Museu da Pessoa

Todos nós precisamos de amor

autoria: Museu da Pessoa personagem: Andreia Aparecida Evangelista

Projeto Conte a Sua História
Depoimento de Andreia Aparecida Evangelista
Entrevistada por Lucas Torigoe
São Paulo, 12/03/2016
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: PCSH_HV530
Transcrito por Claudia Lucena
Revisado por Luiza Gallo Favareto


P/1 – Bom dia então.

R – Bom dia.

P/1 – Obrigado pela presença e pelo tempo. Você fala o seu nome completo pra mim, o local e data de nascimento.

R – Meu nome é Andreia Aparecida Evangelista, nasci na Vila Nova Cachoeirinha, no Jardim Elisa Maria, no hospital ali na Cachoeirinha. Eu era criança aquela época, quando a minha mãe engravidou, era dificultoso pra uma mulher engravidar, não era como nos dias de hoje que as mulheres engravidam nova, que engravidam cedo, naquela época minha mãe tinha dezesseis anos, então uma gravidez era bem proibida, era uma coisa grave naquela época. A minha mãe não ficou comigo, ela não escolheu a gravidez, não teve condições de cuidar de mim, eu vivi na mão de um, na mão de outro, quando eu fui morar com a minha mãe, eu já tinha mais ou menos uns onze anos de idade, mas a minha família vivia em conflito. Por quê? Porque a minha mãe tava nas drogas, o meu padrasto também tava nas drogas, e aí eu fui pra rua ainda cedo, fui pra rua com meus quinze anos de idade, morei em casas, na época a gente chama de casa de funções, é casa onde só tem pessoas que usam droga, e ali eu já tava envolvida com a maconha. Aos sete anos de idade eu já sabia o que era cocaína, aos dez anos de idade eu já tava fumando cigarro, aos quinze eu já tava na maconha e aos vinte já tava no crack, e nessa trajetória da minha vida eu vim pra rua, pro Centro de São Paulo. Eu, quando eu caí na rua, eu caí ali na Praça João Mendes, é próxima à Praça da Sé e ali eu fui sequestrada, porque, assim, como é que eu posso explicar? Existe muito tráfico de mulheres no Brasil, não é tão falado quanto, do Brasil, os repórteres, geralmente, eles falam do tráfico de mulheres no exterior, mas no Brasil também existe tráfico de mulheres, não só tráfico de mulheres, como homens que catam mulheres, obrigam, colocam elas para transportar drogas pra eles e, se elas não fizerem aquilo que eles querem, eles matam a família inteira. Então foi isso que aconteceu comigo, ali eu fui sequestrada por um homem, fiquei presa em cativeiro num prédio que fica lá no Pátio do Colégio, que hoje esse prédio foi desativado, antigamente as pessoas chamavam de prédio dos cheira cola, é onde ficavam as crianças de dez, doze anos de idade usando drogas, como morreu muita gente nesse prédio...

P/1 – Você tava falando que você foi sequestrada então, lá no Pátio do Colégio?

R – Isso, eu caí nas ruas, eu era muito menina, nova, e era de menor ainda e eu fui sequestrada ali por um homem e ali ele me sequestrou, me enfiou, colocou num prédio, na época, era um prédio lá no Pátio do Colégio. Hoje em dia esse prédio foi desativado, esse prédio tá totalmente fechado, antigamente as crianças de doze, treze, quatorze até a faixa de vinte anos, por aí, viviam pessoas lá nesse prédio, eram um prédio, chamava prédio dos cheira cola, a maioria das meninas da Praça da Sé que vivia na prostituição, que era usuária de cola, viciada em cola, elas habitavam, elas se prostituíam e iam pra esse prédio pra manter o uso de drogas. E aí eu fiquei nesse prédio presa em cativo, na mão desse homem, ele era um homem que tinha pacto com o diabo, ele matava as pessoas e tomava sangue humano, e ali eu tentei suicídio, na época, tomei umas seis cartelas de Diazepam, eu lembro que eu desmaiei numa segunda, voltei numa sexta, num sábado, uma sexta pra um sábado. E ali ele queria fazer de mim um monstro e ali ele tava conseguindo fazer de mim um monstro, porque eu tava me revoltando de uma tal maneira que eu não achava modo de escapar, muitas pessoas falavam, hoje em dia falam: “Ah, mas por que você não fugiu?”, porque eu tinha medo, ele ameaçava, sabia onde a minha família morava e ameaçava matar a minha família inteira. Então muitas vezes eu pensava: “E minha família? Se eu sair daqui e ele matar minha família”?, minha mãe faleceu, até hoje minha mãe nunca ficou sabendo dessa história. E ali Deus tirou ele do meu caminho, ele foi preso há seis anos atrás, eu fiquei sabendo que há seis anos atrás, há mais de seis anos atrás ele morreu picado na Carandiru, porque descobriram que ele era estuprador de criança e aí ele morreu picado na Carandiru. Nessa época eu caí na praça, na Duque de Caxias, entrei na, já tava na criminalidade, porque eu já cresci no meio da criminalidade, minha família toda nas drogas, envolvida com a criminalidade, quando eu era criança eu já sabia até o que era revólver, pegava revólver na mão.

P/1 – Eu queria só voltar, antes de você ir pra frente. Qual é o nome da sua mãe inteiro?

R – Izilda, Izilda Evangelista.

P/1 – E o seu pai, qual é o nome dele?

R – Meu pai chamava Jonas Pinheiro Lima, o meu pai eu não cheguei a conhecer, meu pai, ele morreu com um tiro no coração quando eu tinha dois anos de idade, e minha mãe morreu por causa de crack, minha mãe era usuária de crack, ela morreu aos 42 anos de idade.

P/1 – Você sabe como o seu pai e a sua mãe se conheceram?

R – Meu pai e minha mãe se conheceram assim, creio eu que foi uma prostituição também, porque ela engravidou de mim, ele não quis me assumir na época e, quando eu nasci ele queria me assumir, ela já não queria mais, então eles praticamente não moraram juntos, eles tiveram um caso.

P/1 – Aí você nasceu, em que ano você nasceu?

R – Mil novecentos e setenta e oito.

P/1 – Em 78 na Vila Nova Cachoeirinha?

R – Isso, Hospital da Cachoeirinha.

P/1 – Como era lá nessa época, você se lembra, na infância?

R – Na época, no Jardim Tereza, nos fundos do quintal onde minha família morava, as ruas eram tudo de terra, hoje em dia são ruas asfaltadas, inclusive o meu padrasto, que também é falecido, tinha cavalo, eu andava de cavalo, hoje em dia eu perdi um pouco a prática, mas eu andava de cavalo, as ruas eram todas de terra.

P/1 – Sério mesmo?

R – É, todas de terra, hoje em dia tudo é asfaltado, não tinha casas, era só mato, tinha um brejo, a gente tinha pato, tinha cabrito, hoje em dia...

P/1 – Ah, é?

R – Era, e hoje em dia é tudo asfaltado, existe bastante casas, passa até ônibus, eles construíram escolas, construíram creches lá.

P/1 – Você brincava de que lá? Você se lembra como você brincava?

R – A gente brincava assim, a gente ia no lixo e a gente achava latas de óleo, era os brinquedos da gente, lata de óleo, achava produtos de mercado vazio no lixo e eu com as minhas primas brincava de mercadinho, a gente fazia um mercadinho e catava os produtos de embalagem vazia e brincava de mercadinho.

P/1 – Como é que é essa história do cavalo aí?

R – Ah, eu andava de cavalo, gostava de andar de cavalo, tinha uma égua chamada Garota, inclusive na época essa égua foi morta, um homem matou ela, o homem matou ela como se fosse carne de açougue.

P/1 – Ah é?

R – É, existia um homem na época, eu não lembro do nome, porque eu era muito criança, eu fiquei sabendo porque eu ouvi o meu padrasto falando que ele matou ela, a égua sumiu e aí o meu padrasto foi atrás junto com os amigos dele, encontraram a cabeça dela num sítio. Porque todo cavalo, ele tem uma marca de ferro pro dono reconhecer o cavalo, e ele tinha a minha letra de Andreia marcada e ali meu padrasto descobriu que esse homem tava matando cavalo e vendendo no comércio como se fosse carne de açougue, de boi, pras pessoas.

P/1 – Nossa! Mas aí o seu padrasto... Quem era o seu padrasto?

R – Chamava Guilherme Ferreira, ele morreu, ele era usuário também de drogas, ele parou com o crack e entrou na cachaça, na pinga, e aí acabou morrendo de cirrose.

P/1 – E como é que era lá, a sua mãe fazia o que na Vila Nova Cachoeirinha?

R – Minha mãe, às vezes ela trabalhava, mas a maioria das vezes ela roubava, minha mãe vivia na criminalidade, então ela roubava, traficava, fazia tudo aquilo que não agrada a Deus, entendeu, hoje eu sou uma mulher cristã.

P/1 – Ela te colocou na escola, chegou a te colocar?

R – Eu estudei, fiz até a oitava série, eu passei pro primeiro colegial, eu abandonei a escola na época, quando eu tinha quinze anos, por falta de estrutura familiar, porque a minha mãe brigava muito com o meu padrasto, eu saía de casa pra ir pra escola, saía de casa com muita briga, muita contenda, muita guerra dentro de casa, familiar, e aí eu acabei abandonando a escola. Eu já tava envolvida com a maconha, já, eu já fumava cigarro e a maconha, ela dá um certo esquecimento na pessoa, ela mexe com os neurônios, ela dá um certo esquecimento, a pessoa, quando fuma maconha, ela esquece muitas coisas, não se recorda, e aí eu já não tinha mais aquela cabeça pra estudar, entendeu?

P/1 – Você tem irmão ou irmã?

R – Não, sou filha única, eu tenho uma irmã por parte de pai, só que eu não conheço.

P/1 – Ah, é?

R – Não, eu vi ela uma vez só, mas eu não me lembro muito bem dela, não.

P/1 – Você era criança?

R – Ah, eu era menina quando eu vi minha irmã, só que depois nunca mais eu vi ela, mas por parte de mãe eu sou filha única, só foi eu, só.

P/1 – Como foi a primeira vez que você usou alguma substância, alguma droga?

R – Eu era criança, eu tinha mais ou menos os meus, a primeira vez que eu experimentei cocaína, a minha mãe tava enrolando no quarto e aí ela foi pra cozinha pra pegar papel alumínio pra poder enrolar a droga, e aí eu passei o dedo no prato pra saber que gosto que tinha a droga. Quando entrou o crack, hoje em dia é a pedra, mas antigamente era o crack, o crack, ele era a cocaína que era, ela era fervida com bicarbonato, saía a casquinha, era o crack, muitos falavam até que era heroína, e as pessoas fumavam num copinho descartável, antigamente não era cachimbo que as pessoas fumavam, fumavam no copinho descartável, esses copinhos de água mineral. Minha mãe, às vezes, saía pra trabalhar, deixava embaixo da cama e eu ia lá e experimentava, puxava, chupava o copinho, pra saber o gosto que tinha, curiosidade de saber o gosto que tinha, então eu creio que aquela droga foi infiltrando no meu sangue. Usar mesmo eu vim usar depois de um certo tempo, já com os meus dezoito, com meus dezenove, vinte anos, mas quando eu era criança eu já sabia o gosto da cocaína, a maconha, eu entrei na maconha com quatorze pra quinze anos de idade, em casa também, minha mãe saiu pra trabalhar e deixou uma ponta de maconha em cima da mesa e ali eu fumei pra saber o gosto que tinha a maconha. A partir daquele dia eu gostei, já comecei a fumar, minha mãe também não se importou, por quê? Porque ela fumava, ela falou que só não podia entrar numa droga pior, porque começa pelo cigarro, do cigarro vai pra maconha, o cigarro comecei aos dez anos de idade, em casa também, catava bituca de cigarro da minha mãe e fumava. Depois eu comecei a comprar maço de cigarro, dava pras minhas amigas guardarem pra mim, pra não guardar em casa, eu chegava a fumar dois maços de cigarro por dia aos meus dez anos de idade.

P/1 – Nossa! Mas, além disso, você gostava de, você assistia TV, rádio, do que você gostava?

R – Eu gostava de dançar, cantar, eu gostava muito de dançar, inclusive ganhei concurso de dança, ganhei concurso de dança, hoje eu não danço mais porque sou uma mulher cristã, hoje eu só canto e louco pra Jesus e danço pra Jesus, na presença do Senhor.

P/1 – Mas o que você gostava de dançar na época?

R – Eu gostava de dançar música baiana, axé, saía em escola de samba como passista em escola de samba.

P/1 – Como é que era isso aí?

R – A minha mãe me levava muito nas quadras de escola de samba, de bateria de escola de samba.

P/1 – Ela gostava também?

R – E ali desde pequena eu já fui acostumando e fui crescendo, crescendo, crescendo, aí eu gostava de sair em escola de samba, saía na Leandro de Itaquera.

P/1 – Você se lembra de alguma coisa que você gostou muito algum dia que você foi lá, alguma coisa que te marcou na escola de samba?

R – Na verdade, o que me marcou, o que eu gostei, pra falar a verdade, é uma coisa que eu gostava na época, hoje em dia, se eu falar que eu gosto, eu não gosto mais, mas o que eu descobri em mim que eu sempre gostei de fazer, é compor, eu sou compositora, pela glória de Deus.

P/1 – Ah, é?

R – É, eu tenho os louvores que Deus me deu, tudo para a glória Dele, eu gosto de escrever música.

P/1 – Sério?

R – Eu gosto de escrever música.

P/1 – Mas isso começou depois só, né?

R – Foi depois isso, quando eu fui começando a me descobrir, porque a gente vai começando a se conhecer, a se descobrir, porque na verdade eu não me conhecia, eu era uma pessoa que não era eu, eu era uma pessoa que agia por impulso, eu era uma pessoa muito nervosa, eu era uma pessoa agitada, eu era uma pessoa muito revoltada devido à situação de vida que eu vivia, eu era uma pessoa que não escutava ninguém, eu enfrentava a polícia, eu enfrentava traficante, eu não tava nem aí com nada.

P/1 – Como é que era lá onde você cresceu com essa questão do tráfico, da polícia?

R – O índice de criminalidade até hoje lá é muito grande, é muito grande lá, muita morte, porque em vila, à noite, deu um certo horário já tem que tá dentro de casa, aí já começa o tiroteio na rua, aquele barulho de pneu de carro cantando na rua. Aqui é diferente, eu moro aqui na comunidade do Moinho, eu fui pra vila no natal, na casa da minha vó, eu pensei até em construir lá, mas depois eu falei: “Não, eu prefiro ficar aqui na comunidade”, porque aqui é bem mais tranquilo, por causa que todo lugar tem o seu índice de criminalidade, mas se for na vila, no Centro, tem gente que acha que no Centro é pior, mas tem certos pontos da vila que o índice de criminalidade é pior, porque cada um tá dentro da sua casa, fechou a sua porta, já era, entendeu? No Centro da cidade, as coisas são mais abertas, mais soltas, mais expostas, tudo parece que é normal, as pessoas lá usam droga, é normal, as pessoas, as mulheres nos paredões se prostituindo é normal, na vila essas coisas já não são normal.

P/1 – As pessoas encaram de outra maneira, é isso?

R – É, encaram de outra maneira, aqui tem, no Centro da cidade é normal, tem aí os paredões que é a Estação da Luz, a Praça João Mendes, onde as prostitutas ficam livres, as pessoas passam pra cima e pra baixo e é uma coisa normal, que todo mundo vê todo dia, na vila já não tem isso. As pessoas usam droga na rua, que nem na cracolândia, sentado, a polícia passa pra lá e pra cá, as pessoas tão ali usando droga e continuam usando, na vila já não tem isso, entendeu, é diferente.

P/1 – O que você acha que é diferente?

R – Na vila acho que tem mais respeito, nessa parte eu acho que tem mais respeito, não é tão exposto na vila, a não ser que as coisas, eu creio que na vila talvez não seja nem tanto a questão de respeito, é mais encoberto. No Centro é mais exposto, na vila é mais encoberto. No Centro uma menina de treze anos engravida normalmente e vive numa prostituição normalmente, normal e ninguém fala nada, na vila uma menina de dose anos, de terze anos, se engravidar, acontece, mas é encoberto, as pessoas começam a falar: “Olha”, essas coisas assim. Porque na vila são mais pessoas de família em cada casa, em cada casa, agora, no Centro é gente que vem de tudo quanto é lugar, vem pessoas de Pernambuco, pessoas do Ceará, vem pessoas de tudo quanto é lugar, elas vêm pro Centro da cidade, assim como aqui na comunidade do Moinho. A maioria da população que tem aqui na comunidade do Moinho foram pessoas que foram moradoras de rua como eu, mas que também teve uma família, eu conheço pessoas na rua, na cracolândia aqui, que são advogados, pessoas que falam bem, escrevem bem, teve estudo, eles tão lá naquela situação devido à droga e às vezes até mesmo mau amor por parte da família, as pessoas que são desprezadas.

P/1 – Eu vou chegar lá de novo, lá na cracolândia, mas eu queria te perguntar como é que era na escola, você gostava?

R – Eu era bem, viu, nunca repeti de ano (risos), eu era bem, nunca repeti de ano, gostava muito de estudar, infelizmente abandonei a escola, vou voltar aos meus estudos no tempo de Deus, se Deus quiser, mas nunca repeti de ano e gostava muito de estudar, era muito inteligente na escola, muito, nunca repeti um ano e eu gostava muito de estudar, minha letra também é muito bonita, todo mundo fala.

P/1 – Você gostava mais de que, que você se lembra?

R – Eu gostava de estudar sobre Educação Moral e Cívica e Biologia, eu gostava de estudar sobre o corpo humano e sobre as estrelas, constelações, conhecer o mundo que a gente vive, e sobre o corpo humano, de conhecer nosso corpo, nosso coração, nosso corpo por dentro.

P/1 – Você gosta mesmo de corpo humano e de estrela, é isso?

R – É, gostava também de conhecer o mundo. Uma vez eu fui até pra um lugar, já ouviu falar de um lugar chamado planetário?

P/1 – Sei.

R – Eu acho que fica aqui, fica pro lado do Centro, eu fui lá, eu fiquei encantada, quando eu fui a primeira vez no planetário, fui ver as estrelas, o sol, tudo o que Deus fez, Deus fez esse mundo maravilhoso, que diz a palavra de Jó, que fala: “Olha a sua volta e veja quantas coisas que eu tenho feito”. Muitas vezes nós não observamos, as pessoas reclamam, costumam reclamar: “Minha vida tá assim, minha vida tá assim”, mas elas não viram o que Deus fez, nós estarmos aqui respirando, estarmos conversando, já é grande coisa que Deus fez na nossa vida. Outras pessoas não têm oportunidade nem de tá aqui nesse momento falando até de Deus, do amor de Deus.

P/1 – Você olha pro céu, você se lembra disso então, você olha pro céu e vê Deus?

R – Ah, eu conheço Deus, eu tenho muita intimidade com Deus, Deus já falou comigo diversas vezes, eu lembro do meu primeiro livramento que eu tive de morte, eu tinha sete anos de idade, minha mãe tava numa casa enrolando droga e ali tinha um homem que tava limpando um revólver e eu queria sair dali de qualquer jeito, ali era Deus me incomodando, o Senhor me incomodando pra que eu saísse dali. Minha mãe falou: “Não, mas você quer ficar aí, não?”, eu queria sair daquele lugar, quando eu acabei de sair, o revólver disparou e aquela bala o inimigo tinha preparado pra mim, mas Deus me deu o livramento ali. Quando eu tinha vinte anos de idade, eu vi uma luz, eu vi uma luz muito forte que eu caí desmaiada, e aquela luz que eu fui acender uma vela e fazer uma oração, e ali era Deus falando pra mim que ele era a luz, na verdade ele é a luz. E Deus falou comigo também através da prisão, eu fui presa inocente aqui dentro da comunidade, a polícia invadiu o meu barraco numa caguetagem anônima, e ali eles alegaram que aquela droga era minha, e eu tinha acabado de ganhar minha filha, Mayara, que é aquela ali que tá de saia preta, e ali fazia cinco dias que a minha filha tinha nascido. Eu fui presa lá em Pinheiros, no DH quatro na época, inocente, e ali, até eu explicar que eu era inocente, eu tive que ir no julgamento, fui absolvida porque consegui provar minha inocência, eles viram que a droga realmente não era minha, mas eu fiquei oito meses, quase um ano na prisão.

P/1 – Nossa!

R – Mas ali eu conheci muitas pessoas, dentro da prisão, inocentes também, e ali Deus falou comigo, dentro da prisão, Deus falou que: “Eu sou o ferreiro que sopra as brasas, eu sou o teu Deus que cria o homem, que cria a arma de fogo para matar e destruir, se acaso você for ao tribunal, você não será condenada, porque Eu, o teu Deus, te deu a tua vitória”. E ali eu fui absolvida com quinze pedras de crack e 24 parangas de maconha, e tinha mulheres lá que com dez pedras de crack tinha pegado cinco, seis anos de prisão, então foi uma coisa de Deus mesmo, foi Deus mesmo na minha vida.

P/1 – Mas como é que era, conta pra gente, você chegava em casa, a sua mãe tava no fluxo lá e tinha muita gente estranha, como é que era?

R – É, eu chegava em casa, a minha mãe tava usando droga, o meu padrasto, inclusive, às vezes, ele levava pessoas estranhas pra casa, que eu não conhecia, já aconteceu uma vez, hoje ele morreu já, de um amigo do meu padrasto, uma vez, quando eu tinha uns oito anos de idade, ele entrou, meu padrasto não tava, minha mãe não tava, ele entrou dentro da casa da minha mãe e tentou me assediar, tentou me agarrar à força e abusar de mim sexualmente. Aí eu comecei a gritar, eu tinha acho que uns oito, nove anos, e ali ele saiu correndo, foi embora, e eu tinha medo dele, às vezes, quando... Só que eu era muito fechada, eu não contava as coisas que aconteciam pra minha mãe nem pro meu padrasto, e às vezes, quando ele ia em casa que ele ia ver meu padrasto, minha mãe, eu ficava com medo, eu corria pro fundo do quintal, eu tinha medo.

P/1 – O seu padrasto, ele fazia o que exatamente?

R – O meu padrasto gostava de cavalo, o negócio dele era cuidar de cavalo, trabalhava, ele trabalhava, minha mãe e o meu padrasto já trabalharam em firma, minha mãe trabalhou em casa de família, mas eles deixaram se envolver com as drogas. Então quando você deixa se envolver com umas drogas, acaba entrando em dívida ou, pra sustentar o vício, tem que ter um dinheiro, tem que ter mais dinheiro, porque quanto mais você usa a droga mais você quer, e ali eles deixaram tudo o que eles tinham, meu padrasto, na época, tinha um terreno na Ninho Verde, minha mãe vendeu, eles venderam lá por um quilo de cocaína o terreno, tudo o que eles tinham eles venderam e acabaram consumindo nas drogas. Aí acabamos indo morar na casa da minha vó, a minha vó tem um terreno bem grande lá no Elisa Maria, aí minha vó ajudou a gente e a gente foi pra casa da minha vó, foi de lá da casa da minha vó que eu fui pra rua.

P/1 – Você tava na sua vó, ela te tratava bem? Como era?

R – Minha vó sempre me tratou bem, minha vó é assim, foi minha mãe, porque minha mãe muitas vezes tava drogada, tava alcoolizada, tava drogada, não tanto álcool, porque ela não bebia tanto álcool, mas às vezes ela bebia, consumia álcool, quem bebia mesmo era meu padrasto, e minha vó era uma mãe pra mim, ela praticamente que me criou. Inclusive minha mãe uma vez foi presa no 13º da Polícia Militar e ali eu tava junto com ela, porque quando eu era criança a minha mãe me ensinava a roubar, porque ela achava que aquilo era uma coisa normal, e uma vez a polícia catou a gente lá na Drogaria São Paulo e a polícia quando descobriu que era minha mãe, começou a bater nela e ali ela perdeu a minha guarda e eu fiquei com a minha vó. Só que ela não aceitava, quando ela usava droga, que ela tava drogada, ela ia na casa da minha vó e começava a querer brigar comigo dentro da casa da minha vó e, devido a isso, eu acabei indo pra rua, não aguentei. Acabei indo morar nessa casa, que era uma casa de função, que inclusive tive muitos livramentos nessa casa também, porque como era muita gente que usava droga, as pessoas entravam em dívida, teve um certo dia nessa casa que um homem pegou droga de uns traficantes, os traficantes entraram nessa casa, invadiram essa casa. Eu lembro que eu tava abaixada, dobrando roupa e eles colocaram o revólver na cabeça de todo mundo, cada hora eles vinham, encapuzado, cada hora eles vinham de uma forma diferente, porque se aquele homem tivesse ali, ia morrer eu, ia morrer todo mundo, só ia escapar as crianças. Então eu já tive muito livramento de morte mesmo.

P/1 – Como é que a sua mãe te ensinou a roubar? O que vocês faziam, como é que era?

R – Ela me levava eu pros mercados, ela roubava os cremes, ela é 155, o pessoal chama de 155, e eu tinha aquelas bolsinhas de escola, ela colocava dentro da bolsinha e colocava embaixo do meu braço e ela saía na frente e mandava eu sair atrás, ou senão eu guardava, ela roubava as coisas e eu guardava pra ela.

P/1 – Até que um dia pegaram ela.

R – Pegaram ela.

P/1 – Aí você foi morar na sua vó?

R – Aí eu fui morar com a minha vó, só que mesmo assim eu acabei não conseguindo ficar na casa da minha vó, já tava envolvida com um monte de coisa depois, errada também, porque eu acabei me corrompendo com os costumes da minha família, da minha mãe. Porque tem pessoas que se corrompem com os costumes do mundo e tem aqueles que se corrompem com os costumes dos pais, o que os pais fazem os filhos começam a fazer, os pais fumam, os filhos começam. Muitas pessoas acham que não: “Ah, mas tem pai que não é assim e o filho, não tem nada a ver”, tem a ver sim, muitos filhos, às vezes, se corrompem com os costumes dos pais, por isso que nós que somos pais temos que ser sempre o exemplo pra quando o seu filho errar você ser o exemplo, seu filho querer ser como você, se espelhar em você como um bom pai, como um pai que não tem vício de drogas, como um pai exemplar, porque do jeito que o mundo já tá hoje em dia, se você não for um pai exemplar, o seu filho vai se espelhar no quê? Ele vai se espelhar no mundo e o mundo só tem coisas, tem coisas boas, porque tem gente que fala que o mundo não tem nada a oferecer, o mundo tem sim, tem coisas boas e tem coisas ruins, cabe à gente escolher o caminho que a gente quer seguir, e eu, graças a Deus, eu consegui me endireitar e conseguir entrar, escolher um caminho bom pra minha vida, apesar de tudo o que aconteceu na minha vida. Eu tinha mil motivos, hoje não era pra eu ser uma pessoa, tá viva, era pra eu ter morrido há muito tempo, Deus me deu grandes livramentos, porque quando Deus tem uma promessa na vida da gente, ele cumpre, mas por tudo o que eu passei, hoje em dia eu sou uma pessoa muito feliz, mesmo morando dentro de um lugar humilde, dentro de uma favela, dentro de uma comunidade, eu sou feliz, porque quando a gente tem Cristo, a gente tem a paz, quem tem Deus tem a paz, nós temos a paz do Senhor.

P/1 – Agora me conta um pouco, voltando um pouco, você foi pra rua e você...

R – Aí fui sequestrada.

P/1 – Você tava na rua então, pra onde é que você foi?

R – Aí, quando esse homem foi preso, eu fui pra Praça Princesa Isabel e ali eu comecei a roubar, conheci um cara e ali ele me ensinou a roubar, a gente arrastava os caras, pessoas, e roubava. Só que aí eu, com outras meninas também, conheci várias garotas de programa, porque aí eu já caí na prostituição, conheci as garotas de programa e aí também elas, às vezes, faziam programa, quando não dava pra roubar, porque elas não queriam fazer programa, e aí às vezes elas roubavam. Só que naquela época começou a morrer muita menina, na época da Estação da Luz era a época que tinha um policial chamado Barba e o outro chamava Castilho, já ouviu falar?

P/1 – Não.

R – Aquela época do Barba e do Castilho, eram dois policiais, eles que comandavam o tráfico na cracolândia. A cracolândia era uma verdadeira corrupção, hoje eu não sei como que é, eu acredito que seja da mesma forma, acredito que não mudou nada, só trocou as pessoas, mas na época era o Barba e o Castilho, eles abasteciam a cracolândia de drogas, e naquela época começou a morrer muita menina, tomava facada, morreu de tiro, e aí foi que eu parei de roubar e entrei na prostituição de vez, comecei a fazer programa na Estação da Luz. Fiquei bastante anos fazendo programa e foi aí que eu comecei a engravidar, ter um filho atrás do outro, entendeu, e graças a Deus também, não tive, nunca peguei uma doença, mas já corri risco de pegar doença. E na vida da prostituição eu já passei por vários abusos sexuais, de cara entrar no hotel, não querer pagar ou até mesmo o cara falar: “Ó, eu vou te dar essa droga, você vai sair comigo” e eu não queria sair a troco de droga, eu falava: “Eu só saio a troco de dinheiro” e o cara enfiar um revólver dentro da minha garganta e abusar de mim sexualmente. Então na prostituição... Ocorre muito abuso sexual dentro da prostituição, existe muito abuso sexual, porque a mulher já tá ali, tá fácil, tá exposta pra tudo, pra doença, pra estupro, tá exposta pra tudo, entendeu, e eu passei por abuso sexual não foi nem uma nem duas vezes, foi diversas vezes. Já desde criança eu já comecei a ser assediada sexualmente dentro de casa, eu nem te falei, então eu já cresci ali, de certa forma, vivendo uma vida na prostituição, nas drogas.

P/1 – Agora me conta como é que são os lugares, qual lugar é o quê? A Praça João Mendes, o que acontece, a Luz, a Sé?

R – Na Praça João Mendes existem pessoas que catam mulheres e obrigam ela a se prostituir, se elas não fizerem o que eles querem, eles matam a família inteira, no caso são cafetões, né? E na Praça Princesa Isabel existem homens, hoje em dia eu não sei se existe mais, mas na minha época esse homem que me sequestrou, ele era como se fosse um morador de rua, ele andava sujo na rua, como um mendigo, um morador de rua, só que ele era envolvido com o tráfico, ele tinha dinheiro, tinha revólver, andava armado, entendeu? Ele me obrigava a transportar droga pra ele, eu chegava a transportar quinze pedras de crack na boca pra ele, a polícia já chegou a me enquadrar, cavalaria, eu estar com quinze pedras de crack na boca e se eles mandassem eu abrir a boca... entendeu? E assim, foi ali que eu me afundei no crack mesmo, porque na minha cabeça, eu achando que, eu fumando a droga dele, ele ia entrar em dívida e eu ia conseguir me livrar dele, aí foi quando eu comecei a fumar crack. Entrei em dívida com o crack na época também, teve até um traficante que ficou com dó de mim, eu não precisei pagar a dívida, porque nos tempos de hoje em dia os caras até matam, dívida de droga, mas ali tudo foi uma mão de Deus na minha vida mesmo.

P/1 – E a cracolândia, como é que funciona? Onde que é? Como é lá?

R – A cracolândia tem vários pontos, tem gente que acha que o foco da cracolândia é aqui perto da Júlio Prestes, mas na verdade eu penso assim, no meu pensamento a cracolândia é em qualquer lugar que existe um usuário de crack, existe a cracolândia, né? Porque a cracolândia eu creio que não é só no Centro da cidade, nas vilas, você não sabe o que a pessoa tá fazendo dentro da casa dela, você não sabe, assim como a minha mãe que usava crack. Então existem muitas pessoas na vila que usam crack, só que não é visado como a cracolândia porque cada um tá usando dentro da sua casa, então ninguém tá vendo, aqui na Cracolândia não, são as pessoas que são da rua, os apartamentos, os prédios, os hotéis, as casas de funções, existe também aqui no Centro da cidade essas casas de funções. Então ali é onde se reúnem todas as pessoas que fumam crack, se reúnem todas as pessoas que fumam crack e é muito triste, viu, é muito triste, porque eu fiquei anos ali dentro da cracolândia mesmo, chegou uma época que eu já não tava ligando nem mais pra tomar banho, não ligava mais pros meus filhos. Os meus filhos ficavam jogados e a minha vida era fumar e me prostituir, me prostituir e fumar, nem comer eu comia praticamente, não tomava café, não almoçava, eu já acordava querendo sair pra rua pra arrumar dinheiro pra usar droga, entendeu? Até mesmo quando eu vim aqui pra comunidade do Moinho, eu saía daqui, deixava minhas crianças pra ir e passava dois, três dias na cracolândia, porque eu achava que eu ia arrumar dinheiro, às vezes não conseguia arrumar, mas aí arrumava droga e usava tudo em droga. Quem cuidou dos meus filhos foi essa filha minha mais velha, ela foi praticamente mãe dos meus filhos menores, porque eu não tinha estrutura, então ela, com dez anos já cuidava dos irmãos, ela foi meu braço direito, ela, minha filha.

P/1 – Quantos filhos você teve?

R – Ela sofreu bastante também, porque eu era muito agressiva, a pessoa que tá nas drogas realmente é muito agressiva e eu acabava judiando até das minhas crianças, já correu o risco até do Conselho Tutelar vir aqui levar minhas crianças embora, mas Deus nunca permitiu, nunca deixou.

P/1 – Quantos filhos você tem?

R – Eu tive sete, perdi duas, uma eu perdi por consequência das drogas, tá enterrada lá no Cemitério Vila Rio, chamada Jamila, se ela fosse viva, ela seria uma criança especial, e aí depois, quando nasceu a Jéssica foi quando eu parei com o crack. Na verdade eu não parei com o crack, eu substitui o crack pela cocaína, que também é droga, e tava na maconha ainda, substitui o crack pela cocaína e aí eu fui usando cocaína, usando cocaína, aí Deus permitiu que me desse problema no coração. Eu tenho um problema no coração, um lado do meu coração é maior do que o outro, e aí eu já não conseguia usar tanta quantidade de cocaína quanto antes, devido ao problema no coração, porque quando eu dava um, cheirava um tiro de cocaína, começava a me dar muita falta de ar, eu passava mal, não conseguia falar, a língua enrolava, queria me dar começo de derrame. E devido a isso, eu fui parando, parando, parando, parando, foi quando eu consegui parar com a cocaína, e por último, aí eu parei com a cocaína, aí Deus me abriu uma porta de um emprego, foi na Pinacoteca, depois trabalhei no Sesc do Bom Retiro. Aí eu já comecei, aí eu já comecei a me conhecer, por quê? Porque eu tive uma oportunidade de ter um trabalho, então o trabalho foi o que me ajudou muito, porque eu tive, quando eu tive esse primeiro emprego, eu vi que eu não precisava mais me prostituir, e eu comecei a vir pra igreja, me apegar em Deus e vi que Deus cuida da gente. Existem várias formas de você sobreviver, vendendo uma bala, eu já vendi bala no farol, sabe, existem várias formas de você sobreviver sem precisar fazer coisas erradas, existem várias formas de você ter uma vida decente sem precisar fazer coisas erradas.

P/1 – Que ano mais ou menos você tava lá na cracolândia? Você se lembra que ano, de que ano a que ano?

R – Que eu ia pra cracolândia? Ah, tem uns três anos atrás, tem pouco tempo que eu tô restaurada, tem dois anos, assim, que eu parei com todas as drogas, com tudo.

P/1 – Você falou que tinha gente, advogado, médico também.

R – Tem, tem médico na cracolândia, tem advogado, tem enfermeiro, tem pessoas que têm talento, que canta, que dança, que faz muitas coisas legais, pessoas carentes.

P/1 – Carente?

R – Carente de pai e de mãe, que não teve estrutura familiar, tem muitas mulheres ali que foram abusadas pelos pais e caíram na cracolândia, caíram na rua, tem umas que já tão com HIV, que infelizmente pegou doenças.

P/1 – Quem que mais te marcou que você conheceu?

R – Que a família abandonou, eu falo por mim, teve uma vez que eu fiquei com tuberculose, logo quando eu saí da prisão, eu peguei tuberculose, praticamente a minha família virou as costas pra mim quando eu fiquei doente, que eu peguei tuberculose, porque tem aquela rejeição, quer dizer, a sociedade, enfim, todos viraram as costas pra mim. Então eu me senti mais mal, eu tava morrendo mais, não pela tuberculose, mas eu tava morrendo mais pelo desprezo das pessoas.

P/1 – Você ficou, quando você ficou presa, você ficou aonde? Como que foi?

R – Eu fiquei lá no DH 4, em Pinheiros, eu fiquei lá oito meses e lá eu conheci muitas pessoas inocentes também.

P/1 – Ah, é?

R – Eu conheci uma senhora lá que tinha sido presa por causa do filho dela, porque o filho dela não assumiu que era dono da droga e a polícia levou ela, tinha uma outra, muitas meninas novas de dezoito anos, que pegou cinco, seis anos de cadeia, muita menina nova tem dentro da prisão, que não tem família e que veio de orfanato. Uma foi presa por causa de um celular, pegou cinco anos e quatro meses de cadeia, outra foi presa porque foi levar droga pro namorado, enfim, tinha uma lá que foi presa inocente, por causa do marido, pegou dez anos de cadeia, três anos de cadeia, perdeu todos os direitos no emprego. Tem muitas pessoas boas ali dentro também, sabe, muitas pessoas ali também, Deus fala muito ali na prisão, a gente se reunia, nós orávamos, nós fazíamos campanha de oração, a gente cantava pra Deus, tinha os momentos de nós louvarmos, o pastor chegava lá: “Vamos todo mundo largar o baseadinho que agora é hora da gente orar ao senhor”, a gente ia, largava o baseado e ia adorar a Deus. E, assim, e ali Deus falou dentro da minha mente comigo, até no dia da minha libertação, no dia que cantou o meu alvará, eu tinha um vulgo na cadeia, meu vulgo era Lacraia, porque eu gostava de dançar, aí: “Ó a Lacraia lá”, que morreu, e aí eu tinha um vulgo, aí eu dançava na cadeia, tocava pandeiro. Hoje eu toco pandeiro na igreja, mas na cadeia eu tocava pandeiro, tocava pagode na cadeia, as presas vinham tudo cantando também, uma pegava um balde, outra pegava uma lata e é que nem as meninas falavam, tira a cadeia e não deixa a cadeia te tirar, a gente tinha que tirar, né?

P/1 – Vocês se divertiam pra caramba então?

R – É, na verdade a gente tava ali dentro, então se a gente fosse se deprimir, a gente ia acabar morrendo lá dentro, então a gente tinha que dar a melhor forma possível, se descontrair. Mas tinha também as guerras das mulheres brigando, porque dentro da cadeia é assim, tem sapatão e tem entendida, sapatão é que sai só com mulher e entendida é mulher que se relaciona com mulher e com homem. Então, tem gente que acha que cadeia é assim: “Ai meu Deus, eu vou cair lá dentro vou virar sapatão”, não, não é assim, tudo depende de você, se um não quer, dois não briga, se você chegar e falar: “Eu não gosto disso, o meu negócio não é isso”, então a pessoa vai te respeitar, com certeza. Mas lá é assim, mulheres, eu cheguei na cadeia, eu comecei a trabalhar lá dentro, vender arroz, vender açúcar, às vezes uma mulher falava: “Ó, Andreia, vende esse pacote de açúcar pra mim por cinco reais”, eu vendia por cinco e ganhava um real em cima de cada coisa que eu vendia. O Miojo na época, dez anos atrás, era três reais o Miojo na cadeia, lá é tudo mais caro, a moeda da cadeia era o cigarro, na época era o Vila Rica, as pessoas compravam e pagavam em cigarro. E, assim, dentro da prisão também, as mulheres que eram sapatonas, aí caía aquelas meninas que iam presas, só que elas não tinham coragem de trabalhar pra se sustentar, então elas casavam com as outras mulheres pras outras mulheres sustentar elas, entendeu? Porque na cadeia, a mulher que é sapatona é homem mesmo, tem mulher que você olha na prisão, que você fala: “Meu Deus, é um homem, que bonito”, misericórdia (risos), é verdade, de cabelo curtinho, você olha, você vê um verdadeiro homem, e elas são, na cadeia elas são homem, na prisão, são homem mesmo, não são chamadas nem de elas, são chamados de eles, com nome masculino inclusive.

P/1 – Na cracolândia, quem que você conheceu que você se lembra, que te marcou ou que você tem saudades?

R – O Marquinhos, eu vi esses dias, ele não tem as duas pernas, ele fica aqui no farolzinho, vocês já chegaram a ver no farolzinho aqui um rapaz na cadeira de rodas, ele não tem as duas pernas.

P/1 – A gente não viu.

R – Eu fumava junto com ele, a gente fumava muito junto, eu chorava, quando eu saía daqui eu chorava, ficava junto com ele, tem um que fica num patins também que não tem as duas pernas, ele anda num patins na rua, ele anda, tem a Pantera, todo mundo achava que ela parecia muito comigo. Tem muitas pessoas, tem pessoas, porque eu conheço muita gente também que eu não me lembro o nome, é muita gente, hoje em dia, na cracolândia, a maioria das pessoas que eu conheci antigamente, tem, mas são poucas, elas devem ter, umas devem ter morrido ou se espalhado pra algum outro canto ou até se recuperado, como eu. Existem muitas pessoas novas, que, assim, a cracolândia sempre tá vindo, vem pessoas de vários lugares, às vezes as meninas vão presas, vão pra cadeia e acaba saindo depois de anos, voltando pra cracolândia também. Eu acho que a única forma de acabar com a cracolândia é só Jesus Cristo, a verdadeira recuperação é a pessoa se conscientizar que ela é doente e que ela precisa ser tratada, e muito amor e muito carinho, porque eu, pra me recuperar, pra chegar até aqui, Deus colocou no meu caminho a minha pastora, que é aquela que vocês conheceu, é a pastora chamada Graça. Ela fazia um trabalho na cracolândia, dando café com leite na cracolândia, e ali ela conheceu aqui a comunidade do Moinho, o primeiro barraco que ela conheceu foi eu, aquelas moças que você tava vendo ali, aquelas mulheres são tudo mulheres que vieram usar drogas. Nosso grupo, nosso conjunto na igreja é uma banda, se vocês quiser filmar nossa banda tocando, chama banda Grupo Kairós, é dê tempo determinado para que as coisas aconteçam, e todas as minhas irmãs do meu grupo lá da igreja são todas pessoas que vieram da cracolândia, que se recuperaram das drogas, são todas ex-dependentes químicas. Então a pastora é uma pessoa que tem o dom do amor, porque pra trabalhar com pessoas assim tem que ter muito amor, tem que ter muito amor mesmo, e paciência, porque eu vou falar pra você, a pastora me aguentou. Teve muito pastor aí que falou: “Nossa, eu vou embora, essa menina não dá, não”, porque eu era muito rebelde, tacava pedra nos crentes, xingava, e a pastora teve toda a paciência, todo o amor pra aguentar a gente, até hoje ela tá aguentando a gente (risos).

P/1 – Mas tem gente que acha que não é assim, que tinha que pôr polícia e acabou. O que você acha disso?

R – Não, porque violência não gera nada, eu quando era criança, que a minha mãe me espancava, me batia, eu falava pra minha mãe: “Eu vou fazer pior”, ninguém gosta de apanhar, na verdade, eu falava: “Mãe, eu vou fazer pior”. E é da mesma forma com a gente, você apanha, você vai ficar revoltado porque você apanhou, ninguém quer aceitar, mesmo se você tiver errado, você leva um soco ali, você não quer aceitar que você apanhou, ninguém quer perder, né?

P/1 – Como é, você tava nessa situação, como que você arranjou um emprego? Quem que veio falar com você?

R – Foi uma amiga minha da igreja onde a gente congrega também, ela também era usuária de maconha, hoje em dia Deus, ela também já foi usuária de crack, ela veio da Bahia, hoje em dia Deus libertou ela, ela também tá junto com a gente na igreja cantando e adorando ao senhor. E ela falou assim: “Ai, Andreia, eu tenho um serviço pra você, você quer trabalhar?”, eu falei: “Eu quero”, porque primeiro eu tava na prostituição, aí uma amiga minha, a Marisa, me chamou pra manguear. Sabe o que é manguear?

P/1 – Não.

R – Manguear é pedir esmola nas portas dos mercados, aí eu saía com as minhas crianças e ficava pedindo, mangueando nas portas dos mercados, pedindo esmola, e aí um dia eu abri a palavra, Deus falou comigo na palavra, que não é bom que você se sustente do suor do seu próximo. Aí eu falei: “Não é bom, se Deus tá falando que não é bom que eu me sustente do suor do meu próximo, então eu vou vender bala”, aí cheguei na porta de uma doceria e comecei a pedir pra mulher comprar uma caixa de bala pra mim, pedia pras pessoas que entravam na doceria. E aí Deus tocou no coração de uma mulher, ela falou assim: “Eu vou comprar uma caixa de bala pra você”, e aí eu comecei a vender bala, aí eu comecei a vender bala, mas eu ainda vivia na prostituição, porque a prostituição se torna um vício pelo dinheiro. Porque pra você vender uma bala, pra você tirar cem reais no dia, você vai o dia inteiro embaixo do sol quente, e na prostituição em meia hora, dez minutos, cinco, às vezes nem isso, você já arrumou aquilo que você queria, então na prostituição tudo é mais fácil, é por isso que as mulheres vivem na prostituição, porque, ou vive no crime, na criminalidade, enfim, porque a pessoa quer uma facilidade de viver na vida fácil. E ali eu comecei a vender bala, mas ainda tinha umas certas pessoas que eu saía, que ligava pra mim, eu tava lá com a caixinha de bala, eu falava: “Opa, rapidinho eu vou arrumar cem, 150”, ia lá e saía pra arrumar aquele dinheiro pra resolver o meu problema, sustentar meus filhos. E aí essa amiga minha falou: “Andrei, você quer trabalhar?”, eu falei: “Quero”, aí ninguém acreditou, porque eu nunca trabalhei registrado, foi o meu primeiro serviço, vai fazer três anos agora, eu tô há um ano e pouco no Ministério Público, quer dizer, desculpa, vai fazer três anos que eu tô registrada na carteira, dois anos e pouco, por aí. Então eu nunca trabalhei registrado, aí eu falei: “Eu quero”, aí todo mundo que me conhece na favela falou: “Ih, essa louca aí não vai ficar uma semana”, aí no primeiro dia eu lembro que ela falou assim: “Então amanhã, seis horas da manhã, a gente se encontra, tá?”, aquele dia eu bebi a noite inteira, cheirei cocaína a noite inteira, quatro horas da manhã eu tava bebinha. Aí foram falar pra ela: “A Andreia não vai, ela tá muito louca”, aí a minha filha, aquela de saia preta, a Naiara, eu lembro que eu cheguei em casa com um copo de menta, de bombeirinho, cambaleando, muito bêbada, quatro horas da manhã, aí minha filha olhou pra mim e falou assim: “Mãe, agora a nossa vida vai mudar, a senhora arrumou um serviço, joga essa bebida fora”. Eu até me emociono, aí eu comecei a chorar, joguei a bebida fora, eu falei: “É mesmo, né”, aí limpei a cara, aí lavei o rosto, prendi o cabelo, falei: “Como é que a mãe tá, filha? Você acha que a mãe tá em condições de ir?”, comecei a chorar, aí ela falou: “Tá, mãe, se arruma e vai”. Aí eu fui lá, ela me levou lá na Pinacoteca, aí chegou lá, a encarregada ainda disse: “Você quer começar hoje ou começar amanhã?”, eu falei: “Amanhã”, porque eu tava virada no Jiraya, no setenta, e aí eu comecei a trabalhar. Os primeiros dias eu falei: “Eu não vou beber, porque eu tô trabalhando”, mas aí eu comecei a ter recaída com o álcool, mas eu não ia trabalhar alcoolizada, quando chegava o dia de pagamento, eu fazia compra em casa, mas eu separava o meu pra usar droga e pra beber. Até que Deus permitiu que eu arrumasse uma confusão lá no serviço, aí fiquei quatorze dias sem trabalhar, levei uma suspensão, fiquei quatorze dias sem trabalhar, nesses quatorze dias que eu fiquei sem trabalhar, aí eu fiquei, aquilo foi permissão de Deus para que eu viesse parar com a bebida. Eu fiquei quatorze dias sem trabalhar, liguei ainda pra supervisora, ela não queria me atender, aí eu liguei pra filha da minha pastora que também é pastora e é advogada, uma grande advogada ela, gente, se precisar de advogado, minha amiga. E aí ela pegou e falou: “Vai lá na empresa, não conversa nem com a supervisora, nem com a encarregada”, porque a supervisora e a encarregada não queriam conversar comigo, eles queriam que desse quinze dias pra dar justa causa e eu já tava quatorze dias sem trabalhar, aí eu fui direto na empresa. A mulher falou: “Você bebeu?”, eu falei: “Bebi”, minha amiga ainda me deu um tapa, pra mim não falar que tinha bebido, mas eu falei a verdade, então sete horas da manhã eu quero ver você no Sesc, no Sesc aqui do Bom Retiro", aí eu fui pro Sesc, sete horas da manhã eu fui pro Sesc, eu comecei a trabalhar no Sesc. Aí eu já bebia, mas não ia pro serviço alcoolizada, eu já não bebia mais no trabalho, bebia só final de semana, no dia da minha folga ou final de semana. Aí Deus permitiu que eu saísse do Sesc, eu tenho por mim hoje que a minha saída do Sesc, claro que foi permissão do Senhor, mas foi um pouco também de preconceito, porque teve uma época que as pessoas fizeram uma filmagem aqui no beco, na favela, e naquela filmagem eu aleguei que eu já tinha sido presa e depois dessa filmagem que eu fui mandada embora do Sesc. Eu creio que eles assistiram essa filmagem, talvez, no Face, e existem muitas pessoas que têm preconceito, por causa dessa filmagem eu acabei sendo mandada embora do Sesc, acredito eu, porque depois que eu fui no Sesc, depois que eu fui mandada embora, a menina me mostrou essa filmagem, mas também tudo foi permissão do senhor, porque aí já era um plano de Deus na minha vida. Eu saí do Sesc, com uma semana que eu saí do Sesc, Deus me selou com o Espírito Santo, me batizou com o Espírito Santo, quando Deus me batizou com o Espírito Santo, aí eu parei com tudo, não bebi mais, não fumei mais maconha, não fiz mais nada. Agora a minha vida, eu vivo uma vida em santidade, tenho um trabalho dentro da igreja que Deus me deu,[ para a honra e para a glória do Senhor sou regente do grupo infantil, dou estudo bíblico pras crianças, ensino eles a orar, ensino eles a cantar, além deu cuidar dos meus filhos, ainda cuido de um monte de criança da comunidade, e sou dirigente, para a honra e para a glória do Senhor, porque tudo é d’Ele, tudo é pra Ele, eu intercedo pela vida das pessoas, enfim, eu intercedo pela vida da nação, daqueles que estão na droga, daqueles que estão nos hospitais, daqueles que estão presos, não só numa cadeia material, mas também numa cadeia espiritual. Porque tudo é uma prisão, não é só a droga, cigarro, o orgulho, soberba, a mentira, tudo é uma prisão e nós temos que se libertar, quebrar as correntes dessa prisão, viver uma vida em santidade, porque é tá mais próximo de Deus, porque Ele é o caminho, a verdade e a vida, e Ele me ensinou o caminho. Ele falou pra mim a verdade para que hoje eu pudesse ter vida, vida com abundância, quando eu falo vida com abundância não é ser rico, é ser feliz, porque Deus, Ele, a gente pode ser feliz no muito e ser feliz no pouco, porque Deus cuida de você no muito e cuida de você no pouco também. Eu posso tá com a minha geladeira cheia, eu tô feliz, mas se eu tiver com um quilo de arroz, eu tô feliz, porque a palavra fala que o amanhã pertence a Deus: “Eis que as coisas velhas se passaram e tudo se fez novo”, porque nós devemos pensar só no dia de hoje, porque a carga do dia de hoje é o suficiente já.

P/1 – Antes de passar pra frente, eu só queria que a gente voltasse um pouco e você me fala, como é que era o dia-a-dia quando você tava no fluxo, lá na cracolândia, você acordava, você fazia o que, como era?

R – Muitas vezes era difícil até dormir, eu só caía no chão quando o corpo não aguentava mais, você vê essas pessoas que a gente passa na rua, você vê essas pessoas dormindo na calçada, é porque elas passaram dias e dias sem dormir, aí não aguentou mais, aonde elas estavam ali elas caem. Mas eu saía pra Estação da Luz, fazia programa, às vezes dois, três programas ali na Estação da Luz, e aí quando eu arrumava dinheiro, mal e mal eu tomava um café, mas já tava tomando café pensando na droga, e ali eu catava três, quatro, cinco, às vezes já chegava a fumar quinze, vinte pedras de crack por noite. E ali, às vezes, pagava o hotel, entrava no hotel pra fumar, mas às vezes não conseguia nem ficar dentro do hotel, porque devido a eu ter muitos traumas de abuso, então eu ficava no hotel e entrava na nóia, que fala né, que entrava na paranoia da droga e ali eu achava que eu ia morrer, que alguém ia fazer alguma coisa comigo ou que a polícia ia me prender. Então eu preferia ficar vagando a noite inteira que nem um zumbi, andando nas ruas de São Paulo, todas as ruas, São João, andando nas ruas de São Paulo até o dia clarear, e aí o dia clareava, quando o corpo não aguentava mais, eu voltava pra Praça Princesa Isabel, que é onde eu ficava mesmo com a minha amiga. E ali na Praça Princesa Isabel tinha, a gente chamada de maloca, é onde fica um povo reunido, só os moradores de rua tomando pinga, às vezes, na madrugada, pra não morrer de frio, aí passava a noite tomando pinga e na beira da fogueira, e ali eu caía e dormia, quando eu acordava, começava a mesma, sempre as mesmas coisas, naquela mesmice.

P/1 – Mas no meio desse negócio aí, você olhava São Paulo, o Centro, você achava bonito pelo menos?

R – Olhava, achava bonito, tinha sonhos, como hoje eu tenho sonhos, tinha esperança, chegou uma época que eu não tinha esperança, que eu achava que a minha vida ia ser aquela, mas quando eu comecei a conhecer Deus, porque Deus é amor e é esperança, eu comecei a ter esperança de dias melhores, que eu ia conseguir, que eu ia mudar, embora as pessoas não acreditassem, porque as pessoas não acreditam que você pode conseguir chegar lá, mas não importa o que as pessoas pensam, se elas acreditam ou não acreditam, porque quem tem que acreditar somos nós, você tem que acreditar no seu potencial, você tem que acreditar que você vai chegar lá, você tem que acreditar que você vai sobreviver. Ainda que as pessoas não acreditem, mas você tem que crer, tem que acreditar, colocar a fé em prática, isso é fé em ação, você acreditar, você ter convicção que Deus vai mudar a sua história, e eu comecei a ter convicção que Deus ia mudar minha história, que Deus ia cuidar de mim, que Deus ia mudar a minha história.

P/1 – Como você via São Paulo, a cidade, como é que era?

R – Gosto muito do Centro, porque aqui é onde eu tinha mais facilidade pra sobreviver, eu não me vejo hoje mais morando na vila, porque mesmo aqui, um quintal, um lugar espaçoso, a comunidade, e meus filhos, se trancar eles num quintal fechado, eles te deixam doida da cabeça (risos). Então, eu gosto muito mesmo do Centro, porque Deus me abriu a porta nesse serviço aí do Sesc, depois eu saí do Sesc, hoje eu trabalho no Ministério Público, falo do amor de Deus até pra pessoas lá, promotores. E você vê que, como pra Deus todos nós somos iguais, às vezes um promotor passa por você, ele finge que não, finge não, ele não te conhece, tem uma vida confortável, tem umas condições de vida diferentes da sua, mas quando tem uma reuniãozinha lá que a gente canta, que a gente prega a palavra, muitas vezes eles vão e eles ouvem você falar de Deus. Então eles usam os pequenos pra confundir os grandes, usam os loucos pra confundir os sábios, aqueles que achavam que Deus, ninguém dá nada, que não têm solução, que não vai sair daquela situação, são esses que Deus quer pra mudar a história do mundo aí.

P/1 – Como é que você conheceu a comunidade aqui? Quando é que você mudou pra cá?

R – Eu conheci a comunidade porque eu fiquei doente, na rua, eu fiquei, tive pneumonia e depois tive pneumonia dupla e depois, quando eu fui presa, saí da prisão, quando o meu barraco pegou fogo, eu peguei tuberculose, aí eu tive pneumonia dupla, aí eu lembro que eu fui pro hospital, na Santa Casa, não aguentava nem andar direito, andei bem devagarinho, fui pra Santa Casa. Chegou lá na Santa Casa o médico falou que eu tinha que arrumar um abrigo, porque senão eu ia morrer, naquela época não é como hoje, antigamente o frio no Centro de São Paulo era mais intenso do que nos dias de hoje. E ali eu caí na Praça Princesa Isabel, não tinha força pra nada, nem pra usar droga, se eu quisesse, de tão mal que eu tava, e ali eu já conheci um senhor, na Praça da Sé, chamado Seu Dário, e aí Seu Dário levou pra casa dele, só que eu não fui sozinha, eu levei uma amiga porque eu fiquei com medo, eu falei: “Esse senhor que me levar pra casa dele, quer cuidar de mim que nem os três porquinhos lá, depois quando tiver gordinha, ser comida. E aí ele levou pra casa dele, Seu Dário, e aí ele começou a cuidar de mim, e aí foi quando muitos falaram que eu tava com HIV na época, porque eu tava bem magrinha, eu cheguei a, hoje eu peso, meu peso hoje é 54 quilos, mas eu cheguei a 43, quarenta quilos eu cheguei, e aí o Seu Dario começou a cuidar de mim e minha amiga também, aí eu fiquei boa, melhorei. Só que aí depois eu saí da casa do Seu Dário, do barraquinho do Seu Dário, porque aí minha amiga saiu primeiro e ele mexia com ela, aí ele começou a falar uma palavrinha, uma piadinha lá, eu, ó, corri e fui morar no barraco da Dona Nalva, que morou aqui na favela, ela morreu de sífilis, Dona Nalva, e aí eu comecei a ficar na casa dela. Só que eu saía de dia pra me prostituir e já tinha um lugar, alguém pra cuidar dos meus filhos, ela cuidava das minhas crianças, do meu filho Jonathan, que é esse que tava aqui agora, e aí eu pagava pra ela cuidar do meu filho, porque eu sabia que o meu filho tava em boas mãos, e aí eu ia pra rua pra arrumar dinheiro, até que eu consegui arrumar o meu próprio cantinho.

P/1 – Aqui?

R – Aqui mesmo na comunidade, entendeu, aí faz dezesseis anos que eu tô aqui, graças a Deus. Teve uma vez um homem, falou pra mim assim, que quem tem barraco é o diabo, isso é mentira do diabo, viu, gente, porque se não fosse Deus preparar esse cantinho pra mim, porque eu fiquei oito meses embaixo da ponte quando pegou fogo no meu barraco pela segunda vez. E quando eu fui pro meu barraco, quando começou a chover dentro da minha casa, eu falei: “Ai, Senhor, tá chovendo, mas eu tô dentro do meu barraco”, pelo menos eu tenho teto, mesmo chovendo, mas você tá dentro da sua casa, porque eu sofri muito na rua, embaixo da ponte, quando o meu barraco pegou fogo, foi uma luta muito grande, eu fiquei com o meu filho de oito meses embaixo do galpão da escola de samba, era muito rato, muita sujeira, então meu filho, aí nasceu um monte de feridinha na perna dele por causa da sujeira, furúnculo, estourou um monte de furúnculo, ferida. Então eu passei por uma, porque você passa sozinha, que nem quando eu passei na rua esses dez anos sozinha, aí é uma coisa, mas você passar com os filhos já é outra, já é bem diferente, a gente sofre duas vezes, três, eu, no caso, sofri cinco vezes, porque era sofrendo por cada um deles, entendeu?

P/1 – Como foi esses incêndios aí, esses dois?

R – Olha, foi muito triste, de fato hoje eu não sei dizer o que ocorreu, o incêndio, uns falam que foi um ex-travesti brigando, briga de homossexual, o primeiro incêndio falaram que foi uma mulher, mas eu não posso dizer, porque eu não vi, você só pode falar uma coisa que você vê, não é verdade? Só Deus que sabe de fato o que aconteceu, mas pensa numa fogueira gigante, inclusive depois, se vocês quiserem assistir, tinha até os DVDs aí, aquela caixa de DVD lá é falando sobre os incêndios, pensa numa fogueira gigante, nossa.
P/1 – A gente tava falando do incêndio, os primeiros você não sabe o que foi direito.

R – É, o primeiro diz que foi uma mulher lá no prédio, não foi aqui no nosso barraco, o meu primeiro incêndio foi só no meu barraco.

P/1 – Só no seu?

R – Só no meu, há dez anos atrás, eu fui acender uma vela, eu era idólatra ainda na época, eu fui acender uma vela pra Santo Expedito, meu barraco pegou fogo, tudo, nada contra quem é católico, que pratica a idolatria, mas nós, que somos cristãos, nós acreditamos no que tá escrito na bíblia, que Deus é um só e ele não divide a glória dele com ninguém, que Deus é acima de todas as coisas, é ele que salva, é ele que liberta, é ele que faz o milagre. Nós somos santos, então nós temos que viver uma vida em santidade, nos santificar, a palavra de Paulo fala: “Seja santo, seja perfeito em Cristo, assim como eu sou”, então perfeito só foi ele, mas nós temos que buscar essa perfeição, buscar essa perfeição principalmente em amor. Porque a palavra fala que não adianta pessoas, porque no fim do mundo vai vir falsos profetas, não adianta você profetizar, não adianta você mestrar, pregar a palavra, se você não tiver o amor, e principalmente o amor pelo próximo, nós temos que ter, que é o que muitos não... Os amores hoje em dia estão esfriando, né? As pessoas não têm amor umas pelas outras, tanto faz como tanto fez, então nós temos que ter o amor, quem quer ir pro céu tem que amar o seu irmão, quem quer ir pro céu tem que obedecer a Deus.

P/1 – Mas e o segundo incêndio, como é que foi?

R – O segundo foi o da briga do homossexual, do homossexual, que brigaram, e quando eu vi, que eu levantei, eu tava orando, eu tava de joelho, orando, daqui a pouco eu vi só o vizinho correndo assim: “Tá pegando fogo na favela”, e foi aquela fogueira gigante, eu olhei pra cima, assim, ó. E eu não acreditei que o fogo ia chegar na minha casa, porque o fogo tava bem distante, tava aqui embaixo, aqui onde tem esse galpão, nesse beco, eu não acreditei que o fogo ia chegar, eu fiquei em choque, parada. Aí o meu vizinho: “Andreia, você não tá vendo que vai, o fogo tá pegando”, aí que eu despertei, porque eu levei aquele choque, eu não acreditei, ainda consegui salvar uma cachorrinha lá, que minhas crianças, uma noite antes minhas criança arrumaram uma cachorrinha e colocaram essa cachorrinha, arrumaram um chiqueirinho lá, aquele berço lá, no lixão ali, e colocaram, coisa de criança, colocaram a cachorra pra dormir lá no chiqueiro. Eu falei que eu não queria cachorra em casa, aí amarraram a cachorra lá no quintal de casa, e aí quando foi no outro dia, eu vi o meu filho abaixado, Josué, ele tava tão triste, o Josué, quando eu vi que ele tava triste, chorando, eu lembrei do cachorro, eu falei: “Meu Deus, o cachorro”, era por causa do cachorro que ele tava triste, porque ele achou que o cachorro já tinha morrido queimado. Aí eu consegui salvar a cachorra, fui lá correndo, o pau da madeira ainda caiu em cima de mim, o rapaz do corpo de bombeiros ainda me xingou, porque eu não podia ter ido, corria o risco de até me queimar, aí consegui soltar a cachorra lá, tadinha, a bichinha tava cheia, no meio de um monte de fumaça lá. E aí pronto, as crianças ficaram todas felizes, essa cachorra virou, a cachorra fez até sucesso aí na comunidade.

P/1 – Qual é o nome dela?

R – Eu não lembro o nome dela, eu sei que as crianças viviam pra cima, eu não lembro no momento agora, eu não me lembro, quem sabe é o meu filho, ele que saiu daqui, mas eu sei que as crianças ficaram muito felizes que a cachorra foi salva, a alegria das crianças, então você vê que o amor é muito importante na vida de um ser humano, até mesmo por um animal que Deus criou.

P/1 – Também, né? A sua filha, você falou que ela criou todos os seus outros filhos.

R – É, praticamente ela, porque eu saía pra cracolândia e ela ficava em casa, então ela que cuidava dos irmão, até hoje ela que me ajuda, eu trabalho, quem cuida das crianças é ela, leva pra escola, traz da escola, até hoje quem cuida é ela, assim. Hoje eu sou a mãe que eu não era antes, mas se for pra contar, ela é mais mãe dos irmão dela do que eu fui.

P/1 – Como é que é hoje o dia-a-dia? Você acorda, o que você faz?

R – Eu acordo quatro horas da manhã todos os dias, oro até às cinco, não, eu acordo três horas às vezes, três e meia, oro até às cinco, tomo banho e vou trabalhar, aí já chego no serviço, ligo pra saber como é que tá, tudo bem, chego do serviço três horas da tarde. Aí eles vão pra escola de manhã, ela e o Josué vão pra escola de manhã, sete horas da manhã, chega meio dia e meia, aí as pequenas vão pro oratório, a de dez anos, a de doze anos cuida da de sete, elas vão pro oratório aqui da igreja católica, da Igreja da Misericórdia, que é uma benção também esse oratório, ajuda muito as crianças da comunidade, eles têm um trabalho, são da igreja católica, mas Deus é um só, não importa a religião, porque Jesus não veio pregar religião, ele veio pregar a palavra, o que tá escrito na bíblia, então independente de religião, Deus é um só, então eles fazem um trabalho muito bonito aí no oratório. E a Naná, ela leva a Jace pro oratório e quando chega do oratório, meio dia, a Adriele já tá chegando da escola, leva eles pra escola, aí chego três horas da tarde, às vezes vou buscar, às vezes ela vai.

P/1 – E o resto do dia?

R – O resto do dia eu passo com as minhas crianças aqui, vou pra igreja à noite, passo com eles, me divertindo com eles aproveitando cada momento, porque eu não aproveitava antes, e é tão bom, a gente vai pra igreja à noite, quando a gente chega da igreja, a gente vai assistir um filme. Às vezes, é uma alegria diferente, porque antes eu buscava a alegria nas drogas, achava que aquilo ia mudar, fazer, mudar eu, hoje não, hoje eu tenho uma alegria que vem de Deus, é uma alegria da natureza mesmo. É uma alegria tão gostosa, a presença do Senhor, que você ri sem saber porque você tá rindo, chego da igreja com as crianças, qualquer piadinha já é motivo de todo mundo dar risada, então é aquela alegria do amor de Deus sobre a vida minha e a vida dos meus filhos. Elas também tão na igreja, elas também cantam na igreja, só os meninos que fogem da igreja, os dois meninos homem, mas eu tô orando, porque nada é pela força, eu não posso obrigar meus filhos a irem pra igreja. Então quem tem que, a gente só prega a palavra que é a semente, quem trabalha é o Espírito Santo de Deus na vida de cada um, é ele que muda a vida de cada um, com tanto que eu demorei anos pra me libertar, a palavra foi plantada, mas ela durou anos pra que viesse dar frutos. Uma pessoa fala uma coisa pra você hoje, você guarda aquilo no coração, mas às vezes aquilo vai dar frutos daqui muitos anos.

P/1 – Como que é cuidar de tanta gente sozinha? Porque não tem marido, pai. Você pensa em ainda casar?

R – Ah, com certeza (risos), eu vou casar, Deus já falou que eu vou casar, eu vou casar, em nome de Jesus, eu vou preparar meu barão ainda, tô esperando, mas assim, dessa vez eu não quero ser que nem antes, eu escolher, eu quero deixar Deus preparar pra mim. Porque Deus tem o melhor pra gente, então quando vem de Deus é tudo diferente, porque muitas vezes o homem quer fazer as coisas da sua maneira: “Eu vou, eu faço, eu posso” e nós não fazemos nada, Deus, às vezes, permite as situações acontecerem na vida da gente para que nós viemos saber que é ele que tá no controle da situação. É ele que muda a nossa história, não é a gente, não é o que a gente quer, é o que ele quer, o que Deus quer que a gente seja verdadeiros adoradores, nós termos obediência com Deus, porque nós não fizemos, se eu mentia, eu não vou mentir mais, se eu roubava, eu não vou roubar mais, se eu me prostituía, eu não vou me prostituir mais. Porque nós somos o templo do senhor, então nós sujamos o nosso templo com coisas que não agradam a Deus, às vezes falando uma palavra que não é, xingando, falando palavrão. Em Tiago 3 fala que você amaldiçoa ou você abençoa, que nós temos que ser tardios para falar, tardios para se irar e sábio para ouvir, ouvir a palavra do senhor. E a gente não pode, eu não posso tá aqui abençoando a minha irmã e daqui a pouco tá amaldiçoando ela, a nossa boca tem que ser boca de benção, tem que falar coisas boas, coisas positivas, porque tudo o que você fala de positivo, você atrai coisas positivas pra você, agora, o que você fala de negativo, você vai atrair coisas negativas pra sua vida também. Então hoje eu sou uma pessoa positiva, eu só falo de coisas boas, nada de ruim, se vier falar uma coisa de ruim, eu já repreendo na hora: “Tá repreendido em nome de Jesus”.

P/1 – Como é que você via o Centro de São Paulo naquela época e como é que você vê hoje? Mudou, como que tá?

R – Mudou, mudou, porque hoje eu sou uma pessoa alegre, eu canto até na rua sozinha, as pessoas acham que eu tô louca da cabeça, eu falo sozinha com Deus na rua, canto sozinha, antes eu era uma pessoa triste, eu era uma pessoa amarga. Eu era uma pessoa muito amarga, porque eu não entendia porque a minha mãe me tratava daquela maneira, porque que a minha mãe me rejeitou, porque que a minha mãe me ensinava a roubar, porque a minha vida foi daquela forma. E hoje eu sei que tudo o que aconteceu na minha vida era pra que hoje eu estivesse aqui, inclusive falando até do amor de Deus pra vocês, falando que realmente ele cura, ele faz, e tudo o que aconteceu na minha vida foi pra que hoje Deus me desse oportunidade de ser salva, porque tem muitos que descem à sepultura e não teve essa oportunidade que eu tive de estar aqui, muitos que eu conheci. Hoje eu entendo que a luta é espiritual, a luta não é contra a carne, mas sim contra as potestades espirituais, não é a gente, são potestades malignas, são demônios que dominam a pessoa e a mente da pessoa. Porque se você não tem lugar pra Deus no seu coração, as coisas ruim vão entrar, você dando lugar pra coisa ruim, vai ser uma pessoa ruim, agora, se você der lugar às coisas boas, escolher o caminho bom, você vai fazer coisas boas. É o caminho que você escolhe, se você escolhe o caminho do bem, você vai ser do bem, se você escolhe o caminho do mal, você vai ser do mal.

P/1 – Então, se você tá bem, você vê a cidade bem, se você tá mal, você vê...

R – Amplamente pelos olhos, tudo eu vejo bem hoje, mesmo com as dificuldades, quando você tem Deus, você sabe que sempre vai sair dando a melhor, sempre vai sair vitorioso.

P/1 – Você anda por esses lugares que você tava andando naquela época hoje, o que você acha?

R – Eu andei por muitos lugares, muitos lugares eu fui, eu até nem me lembro mais os nomes dos lugares, que às vezes eu entrava dentro do carro de pessoas estranhas, que eu não conhecia, me levava pra lugar longe, em tempo de me matar no meio do mato, sabe, e andava pelas madrugadas. Hoje eu vejo o sofrimento das pessoas, é um lamento, porque as pessoas não querem compromisso com Deus, elas querem ser, fazer as coisas da maneira delas, que nem eu falei, quando você quer fazer as coisas da sua maneira, sua tendência é só pior, porque não é sozinho, sem Deus a gente não faz nada. A gente sem Deus, não adianta você achar que sozinho, sem Deus, você vai conseguir tomar um passo à frente, porque você não consegue, e às vezes, por mais que você ache que Deus não tá com você, hoje eu sei que a mão de Deus esteve sempre junto comigo, por mais que eu tava no mundo, nas drogas, no álcool. Eu achava que Deus não tava comigo, mas Deus, Ele tava cuidando de mim, porque Deus, Ele ama a gente, Ele não ama o que a gente faz, o pecado, então Deus tava cuidando de mim, hoje eu tenho essa visão, que Deus tava cuidando de mim. Quando eu tive com pneumonia, na rua, Deus cuidou de mim, porque era pra eu ter morrido, uma pessoa ficar com problema no pulmão na rua, tempo de frio, de inverno, são poucos os que sobrevivem. Tomei facada na cracolândia, essa facada eu tomei aqui, ela passou no pescoço, tomei essa facada, acordei, tava no hospital, Deus cuidou de mim.

P/1 – Como é que foi isso?

R – Essa facada aqui foi, tava brigando, porque eu tinha uma filha de criação, Amanda, que é filha do meu ex-marido, e ele falou pra mulher dele que a ex-mulher dele, que ia levar a menina pra conhecer e não levou e ela achou que eu tava fazendo a cabeça dele, ela vivia da cracolândia, agora ela tá presa, ela vivia na cracolândia também. Nós tivemos um desentendimento, eu tava alcoolizada, drogada, ela também tava, só que na época ela tava traficando, então aí os usuários, pum, jogou a faca pra ela, jogou a faca, ela caiu no chão, eu dei um soco, ela caiu, quando ela levantou, ela levantou com a faca. Eu tava tão louca de droga que eu não vi, ela deu, quando ela deu a facada, eu pulei, se eu não tivesse pulado, essa faca ia entrar aqui, ou talvez ela deu pra entrar aqui, que a faca quase saiu aqui, não chegou a sair aqui, mas o médico falou que a faca entrou, não chegou no nervo do braço, e ela podia acertar em cima do meu coração, ela deu pra matar mesmo. E aí eu lembro que eu corri bastante, o meu desespero não foi a facada, porque eu não senti a dor da facada, a gente não sente dor de facada, o meu desespero foi o tanto de sangue que saía do meu corpo, o sangue jorrava muito, muito, muito. Aí chegou num certo ponto que chegou na Praça Júlio Prestes ali, eu não aguentei, eu desmaiei, porque eu tinha perdido muito sangue, quando eu acordei eu tava no hospital, e aí eles queriam sabem o que tinha acontecido comigo, como eu não quis contar, porque eu acho que é um direito meu, eles me maltrataram no hospital. Porque, assim, eu tive os meus filhos na Santa Casa, quando você tem família, em qualquer lugar o seu tratamento é diferente, até num hospital, mas quando você tá, é uma pessoa que mora na rua, que você não tem família, até nos hospitais eles tratam você mal. Então quando eu fui ganhar meu filho mesmo, o Jonathan, foi quando eu morava na rua, eles me trataram super mal no hospital, a minha filha, Jace, quando nasceu, que eu tinha minha família pra me visitar, meu ex-marido, nossa, as enfermeiras me trataram como uma princesa, mas quando foi meus filhos, quando eu morava na rua, ainda mais se eles souberem que você é dependente química, eles tratam você que nem um lixo, trata você que nem um lixo. Eles não chegam, eles jogam até o pano assim, joga a toalha pra você tomar banho, é um tratamento muito ruim mesmo, quando não tem, então as pessoas que não tem família são muito maltratadas até nos hospitais.

P/1 – Você nem falou pra mim do seu ex-marido, como que é?

R – Todos os pais dos meus filhos eu conheci na prostituição, na rua.

P/1 – Mas esse você chegou a casar?

R – Eu morei, morei um certo tempo com ele e saí da prostituição, depois eu voltei de novo, porque ele vivia na prostituição e eu também vivia, ambos nos conhecemos na prostituição, e como ele tava nas drogas e eu também tava nas drogas, então não...

P/1 – Vai pra frente.

R – Não vai pra frente, não adianta, entendeu?

P/1 – Entendi.

R – E aí a gente brigava muito, porque às vezes ele começava a usar e eu já não tinha, eu não tinha controle, eu queria que ele me desse, ele me dava, eu não queria parar, queria usar a noite inteira, ele não queria me dar mais, aí a gente quebrava o pau e eu deixava ele falando sozinho e ia lá pra cracolândia, usar lá na rua, porque eu queria usar. E às vezes também você, quando tá nas drogas, aquela mulher que tá nas drogas que falar que não se prostitui, eu não acredito, porque a droga é uma coisa tão maligna, tão maligna que você faz de tudo por causa daquela droga, eu me prostituía, só nunca, Deus nunca me permitiu que eu matasse ninguém, mas eu já senti vontade até de tirar a vida de pessoas pra usufruir da droga. Então a droga realmente faz a pessoa fazer coisas horríveis, a mulher trai o marido, o marido trai a mulher e por aí vai, daí pra pior, entendeu? Não existe a pessoa chegar, falar assim: “Ah, eu uso droga, mas eu não faço isso, não faço aquilo”, na hora que ela tá na fissura, que ela quer consumir, não a maconha, a maconha não, mas outros tipos de droga, o crack, a cocaína também nem tanto, mas quando chega no crack, aí a situação já fica complicada mesmo. Porque quando chega no crack, nossa, filho, você sai com um, com dois, você trai o marido, você já quer matar, mas você quer ter aquele dinheiro, roubar, eu já corri risco pra usar droga, de entrar dentro de carro e encostar uma tesourinha de, aquelas tesourinha de escola, no cara, o cara levantar a mão e eu meter a tesoura no cara, falar: “Eu quero o dinheiro” e roubar, pular do carro, olha que doidice, pular do carro do cara e parei dentro de uma caçamba de lixo. Uma vez eu entrei dentro do carro do cara pra fazer um programa, quando eu fui roubar o cara, o cara tava com um revólver do lado, quando eu pulei do carro do cara, que eu pulei com a carteira, ainda pulei com a carteira ainda, misericórdia, pulei com a carteira por causa da droga, olha, você não tá nem aí que você vai morrer. Sabia que o cara podia me dar um tiro, mas ainda pulei com a carteira, não é coisa de dar risada, mas tô dando, e o cara me deu dois tiros, eu lembro que eu virei aquela esquina com a Rio Branco a milhão, virei aquela esquina da Rio Branco, o carro do cara fez assim, ó, pá, pá, e o cara, pá, pá, pá, descarregou o revólver em cima de mim, não acertou uma bala ali mesmo porque foi Deus. Então esse ponto, quando a pessoa tá nas drogas, chega a esse ponto dela até perder a vida, por isso que muitos perdem a vida por causa de droga, porque a pessoa vai lá fazer qualquer coisa por causa de droga, perde a vida, a pessoa tá cega, cega espiritualmente, não tá enxergando, tá cega, ela quer só aquilo, quer só aquilo, é muito triste.

P/1 – Mas passou, né?

R – Ah, graças a Deus, tudo passa, a única coisa que não passa é o amor de Deus, mas a palavra fala que tudo embaixo dessa terra é vaidade, que nós não vamos levar nada, nós temos que se preocupar com o tesouro do céu, juntar tesouro no céu, não tesouro aqui na terra, entendeu? Então eu só vivo o hoje, que nem eu falei, eu só vivo o hoje, eu vivo cada dia com Cristo, vivo hoje, porque eu sei que amanhã Deus vai me dar dias melhores, quanto mais você obedece a Deus, mais você vive uma vida reta, procura fazer o bem, mais você é abençoado.

P/1 – Você tem sonho pro futuro, pros seus filhos?

R – Tenho, arrumar meus dentes, gravar meu CD, os dons que Deus me deu, porque Deus não me deu pra eu deixar no baú, eu não acredito que Deus vai dar música pra deixar guardada lá no baú e não cantar. Gravar meu CD, patentear minhas letras, fazer o curso de Teologia. Eu quero ser uma grande pregadora do evangelho, pra falar do amor de Deus pras pessoas, assim como a minha pastora chegou naquela cracolândia dando um alimento pras pessoas, assim como ela me conheceu, eu quero ser como ela, ajudar aqueles que estão lá também, porque é pra isso que Deus me levantou, é pra ajudar aqueles também que estão caídos.

P/1 – Canta uma música pra gente que você fez, pode cantar?

R – “Meu melhor pra Jesus”, tá? Eu fiz um, Deus me deu um louvor, eu tenho dois, eu tenho “Meu melhor pra Jesus” e um que fala um pouco da minha vida, qual que vocês querem que eu cante?

P/1 – Eu acho que o da sua vida, pode ser?

R – É assim, ó, chama “Morai no céu”, esse louvor Deus me deu dentro de uma clínica, eu fiquei em duas clínicas, fiquei numa clínica com duzentos homens, eu dirigia o culto pra duzentos homens lá em Cotia, e fiquei numa clínica de uma mulher chamada Pastora Dolly, lá em Hortolândia. Só que Deus não me libertou nas clínicas, ele me libertou no meio dos drogados, pra mostrar que Deus é Deus, que é assim que Deus faz, mas eu tive que passar por ali, pela clínica, pra aprender a como me comportar, como ter disciplina, como ser uma mulher de Deus, que tudo Deus ensina aos poucos. Cada passagem da vida da gente Deus ensina uma coisa, às vezes você passa por uma situação ruim, você não tá entendendo aquela situação, mas é pra você tá tendo um aprendizado, né? Deus permite as provações na vida da gente, Tati, para que você venha crescer espiritualmente, para que venha mudar o nosso caráter, então eu creio que todo mundo aqui já passou por um tipo de sofrimento, cada um tem um tipo de sofrimento diferente, uma cruz pra carregar. Mas hoje, se vocês forem analisar, vocês vão ver que algo mudou, que aquilo serviu pra que você viesse crescer espiritualmente e não cometer aquele erro que você cometeu antes, tendo a cabeça que você tem hoje, e até ensinar para aqueles que tão também no erro, falar: “Ó, eu já passei por isso, mas hoje eu sou assim.. E aí Deus me deu um louvor que fala assim: “Andava triste, sozinha, sem Jesus Cristo, sem o Senhor, agora ando com Cristo e na minha vida tudo mudou, eu tive mais uma chance e Jesus Cristo me abençoou, agora ando tão livre, caminho com Cristo, meu salvador. Quero morar lá no céu, morar lá no céu, morar com Jesus, quero morar lá no céu, morar lá no céu, morar com Jesus. Desperto a minha alma, cantarei louvores, entre as nações, nosso Deus é o refúgio, preserva a tua vida e põe direções. Guardei os teus mandamentos com muito carinho, com muito amor, pois visto por Ele, me tem dado a vida, nosso redentor. Quero morar lá no céu, morar lá no céu, morar com Jesus, quero morar lá no céu, morar lá no céu, morar com Jesus”. Se tivesse meu pandeiro aqui, ia dar umas pandeiradas.

(palmas)

R – Obrigada, gente.

P/1 – Gostou de falar com a gente?

R – Muito e, assim, falar da minha vida me dá um pouco de tristeza sim, tenho vontade de chorar e fico emocionada, eu mesmo me emociono pelo o que Deus fez na minha vida, porque eu vou falar pra vocês, quem eu era, hoje eu dia eu passo na cracolândia, as pessoas falam pra mim: “Eee, neguinha, quem te viu, quem te vê”. Quem eu era antes, eu era uma pessoa que arrumava confusão com a polícia, eu saía daqui pra ir arrumar confusão com a polícia lá na cracolândia, eu só voltava pra casa quando eu tava com o olho roxo ou mancando. Eu cheguei a apanhar dentro da polícia, de ficar dez dias de cama, quinze dias de cama, com as pernas toda inchada, toda roxa, apanhar mesmo, arrumava confusão com todo mundo. As minhas vizinhas lá, eu saí na mão com quase todas elas, só teve uma que eu não briguei, eu era muito briguenta, quando eu arrumava confusão na favela, com as minhas crianças, que chegava uma vizinha, que eu vou conversar, a primeira coisa que elas falam: “Ainda bem que você se converteu” (risos). Porque antigamente eu catava o pau e não queria saber, não, ia pra cima, podia ser homem, podia ser grande, eu já fui pra cima até de polícia.

P/1 – Ah, é?

R – É, polícia vim falar comigo, eu peitar, levar um soco, cair, levantar de novo e apanhar de novo, e é assim, era uma coisa espiritual, que eu me libertei, graças a Deus, Deus me libertou, e hoje, graças a Deus, eu tô nova. Se vocês quiserem fazer uma visita na nossa igreja, vê o trabalho com as crianças, que é um trabalho muito lindo com as crianças, esse trabalho também foi um trabalho que me deu muita força pra continuar seguindo em frente. O rostinho de cada criança, ver eles orando, através de cada vida de cada criança, as mãe, muitas mães que viviam no álcool, que viviam nas drogas começaram a vir na igreja pra ver os filhos cantando, hoje em dia elas tão libertas também do álcool, das drogas, tão lá com a gente também, cantando, fazendo parte da banda, então tudo isso é gratificante. Depois, se vocês quiserem um CD do Moinho, pra ver o trabalho da comunidade também, se vocês quiserem pegar algo, quiserem pra encaixar, tem um CD ali, eu pego pra vocês.

P/1 – Tá certo.

R – Algo que vocês quiserem encaixar, mostra até, acho que tem um aí, não sei se é o preto, eu vou dar dos dois pra vocês, tem um que mostra até o incêndio da favela.

P/1 – O DVD.

R – A favela pegando fogo. Você já viu o DVD da favela?

P/1 – Não.

R – Não? Tem dois ali, se você puder, pega um, consegue pegar alguém ali? Levanta esse menininho, manda ele pegar, tem dois ali.

P/2 – O que pra você é melhor e pior na Cidade de São Paulo?

R – O que que é melhor? Melhor é, assim, eu vou falar o pior, o pior é a miséria, a fome, crianças que estão na rua, que não tem uma estrutura familiar, assim como eu não tive, que, né, que eles falam que faz, faz, faz, faz, como o Haddad veio aqui na favela, falou, tem até a foto dele aí no DVD, fez tantas promessas pra gente, mas não cumpriu nenhuma, porque aqui a favela, dezesseis anos sem saneamento básico, sem luz e sem água, que é gambiarra, que corre o risco de incêndio, esses pernilongos mesmo, que a pele da gente prejudica bastante, aqui em casa, não só aqui como em outras casas também, é muito, muito pernilongo, muito mosquito. Assim, a vida que as pessoas têm vivido, essas coisas que tem acontecido no governo, a gente ir lá votar numa pessoa, como eu votei no Lula, e de repente você se decepcionar, vê que não é aquilo que você pensava que era, entendeu? Você ter esperança, claro, a esperança, a gente tem que confiar em Deus, porque a palavra fala que nós não devemos confiar em príncipes, pessoas que tem mais autoridade, devemos colocar nossa confiança em Deus, mas pessoas que Deus até permitiu que ficasse ali pra fazer alguma coisa boa e não fizeram, entendeu? E, assim, o que eu acho de melhor no Centro é que o Centro é um lugar, assim, embora de todas as coisas ruins que aconteceu, é um pedaço de mim, porque eu, quando eu morava na Praça Princesa Isabel, eu olhava muito pra aquele céu ali na praça, às vezes à noite, eu ficava olhando pro céu e falando com Deus, olhando pras estrelas. Então o Centro é um lugar bonito, tem muitas áreas aqui no Centro que são bonitas, as praças, porque nas vila não tem essas praças que as crianças podem ir, meus filhos vão pro shopping, vão pra praça, tem muitos lugares legais deles conhecerem. Mas o que eu acho de bom, assim, no Centro, as praças, os lugares que eu acho de bom, porque em outros lugares não tem, e amor, que precisa de muito amor, as pessoas precisam de amor, todos nós precisamos de amor, precisam de ajuda. E as pessoas se conscientizar mais de que todos nós um dia vamos morrer, ninguém vai nascer, vai ficar pra semente, todos nós um dia vamos morrer, todos nós somos iguais, tanto de classe média, alta ou pequena, enfim. Então o preconceito, porque eu fui arrumar um serviço uma vez num lugar chamado Atenda e lá as mulheres branquinhas do olho azul eles tudo pegavam, as pretinha, da minha cor, ficavam tudo, sabe quando você vê trinta pretinhas de um lado e o outro só branquinha, que foram... Aí você vê ali, isso é um preconceito, existe preconceito tanto de preto pra branco como de branco pra preto, tem pessoas brancas que não gostam de negras, mas também tem pessoas negras que não gostam de brancas, então eu acho que um preconceito, quando fala em preconceito, é em geral, inferioridade que as pessoas que têm, as pessoas que adquirem um certo poder deixam se levar pelo orgulho, pela altivez, pela soberba e começam a destratar aquela que tão lá embaixo, ficam como uma pessoa inferior.

P/2 – Você sente um preconceito de você morar aqui na favela pra arranjar um emprego?

R – Sinto, ó, hoje eu trabalho no Ministério Público, mas a minha patroa mesmo falou que não é pra ficar falando que trabalha lá no Ministério Público, não sei nem se vocês colocaram isso daí, falou que não é pra ficar falando que trabalha no Ministério Público, quando eu cheguei, comecei a trabalhar lá que os pessoal falava, que eu falei que eu morava na favela, começou um preconceito, umas meninas começaram, as meninas da limpeza lá começaram: “Ai”. Elas iam abrir o armário delas, elas falavam assim: “Ai, cuidado com o meu barraco, cuidado com o meu barraco”, aí minha patroa chegou, chamou elas e fez uma reunião e conversou com elas, chamou a atenção delas, porque não era pra elas ficarem fazendo aquele tipo de brincadeira, porque antes não tinha, de repente, quando eu comecei a chegar, começou a ter essa brincadeira. Então você vê que era um preconceito, e não são pessoas que têm dinheiro, não, são pessoas que são pobres que nem nós, que mora até em invasão, tem pessoas que moram em invasão, em prédios invadidos e têm preconceito de quem mora na favela. A palavra favela já vem um preconceito de você falar favela, porque senão eles não tinham mudado pra comunidade,é, se mudaram pra comunidade, é porque eles não gostam da palavra favela. Eu não me lembro no momento, mas o Milton me falou, meu ex-marido, que a palavra favela tem um significado, a palavra favela, eu não sei qual que é o significado, mas ela tem um significado e é bem legal o significado da palavra favela, o que quer dizer a palavra favela. O Milton sabe o que quer dizer, eu não sei se o Caio sabe o que quer dizer, o Caio também acho que deve saber, você dá uma perguntadinha pra ele o que quer dizer a palavra favela. Então o preconceito existe em geral, nós, quando eu falo que moro na favela do Moinho, meu Deus: “Nossa, você mora na favela, meu Deus”, é desse jeito, o pessoal tem até medo de entrar aqui na comunidade, tem medo de entrar, morre de medo. Também não é nada disso, todo lugar tem, como eu falei, tem um índice de criminalidade, tem pessoas boas e tem pessoas ruins, tanto num bairro de alta sociedade existe pessoas ruins, às vezes até pior do que as pessoas da favela. Na favela, o que é bom da favela é que tem muito amor, eles brigam, mas são muito unido, as crianças têm muita união, nós saímos pra fora pra lutar pelos nossos direitos, direitos de pessoas humanas que nós temos, então é muito legal.

P/2 – Pra finalizar, eu queria que você resumisse em uma palavra a Cidade de São Paulo, ou uma frase.

R – Eu amo São Paulo, é onde eu nasci e é onde eu pretendo viver até o fim dos meus dias, amém.

P/1 – Obrigado.