P/1 – Então eles pegaram o navio, passaram pela Itália, tal e pararam em Marselha e ficaram lá. Mas aí meu avô acabou resolvendo vir pro Brasil. Tudo bem. E como ele era motorista ele sabia a mecânica Chevrolet e ele montou uma oficina lá em Limeira só pra cuidar de caminhões Chevrolet. E com isso ele progrediu.
P/1 – E você sabe como foi a história do casamento deles, essa viagem pra cá, eles vieram de navio?
R – Vieram de navio. Eles casaram lá na Turquia para a minha avó ter o passaporte italiano também, o sobrenome italiano, pra poder ser fácil sair. Porque se ela estivesse com o nome grego, por causa da guerra ia ser difícil. Ela tinha uma sobrenome, _______, o sobrenome da minha avó, sobrenome grego. Então ela pegou o Helena Spagnolo só que é um sobrenome italiano, daí foi mais fácil pra sair por causa da guerra. Daí o meu avô progrediu com a oficina mecânica dele.
P/1 – E seus pais? Qual é o nome deles, onde eles nasceram?
R – Os dois nasceram em Limeira mesmo. Meu pai é Antônio Geraldo, conhecido como Geraldão, e a minha mãe é a Ivone Leonor, a dona Ivone. Eles se conheceram...
P/1 – O que eles faziam?
R – O meu pai também pegou a tipografia, a profissão de tipógrafo e era músico também. E a minha mãe não, minha mãe sempre foi de casa mesmo, do lar.
P/1 – E essa oficina, ela acabou ficando com alguém da família?
R – A oficina, mais tarde quando meu avô morreu foi dividido na partilha. Mas quando eles começaram a namorar, a minha mãe, não sei se você leu um dos contos meus, Elisa. Então, minha mãe era amiga da irmã do meu pai, que é a Elisa, que ela acabou se suicidando com dezessete anos. Só que mais tarde eles se separaram, o namoro, o meu pai e a minha mãe. E a minha mãe ficou muito triste, tal. Meu avô mandou ela pro Rio e meu pai também acho que se arrependeu e foi pra Bauru pra ser músico, pra tocar em orquestra. Mas depois de um tempo os dois acabaram voltando e acabaram voltando o namoro e casaram em 1953.
P/1 – Eles ficaram quanto tempo juntos?
R – De 53 até meu pai morrer. Não é que houve uma separação. É que mais tarde minha mãe foi passar um tempo em Aruba com meu irmão, isso mais pra frente, mas não uma separação litigiosa, numa boa. Daí 53 casaram.
P/1 – E eles te contaram como foi esse casamento?
R – Eles comentavam. Foi bem, tem foto, alguém tem foto. E meu pai montou uma tipografia pra ele, tanto que era assim, tinha a casa que era dos meus avós, tinha a oficina, tinha uma loja que era dos meus tios, irmãos da minha mãe, e depois a tipografia do meu pai. Era tudo na mesma quadra assim, sabe, lá em Limeira. Tanto que eu nasci nessa casa que era dos meus avós. Daí meu pai tocou a tipografia. Quando ele foi pra Bauru ele fez um nome, um certo nome por ser um bom músico.
P/1 – Nesse tempo sua mãe estava no Rio.
R – No Rio, isso. Isso foi em 50 ou 51, que eles casaram em 53, dia primeiro de maio de 1953. Daí como meu pai fez um nome, muitas orquestras em São Paulo, a Milani, Arruda Paes, orquestras famosas, Sylvio Mazzuca, eles iam atrás do meu pai porque o meu pai era um bom músico.
P/1 – Que instrumento ele tocava?
R – Trombone.
P/1 – Ele aprendeu sozinho? Como é que foi a iniciação musical dele?
R – Acho que foi mais influência do meu avô, né? Mas foi uma outra pessoa que ensinou. O meu pai sabia ler música, tal, não sei o quê. Tanto que tem uma história engraçada, uma coincidência. Uma dessas orquestras veio convidar meu pai pra vir pra São Paulo pra ser músico da orquestra, uma orquestra famosa da Tupi. E então, mas meu pai falou assim: “Não, acabei de casar”, acho que já tinha nascido meu irmão, a tipografia estava indo bem. E nessa época tinha aparecido um rapaz lá em Limeira, João, ele era alfaiate. E esse João, como meu pai tocava na banda, esse João também foi e entrou na banda pra trocar trombone que nem meu pai. E quando essa orquestra, acho que foi do Milani, uma orquestra do Tupi, foi lá atrás do meu pai, o meu pai falou assim: “Eu não vou porque eu casei, mas tem um rapaz novo de Jaú, ele é alfaiate mas ele toca, é muito bom músico”. E os caras foram atrás desse João e esse João veio pra São Paulo e se tornou músico profissional. E olha como são as coincidências da vida. Em 80 e pouco meu irmão veio trabalhar no Zaccaro, sabe o Teatro Zaccaro, o Zaccaro tinha uma orquestra, fazia festa italiana, não sei o quê. E o meu irmão, o Marcelo, o quarto, começou a conversar com um cara lá que era trombonista. Era o João. Olha a coincidência da vida. Juntaram as histórias. “Porra, foi seu pai que me indicou pra vir pra São Paulo e eu me transformei em músico profissional, de estudo, de orquestra”. Bom, voltando. Aí começou a nascer a molecada toda, né? O meu irmão nasceu em 54, eu nasci em 57. Chico em 60. Marcelo em 63. Miguel em 65 e Nando 67. Bom, basicamente a história da família foi essa daí.
P/1 – E quais eram os costumes na sua casa? A rotina da sua família, da sua casa?
R – A casa era uma bagunça porque a casa não era muito grande. Morava meu pai, minha mãe, minha avó, que ela tinha ficado viúva, o meu avô faleceu em 62, e mais seis moleques. Fora quando apareceu um primo lá. Mas a rotina era normal, às vezes a gente ia pro sítio, a gente tinha um sítio lá e ia pro sítio final de semana. Só que o seguinte, quando foi mais ou menos em 68 eu peguei, não aguentava cuidar das crianças mais, sobrava pra mim, né? Porque o meu irmão mais velho, como era mais velho, então ele tinha, sabe? Ele só ficava lendo jornal e assistindo televisão, ele fazia isso. Então sobrava pra quem pra levar meus irmãos? Sobrava pra mim. Eu falei: “Ah, não”. Eu peguei em 68 e falei: “Eu vou é começar a trabalhar com meu pai”. Eu tinha onze anos. Eu já estava no ginásio, que seria hoje a quinta série e eu falei: “Eu vou começar a trabalhar com meu pai que daí eu saio de casa, não vou ficar cuidando de molecada, não”. Daí comecei a trabalhar com meu pai e assim foi. Eu peguei assim...
P/1 – Você começou a trabalhar com seu pai fazendo o quê nessa época?
R – Na tipografia. Fazendo tipo de acabamento, uma coisa assim, sabe? Tanto que em 70 quando meu pai ficou doente, meu pai ficou com tuberculose, quem tocou a tipografia foi meu avô que já estava com sessenta e sete anos e eu, eu tinha treze anos. Mas eu sabia mais ou menos como era o esquema da tipografia. E meu pai ficou mal pra caramba, ficou um tempo internado em Campos de Jordão e depois ele teve que ficar em um tipo de uma quarentena em casa. Nem em casa ele ficou por causa das crianças, ele ficou na casa da minha avó, dos pais dele, que ficaram cuidando dele. E aí eu tive um colégio muito bom. Depois que terminou o colegial. Bom, primeiro eu fiz o primário, do primário eu lembro o nome de todas as professoras (risos). Dona Maria Aparecida foi no pré-primário. A dona Darci o primeiro ano. Dona Dolores, segundo ano. Dona Rosalina, terceiro ano, e dona Júlia Diniz no quarto ano. Depois eu fiz o ginasial, que seria hoje de quinta à oitava série e aí eu entrei no colegial. No colegial era um colégio técnico muito forte, muito exigente, sabe, praticamente era período integral, 23 matérias. Eu fazia Técnico em Edificações. Tinha aula até sábado à tarde, era muito forte. O primeiro ano eu bombei, tomei pau no primeiro ano. Aí fiz novamente o primeiro ano em 73 e em 74 os meus pais resolveram ir pra Santos, mudar pra Santos.
P/1 – Só voltando um pouquinho na história, você lembra como era a sua casa da infância?
R – Sei. Ela existe até hoje, sabe? Era uma entradinha, um corredorzinho pequeno, uns três metros. Logo assim tinha o quarto do meu pai e da minha mãe que ficava meu pai, minha mãe e o filho mais novo. Daí tinha a sala, logo depois da sala tinha a cozinha. Aí tinha um corredor interno, daí tinha o banheiro. Depois do banheiro tinha um quarto que ficava um beliche, era eu e o Guilherme. E no fundo um outro quarto maior que ficava minha avó e mais meus dois irmãos. O Chico nessa época dormia na sala até, porque não tinha lugar mais (risos). E tinha o corredor externo, esse corredor externo ia lá no fundo, dava pra uma máquina de lavar, pro tanque, uma área de serviço lá no fundo.
P/1 – Você tem alguma história marcante dessa época com seus irmãos na casa? Quantos irmãos você tem ao todo?
R – Nós éramos em seis, um faleceu.
P/1 – Todos meninos.
R – Todos, seis. Eu acho que o mais legal era a época de Natal e Ano Novo. Porque a minha avó cozinhava muito bem e Natal e Ano Novo era costume fazer um prato que era uma castanha, sabe castanha portuguesa? Então essa castanha só fazia no Natal e Ano Novo. Você tinha que descascar a castanha, ela ficava tipo uma feijoada, assim sabe? Com carne moída, uva passa. Mas era tradicional, todo Natal e Ano Novo. E a gente se reunia também, no Ano Novo isso também, meus avós paternos moravam mais embaixo, eles subiam pra passar o Ano Novo com a gente. E a São Silvestre era a noite, a gente passava pra ver a São Silvestre, era tradição da gente assistir à corrida de São Silvestre. Isso é uma das coisas mais marcantes.
P/1 – Assistir pela televisão.
R – Pela televisão, é. A televisão a gente teve muito cedo, em 64 meu pai comprou a televisão. E eu lembro também que em 64 eram poucas as pessoas que tinham televisão, então ia uma molecadinha lá em casa pra assistir televisão, assistir desenho lá, não sei o quê. Mas uma hora também a minha mãe botava a molecada pra correr, né? E depois. Essas eram as coisas mais marcantes que têm, o Natal, o Ano Novo. Porque era engraçado, a casa não era grande, era pequena. A cozinha era pequena, não era muito grande, era pequena, então nós ficávamos limpando a castanha. E minha mãe e minha avó na cozinha fazendo outras coisas. Porque tinha que preparar a ceia, tinha que preparar a comida pro dia seguinte, tal. As duas eram meio gordinhas e iam pra lá e pra cá e nós, geralmente era eu, o Guilherme e o Chico limpando as castanhas. São coisas marcantes, essas daí foram.
P/1 – E quem era a autoridade na sua casa? Era seu pai ou sua mãe?
R – A minha mãe.
P/1 – Era ela que mandava.
R – É. Minha mãe era... não é brava, pô, seis moleques também não era fácil, né? Meu pai também de vez em quando, ele falava assim: “Bunda foi feita para apanhar”. E de vez em quando ele... eu lembro de uma coisa engraçada, uma vez, não sei quem ganhou de presente, era um tipo de uma espada de plástico, tipo essa do He-Man, estilo assim, mas não tinha He-Man na época, era uma espada de plástico. E a espada era dura, mas com o tempo ela foi ficando molinha, foi ficando mole e abria. Aquilo lá meu filho, você tomava uma lambada assim (risos), você tomava duas, porque fazia pá-pá, porque abriu, né? Era um sarro. E ir pra escola no dia seguinte? Porque usava calça curta, não era bermuda, era calça curta mesmo. Você ia lá com aqueles vergão na perna assim e não tinha jeito, passava vergonha.
P/1 – E vocês se davam bem, os seis irmãos?
R – Ah, sempre tinha uma briguinha assim, mas nada assim. O Chico mesmo, o Chico é o irmão que eu melhor me dou, o que mora em Aruba, o terceiro. Eu nunca tive. Agora com os outros teve uma briga ou outra. Um tempo um ficou sem falar com o outro, tal, isso quando ficou mais velho. Agora quando era moleque não, tinha aquelas briguinhas bestas assim. A minha mãe apartava a briga rapidinho.
P/1 – E as suas brincadeiras de infância, quais eram as suas preferidas?
R – Jogar bola. A gente era sócio de muitos clubes, então eu cheguei a jogar futebol lá na Inter de Limeira, dente de leite. Depois fui jogar basquete. A brincadeira em casa era jogar bola dentro do corredor externo, no corredor do lado de fora. Tinha dois corredores, um interno e um externo, então a gente ficava jogando bola lá. Mas meu pai, por exemplo, bicicleta ele não deixava porque ele achava perigoso. Eu aprendi a andar de bicicleta com dezesseis anos. Em Santos. Porque meu pai não deixava. Ah, a gente ia muito na casa de uns primos, daquela família na praça, eu, o meu pai estava agachado. Então, aqueles meus primos a gente ia muito lá porque a casa deles era bem maior, então a gente brincava muito lá, brincava.
P/1 – Você passou toda a sua infância em Limeira.
R – É, em Limeira.
P/1 – E como que era a rua que você morava, o bairro?
R – Era bem central, era bem no centro a rua. Por isso que meu pai tinha uma preocupação, porque ali era tipo uma passagem de saída de cidade, então saía de Limeira pra Piracicaba. E passavam muitos caminhões carregados de cana, tal, não sei o quê. Então era muito no centro. E foi aí também. Bom, em Limeira que eu comecei a gostar de cinema, né? E geralmente quem dava o dinheiro pro cinema era minha avó, ela recebia um dinheirinho e dava dinheiro pra mim e pro Guilherme e a gente ia quase duas, três vezes por semana a gente ia pro cinema, né? Demorava pra chegar filme naquela época, demorava dois, três anos pra chegar um filme, sabe? Eu lembro que “Fugindo do Inferno”, que é um filme que eu gosto muito, você assistiu? Não? “Fugindo do Inferno”, um filme de guerra. Com Steve McQueen, Charles Bronson, tal. O “Fugindo do Inferno” se não me engano é de 62, eu assisti em 68, demorou uns seis anos pra chegar em Limeira, então demorava, naquela época demorava.
P/1 – Que tipo de filme você mais gostava?
R – Olha, até hoje o tipo de filme que eu mais gosto é filme que tenha amizade, sabe? Fugindo do Inferno, Midnight Cowboy. Midnight Cowboy assistiu, né, com Jon Voight e Dustin Hoffman. É filme de amizade, sabe? Esse filme eu fui tentar assistir e eu não consegui entrar porque era proibido para menores de não sei quantos anos e eu não tinha idade, eu não consegui entrar. Mas eu lembro do cartaz ali no cinema, que é o Midnight Cowboy, não consegui entrar. Mas também gostava de faroeste, era moleque, tal, gostava de faroeste.
P/1 – Você ia com os amigos, com os irmãos?
R – Geralmente com o Guilherme, com meu irmão mais velho. Depois eu comecei. Com o Chico eu comecei a sair mais em Santos. Mas em matéria de cinema em Limeira foi mais com o Guilherme. Ah, outra coisa engraçada também foram os bailinhos, começaram os bailinhos. Isso eu já estava no colegial. Porque é o seguinte, eu trabalhava com o meu pai, mas eu não era muito assim de pegar dinheiro, de pedir dinheiro, era mais pra comprar bala, essas coisas todas. Mas eu fui ficando mocinho, tal, aí pau. E o meu irmão sempre bem vestido. Um dia eu falei pro meu pai: “Ah, pai, eu preciso começar a ir no baile”. Daí meu pai soltou um dinheiro bom, eu fui lá e comprei uma roupinha legal e comecei a frequentar os bailes lá que eram no nosso clube, a que está aquela foto do carnaval, foi naquele clube. Era bem pertinho de casa, ia a pé. Aí comecei a frequentar os bailinhos. Depois a minha vida mudou mesmo quando a gente foi pra Santos.
P/1 – Ainda em Limeira, você comentou que você gosta de filme sobre amizade, você tem alguma história marcante assim, você e seus amigos, amigos de escola ou da rua?
R – Tem. De escola. Eu conheci um cara, o apelido dele era Joia. O nome dele era Angelo, mas a gente chamava ele de Joia, apelido dele. Porque a gente estudava, como eu falei era o dia inteiro, né, quase todos os dias. A gente fazia Educação Física às seis horas da manhã, pra você ver.
P/1 – Como você ia pra escola? A pé?
R – Às vezes eu ia a pé, às vezes ia de ônibus. Mas era longe, sabe? Mas eu sempre gostei de caminhar. Às vezes professor parava e dava carona, coisa desse tipo. Mas a Educação Física era seis horas da manhã. Depois começavam as aulas comuns, era das sete até meio-dia, depois você tinha duas horas de almoço e voltava às duas até às seis. E com esse rapaz, o Joia, foi um dos caras mais legais que eu conheci. A gente: “Não vamos assistir aula, não”. E ele era de Piracicaba e a escola ficava na estrada entre Limeira e Piracicaba. Ele falou assim, um dia ele falou assim: "Piracicaba tem cinema, tem matinê à tarde. Vamos lá?” “Ah, vambora”. E pegamos. E começou, a gente fez isso várias vezes, pegava e ia pra Piracicaba. E uma vez nós fizemos isso, fomos pra Piracicaba, de Piracicaba a gente pegou carona pra Rio Claro e de Rio Claro a gente voltou pra Limeira. Fomos uma vez pra Piracicaba, Piracicaba-Araras. A gente fez várias vezes isso daí, foi um cara legal, um bom amigo.
P/1 – Vocês faziam esses passeios mais por conta do cinema.
R – É, começou por causa de cinema. Depois a gente fez mais algumas vezes só pra não assistir aula mesmo, só pra matar aula.
P/1 – E qual foi a primeira lembrança que você tem da escola, quando você começou a ir pra escola.
R – A primeira lembrança. Eu comecei muito cedo na escola, mas eu tenho lembrança da escola, de jardim da infância, por exemplo, que é o pré-primário, antigamente falava jardim da infância. Tinha seis anos, Eu lembro de tocar na bandinha, fazia bandinha, tocava reco-reco, coco, essas coisas, isso aí eu lembro bem, era a professora dona Maria Aparecida Martinelli. Eu lembro uma coisa que foi muito engraçada. Era Dia das Mães. Então a gente tinha muito respeito, era senhor, senhora, tal. Outro dia estava lembrando com o Pedro, o meu pai, por exemplo, você não entendia o que ele falava, você falava: “O que? Hein?”, meu pai falava: “Hein não, senhor”. Então sempre é o senhor. E tinha sempre aquele negócio, então a benção do vô, da vó, esse negócio todo. E eu lembro que no jardim de infância a gente tinha, era Dia das Mães e tinha uma música que você cantava e na música você tratava a mãe por você. Aí eu não cantava. É, coisa de respeito, né?
P/1 – Você lembra dessa música?
R – Ah, não lembro! Pô, tinha seis anos, tem mais de cinquenta anos (risos) a musiquinha. Mas eu lembro que eu não cantava o você, no você eu ficava quieto. Aí continuava cantando a musiquinha.
P/1 – Tem alguma professora que foi marcante?
R – Professora. Ah, acho que quase todas. Se eu for falar. As cinco primeiras foram. Não sei nem se estão vivas ainda, mas foram. Já no ginásio que seria hoje a sexta série tinha uma professora de Português, de português eu nunca fui muito bom, sabe? Foi a Maria José Perusa, era muito exigente, mas aprendi muito Português com ela. Já no terceiro ano que seria a sétima teve um cara de Matemática também que foi muito, Ciríaco Espanhol. O cara era muito bom em Matemática. E nesse ano, no terceiro ano, foi engraçado. Que teve uma professora que era prima da minha mãe e me deu aula, mas a gente não tratava como primos, ela professora e eu aluno. E ninguém sabia, nenhum dos meus colegas, só no final do ano que eu contei. Daí os caras falaram: “Ainda bem que a sua prima é boazinha e ninguém meteu o pau nela” (risos). Ela era muito legal, a Leila. Era professora de OSPB, Organização Social e Política Brasileira, OSPB. A parte de Limeira acho que foi isso aí.
P/1 – E o que você queria ser quando crescesse?
R – Arquitetura. Eu desenho bem, eu tenho uma habilidade boa pra desenho. Aí comecei, mais tarde eu criei uma técnica interessante. Mas isso mais pra frente eu falo.
P/1 – Na sua adolescência você estava em Limeira ainda?
R – Eu saí de Limeira com dezesseis anos.
P/1 – E você foi pra onde?
R – Pra Santos. Daí meu pai resolveu fechar a tipografia lá e montou uma lá em Santos. Santos talvez tenha sido mais marcante porque em Santos eu virei meio porra louca.
P/1 – Por que ele decidiu mudar?
R – Olha, tiveram vários motivos. Uma que o Guilherme, o mais velho, entrou na faculdade lá em Santos. Mas isso era ideia que eles já tinham, né? Eu tinha colégio para estudar lá, que era continuação de Edificações que eu fazia em Limeira. E o outro que minha mãe sempre gostou de praia. E o meu pai estava meio desgostoso lá. Ele tinha saído da banda, tinha tido umas desavenças lá, então ele ficou meio e queria mudar também.
P/1 – Você chegou a ver show do seu pai?
R – Vi, vi.
P/1 – Como é que era?
R – Não era show, era essas bandas de música. Tocava dobrados, valsas, era uma banda grande, tinha no mínimo, no mínimo, quando a banda estava pequena, vinte e quatro músicos. Então eles se reuniam no coreto, isso eu lembro de eu pequeno acompanhar meu pai e ficar lá no coreto do centro da cidade, que seria um palco, e as pessoas em volta. Mas a banda foi considerada a melhor banda amadora, porque eram todos amadores, não tinha um músico profissional, cada um tinha sua profissão, foi considerada a melhor banda do Brasil por um bom tempo. Tem disco gravado, sabe? Eu tenho. Se você colocar no YouTube lá você vai achar a banda do meu pai, que meu pai tocava. Acho que eles gravaram três discos, LPs. Era uma banda muito boa.
P/1 – Além da praça eles costumavam tocar onde?
R – Ah, em várias cidades do interior. Até na Rádio Nacional na época, a Rádio Nacional seria a Globo do rádio na década de 50, 60, eles foram convidados pra ir tocar na Rádio Nacional no Rio de Janeiro. Eu fui, mas eu não lembro, eu era muito pequeno, devia ter dois, três anos, era muito pequeno. Mas tem fotos deles lá na Rádio Nacional.
P/1 – Os músicos frequentavam sua casa?
R – Ah, sim!
P/1 – Você participava desses bastidores de gravação?
R – Sim, sim. Meu pai era muito amigo dos caras lá. Depois como ele saiu da banda, mas a amizade. Inclusive um tempo atrás quando eu voltei a morar em Limeira, que depois eu vou contar, teve um cara, o meu pai era tão querido que eu cruzei com um cara, na hora que eu falei quem eu era, que não conhecia, o cara chorou, de tão querido que meu pai era. Meu pai era muito legal, ele ajudava muita gente. Pessoal que vinha de fora, sabia que dava um troquinho na banda e o meu pai botava pra trabalhar na tipografia como funcionário lá, mesmo o cara não sabendo, meu pai dava emprego pro cara, porque não ganhava bem. Meu pai ajudou muita gente. A família da gente era muito boa. Minha avó por parte da mãe. Ah, dona Santina também. O meu avô. O meu avô, pai da minha mãe, ele era um cara muito justo, que tinha oficina mecânica, teve um funcionário dele que quando casou, casou bem na mesma época que o filho dele casou também, o meu tio Milton. O que ele fez? Ele deu um terreno de presente de casamento pro meu tio lá no centro da cidade, perto de casa, pra ele construir a casa. E pra esse funcionário dele que casou também, ele deu o terreno do lado, do mesmo tamanho. E para um outro cara que ia casar ele pegou e deu um caminhãozinho, uma caminhonete, um pouco maior. E esse cara cresceu, não sei o nome dele, a última vez que eu fiquei sabendo dele, ele tinha uma transportadora em Campinas. Então era uma família boa, a gente é de família boa.
P/1 – E na sua adolescência, juventude, você estava em Santos. Você comentou desses bailinhos que você começou a frequentar, como foi isso?
R – Veja bem, a gente saiu eu tinha dezesseis anos, mas aí Santos foi um choque. Um bando de caipira, Santos era uma cidade muito maior, tal, culturalmente falando era interessante. Cinemas, Santos tinha um monte de cinemas. Como eu gostava de cinema, tinha uns festivais de cinema que cada dia passava um filme. E era tudo atualizado já, não é que nem no interior. Então tinha semana que eu via sete filmes, chegava até a ver dois filmes por dia, ia para um cinema e ia para outro, era um fascínio. Ainda mais na década de 70. O Dustin Hoffman surgiu em 60, mas o auge dele foi 70, Al Pacino, Robert de Niro, todos esses caras aí, Robert Redford, Paul Newman, então você ia pro cinema pra ver esse povo. Faye Dunaway, as mulheres, né? E foi um choque assim. E outra cultura. Mas eu fui estudar. Trabalhando com meu pai e estudando. Só que em 74 eu tive um problema de saúde sério, mas tirei de letra, foi uma hemorragia, fiquei uns quarenta dias de molho, dez dias internado na Santa Casa. Mas não me afetou assim, principalmente na escola porque eu vim de uma escola muito mais forte, então não perdi o ano. Em 75 terminei o colegial, colégio técnico em Edificações. E apareceu um concurso pra trabalhar na Cosipa [Companhia Siderúrgica Paulista] e passei, entravam três, passei em segundo lugar. Mas eu estava com um problema de fazer o Exército, meu alistamento militar estava enrolado lá, os caras não queriam me liberar, queriam que eu fizesse o Exército. E eu não queria fazer o Exército, eu queria entrar na Cosipa mas eles não me liberaram. E eu acabei não entrando na Cosipa. Em 75 pra 76. Em 76 eu fiquei parado, daí comecei a desenhar. Aí desenhei. Foi uma época boa. Fiz Centro Cultural Brasil Estados Unidos, Salão Nacional de Belo Horizonte, ganhei prêmio. Fiz salão em Limeira, aqui em São Paulo no Pop Art. Salão em Campo Limpo, no Banco do Brasil, fiz um monte de salão. E ganhei uma grana.
P/1 – Com seus desenhos.
R – Com meus desenhos. Era uma técnica nova que eu que tinha criado.
P/1 – Você desenhava o quê?
R – É bico de pena, geométrico com bico nanquim, bico de pena. E daí eu ganhei uma boa grana. Ajudei em casa, tal, além de trabalhar com o meu pai. Aí em 77, 77 foi um ano também marcante porque foi o ano que eu parei de desenhar e fui fazer cursinho, eu queria voltar a estudar.
P/1 – Lá em Santos.
R – Lá em Santos. Aí que eu conheci muita gente boa, muita. Primeira paixão, não sei o que veio aqui.
P/1 – Como que foi essa primeira paixão?
R – A primeira paixão foi engraçada. A primeira paixão foi o seguinte. A gente fez o cursinho, chamava Decisão, aí teve um exame de bolsa que foi feito lá no ginásio em Santos pra ver, os melhores colocados ganhavam uma bolsa.
P/1 – Você ia prestar pra quê?
R – Eu ia fazer pra Arquitetura. Daí logo de cara assim, lá no ginásio, eu vi uma moça bonita, cabelo liso, o sorriso mais lindo que eu já vi na minha vida. Então... mas eu não consegui bolsa nenhuma e entrei na sala de Arquitetura. Tinha sala de Exatas, Humanas e Biomédicas, pessoal que fazia Medicina, pessoal que ia fazer Engenharia, pessoal que ia fazer Direito, cada um tinha uma sala. E tinha uma sala menor que era o pessoal que ia fazer Arquitetura, que foi o que eu escolhi. Eu entro na sala, encontro com a menina. Puta que o pariu! Bom, estou na sala certa, né? E ela fazia o Colégio São José, ela tinha dezessete anos na época. Eu tinha vinte e ela estava com dezessete anos. E ela andava sempre com duas amigas, a Elizete, a Soninha e a Denise, todas estudavam no Colégio São José. Eu falei: “Pô, estou na sala certa”. Aí a gente começou a pegar várias amizades lá, a classe era pequena, não tinha trinta alunos, sabe? Enquanto a Exatas tinha umas setenta, oitenta pessoas, Biomédicas também tinha umas cinquenta, Humanas tinha bastante, a nossa sala era menor, tinha umas trinta no máximo. E a gente acabou ficando amigo todo mundo. Eu lembro o nome de todos os professores se você quer saber. Então o pessoal já sabia da minha intenção com a menina. Mas tinha um outro amigo meu, o Geraldo, que também estava disputando ela. E a maioria da torcida era pra mim. Até que um dia, dia 31 de maio, meu aniversário, de 1977. A gente estava no cinema assistindo “Expresso pra Chicago”. Aí eu fui falar com ela, pedi pra namorar, tal, não sei o quê. Psi, fora. Cara, aí tomei fora. E todo mundo ficou sabendo. E foi legal pelo seguinte, porque a gente frequentava muito baile, na época era danceteria, lá no Caiçara. No sábado seguinte o Geraldo que era a fim dela: “Vamos no Caiçara? Eu passo na sua casa e te pego” “Vamos embora”. Aí ele passou em casa, ele tinha carro, uma Brasília. Passou em casa, tal, no caminho ele falou assim: “A Elizete não está?” “Não, tomei fora” “Então está liberado?”. Eu falei: “Tá Geraldo, tá” (risos). Casaram! Eles acabaram casando. E foi engraçado o seguinte, eles começaram a namorar, teve um final de semana, acho que logo depois, que tinha uma, não sei se você lembra uma discoteca, isso não é da sua época, chamada Papagaio, já ouviu falar? Era aqui na Faria Lima perto da Rebouças, sabe? Era uma discoteca, tinha duas fortes aqui em São Paulo, a Hipopotamus e a Papagaios, as duas chiques pra caramba. Eu lembro que a gente saiu tudo de blazer, tal, não sei o quê. E eles começaram a namorar. Nós fomos em cinco casais pra subir de Santos pra São Paulo e eles começaram a namorar nesse dia. Mas eles não se beijaram pra me respeitar, tipo assim. Ah, tudo bem, vai fazer o quê? Mas a gente ficou amigo do mesmo jeito. Fui no casamento. Não, não fui no casamento deles não, não cheguei a ir no casamento deles, mas eu cheguei a encontrar. Eles separaram, casaram, tiveram dois filhos, foram morar em Miami, mas eu fiquei sabendo que eles se separaram. Eu lembro que um amigo meu falou, eu falei: “Ah, agora não quero mais” (risos).
P/1 – E depois desse período do cursinho você acabou entrando na faculdade?
R – Então, o cursinho foi uma época muito boa, muitos amigos bons eu conheci. Daí eu não entrei na faculdade, não consegui entrar. Meu pai estava quebrando lá em Santos, a gráfica que ele tinha montado lá. Eu arrumei um emprego num negócio de decoração, fazia decoração de loja e fazia decoração pra bailes. Por exemplo, o baile do Havaí do Caiçara, baile Mares do Sul do Ilha Porchat, então tinha que fazer projetos de palco, uns negócios interessantes que hoje não tem mais. E arrumei, era um emprego temporário para uns quatro meses assim. Aí o meu pai quebrou, vendeu tudo, a gente mudou de casa. A gente morava numa casa boa, alugada, aí a gente foi morar numa casa boa também, mas não tinha quintal. Deu a quebrada, tal, eu saí do emprego, que era temporário, e em 78 eu consegui uma bolsa num cursinho aqui em São Paulo, no Equipe, na Martiniano de Carvalho, que o Equipe também era do, o Serginho Groisman estudava lá, o Titãs saiu de lá, tudo porra louca também. E arrumei um emprego ali na Barra Funda, trabalhava numa fábrica de papel de parede. Mas foi um emprego meio esquisito, o cara não precisava, ele deu o emprego pra mim porque o pai de uma namorada minha que eu namorava pediu. E eu não fazia nada.
P/1 – Mas você veio morar sozinho aqui?
R – Morava numa pensão ali perto da Rua Tamandaré.
P/1 – Porque aí quando você terminou o cursinho lá em Santos você não prestou?
R – Prestei, mas não entrei.
P/1 – Você prestou lá em Santos ou aqui?
R – Prestei só em Santos, prestei só Arquitetura em Santos, aí não entrei.
P/1 – Você mudou pra cá pra fazer o cursinho e tentar de novo.
R – No segundo semestre eu vim pra cá, no segundo semestre de 78. Daí eu vim pra cá, morava ali perto da Rua Tamandaré, perto do Anglo. Naquela época só tinha quatro cursinhos: o Anglo, que era o melhor, Objetivo, o Equipe, que era o dos malucos, e o Etapa estava começando, só tinha esses quatro cursinhos. Terminou o cursinho eu falei: “Não vou ficar no emprego, vou voltar pra Santos”. Aí voltei a trabalhar praquele pessoal da decoração que fazia aquele período temporário.
P/1 – Mas como foi sua mudança aqui pra São Paulo? Quando você decidiu, saiu de casa pela primeira vez, como é que foi?
R – Era bom, foi tranquilo. É engraçado porque eu chegava, vinha com uma mala, ia pra pensão. A pensão também só tinha maluco, morava eu e um japonês.
P/1 – Como é que era?
R – Era uma pensão. Só tinha nego rico, sabe? Era um pessoal que fazia tudo Anglo, só eu que fazia o Equipe, o pessoal tudo com dinheiro, do Mato Grosso, pessoal de Araçatuba. E comigo morava um japonês maluco, Miltinho, ele era de Guararapes. Ele entrou, acho que se formou, ele entrou no Rio de Janeiro, Federal no Rio pra Agronomia, que ele queria Agronomia. Ele entrou, deve ter se formado, nunca mais vi. Mas era bem maluco. E os caras tudo doidos. Às vezes saía à noite lá, a noitada aqui. Porque naquela época você podia andar a pé tranquilo, você ia pra Augusta, ia pras boates na Augusta, a molecada, né? E andava a pé. Eu lembro que uma vez eu passei ali pela Praça da Sé, saía a pé da Liberdade, que era na Liberdade ali, a Tamandaré, vinha andando a pé à noite com relógio, casaco de couro, estavam fazendo o metrô Sé.
P/1 – Como eram essas idas pra Rua Augusta?
R – Ah, ia pra boate lá (risos) pra curtir um pouco. Tinha, era a mesma coisa que hoje. Tinha um tal de Sasha, uma boate chamada Sasha, eu ia muito nesse Sasha aí. E no sábado eu descia, eu ia pra Santos. Ficava até sexta, terminava o cursinho, você dá a saída à noite, no sábado não trabalhava e ia pra Santos, pegava a malinha, tal, e levava pra dona Ivone lavar roupa lá (risos). E na segunda-feira o que eu fazia? Segunda-feira eu pegava, porque não dava tempo de ir pra pensão, ia até o trabalho na Barra Funda. Então eu pegava, deixava a mala no guarda-volumes lá no Jabaquara, pegava o metrô, ia até a Barra Funda. Também não tinha, era a linha Azul, tinha que descer e pegar um outro ônibus, só tinha a linha Azul, não tinha nem a Vermelha ainda. E depois à noite voltava, ia pro cursinho, voltava pro Jabaquara pra pegar a mala e depois ia para a pensão, senão não dava tempo. E era corrido. A minha vida sempre foi corrida assim. Daí voltei pra Santos, prestei vários vestibulares e entrei.
P/1 – Aqui e lá.
R – Aqui no Mackenzie. Eu prestei USP e não entrei. O Mackenzie entrei na... primeiro o seguinte, a minha primeira opção era Arquitetura lá em Santos. Entrei na segunda lista, na segunda opção, que era Direito. Eu coloquei primeira opção Arquitetura, que era o dia inteiro, e a segunda opção era Direito à noite. Aí entrei em Direito à noite. “Ah, vou começar a fazer, não vou ficar sem estudar”. Peguei o meu primeiro trote já naquele ano. Depois, quinta lista do Santa Cecília Engenharia, entrei. Daí larguei Direito.
P/1 – No Mackenzie?
R – Não, lá na Faculdade Católica pra fazer Santa Cecília, Engenharia. Daí eu fiquei sabendo que eu entrei no Mackenzie, na Arquitetura Mackenzie. Daí eu falei: “Ah, já paguei duas matrículas”, eu estava meio duro, “vou ficar na Engenharia mesmo”. Daí fiquei na Engenharia, fiquei quase um ano lá. Mas tive que parar de estudar porque era período integral, aí tive que trabalhar. Eu comecei a trabalhar na Kitchen’s. Lá eu não fazia desenho, eu entrei lá como promotor de vendas. Mas eu desenhava. Como eu sempre gostei de desenhar eu acabava desenhando, sabe? Só que eles me dispensaram porque eu não tinha carro, promotor de venda precisava de carro e tal, eu não tinha, me dispensaram. Mais tarde eu arrumei um emprego numa gráfica, pra desenhista, aí tudo bem.
P/1 – Aqui em São Paulo.
R – Não, lá em Santos.
P/1 – Já tinha voltado pra ficar.
R – Pra ficar. Já tinha abandonado São Paulo.
P/1 – Nesse tempo aqui em São Paulo você conheceu um pessoal, você se envolveu com alguém, como é que foi?
R – Não. Veja bem, aqui em São Paulo era difícil porque era o seguinte, era trabalhar, tinha o pessoal do trabalho que eu conversava mais no horário do almoço, e à noite era o pessoal do cursinho, que era tudo os malucos de Araçatuba, conheci uns dois, três e o Miltinho, o japonês que era de Guararapes. Mas não teve assim...
P/1 – De Limeira pra Santos você comentou que você sentiu uma diferença grande em relação de uma cidade pra outra. E de Santos pra São Paulo, também sentiu essa diferença?
R – Não tanto. Não sei, Santos dá uma bagagem, sabe? Apesar de ser uma cidade pequena. Quando eu saí de Limeira, Limeira tinha noventa mil habitantes e Santos tem quatrocentos mil, quase quinhentos. O choque é grande. Hoje Limeira tem trezentos mil habitantes e Santos continua com menos de quinhentos mil habitantes, então Santos é uma cidade que parou, mas na época o choque foi muito maior. E a malandragem de Santos, Santos é uma malandragem. Se for ver até maior que São Paulo na época, então você não sente, eu não senti, encarei numa boa São Paulo.
P/1 – Nessa época de juventude você se envolveu politicamente? Como era a sua relação com política? Na sua casa as pessoas, costumava se discutir política, como é que era?
R – Não, veja bem, vou voltar pra Limeira de novo. A gente não sentia, no interior a gente não sentia a ditadura militar, a gente não sentia. É engraçado, quando Chico fez aquela música “Apesar de você” (canta): “Apesar de você...”. Então, meu pai quando ouviu aquela música falou: “Isso Chico não está falando pra mulher nenhuma, Chico está falando pro governo”, meu pai no ato sacou. Mas não sentia. Eu lembro que na época, eu sempre gostei muito de mapas, mapas e selos, fazia coleção de selos, mapas, então eu mandava cartas pros consulados e eles mandavam pra mim material turístico, selos, recebi da Hungria, da Áustria, da Alemanha. Áustria e Alemanha muito mais por causa do sobrenome, né? E eu me lembro que eu mandei pro consulado da União Soviética e eles mandaram pra mim, olha o risco, mas não estava nem aí, a história de Lenin, a biografia de Lenin (risos). Na época se alguém pega eu estava ferrado, ou eu ou meu pai, né?
P/1 – Como você descobriu esse esquema de entrar em contato com os consulados para eles mandarem os selos?
R – Eu acho que algum colega, não lembro direito, deve ter sido algum colega.
P/1 – Você era adolescente nessa época?
R – Isso, eu estava em Limeira ainda. Sabe que ano foi? Eu lembro que eu trocava selo com um tal de Evair. Evair, foi em 69, eu tinha doze anos. Eu lembro que eu fiz um trabalho em grupo e a professora sorteou, então esse grupo vai fazer um trabalho de tal país, tal país, tal país. Tinha Estados Unidos, Itália, Alemanha, não sei o quê, e o meu grupo caiu a União Soviética. E eu tinha esse material que tinham mandado, pô, dez no ato. E o meu pai e o meu avô eram muito caprichosos, eles fizeram uma capa em papel camurça vermelho e meu pai imprimiu assim URSS (risos), olha que loucura! E ainda passou purpurina dourada assim (risos). Ficou um espetáculo, era um livro, eu até dei pra professora.
P/1 – Na escola se discutia ditadura?
R – Não.
P/1 – Não se falava nisso.
R – Não. Não, tinha as aulas de OSPB, Organização Social e Política Brasileira, né? Mas era meio assim, era meio fechado. Não sei se a preocupação...
P/1 – E seus pais tinham consciência do que estava acontecendo?
R – Meu pai sim, minha mãe não, mas meu pai sabia. Mas ele não se metia em política. Ele foi candidato a vereador uma vez, mas não conseguiu (risos).
P/1 – Qual partido?
R – A época dele era PDC, Partido Democrata Cristão. Tinha só dois partidos bons, grandes na época, em 60 e pouco, a UDN [União Democrática Nacional], que era comandada acho que pelo Adhemar de Barros, e o PDC, Partido Democrata Cristão. Vou contar essa daí que é engraçada (risos). Lá em Limeira tinha dois líderes políticos, da UDN e da PDC. E o meu pai foi candidato a vereador pelo PDC, que na verdade era um pouco mais de direita e a UDN seria um pouquinho mais de esquerda. E na época vereador não ganhava nada, era só pra... e meu pai, por causa da banda: “Vou ganhar isso daí fácil”. Precisava de uns cento e poucos votos que ele ganhava. Tanto que minha mãe não votou nele porque não tinha título, o meu avô tinha perdido o título por causa de uma enchente que teve lá e não votou. A família não votou no meu pai. Só que o seguinte, na hora H, porque na banda tinha muitos negros e meu pai tinha muita amizade com os negros lá. Só que na última semana, na hora H, colocaram um amigo do meu pai, era amigo do meu pai, um dos caras mais legais, o Canudo, o Canudo era preto, pra ser vereador pra tirar voto do meu pai na banda. E o Canudo era um simplório, ele fazia serviço de pedreiro, tal, e o Canudo teve mais votos que o meu pai (risos). O Canudo acabou sendo suplente e meu pai não pegou nem a suplência (risos), mas por causa que os pretos, lógico, foram votar num outro colega dele.
P/1 – Seu pai tinha a mente aberta?
R – Tinha, tinha. Depois ele fechou, não sei, ele ficou fechado, mas ele tinha. Meu pai era meio maluco também, sabe? Ele era músico, uma vez ele contou isso pra mim, que na época quando chegou o lança perfume, o lança perfume era em carnaval, meu pai tocava no carnaval pra ganhar uma grana. E gostava. Nem pelo dinheiro, mais porque ele gostava mesmo de tocar carnaval. Aí uma vez, quando chegou lança perfume, o lança perfume era brincadeira pra jogar nas costas, pra sentir aquele frescor. Aí o pessoal começou a cheirar lança, isso em 40 e pouco, 50 e pouco. Meu pai falou assim: “Eu pegava e colocava no whiskey e ó, aí tocava pra caramba” (risos). Tocava adoidado. O meu pai era meio maluco assim.
P/1 – Tem alguma história de carnaval que você lembra bem?
R – Ah, tem várias (risos). Eu toquei carnaval por brincadeira, eu era bom de batuque. Eu fui batucar lá. Pra você se divertir você pegava mulher e ainda recebia um troco no final (risos), então não passava em branco. Eu toquei uma vez aqui no Juventus, uma vez em Franca, uma vez em Cubatão e uma vez em Jundiaí, aí eu toquei em carnaval. Em Jundiaí foi um barato, cada dia era uma (risos).
P/1 – Você foi casado?
R – Não. Eu morei com a mãe do meu filho sete anos, mas casar não, sou solteiro. Graças a Deus.
P/1 – E como você conheceu ela? Você ficou em Santos até quando?
R – Antes de conhecer ela, vamos ver. Eu fiquei em Santos. Deixa eu contar essa daí. Eu deixei a faculdade e fui trabalhar em uma gráfica. Aí na gráfica eu conheci um cara, eu trabalhava o dia inteiro, era desenhista, praticamente a coisa que eu mais fazia era montagem de apostila pra criança, sabe? Então fazia aquele A, B, sabe?
P/1 – Você abandonou o sonho de entrar em Arquitetura?
R – Aí eu já tinha.
P/1 – Começou a trabalhar.
R – É, foi. Aí eu conheci um cara, o Mario, e o Mario era vendedor na gráfica, um cara muito inteligente aqui de São Paulo. E ele resolveu montar um bar lá em Santos. Ele me convidou pra trabalhar com ele. Então o que eu fazia? Ficava na gráfica a semana toda e no bar eu trabalhava quinta, sexta, sábado e domingo à noite. Era um barzinho bom, tinha a casa grande, tinha piscina, tal, um barzinho chique. E eu levei meus irmãos pra trabalharem comigo. O Marcelo ficava na chopeira, eu ficava comandando a saída de prato, o Miguel ficava fazendo suco e batida e o Chico ia lá só pra ajudar em troca de chope, não ganhava, não trabalhava, mas ia lá. E era um barato o bar porque o seguinte, chegava sábado era só chope, só chope, choperia, né? Chegava uma hora que você não aguentava mais tomar chope, daí a gente tomava Campari com vodka e limão. Chegava o fim da noite, quatro horas da manhã do sábado pra domingo eu estava meladinho. Aí tinha piscina, você caía na piscina e ficava bonzinho. Eu fiquei um bom tempo com o Mario lá, eu e meus irmãos. Daí saí da gráfica, saí do Mario, fui trabalhar com som. Som não, meu irmão trabalhava com som e eu fui fazer iluminação em shows. Mas fiquei pouco tempo também. Mais tarde a gente montou uma firma aqui em São Paulo, eu, meu irmão e um cara, um tal de Fred Rovella que faz show italiano aí, não sei o quê, volta e meia aparece no Silvio Santos lá. Então o Fred tinha o equipamento e a gente pegava evento de leilão, de gado e cavalo. Então a gente trabalhava durante a semana fazendo os leilões, a gente fez na Água Funda, Água Rasa, no Palace, na época que tinha Palace. Às vezes saía. E no final de semana a gente fazia o show do Fred Rovella, que era show italiano. A gente ficou um bom tempo, aí desfez a sociedade. Mas eu ganhei uma grana boa pra sustentar a família, tal, ainda estava morando com pai e mãe, só o Guilherme tinha casado. Depois mais pra frente o meu irmão Chico arrumou a mulher dele que é mãe dos filhos dele, aí eu conheci a mãe do Pedro, isso já em 88.
P/1 – Santos?
R – Em Santos. Vinte e quatro de abril de 1988. Estava no bar da praia. E logo depois ela ficou grávida. E aí acabamos ficando juntos. O Pedro nasceu, tal, as meninas moravam junto com a gente, as irmãs do Pedro.
P/1 – Porque ela já tinha sido casada anteriormente.
R – Isso.
P/1 – Vocês moraram lá.
R – Lá em Santos. Porque morava ela, o pai dela, seu João, que eu me dei muito bem com ele, que o apartamento era dele. Mas ele viajava muito, ele ia pra Minas, a família é de Minas, ele ficava lá com a irmã dele. Mas ficou eu, a Irene, as meninas, o seu João e aí o Pedro nasceu. Daí as meninas foram morar com o pai delas, a gente ficou junto. E eu arrumei emprego aqui em São Paulo, aqui, Alcance, negócio de engenharia de telecomunicações. Fiquei dois anos, 89 até 91. Engraçado que o motivo que eu saí da empresa foi o seguinte. O cara era muito sério, um cara muito legal, muito inteligente, engenheiro do ITA [Instituto Tecnológico de Aeronáutica], tal, o dono lá. Mas aquela época a inflação estava muito alta e o nosso salário estava defasado. E eu era o chefe da equipe técnica. Eu entrei lá como desenhista, daí como o gerente que era o chefe saiu e eu acabei ficando comandando a equipe técnica. Contrataram um outro desenhista, então eu era que cuidava, onde instala isso, a viagem, dinheiro pra viagem. Na equipe técnica éramos em sete, era eu, desenhista, dois instaladores e três técnicos. E como o salário da gente estava defasado eu peguei (risos), eu cheguei pros caras lá: “A gente precisa fazer alguma coisa. Vamos fazer uma greve de um dia” (risos). Isso aí foi o fim do mundo pro cara. Então numa segunda-feira, que segunda-feira é o dia que todo mundo da instalação, da técnica, viajavam, ficava só eu e o desenhista lá no escritório, ninguém apareceu. Aí dia seguinte ele ficou louco da vida: “Mais de trinta anos essa empresa aqui nunca teve uma greve” (risos). Tem uma primeira vez. A gente pediu um aumento pra ele, parece que 80%, ele ofereceu 40% de aumento. Um cara só não topou, o cara saiu, um cara da instalação. E nós os outros: “Tá bom”. Porque a inflação estava muito grande, estava muito defasado o salário da gente. Mas ele começou a tipo me perseguir, sabe, ser mais exigente comigo. Daí eu comecei a fazer projeto em casa, eu tinha uma prancheta, tal, peguei um projeto bom pra fazer instalação de um lugar da Votorantim lá em Luiz Antônio, uma cidade perto de Ribeirão Preto. E depois tinha um outro amigo meu lá de Bertioga que tinha uma empresa de engenharia também dava serviço pra mim fazer, projeto, tal.
P/1 – Então de certa forma você continuou com os desenhos.
R – Continuei. Não artístico, mas técnico. Mas depois com negócio do Plano Collor aí, não sei o quê, caiu tudo. Aí fui vender ouro.
P/1 – Em que ano?
R – Isso aí já era 93. Era um tipo de um carnezinho, é um negócio sério. A pessoa ia depositando e depois de um tempo, depois de um ano recebia em barra de ouro. Eu cheguei a descer em Santos com meio quilo de ouro, certo? Peguei ali na Rua do Arouche, acho que peguei um táxi, fui lá pra Paulista, lá na Paulista passava um fretado pra Santos. Meio quilo de ouro. Meio quilo de ouro hoje dá uns 50 mil reais, hoje. O ouro está cem reais o grama, né? Mas também, não lembro o que deu. Aí a inflação começou a diminuir e não valia a pena, o ouro era bom porque a inflação estava alta e você tinha o ouro que era que nem dólar.
P/1 – Pra você como foi ser pai? Seu filho nasceu no final dos anos 80, né?
R – Foi em 89. Ah, foi legal. Aí eu me acalmei, sabe? Eu fiquei tranquilo cuidando dele e foi muito legal. A minha relação com ele foi muito boa. A mãe dele, eu não gosto de falar assim, sabe, ela não é tão carinhosa como eu, tanto que você vê no Face quantas fotos tem minha no Face dele e não tem uma foto da mãe dele. Então era, vamos dizer assim, uma vez eu tinha uma amiga psicóloga que eu desabafava muito com ela. De tanto eu falar com ela uma vez ela falou assim: “Eu nunca vi uma pessoa tão desprendida”, esse que é o termo, “como a Irene”.
P/1 – O seu filho tem problemas de relacionamento com ela?
R – Não. Tem contato, mas não é aquela...
P/1 – Afinidade.
R – É. Nem as meninas. Eu não gosto de falar muito, sabe? Mas ela é uma pessoa difícil, sabe? Mas tudo bem, até que se deu.
PAUSA
P/1 – Então, aí a inflação estava acabando, mudança de plano, tal, eu tinha arrumado um serviço pro Marcelo, meu irmão aqui em São Paulo que era pra fazer tratamento acústico. Eu lembro que eu coloquei muito isso aí. Mas o Marcelo começou a trabalhar e eu comecei a ajudar ele. A gente começou a aprender e um dia eu cheguei pra ele: “Vamos trabalhar nós dois”, fazia tratamento acústico, vedação pra não entrar. Aí bolei um esquema de umas escovas que evitam a entrada de vento, chuva, inseto, pó e a gente começou a fazer esse tipo de vedação. Eu fiz uns panfletinhos. Eu estava separado essa época.
P/1 – Quando você separou você voltou a morar com seus pais?
R – Não. Eu separei foi no dia, eu com meus dias (risos), primeiro de maio de 1994, o dia que morreu o Ayrton Senna é o dia da separação (risos). Daí eu fui morar na pensão.
P/1 – Em Santos?
R – Aqui em São Paulo.
P/1 – Voltou pra São Paulo.
R – É. Porque eu como comecei aquele negócio do ouro, ela trabalhava numa imobiliária aqui em São Paulo, então a gente alugou um apartamento lá na Aclimação. E foi lá que a gente separou a primeira vez. Aí fui morar na pensão, mas eu bolei uns panfletinhos e coloquei o telefone do meu irmão lá da Praia Grande, ele morava na Praia Grande. E começou a dar resultado, chamado. E a gente começou a ganhar um dinheirinho bom. Isso em 94. Mais tarde eu acabei voltando com ela, em setembro assim, eu acabei voltando, mas mesmo assim eu tinha muito contato com o Pedro porque ela levava ele pra escolinha e à tarde eu ia buscá-lo, aí ficava com ele até ela chegar e depois eu ia pra pensão, o esquema era esse. Mas aí a gente começou a ganhar uma grana boa. Eu voltei com ela, tal, a gente foi, passou 94, 95 bem, no final de 95 o negócio começou a piorar, o serviço. Aí o que nós fizemos? O meu irmão falou: “Pintou um negócio lá num bar da Praia Grande pra gente tocar durante as férias. Vamos dar uma parada, topa?” “Topo”. Aí fui pra Praia Grande tocar o bar junto com ele, mas não deu certo também. Três meses, último dia, uma briga do caramba, com um freguês. Eu tenho uma costela que até hoje ela fala, me lembra desse dia (risos). Eu falei: “Tocar bar, não tenho idade mais pra isso”. Aí mais pra frente a gente voltou pra São Paulo pra fazer a vedação de novo. Depois caiu de novo a vedação. Daí eu separei de novo e morava numa outra pensão e meu irmão começou a namorar com a atual mulher dele e foi morar lá em Caieiras. Ele ficava lá na casa da família dela e alugou uma casa lá em Caieiras. E como tinha caído o negócio de vedação eles falaram: “Não quer vir morar aqui?”, ele e a namorada, porque morava só meu irmão, ela morava com a família. Eu falei: “Tudo bem, vou morar com vocês”. Aí fiquei um tempo lá com meu irmão e eles tentaram fazer uma escolinha, negócio de aeromodelismo, ela era cantora, dá aula de música, e eu ficava ajudando eles lá, mas não deu certo. Eu falei: “Vamos voltar pra vedação de novo”. E aqui eu tinha uma experiência boa porque uma vez eu coloquei um anúncio em um jornal de judeu, então a judeuzada chamava a gente direto pra fazer trabalho. Eles choravam, tudo, mas pagavam direitinho, pra chorar eles choram mesmo, mas pagavam direitinho. Eles gostavam do serviço e passavam pro outro, é pra colônia judaica que a gente fazia, ganhei muito dinheiro com eles. Mas parou de novo e no final de 98 meus pais foram morar com a gente lá em Caieiras. A casa era boa, grande, tal. Mas meu pai estava muito doente já.
P/1 – O que seu pai tinha?
R – Câncer na garganta por causa do cigarro. Mas ele estava bem debilitado. Tem um conto que eu escrevi sobre ele que nos últimos dias dele, ele me encontrou numa padaria lá em Caieiras e eu estava tomando uma cerveja. E ele pediu: “Você paga uma cerveja sem álcool pra mim?”, por causa da doença dele. Mas ele não estava tomando remédio mais porque não tinha mais jeito, até quimioterapia já tinha parado. Daí pedi uma cerveja sem álcool. No dia seguinte, ele sabia que eu estaria lá naquele horário ele passou: “Ô filho, não sei o quê”. Eu falei: “Dá uma cerveja normal”. Ê, a alegria do velho. Mas ele se sentia, porque quando ele tomou cerveja sem álcool você via que ele não estava gostando da cerveja sem álcool, aí no dia seguinte é um outro sabor, tal. Eu falei: “Tá morrendo mesmo, vai fazer o quê? Não tem jeito mesmo”. E mais umas duas vezes eu acho ele passava lá e a gente ficava conversando, eu tomando a minha garrafa de cerveja e ele tomando a latinha dele. Mas depois ele não conseguia mais nem sair da cama. Daí ele acabou morrendo lá em Caieiras, aí eu que tive que levar o corpo lá pra Limeira, tal, só sobra pra mim. Engraçado, tanto meu pai quanto minha mãe morreram na minha frente, só eu. Meu pai, eu estava dentro da ambulância, a gente estava subindo. O hospital era lá embaixo. O médico falou assim: “Não tem jeito, melhor ir pra casa”. E na subida, na ambulância, ele tava dentro, eu estava junto com ele e ele acabou morrendo na minha frente. Daí o que aconteceu? Ficou eu, a minha mãe e meu irmão na casa. E meu irmão resolveu voltar pra Limeira com a mãe. Meu tio tinha uma chácara.
P/1 - E a esposa dele também?
R – Ele não era casado ainda, mas a família dela resolveram ir pra Limeira também, então isso que ajudou. E como meu tio tinha uma chácara lá, era uma chácara grande, mas ela só tinha cozinha, banheiro e só um quarto. Daí o meu irmão conseguiu ficar. O meu tio falou: “Não, fica aí, não tem problema não”. E eles ficaram lá. Daí eu voltei pra São Paulo pra ficar com o Pedro, tal, eu peguei uma pensão e eu continuei a fazer minhas vedaçõezinhas e me mantive. Aí um dia eu estava lá na Irene, ela morava na Rua Pamplona.
P/1 – Quem é Irene?
R – Irene é a mãe do Pedro. Morava a Irene, o Pedro, tinha a Bel que era a moça que cuidava da casa e às vezes as meninas estavam lá. Era grande o apartamento. E eu ficava lá com o Pedro. Teve um dia, uma coisa engraçada. Às vezes eu ia pegar o Pedro na escola, ele estudava ali no Rodrigues Alves, ali na Paulista. E um dia eu fui pegar o Pedro, tal, e o moleque falando com a mãe mostrou um bilhete que ele tinha sido suspenso porque brigou na escola. Daí eu cheguei pro Pedro: “Aquele moleque ali se ferrou, tomou suspensão porque brigou na escola”. O Pedro tira do bolso (risos), um bilhete também, tinha brigado com ele. Eu falei: “E agora pra contar pra sua mãe?”. Eu cheguei, ele estava nervoso, molequinho, ele estava com uns nove, dez anos. Estava nervoso: “Vamos tomar um refrigerante ali”. Aí eu liguei pra mãe dele: “O negócio é o seguinte: aconteceu isso, isso, não vai brigar com o moleque, hein?”. Mas deu tudo certo, pegou três dias de suspensão, acabou ficando no videogame lá direto, tudo bem. Daí eu morava na pensão e a minha mãe morava com o meu irmão lá em Limeira. Um dia meu irmão me liga lá na Irene: “O negócio é o seguinte, eu preciso ficar um tempo fora, arrumei um serviço lá em Goiás” “Quanto tempo você quer?” “Alguém precisa ficar com a mãe” “Quanto tempo você quer, uma semana?” “Não, mais tempo”. Eu falei: “Um mês?” “Talvez mais tempo” “Tudo bem, eu vou”. Saí da pensão e fui pra Limeira ficar com a minha mãe. Meu irmão nunca mais voltou.
P/1 – Está lá até hoje?
R – Não. Agora voltou assim, mas ele nunca mais viu a mãe dele. Mas tudo bem, deixa pra lá. E eu acabei ficando com a minha mãe, cuidando dela. Aí o meu primo precisava ficar na casa, na chacrinha lá, nos dois cômodos, porque ele estava pagando muito aluguel lá e ele falou: “Vamos trocar, só que você vai ter que pagar aluguel”. Eu liguei pro meu irmão, o Chico, estava em Aruba já, o Chico falou: “Não esquenta a cabeça, cuida da mãe. Eu mando dinheiro, cuida da mãe”. E eu acabei ficando. A gente foi pra cidade, saiu da chácara que era afastada e foi pro centro da cidade. E fiquei cuidando da mãe até ela morrer.
P/1 – Foi em que ano?
R – Esse ano foi final de 99.
P/1 – Que ela morreu?
R – Não, que eu fui pra lá. Ela faleceu em 2002. Eu fiquei três anos com ela, três anos e um pouquinho, só eu e ela. O Pedro ia lá de vez em quando, tal, não sei o quê.
P/1 – Você falou que escreve contos. Como começou a sua relação com a escrita, quando você começou a escrever?
R – Então, foi mais tarde. Um dos contos é “Mãe”, que é sobre o dia do falecimento dela, foi mais tarde. Aí o Pedro veio ficar um tempo comigo, ficou um ano. Ele voltou pra São Paulo, a mãe dele conseguiu uma bolsa na Escola Adventista pra estudar o colegial. Ele foi estudar na Escola Adventista em Lavras, em Minas, depois ele conseguiu uma transferência pra Hortolândia. Eu fiquei um tempo lá, fiquei um tempo com o Pedro, depois eu fiquei um tempo sozinho e aí eu falei: “Vou sair daqui de Limeira”, fui pra Santos. Porque é o seguinte, duas das minhas tias moravam sozinhas, aí eu liguei e falei o seguinte: “Posso ficar um tempo aí?”, a casa grande, né? Fui lá pra Santos ficar com elas. Acabei cuidando delas também (risos). Só que uma faleceu, depois de cinco meses que eu estava com ela, tia Chiquinha, estava lá nas fotos, ela faleceu. Pneumonia. Aí fiquei só eu e mais uma tia. Como meu primo estava com intenção, eu percebi que ele estava com intenção de ir morar com a mãe eu falei: “Eu vou ter que puxar o carro”. Falei com meu irmão de Aruba, eles tinham comprado um sítio em Minas. Ele falou: “O sítio está lá, se quiser ir lá tomar conta, eu mando um troco pra você, você fica lá”. Aí eu larguei a tia lá de Santos e fui pra Minas, pro sítio dele. Lá tinha duas casas, uma casa mais simples onde morava o meeiro, tipo caseiro, mas é meeiro.
P/1 – Em que cidade, BH?
R – Não, interior de Minas. Santana do Manhuaçu, bem interior de Minas. É mais perto de Vitória do que de BH. Uma cidade bem pequenininha e o sítio era longe pra caramba. Eu ficava lá no sítio. Eu ia muitas vezes na cidade, às vezes ia até a pé, mas era uma caminhada boa, coisa de uns vinte quilômetros de caminhada. Eu também ia numa boa, depois pegava uma carona, tal. Mas foi aí que eu escrevi os três primeiros contos, eu estava sozinho lá, aí escrevi o conto da Mãe, o conto da menina que foi uma paixão platônica, que eu tive por uma menininha muito nova, a menina tinha uns dezesseis, dezessete anos, que eu pegava o ônibus com ela. Eu escrevi esse conto. E o terceiro foi um conto que aconteceu comigo na época que eu trabalhava no bar do Mario, um barzinho lá de Santos. Daí eu praticamente desentendi lá com a família, eles queriam mudar porque a casa que eu estava era muito boa, que era a casa que a minha cunhada construiu pra eles morarem, mas eles estavam lá em Aruba. E a casa de três quartos e a família morava num lugar mais simples, mais fechadinho e eles queriam que eu saísse de lá para eles entrarem lá. Eu também falei: “Vou sair daqui, vou voltar pra São Paulo”. Voltei pra São Paulo, daí fui pra Campinas, que o Pedro estava estudando em Hortolândia, e em Campinas eu tentei fazer o negócio de vedação e não deu certo. Eu falei: “Quer saber de uma coisa? Vou pegar aqueles três contos meus e vou digitar”. Entrei numa lan house lá, pa pa pa, o menino me ajudou, tal, digitei e comecei a vender o conto.
P/1 – Isso era 2000 e?
R – Aí é 2007 já. Comecei a vender os contos, mas chega uma hora que: “Ah, você já falou comigo”, falava com tanta gente: “Você já falou comigo”. Uma vez uma menina falou assim: “Olha, é a quarta vez que você fala comigo” (risos). Eu falei: “Caramba, eu preciso arrumar uma outra coisa pra fazer.”
P/1 – Começou a vender onde?
R – Comecei na rodoviária de Campinas. Mas daí chegava segurança: “Não sei o quê, não pode”. Aí eu vendia onde o pessoal pegava ônibus pra ir pra Unicamp, tinha os pontinhos estratégicos.
P/1 – Tinha um valor preestabelecido?
R – Não. Dava quanto puder. Às vezes a pessoa não queria dar, eu ia com a cara e deixava os contos. Era mais pra pegar pra fazer cópia mesmo. Arrumei um lugar bom que fazia cópia baratinha pra mim. Mas aí não estava dando: “Preciso arrumar outra coisa pra fazer”. Aí arrumei um negócio engraçado (risos). Eu conheci uns caras, uns malucos, que eles fazem, eles vendem tudo quanto é tipo de bugiganga em porta de jogo de futebol, em show, na parada gay vende aquelas coisas coloridas, sabe? E vendiam cerveja, esses caras que vendem. Então tinha uma tal de pinga em metro, era um negócio, um plástico comprido e era tudo colorido, cada um com um tipo de sabor, era coloridinha. Eu falei: “Pô, me arruma um negócio desses”. Eles me arrumaram: “Vai ter um evento lá dia primeiro de maio, lá em Jundiaí, você topa ir?” “Topo”. Fui pra Jundiaí vender, aí eu ganhei uma grana. Eu falei: “De vez em quando dá pra tirar um troquinho”. E ficava com os contos também, né?
P/1 – Como era a recepção das pessoas quando você abordava pra vender os contos?
R – Depende.
P/1 – Deve ter conhecido bastante gente.
R – Depende. Era meio esquisito. No começo eu tinha uma técnica, daí eu mudei de técnica. Primeiro eu começava, a chegada era assim: “Posso falar com você?” “Não”. Aí pronto, não. Aí eu mudei o esquema. “Você gosta de ler?”, aí já a receptividade era melhor, né? Então eu falava assim, a pessoa assim: “Mais ou menos”. Bom, mais ou menos tá melhor do que nada, né? Se falava não eu também não falava nada, não insistia. “Gosta de ler?” “Não” “Então tá bom”. “Mais ou menos” “Mais ou menos é melhor do que nada”. Daí se falava: “Gosto”. Bom, gosto é cinquinho no bolso (risos). Se falava adoro, eu, é dez (risos). Mas eu conheci bastante gente. E geralmente o público-alvo são as mulheres, mulher gosta mais de ler do que homem.
P/1 – Além da rodoviária você vendeu em outros lugares também?
R – Então, a rodoviária naquele ponto de ônibus que os estudantes pegavam pra ir pra Unicamp. A rodoviária não era legal porque a segurança chegava, até a polícia chegou.
P/1 – Em São Paulo você vendeu também?
R – Em São Paulo eu vendi. São Paulo já era no Masp, né, foi quando eu conheci você. Mas depois de ter vendido o negócio da cachaça, da pinga em metro, aí ficava com, fazia os dois um pouquinho. Mas também não estava dando. Saí da pensão. Saindo da pensão eu falei: “Na rua não vou ficar” “Ah, tem um albergue aqui”. Falei: “Vou para um albergue”.
P/1 – Aqui em São Paulo?
R – Lá em Campinas. E o albergue, o que o albergue é? É um presídio semi-aberto (risos), falar a verdade. Bandido pra tudo quanto é lado, rigidez do caramba. Tem que ser rígido porque senão não controla o povo lá. Mas eu falei: “Vou ficar uns dias aqui, ver se eu ganho uma grana”, porque eu tinha ganho um dinheirinho mais ou menos lá em Jundiaí, “e ver se eu pego uma pensão”. Mas não deu pra fazer um dinheiro pra pensão. Eu tive que ficar uns dias no albergue e saí. O que eu fazia? Tinha um barzinho na esquina da rodoviária, virava 24 horas. Então o que eu fazia? Eu chegava lá meia-noite. Na rodoviária você também não podia dormir lá, não podia passar a noite inteira na rodoviária, senão eles enchiam o saco. Então ficava até meia-noite na rodoviária. Da rodoviária eu ia pro bar, aí pedia uma cachaça, tomava a cachaça da meia-noite até às duas, pra passar a noite. Das duas às três eu ficava quieto, às três eu pedia uma outra, aí ficava das três às cinco. Às cinco horas a rodoviária já começava o movimento, eu ia lá dar um tempo na rodoviária, esperava amanhecer e ia até a Catedral de Campinas. Na Catedral de Campinas eu dava uma descansada, dava uma cochiladinha lá. Aí trabalhar. Aí fazia uma grana, mas ficava uns dois, três dias, fazia um dinheiro pra pegar um hotel, aí eu dormia.
P/1 – Fazia um dinheiro com os contos.
R – Com os contos.
P/1 – Então o seu dinheiro era basicamente pra você conseguir um lugar pra dormir.
R – Pra dormir. Mas tinha vez que era bravo o negócio. Mas tem umas coisas engraçadas no meio do caminho. Mas uma vez eu li que a pessoa não consegue ficar quatro dias sem dormir. Eu cheguei a ficar cinco. Não tinha dinheiro pra pagar hotel. O máximo que eu podia fazer era dar uma cochilada lá na catedral.
P/1 – Mas durante a noite você chegou a dormir na rua?
R – Não. Graças a Deus, não.
P/1 – E como era seu contato com seu filho nessa época? Onde ele estava?
R – Ele estava em Hortolândia. Eu falava com ele de vez em quando, ligava pra ele porque é perto, então ligava direto, falava com ele.
P/1 – Ele sabia da sua situação?
R – Não, não. Eu contava quando tinha coisa engraçada pra contar, eu contava pra ele. Porque lá em Campinas é engraçado, uma coisa que você não passa é fome, sabe? Porque lá na pensão os caras me ensinaram onde comer de graça. Então tinha, por exemplo, na sexta-feira tinha três lugares pra você comer. Você podia almoçar numa igreja lá de evangélicos, à noite tinha mais dois lugares, você tinha até opção (risos), e coisa boa. O único dia que a comida não era boa era na quinta-feira, o resto, cada dia tinha um lugar bom pra comer.
P/1 – Você nunca passou fome?
R – Não. O nome é feio, mas vou falar o nome. Meu irmão fala: “Que nome feio isso daí”. É conhecido como boca de rango. Então tinha, passar fome você não passava. Uma vez, ainda bem que naquele dia eu estava no hotel. Numa sexta-feira eu fui na igreja evangélica, a comida excelente. Comi, mas de guloso repeti. Passei até mal. Aí eu falei: “Vou pro hotel dormir”, fiquei dormindo o dia inteiro de tanto que eu comi. A comida era muito boa. Mas aí...
P/1 – Como você se sentia nessa época? De estar nessa situação um pouco instável?
R – Ah, é chato, né? Mas fazer o quê, é sobrevivência, você tem que sobreviver. Tinha um lado bom que você tinha contato, eu gostava muito de conversar com as pessoas. Esse é o lado positivo. Mas era chato. Por exemplo, que nem esse bar aí que eu passava, né, esse bar era boca de fumo, hoje conhecido como biqueira, então era tráfico de drogas. E era bar bom, hein? A comida era boa, o ponto excelente. A única coisa que não prestava lá era o pessoal que frequentava, sabe? Mas era muito bom. Então na primeira vez eu estava voltando, eu tinha ido pra Jaguariúna, aí eu fiz um dinheiro vendendo negócio de pinga, eu tinha feito um dinheiro e falei: “Mas eu não vou pegar hotel agora à noite, vou deixar pra pegar amanhã de manhã. Eu passo aí e amanhã eu fico dormindo o dia inteiro”. Aí eu fui lá no bar, tal, pedi a cachaça, tal. Estava lá numa boa, daqui a pouco. Puf. Meia dúzia de viaturas lá, fechou. “Mão na cabeça!” (risos). Puta que pariu, que situação. Mas fazer o quê? Revista todo mundo. Só que os caras sabiam que ali era ponto de drogas. Mas até aí, passou.
P/1 – Já passou alguma situação de risco nesse período na rua, no albergue ou em algum lugar?
R – Não. Tenho um anjo da guarda forte (risos). Talvez algum, vamos ver se eu lembro. Daí passando uns dias eu conheci um cara do Mato Grosso. Eu estava num bar lá, mas ia dormir no hotel aquele dia, tinha o hotelzinho lá reservado. Aí o cara chegou a falou assim: “Você tá bebendo o que?” “Tomo cachaça” “Pede outra que eu pago”. Hoje eu vou dormir quente, dormir tranquilo. Tomei outra, não sei o quê. Ele falou assim: “Amanhã é meu aniversário, sabe esse bar da esquina? Eu vou pagar cerveja pra você, não quero passar meu aniversário sozinho, tá bom?”. Aí tudo bem. No dia seguinte a gente combinou, tomamos cerveja, tal. No dia seguinte eu ia ficar no bar mesmo porque não tinha dinheiro pra pagar o hotel. Estou lá com ele, tal, não sei o quê, daqui a pouco meia dúzia de viaturas. “Mão na cabeça!”, aí o cara lá também junto. E assim foi indo. Peguei quatro vezes, passei por isso aí: “Mão na cabeça”. No dia seguinte da quarta vez eu cruzava com os policiais e os caras até me cumprimentavam, já estavam acostumados comigo (risos). Teve um dia engraçado que foi o seguinte, eu peguei amizade na rua com os caras que fazem malabarismo em semáforo, tal. E eu estava um dia lá com o Rodolfo. Rodolfo era um cara bom pra caramba, ele me chamava de Senhor Barba porque eu tinha barba na época. Eu estava lá num barzinho e ele falou: “Vamos tomar uma cerveja? Pera aí que eu já faço um dinheiro e a gente já toma uma cerveja”. Ele foi lá fez um malabarismo, pediu a cerveja e um conhaque pra ele. E a gente ficou conversando, trocando ideia, tal, não sei o quê. E aí que eu falei: “Pô, Rodolfo, estou com vontade de meter o pé na estrada aí até Belo Horizonte” “Pô, se quiser a gente vai junto. A gente pode ir por ali”, e ele foi me ensinando os caminhos. “Vamos pra Americana, Piracicaba, Rio Claro”, tal, não sei o quê. Acabou a cerveja: “Pera, vou lá pegar mais um dinheirinho”. Foi lá, fez mais um malabarismo e pegou dinheiro para uma cerveja. E naquele dia estava tendo Virada Cultural. Ele falou pra mim: “Vai lá no Sesc, está tendo Virada Cultural, dá para o senhor ganhar um dinheiro”. Boa ideia, eu ia passar mesmo, ia virar a noite. “Eu vou pro Sesc”. Aí peguei a programação do Sesc, tinha filmes. Eu falei: “Pronto”. Um começava às onze, outro à uma e outro às três. Eu falei: “Das onze até às cinco eu tenho lugar pra ficar”. E fui. Chegando lá, uma fome, aquele dia estava com fome, era um sábado. Chegou a pipoca. Putz, pipoca. Aí começou o filme e eu dormi. Era um filme sobre um menino lá, um motoboy. Tudo bem. Daí acabou o filme, acordei e fui no banheiro tomar água, tal. O que tinha lá? Mais pipoca. Aí começou um filme muito bom, esse você deve ter assistido: “Cinema, aspirinas e urubus”. Esse filme. Aí esse filme eu assisti inteiro, eu não dormi, achei o filme legal, muito bom, a interpretação daquele rapaz lá.
P/1 – João Miguel.
R – João Miguel. Puta, muito boa. Então acabou o filme, vou no banheiro tomar água. O que tinha lá? Pipoca. Vai pipoca, né? (risos). E começou o terceiro filme, só que a hora que eu acabei de comer pipoca o cara falou: “Olha, quando acabar esse filme vai ter um café pra vocês”. Bom, legal. Daí dormi no terceiro filme. E na hora que acaba o filme, café. Café! Um puta de um banquete, sabe? Mas tinha bolo, tinha frios, tinha suco de laranja, coco, café, chocolate, tudo. E eu com a barriga cheia de pipoca (risos). Eu falei: “Ah, vou entrar, alguma coisa, pelo menos um sanduíche de lombinho vai” (risos). Eu estava com uma blusa, era maio, coloquei tudo dentro, uns quatro copinhos de suco de laranja, de água de coco e daí foi. Aí que eu fui pra Jaguariúna. Em Jaguariúna eu voltei à noite, que foi a primeira batida.
P/1 – Por que você escolheu BH [Belo Horizonte] pra ir?
R – Não sei, foi assim pra pegar o interior de São Paulo e chegar até lá. Eu vou chegar até BH. Daí passou um tempo, aí falei: “Não dá pra ficar mais aqui”. Aí o Pedro trabalhava na IBM lá em Campinas.
P/1 – O filho?
R – É. Daí ele tinha que vir aqui pra São Paulo fazer uma cirurgia, uma coisa simples. Eu falei: “Mas vou acompanhar”. Lá no Hospital Santa Catarina.
P/1 – Ele estava na faculdade?
R – Já estava na faculdade já.
P/1 – Que curso?
R – É Engenharia de Produção. Aí começou lá no Adventista mesmo, depois pegou transferência, tal e ele terminou no Estácio aqui em São Paulo. Eu vim acompanhá-lo. Eu falei: “Sabe de uma coisa? Eu vou ficar por aqui mesmo”. A mãe dele falou assim: “O negócio é o seguinte”. Aí a Patrícia, a irmã mais velha dele. A Irene estava com um negócio de imobiliária na casa dela, um tipo de uma administradora. “Você não quer ajudar a Patrícia aí?” “Ajudo”. Daí peguei uma pensão, ela me adiantou uma grana pra pagar a pensão e acabei ficando aí. Mas como ela estava com um relacionamento com um cara, o cara começou: “Ah, não vou precisar mais de você”. Foi quando eu comecei a vender contos lá no Masp, foi quando eu conheci você, em 2008. Mas também aí não deu certo. Aí 2009. Ah, 2009! Eu não tinha dinheiro pra pagar pensão, meti a mochila nas costas, aí foi. Quarenta cidades, vinte e quatro albergues. Saí de São Paulo com vinte reais, peguei o trem Jundiaí, dormi em Jundiaí. Aí você falou negócio de perigo, né? Em Jundiaí a assistente social falou assim: “Eu arrumo passagem”, porque muitos lugares dão passagem pra você. Deu uma passagem pra Campinas.
P/1 – Essa assistente social veio da onde?
R – Geralmente está no albergue. Tem umas que ficam em albergue e outras que ficam em rodoviária. E essa aí estava no albergue de Jundiaí. Eu vou tomar um banho, tal. Aí esperando o jantar estava passando na televisão e nesse dia teve um delegado que foi assassinado e um policial também que era dono de uma videolocadora, no mesmo dia, um delegado e um policial militar, eles tinham sido assassinados. Na hora que deu essa notícia o povo lá: “Ahhhh”, vibrando (risos), aplaudindo porque a polícia tinha se ferrado. Eu falei: “Olha só o que me espera”. Mas tudo bem, eu fui. Aí fui pra Campinas. Em Campinas eu fiz um dinheiro legal, fiquei uns quinze dias lá em Campinas. Eu estava com menos, saí com vinte de São Paulo, eu saí de Campinas com oitenta reais e um sapato novo. Pronto. Daí foi indo. Sumaré, Americana, Santa Bárbara D’Oeste, Piracicaba, Rio Claro. Rio Claro foi onde eu tomei a última cerveja com meu irmão mais velho, ele morava lá em Rio Claro. A gente se encontrou lá, a gente tomou uma cerveja juntos.
P/1 – E você ia sempre conseguindo dinheiro através dos contos.
R – Ou então pegava passagem. Por exemplo, Americana, eu dormi em Americana e não ganhei passagem. Santa Bárbara eu passei reto e não ganhei passagem. Em Piracicaba eu dormi três dias e ganhei passagem pra Rio Claro.
P/1 – Chegava na cidade e já procurava albergue?
R – É. Três coisas que eu procurava: albergue, uma copiadora barata e onde estavam os estudantes, o esquema era esse. E foi indo. Rio Claro, São Carlos. São Carlos foi uma cidade que eu passei ali, uma boa cidade, cheia de estudantes porque tem a Federal lá. Mas ali o albergue lá, o que tinha de bandido ali. Eu lembro que eu saí de Rio Claro pra São Carlos eu e mais três caras, conheci lá. Em Campinas um cara deu muitas dicas pra mim: “Ó, você vai em tal lugar, fica em tal lugar, em tal lugar”, ele me ensinou um monte de coisas. Daí foi indo. Um cara lá no albergue de São Carlos disse: “Ainda bem que vocês estão em quatro aí porque se está um sozinho está ferrado aí”. O negócio era perigoso mesmo.
P/1 – E esses bandidos contavam as histórias deles?
R – Tem. Alguns contavam. Já chego em um aí (risos). De São Carlos fui pra Ibaté. Ibaté é uma cidadezinha muito pequena, foi só, pra não dormir em São Carlos dormi numa cidadezinha chamada Ibaté, porque em São Carlos é muito perigoso o albergue lá. De Ibaté voltei pra São Carlos, de São Carlos fui pra Araraquara. Em Araraquara fiquei um dia só, ganhei passagem pra Ribeirão. Em Ribeirão Preto eu fiquei também três, quatro dias só. Em Ribeirão foi legal. Acho que na quarta-feira, cheguei lá no sábado, saí quarta-feira mais ou menos. Aí ganhei passagem pra Franca. O pessoal do albergue levou eu e mais dois caras pra rodoviária. Eu ia pra Franca, tinha um que ia pra Uberlândia e outro que ia pra Bebedouro. Esse de Bebedouro: “Acabei de sair do presídio agora, de Presidente Venceslau e tinha um dinheirinho pra receber aí, vou pagar uma cachaça pra vocês”. Aí comecei a conversar com o cara, um cara do PCC [Primeiro Comando da Capital]. Daí falou assim: “Você lembra da rebelião que teve aí em 2006?” “Lembro” “Eu estava na rebelião de Presidente Venceslau. Não matei polícia, mas rival eu ajudei a matar. Agora eu vou pra Bebedouro, passei quatro anos em cana lá, tive que matar o namorado da minha irmã senão ele ia matar minha irmã”, coisa desse tipo. “Agora vou chegar em Bebedouro, churrasco até o final de semana, segunda-feira tem que trabalhar” “Ah, é?” “É. É o seguinte, esses quatro anos que eu passei lá os manos sustentaram a minha mulher e a minha filha, agora eu vou ter que trabalhar pra sustentar a família dos manos que estão lá dentro”. O que ia fazer? Assaltar. Esse é um deles. Isso foi em Ribeirão Preto. Em Ribeirão Preto peguei pra Franca. Em Franca também conheci uma menina lá, era misto o albergue. A menina: “Acabei de sair da cadeia também. A primeira coisa que eu fiz, o primeiro cara que eu catei eu saí com ele”. Daqui a pouco ela começou um álbum de fotografia assim: “Ó, essa aqui é a minha namorada lá na cadeia”. Mostrou, a menina bonita, sabe? E tem, por aí tem. E eu falei: “Puxa vida”. Às vezes eu pensava também, porque eu tinha conhecido você, sabia que você fazia Jornalismo, eu pensava em você. “Se tem algum estudante, algum jornalista no meio disso aqui tem história pra caramba”. Daí fui indo. Em Franca eu já caí em Minas, São Sebastião do Paraíso. São Sebastião do Paraíso eu não consegui nada, fui pra Passos, não consegui nem dormir, nem passagem. Passos eu fiquei três dias, o final de semana em Passos. De Passos fui para uma cidadezinha chamada Piumhi, depois fui pra Formiga. Ah é, em Passos eu conheci dois malucos, que estavam. De São Paulo os dois. Eu fui com eles até Piumhi, depois Formiga. Daí em Formiga foi um negócio engraçado. A assistência social abria só às oito horas. Aí era cedinho. Ah, lá foi o único dia que eu dormi na rodoviária, o único dia que eu não dormi em albergue foi em Formiga. Mas era uma rodoviária que tinha televisão, assisti até aquele filme “Toda nudez será castigada”, do Jabor, estava passando. Não dormi, passei a noite em claro. E daí eu peguei, a assistência social abria só às oito. Falei: “Vou dar uma andada”. Tinha uma igreja muito bonita, antiga. Caminhei. E esses dois malucos que eu tinha conhecido lá em Passos estavam tomando uma batida da polícia. Eu falei: “Tenho que ser solidário”. Eu falei: “O negócio é o seguinte, eu estou com os caras aí, se quiser ver minha mochila pode ver” “Você não precisa, não. Você pode passar”. E falou. Mas os malucos gostaram de mim. Eles estavam tomando batida porque estavam pedindo café em casas. Os caras maloqueiros pra pedir coisa não tem igual, pede pra qualquer coisa. Daí Formiga nós fomos pra, qual o nome daquela cidade? Itaúna. Itaúna a gente dormiu lá. Não, não, minto, fomos pra Divinópolis. Passamos em Divinópolis e em Divinópolis não tinha albergue, estava cheio, mas deram passagem pra Itaúna. Em Itaúna a gente dormiu e depois eu me separei dos malucos. Eu tinha dinheiro, daí eu cheguei até Betim, pertinho de BH. Aí Betim passei, tinha uma puta de uma comida boa lá no albergue, comida mineira. Daí fui pra Contagem. Contagem eu fui de ônibus também. Contagem eu não gostei do pessoal do albergue, é que nem o de São Carlos, os dois piores lugares que eu peguei, São Carlos e Contagem, de gente que frequenta albergue. Aí em Contagem era feriado aquele dia, vamos caminhar. Vou até Belo Horizonte a pé. Saí oito horas, cheguei na rodoviária de Belo Horizonte meio-dia e meia, quatro horas e meia de caminhada. Em BH eu sabia que são dois albergues, um no centro e um afastado, mas o do centro é horrível e o afastado é o bom. E a menina me arrumou no afastado. Era longe pra caramba, caminhava todo dia umas duas horas, ia e voltava, ia e voltava, mas era bom. O café da manhã excelente, tinha até iogurte. Só não dava almoço, mas também o jantar era à vontade, em Belo Horizonte. Eu fiquei lá dezesseis dias, eu fiz uma grana, também tinha uma praça lá que em frente tinha uma biblioteca. Belo Horizonte o problema é o seguinte, você não podia deixar bolsa lá, você tinha que carregar uma caminhada grande. Então eu deixava a bolsa ou num supermercado que tinha guarda-volume ou então numa biblioteca perto da praça lá que eu ficava.
P/1 – O que você carregava na sua bolsa?
R – As roupas e algum documento. E os contos. Era uma mochila e uma bolsa. A mochila ficava assim mais pra levar os documentos e os contos e a bolsa tinha as minhas roupas. Eu deixava a bolsa em um lugar e ficava com a mochila pra ficar demonstrando os contos. Em Belo Horizonte eu passei legal lá, passei quinze, dezesseis dias. Dei uma entrevista para um cara que era de um jornal. Mas ele me mandou e-mail. Daí saí. Peguei uma grana e peguei o trem pra João Monlevade. João Monlevade também conheci dois malucos. Um deles, Roberto, na época tinha cinquenta e seis anos. Esse pessoal que fica indo de cidade em cidade é conhecido como trecheiro. Esse cara há dezoito anos era trecheiro, desde os trinta e oito. Ele estava com cinquenta e seis, então dezoito anos sem casa, sem uma residência, só vivendo assim, pegando passagem de um lugar pro outro. Tem gente que faz isso mesmo. E esse cara me deu umas dicas. E eu fui com ele de João Monlevade a gente foi até Ipatinga. Ipatinga foi bom porque deu para eu lavar umas roupas lá, estender, estava ventando, estava quente pra caramba. De Ipatinga fui pra Caratinga. Caratinga a gente se separou, eu, esse Roberto e tinha um outro gordinho que estava com ele. De Caratinga eles foram pra Manhuaçu e eu fui pro Ipanema. Em Ipanema mora a sogra do meu irmão. Eu falei: “Não sei se meu dinheiro vai dar pra chegar”, porque eu queria chegar no meu irmão, no sítio do meu irmão que eu tinha morado antes.
P/1 – Seu irmão estava em Aruba.
R – Tá. Ainda está. Aí falei: “Qualquer coisa eu pego uma grana lá do marido da sogra do meu irmão porque a gente se dava bem, conhecia ele”. Fui, mas não estava lá. Daí meu dinheiro não dava e fui na carona mesmo. Acabei chegando até meu irmão. E no meu irmão eu fiquei quatro meses lá com eles. Meu irmão, a mulher dele, meus dois sobrinhos.
P/1 – Mas na época eles tinham voltado de Aruba.
R – É. Só que meu irmão resolveu nessa época, depois dos quatro meses que eu fiquei, ele falou: “Eu vou voltar pra Aruba que lá eu ganho bem”. Ela ficou. Ele voltou, ele e meu sobrinho, ficou ela e minha sobrinha lá no sítio. Depois dos quatro meses eu voltei pra São Paulo, mas fui voltando assim também. Aí passei por Manhuaçu, Manhumirim, Ibatiba, Venda Nova do Imigrante, Marechal Floriano e caí em Vitória.
P/1 – Quanto tempo durou toda essa andança?
R – Essa andança (risos). Começou em fevereiro, daí fevereiro, março, abril, dois meses a primeira ida. Depois fiquei quatro meses lá com meu irmão. Depois na volta não demorou acho que nem mais um mês, daí fiz a volta.
P/1 – Ao todo cerca de sete meses.
R – É. Mas em Vitória foi o mais legal. Cheguei em Vitória, Espírito Santo. Porque é o seguinte, lá em Belo Horizonte eu já tinha pego amizade com um negão, é a melhor coisa que tem, aí ninguém mexe com você. Ele me chamava de Chuck Norris: “Ô Chuck Norris”, e eu chamava ele de Itabuna porque ele é de Itabuna, lá na Bahia. Daí a gente pegou uma amizade boa. Mas engraçado que em Vitória eu peguei amizade com um outro negão que é o Ataíde, essa foi boa. E o Ataíde também é de Itabuna, olha a coincidência. E engraçado, quando eu cheguei lá, eu cheguei com pouco dinheiro também lá no albergue de Vitória. E quem está lá na porta? O gordinho que eu tinha conhecido em João Monlevade, que estava junto com o velho, o Roberto: “Ô, não sei o quê”. Aí passei lá pela triagem, tal, não sei o quê, revistar a bolsa, tal. Lá em Vitória. E lá a comida, a saladinha vem num marmitex até separado (risos). Era uma comida boa. Primeiro dia veio lombo, no segundo dia veio filé de frango no almoço, picanha, o negócio era de primeira, o albergue de Vitória. E tiveram algumas coisas engraçadas. Uma foi na sexta-feira. Eu cheguei acho que na quarta. Eu fiquei pegando amizade com os caras lá, não sei o quê. Acho que na quinta-feira eu estava lá, era tipo um jardim na frente, tinha as mesinhas e o pessoal ficava esperando pra sair o jantar porque jantava, tomava banho, esperava lá e depois ia dormir. O cara começa a enrolar um baseado na minha frente assim, ficou: “Para com isso, pô” “Não, não tem problema”. O cara enrolando um baseadinho lá na minha frente. Eu falei: “Vou sair daqui” e fui assistir televisão, vai que sobra pra mim, né? Na sexta-feira eu peguei um quarto, o quarto tinha três beliches, são seis pessoas no quarto. Eu já peguei quarto com mais de seis negos. E a janela do quarto dava pra rua. Naquele dia entrou cachaça, cerveja, pedra e pó. Eu falei: “Não estou sabendo de nada”. Peguei e virei, botei a cara na parede e os caras a noite inteira lá. Se pega, todo mundo pra fora, né? Daí eu fiquei em Vitória e arrumei aquele mesmo negócio, arrumei uma copiadora barata onde tinha um pessoalzinho que podia fazer umas vendinhas.
P/1 – Durante esse período você achava que era um período passageiro? Sabia que era passageiro.
R – É. Então, é amizade boa que eu tive com o negão, com o Ataíde. O Ataíde já estava uns dias lá e estava pra vencer. Ele precisava sacar um dinheiro pra ele poder arrumar um quarto pra ele, alugar um, sabe? Era dois mil e pouco que ele tinha pra sacar e os caras falavam que era só no mês que vem. E eu falei: “Como que faz?” “Eu não tenho emprego, não sei o quê”. Eu falei pro Ataíde: “Você tem algum telefone de contato, alguém?” “A namorada do meu irmão” “Qual o número?” “Tal”. Eu peguei e escrevi uma declaração: “Declaro para os devidos fins que o seu Ataíde está em período de experiência, tal, não sei o quê”, arrumou um mês lá. Dessa declaração que eu fiz ele colocou pra assistente social e ficou mais um mês lá, conseguiu arrumar mais um mês pra ficar lá. Ele ficou todo agradecido, gente fina o negão. A gente pegou amizade boa. Tanto que no dia que eu fui embora, que eu peguei passagem pra Juiz de Fora, ele não foi nem se despedir de mim, sabe? Daí em Juiz de Fora eu cheguei em Juiz de Fora, fiquei uns dias lá, mas o pessoal que menos gosta de ler, Juiz de Fora, por incrível que pareça. “Não gosto de ler, não gosto de ler”. Mas eu fiquei.
P/1 – Você não tinha contato com seu filho nesse meio tempo?
R – Tinha, tinha por, como se fala?
P/1 – E-mail.
R – E-mail, ia numa lan house, falava com ele. Aí cheguei em Juiz de Fora. Em Juiz de Fora olha como é o negócio, o pessoal que não quiser trabalhar não trabalha mesmo. Vê se um cara vai trabalhar. Em Juiz de Fora você chegava lá, dormia lá, então tinha o café da manhã. Depois tinha um outro lugar, era um lugar que dava passagem, tinha assistente social, às nove horas você podia tomar um lanche. Onze e meia, meio-dia o almoço. Três horas, outro lanche. Seis horas você podia jantar. E fora que nesse lugar que dava passagem o cara ficava lá jogando baralho, jogando dominó, o cara não trabalha mesmo. Mas aí eu peguei passagem em Juiz de Fora e fui pra Aparecida do Norte. De Aparecida eu fui pra Taubaté, Taubaté-São José, São José-Jacaréi. Em Jacareí cruzei com um cara, um loirinho que eu conheci em Vitória. De Jacareí peguei uma passagem pra Campinas, fiquei mais uns dias em Campinas, eu já podia ficar porque já tinha passado seis meses, é de seis em seis meses geralmente. Daí voltei pra São Paulo. Quando voltei pra São Paulo eu fui nesse primeiro albergue que eu fiquei aqui em São Paulo, um tal de Arsenal, que é ali na Mooca. Tem mil e cinquenta pessoas. Quem cuida é a igreja católica. Eles são tudo italianos. E aí fiquei seis meses lá nesse albergue. Daí arrumei emprego com esse chinês que eu trabalho, estou com ele até hoje.
P/1 – Que emprego é esse?
R – Eu faço tipo tudo, sabe? Ele tem muita dificuldade em falar o português. No começo fazia compras.
P/1 – Você conheceu ele no?
R – Eu conheci ele de frequentar o bar. Aí eu faço compras, até no ginecologista eu levei a mulher dele, se você quer saber. Então faço compras, pagamentos, coisas. Mas estou com ele.
P/1 – Você lê bastante? Tem escritores preferidos?
R – Não sou de ler muito, não, pra falar a verdade. Quando eu era moleque eu sempre falei: “Não vou ser escritor”. Eu queria mesmo era ser diretor de cinema, meu negócio é cinema, sou um cinéfilo.
P/1 – E você continua escrevendo ou você ficou só com aqueles três contos?
R – Eu não deixei pra você aquele caderno? Tem vários lá. São vinte contos ou crônicas e tem os causos. Os causos estou escrevendo ainda, são causos pequenininhos com fatos que aconteceram comigo.
P/1 – Mas você nunca mais vendeu?
R – Não, não vendi. E estou procurando agora uma editora, ver se alguma editora se interessa. Basicamente é isso aí.
P/1 – A gente está se encaminhando já para as perguntas de encerramento, tem alguma coisa que você acha que você queria complementar?
R – Complementar? Não sei, pergunta aí.
P/1 – Então, eu queria saber quais são as coisas mais importantes pra você hoje em dia? Na sua vida?
R – Mais importantes.
P/1 – Quais são seus sonhos?
R – Então, tem uma frase minha que eu falo assim: “Na solidão, o meu passado e os meus sonhos são meus melhores companheiros”. Agora meu sonho, por exemplo, hoje basicamente, se eu editasse esse livro pra mim seria um. Gostaria de escrever um roteiro, isso eu vou fazer ainda, que eu tenho na cabeça. Eu gosto muito de mexer com tempo, sabe? Aquele filme “Feitiço do Tempo” eu acho muito interessante, aquele com o Brad Pitt também, que ele vai voltando, O Caso de Benjamin, eu acho muito interessante. E eu tenho uma ideia meio maluca de mexer com o tempo, então eu gostaria de escrever um roteiro. Gostaria de voltar a desenhar porque eu tenho. Eu não falei dos salões, ah, falei, né? Do Salão de Belo Horizonte, foi um momento muito bom. E sei lá. Bom é acertar com a família, apesar da gente estar separado é bom. O Chico está em Aruba, o Marcelo está na Espanha, meu sobrinho está na Inglaterra, meu filho na Irlanda. Outro dia eu escrevi um negócio engraçado e o Pedro deu risada. Porque a família é internacional, tem na Espanha, na Irlanda, na Inglaterra, em Aruba. Daí eu falei assim: “Ah, eu também sou internacional, eu fui pro Paraguai uma vez” (risos). Daí ainda completo, o Pedro deu risada: “E ser considerado internacional indo pro Paraguai é a mesma coisa que procurar o nome na Coca e encontrar na Dolly, né? É a mesma coisa” (risos).
P/1 – Como foi pra você contar a sua história aqui hoje pra gente, ter sua história no Museu?
R – Ah, legal, não sei. Eu estava até meio ansioso e estava contando. O dia que a menina me ligou, Luísa, né? Eu falei: “Marca o quanto antes”. É interessante. Como eu falei pra você, eu não sou escritor, eu sou contador de histórias, eu sei contar histórias. História eu conto mesmo, às vezes até alguma coisa que eu deixei de contar aí. Por isso que eu gosto de escrever porque daí você vai lembrando, sabe? Foi muito interessante, foi uma experiência única, vamos dizer assim. Sabia, ela falou: “Ah, separa umas duas horas”. Eu falei: “Ah, duas horas vão ser pouco, vai ser mais do que duas horas”.
P/1 – Eu queria agradecer, em nome do Museu da Pessoa.
R – Eu que agradeço.
P/1 – Você ter dividido sua história com a gente.
R – Eu que agradeço e qualquer coisa a gente se fala.