P/1 – Beth, diga para nós o seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R – É Elizabeth Zwölfer Americano. A data de nascimento é 11 de abril de 1942, na praia de Cabeçudas - Santa Catarina.
P/1 – E o seu pai, qual o nome dele?
R – Meu pai é José Zwölfer. nascido em Melk, na Áustria, em 1893. E, após a Primeira Guerra, ele imigrou para a América do Sul, indo primeiro para a Argentina e depois, quando casou-se com uma argentina, indo para Santa Catarina, Blumenau, a primeira cidade.
P/1 – E ele falava para você como era na Áustria?
R – Ah, no tempo dele?
P/1 – É, no tempo dele.
R – No tempo dele, ele estudou no Mosteiro de Melk, que é um mosteiro histórico da Áustria, uma coisa fantástica, um dos três mosteiros que faziam os livros das Iluminuras... Como é que é?
P/1 – Iluminuras?
R – Iluminuras. Melk, Saint-Michel e __________, dos monges. É uma casa histórica, a que ele tinha lá; tem uma parede de dois metros e meio de largura, que é um túnel que vai por baixo do mosteiro, que é muito antigo. Fica a sessenta quilômetros de Viena e servia para os monges fugirem dos ataques. E eles se escondiam na casa dos meus avós.
Eles saíram muito cedo de casa - eram doze irmãos - para estudar em Heidelberg, fazer hotelaria, e depois não voltaram tão cedo. Depois, logo em seguida, começaram os trabalhos na Alemanha. Quando formava-se - não tinha colegial, você já fazia o... sei lá, complementar, e depois ia fazer os cursos - já seguia para fazer trabalho. A minha tia Mitzi conheceu o irmão mais velho quando tinha doze anos só, porque ele esteve fora, que foi quando estourou a guerra, em Londres.
P/1 – Primeira Guerra?
R – A Primeira Guerra Mundial. E aí eles ficaram sem trabalho. E como ele era austríaco, os alemães roubaram tudo dele, os nazistas - todas as economias que ele fez: malas, dinheiro. Na fronteira da Áustria com a França, ou com a Alemanha, sei que numa das fronteiras, eles roubaram. E ele teve que ser imigrante, porque não tinha mais trabalho na Europa.
P/1 – Isso foi na Segunda Guerra?
R – Na Primeira Guerra Mundial.
P/1 – Primeira Guerra?
R – Na Primeira Guerra Mundial. Áustria faz divisa com a... Não, faz com a Itália. Com a França tem, claro, lá em cima, em Metz, aquelas cidades todas lá, sem dúvida nenhuma. Bom, e aí ele veio para Blumenau, onde teve uma churrascaria, e com muito sucesso. Choperia com linguiça, com comidas alemãs - porque era totalmente alemã. Aí, ele veio. Os alemães, que eram também imigrantes em Blumenau, pediram para ele desvendar a praia de Cabeçudas, para ele fazer alguma coisa na praia de Cabeçudas, porque eles queriam aproveitar a praia com o mar e ter um lugar bom para passar o dia, para comer, para tudo isso. O prédio do hotel estava sendo construído para ser uma Casa de Saúde de pessoas idosas e ele comprou, pela Caixa Econômica Federal. Que, naquela época, era a única coisa por um empréstimo (risos) - eu cheguei a ver os documentos desse empréstimo, tudo - na década de 1930. E aí, ficou viúvo.
P/1 – Da mulher argentina.
R – Da mulher argentina. As crianças tinham sete anos. Uma empregada - grande empregada nossa- criou essas minhas irmãs. Casou-se com uma senhora alemã, que era governanta, professora, tutora das filhas de uma família muito fina de Itajaí, chamada Malburg, que eram os alemães de Itajaí. E a dona Elizabeth - chamava-se Elizabeth - faleceu sete anos depois. As duas de uremia, que hoje é infecção generalizada. Em seguida, ele casou-se com a minha mãe, com quem viveu trinta e cinco anos, e de cuja união nascemos nós três, os últimos - Maria Helena, José Bernardo e Beth, por aquela fotografia pequena. E daí, nós éramos... Trabalhava-se muito, muito, muito. Com dez anos eu sabia distribuir os hóspedes quando os aviões pousavam no aeroporto de Itajaí e não podiam levantar por causa do mau tempo. Então, eram três ou quatro companhias, com aviões pequeníssimos, um DC-3 (risos), e levava vinte a trinta pessoas. Eu conseguia, junto com um empregado do hotel, fazer a distribuição dos hóspedes. Com dez anos, hein? E não misturávamos. Porque eles ligavam: “Vão chegar trinta passageiros da TACA [Transportes Aéreos do Continente Americano], trinta da Cruzeiro do Sul, trinta da...” . Qual era a outra? Tinha mais uma outra companhia, eram três. Varig [Viação Aérea Rio-Grandense]. E a Varig foi inaugurada no hotel do meu pai, quando foi… quando começou a parar em Itajaí, em 1948. Rubem Berta é que foi inaugurar a Varig e a festa foi lá no hotel do meu pai. Todas as festas eram lá, porque não tinha outro hotel na cidade, nem na praia, nem nada. Camboriú era um mato. E ele, como todo bom austríaco, e rigoroso, ele dizia: “Bagrinho vai para Camboriú” (risos). Hoje, Camboriú é uma cidade enorme, não é? Ele não aceitava qualquer tipo de hóspede, selecionava. Não gostava de paulistas.
P/1 – Sério?
R – Verdade.
P/1 – Por quê?
R – Porque dois paulistas... Não existia água encanada, tinha água de poço. E você tinha que fazer poços todo ano, uma coisa impressionante. Eu me lembro de que tinha uma varinha que eles recolhiam de uma árvore e, onde chegava água, a pessoa especializada da Prefeitura... A varinha virava e ali você podia fazer um poço, com máquinas imensas, bombas de máquinas imensas, era uma coisa fora de contexto da época, porque ele trouxe tudo isso da Europa, onde ele esteve muito na Inglaterra e na Alemanha, em lugares fantásticos. E aí, esses dois rapazes queriam tomar banho e não tinha água. E você tinha que tomar banho de água que juntava-se do poço, nos tambores, para os hóspedes, e cada um pegava um balde e jogava em cima (risos). É! Era assim. Anos e anos e anos depois é que houve o sistema de água em Santa Catarina, começou a ter sistema canalizado. O telefone, você rodava duzentas vezes para a telefonista atender e você marcava hora para a sua ligação ser aceita do outro lado. Então, era um negócio desse tamanho, pendurado na parede, e só tinha um telefone; então, todo mundo ia telefonar lá em casa (risos).
P/1 – E qual foi o problema com os paulistas?
R – E os paulistas ficaram muito bravos e, à noite, eles puseram o revólver, quiseram matar o meu pai.
P/1 – Só por causa da água?
R – Só por causa da água. E esse empregado, que é muito bom, que ainda vive hoje, muito velhinho, ele se pôs na frente do meu pai e não permitiu. Então, meu pai ficou com pavor dos paulistas. E ia muito pessoal de Curitiba, do Rio Grande do Sul, e do estado todo. E, domingo, nós servíamos, em média, cento e vinte almoços - sábados e domingos. E eu sempre ajudei em tudo, tudo. Porque nós não podíamos sair para a praia e eram todos hóspedes iguais no verão, iguais no inverno, sempre as mesmas famílias que fizeram... casaram, tiveram filhos, passaram lua-de-mel lá em casa, os filhos casaram, passaram lua-de-mel lá em casa, era um hotel diferenciado na época. Minhas irmãs mais velhas, uma casou-se com dezoito anos também, as outras um pouco mais tarde - uma bem mais tarde - e todas elas também trabalhavam no hotel. Era tipo europeu, como é hoje. Eu vi muito isso na França. Vi muito implementos que nós tínhamos, de chaves, de serraria para lenha, porque era tudo a fogo, e a água era aquecida a fogo, sem dúvida nenhuma. Vi muito em museus, na Europa, e me emocionei muito de coisa. Em __________ eu vi meus brinquedos de infância. E o quadro em que eu aprendi a ler e a escrever, no Colégio São José, em Itajaí, de __________ de Dali. Era um painel enorme e que tinha os desenhos coloridos, e havia o livrinho em que você tinha a escrita. Então, você via a figura, já era um áudio visual, não é? Você via a figura belíssima e lia com a professora. E assim eu aprendi a ler. Sempre fui ótima aluna (risos), para variar.
P/1 – Antes de chegar nessa parte de escola, eu queria perguntar da sua mãe. Qual é o nome dela?
R – Maria Tarnowski Zwölfer. Tem uma história lindíssima, lindíssima, lindíssima. Uma tradição alemã, que era assim: a pessoa ficava viúva, os amigos escolhiam quem seria a futura mulher dele. Iam buscar e já vinham e passavam na casa do pai: “Olha, nós escolhemos ela para o fulano, que ficou viúvo”. Ela já saía e depois é que casava, já levava embora. Porque eles pegavam na parte alemã, que é Caminho das Areias, Indaial, acima de Blumenau. Era um ponto exclusivamente - como é hoje ainda - Pomerode. Tudo isso alemão puro lá. O meu pai ficou viúvo e o Fritz Schneider, que era o senhor que tinha o curtume de couro, e mais alguns amigos, foram buscar a minha mãe em Indaial. Porque ela era bonita, de saúde, muito bonita minha mãe era, e trabalhava já num pequeno hotel lá. E era de uma família que veio também da Polônia. E você acredita que ela sempre contava as histórias, foram doze irmãos, e meu pai também doze irmãos. A maioria dos meus tios, de Melk, morreram na guerra. Os da minha mãe não, ainda vivem alguns, até temos sobrinhos. Mas nós nunca conhecemos ninguém, a não ser meu avô e, depois, uma tia e um tio que foram para Itajaí, da família dela.
P/1 – Mas a maioria...
R – Ficou no Caminho das Areias e depois, hoje, os jovens não, estão mais distribuídos.
P/1 – Onde é o Caminho das Areias?
R – É acima de Indaial. Um lugar que, vamos dizer assim, é de sítios da Alemanha. Eu não conheci, eu nunca vi. E não tinha como chegar lá, naquela época. E a minha neta mais velha, Cici, trabalhou na Ordem dos Advogados daqui de São Paulo sobre as religiões - na área de liberdade religiosa - e conheceu um judeu com o sobrenome da minha mãe, Tarnowski. E são parentes, sem dúvida nenhuma. E aí contou a história deles na Polônia. É uma coisa impressionante como eles chegaram aqui. Meu avô teve que ficar de quarentena, em Niterói, com medo que trouxessem doenças. Isso em 1800 e muito, tenho na certidão de casamento a idade deles. Mas, nasceu no dia em que o navio aportou no Rio de Janeiro.
P/1 – O seu avô.
R – O meu avô. Depois ele teve que voltar, adulto, para as fazendas de café em Campinas, trabalhar lá, porque todos eram imigrantes. Então, na Polônia, tem uma cidade com o nome de Tarnów, que os médicos do hospital israelita, nossos médicos, Alberto Einstein, sempre me diziam: “A sua mãe é de origem judaica, mas fugiram das guerras religiosas”.
P/1 – Antes da Segunda Guerra.
R – Antes da Segunda Guerra. Não sei se antes da Segunda Guerra. Bem antes, bem antes. Fugiram das guerras religiosas. Meu pai fugiu da Primeira Guerra, e eles também. E você não pode fazer ideia, ela era a cara e a serenidade de João Paulo II. Incrível, incrível, incrível, incrível. Sempre que tem fotografia dela tem uma aura em volta, de tão tranquila, de tão cheia de paz, é impressionante. Uma grande cozinheira.
P/1 – Sua mãe?
R – É! Ela era cozinheira do hotel. Com ajudantes, claro, mas ela é que fazia as comidas todas. E meu pai experimentava tudo, antes de servir. Bom, e esse senhor mandou que a gente entrasse no site da cidade de Tarnów. Ah, uma coisa extraordinária, uma coisa extraordinária. E olha só! Em seguida desse fato, eu ganhei um livro do meu marido, de pinturas: Os mais belos quadros do mundo. E quando cheguei em casa, abri a página e, puxa, num quadro de Leonardo da Vinci, 1300 e pouco, uma coisa assim, lindíssimo: A Dama e o Arminho. Esse quadro foi roubado de uma família polonesa, que o último antes da guerra de Hitler, que morava lá na Cracóvia, bem pertinho dessa cidade também, que é tipo São Bernardo, Santo André, em torno de Varsóvia, lindíssimo, com uma história fantástica. E eu já tinha feito esse quadro, pintado essa figura. Lindíssimo. Eu tentei, fiz a tela e disse: “Será que vou conseguir?”. Olha só o que aconteceu! E é uma beleza de quadro, uma beleza, uma beleza, uma beleza, aquela que tem - não sei se você conhece - um arminho no braço. E ela era amante de um dos... daqueles príncipes que existiam. E o Hitler roubou esse quadro. E no ano passado ou retrasado esse quadro foi devolvido para a Prefeitura da cidade bem juntinha ali e hoje está de novo naquela cidade. E depois, naquele filme... teve um filme fantástico sobre o roubo das obras de arte, no final do filme aparece o meu quadro, e é muito bem pintado. Depois você vai ver, eu vou trazer o retrato dele no computador, uma coisa impressionante. Eu digo: “Meu Deus do céu!”, uma coisa ligava à outra, você não faz ideia. Minha mãe foi uma matriarca da família. As três filhas mais velhas adoravam ela, os netos de meu pai - os homens - os primeiros seis netos, eram apaixonadíssimos por minha mãe, apaixonadíssimos. Ela ficou viúva com sessenta, ele morreu com oitenta e quatro, menos vinte e dois, dá sessenta e dois anos. Nunca tinha feito um cheque, nunca tinha administrado a vida pessoal dela, por causa do trabalho, nunca pediu nada para ninguém. Trocou seis vezes marcapasso, os médicos da equipe do doutor Adib tinham paixão por ela, de tão tranquila, de tão... Chegavam a pôr até músicas, valsas alemãs, para ela ouvir na hora da cirurgia, porque tem que ficar acordada, não é? A pessoa que faz o marcapasso. E nos deu muita chance de viajar, porque vinha ficar com meus filhos (risos) e a empregada. Morreu com oitenta e dois anos, apagou.
P/1 – Ah, é?
R – Apagou, apagou. E teve uma coisa muito especial no dia em que ela morreu. O padre foi lá dar a extrema-unção para ela, ela estava na UTI [Unidade de Tratamento Intensivo], sentada, e disse para ele: “Eu já sei, Ele já mandou me avisar que eu vou hoje”. E foi. O padre saiu e ela faleceu. Uma mulher extraordinária, nos ensinou tudo na vida. E recebia... Até depois que fecharam o hotel, todos os hóspedes que passavam por lá iam visitá-la, que dona Maria...Os políticos cumprimentavam meu pai, que ele fazia aquela reverência para todos eles que não roubavam – isso é muito importante colocar (risos). Corriam para a cozinha para beijar a minha mãe, para abraçar a minha mãe, gorda como ela era (risos). Todos. Governadores, senadores, todas as pessoas de Santa Catarina, do Rio de Janeiro que iam muito para lá. A família do Evandro Lins, aquele jurista famosíssimo de lá, o sogro vivia na casa do meu pai, que eu te falei que a esposa dele morreu, dos Konder, não é? A família Konder, todos eles iam passar o verão, todos lá na casa do meu pai, era uma maravilha, uma festa, nem fala.
P/1 – E a sua mãe cozinhava o que, geralmente? Tudo?
R – Por exemplo, nós tínhamos horta, como a Maria Antonieta. Também me emocionei muito quando vi a horta com flores lá no __________ dela, em Versalhes, fui muitas vezes. Aí, nós tínhamos... criávamos os frangos, eles vinham pequeninos, não pintinhos, vinham pequeninos, tínhamos o galinheiro, uma coisa com água corrente, com tudo. Criávamos os porcos, não tínhamos leite. E aí tem uma coisa interessantíssima. Outro dia contei para uma moça, cujo marido trabalhava na Nestlé. O leite do hotel era leite condensado, você imagina a antiguidade do leite condensado! Com a mesma latinha, com a mesma mocinha suíça com aqueles potinhos, até hoje. E era feito com dez latas, no mínimo, de leite condensado, de manhã. Porque tinha uma panela especial para o leite, para o arroz, para o macarrão; a frigideira, especial, deste tamanho; assadeiras deste tamanho (risos), imensas, uma coisa fantástica! Tinha todos os dias... Todos os dias, no hotel, ou tinha salada de peixe, que não existe mais porque eram peixes que os pescadores pescavam de canoa e traziam para a praia, para nós, para o hotel. Lagosta, não é essa lagostinha que a gente vê aí, eram lagostas imensas, era muito raro e tinha que servir só para quem era muito especial, porque não era para todo mundo. Todos os dias tinha salada de camarão, cozido lá em casa, descascado lá em casa, que os pescadores traziam. Já era uma comunidade de pesca pequena, bem artesanal, que sabia que o “seu” Zwölfer comprava tudo. Pescadas-perna-de-moça tinha um metro de comprimento, era uma coisa fantástica, fantástica. Todos os dias tinha peixe, camarão, arroz, batatas de vários tipos, macarrão, as sopas. Sopa de tartaruga, fantástica! Quando aparecia uma tartaruga ou outra. Depois ele colocava os cascos pendurados nas paredes do hotel, envernizava aquilo tudo. E os hóspedes participavam de tudo, de ir para a cozinha, as crianças comiam, tinha uma parte do hotel que era para as crianças comerem, o lado das sobremesas, que minha irmã fazia muito bem. E tínhamos - para a época, era uma coisa ex-cep-ci-o-nal, uma coisa que não existia: todo talher Christofle, imagina! Roubaram tudo. Depois que começou a abrir mais as estradas, tudo isso, aí teve que usar inox, não tinha. Os viajantes levavam as comidas, as coisas diferenciadas. Me lembro quando chegou a primeira lata de margarina, do Nordeste. Como era o nome daquela empresa? Existe até hoje, hoje sai do hambúrguer. Bom, de quinze litros. Todo mundo abriu para ver o que era a manteiga nova (risos), porque a nossa vinha dos alemães, lá perto de Pomerode. Frios, queijos, tudo isso vinha do interior. Cebola vinha do Paraná, batata do Paraná - dos poloneses que plantavam. Os peixes, dos pescadores. A verdura era feita lá em casa - a cenoura, a beterraba. Eu não me conformo com a beterraba que vendem hoje.
P/1 – Por quê?
R – Porque o que vende aqui é para dar de comida para as vacas leiteiras na França, e na Europa toda. Beterraba, na casa da minha mãe, nem chegava na terra, era uma coisa linda, linda. Cheiro verde, flores que se trocava todo dia. Era uma coisa assim im-pres-sio-nan-te a horta do hotel. Com flores e com verduras. Alface? Nunca mais comprei aquilo. Frango caipira, porque era criado solto, não é? Perus que se engordava para quando chegasse setembro para dezembro eles estarem prontos para a festa de Natal (risos). Essa é a minha infância. Depois, a praia. Você vê por uma daquelas fotografias do Carnaval, que já tinha árvores plantadas. Meu pai e o Marcos Konder que plantaram essas castanheiras. E estão até hoje. Quase cem anos - 1919 - faz cem anos aquelas árvores, nunca foram trocadas. E estão lá, maravilhosas. Os nossos brinquedos, na época... isso é interessante. Você não ganhava boneca de fábrica, os pais faziam as bonecas. A mãe, minhas irmãs mais velhas, faziam as bonecas. E o meu tio, irmão da minha mãe, de caixas de engradados de cerveja, que era tudo de engradado naquela época, ele fazia as casinhas de boneca para a gente brincar. Na Páscoa, o coelhinho; a minha irmã Sig pegava os cachorrinhos e subia a escada para pôr os ovos na porta dos nossos quartos - ainda quando morávamos no hotel - para dizer que era o coelhinho de verdade. Papai Noel existia. Toda essa parte era muito alemã. Doces, doces, pães, tudo era feito em casa. Nós tínhamos os cavalos e a charrete muito chique, a charrete era muito chique. Minha irmã Sig com luvas, sempre de couro. Existiam essas coisas. Hoje você vai procurar isso, não existe mais nada. Tinha aquela manta lindíssima para cobrir a charrete. E nós íamos à missa todo domingo com ela, porque não tinha carro ainda. Meu pai tinha um Ford 18, ou 8, sei lá, e o Exército capturou esse carro, tirou dele. Ele chorava! Esse dia eu me lembro, esse dia eu me lembro. O General Hugo Bethlem. Ele foi vizinho da minha sogra, no Morumbi. E eu, um dia, encontrei com ele e falei: “Eu não falo alemão por sua causa. E me lembro do dia em que o senhor foi tirar o carro do meu pai”. Ele era... a intentona comunista que houve, que era proibido falar alemão. Ele foi para o Exército de Blumenau. Não me respondeu nada, não teve coragem (risos).
P/1 – Mas por quê? O que ele foi fazer em Itajaí que ele pegou o carro?
R – Porque meu pai era austríaco e eles achavam que, por ser austríaco, ele era hitlerista. Meu pai, a vida inteira, assinou o Frankfurter Allgemeine, que é um jornal que ainda é editado na Alemanha. Só que chegava com quinze, vinte dias ou um mês. E não eram diários, tinham edições semanais apenas, sem dúvida nenhuma.
E quando matava-se os porcos, fazia-se o pernil. E nós tínhamos um lugar especial para pendurar os porcos. Fazia-se a banha, que precisava para a cozinha, natural. Fazia-se o torresmo, que era uma coisa extraordinária. Fazia-se linguiças - não salsicha - linguiças de porco, com os temperos. Tinha tudo máquina, não é? Tudo máquinas imensas. Os legumes, para as saladas, eram todos cortados em máquinas que hoje é o... como é o nome desse aparelho? Na cozinha? Um que corta tudo. Como é que se chama?
P/1 – Triturador?
R – Não, não é o triturador. É o redondo, que faz discos. Mas eram discos desse tamanho, o aparelho era enorme e tinha manivela para você passar. E o frigorífico era uma coisa impressionante - o do hotel. Você tinha a primeira geladeira para produtos que não precisassem de grandes gelos. Depois a segunda, para conservação. E depois tinha o frigorífico de alta geladeira, onde você pendurava as peças de carne. Porque você comprava tudo, era tão longe tudo, que você tinha que comprar, tinha que estar armazenado. Frutas em compotas vinham pelo navio, da Argentina. Hummm, nunca mais eu vi igual. Pêssego, pera, abacaxi, figo, coisas ma-ra-vi-lho-sas. Ervilha, palmito, hoje não tem mais nada disso. Palmito é pupunha (risos), não é palmito. E as sobremesas eram doces, não é? O grande forte: doces. E uma coisa que não se fazia lá em casa - só na intimidade - é esse tal café colonial, isso não existia. Eu vim a conhecer muitos anos depois, casada. Mas a família tinha uma sala - uma das salas do salão - onde tomava o café da tarde. Às duas horas, o austríaco come o doce, ele não come de sobremesa, depois do almoço. Então eram mesas maravilhosas, com minhas irmãs, meus sobrinhos. Meus sobrinhos têm a nossa idade, os seis primeiros. Depois, os outros, é que tiveram um pouquinho mais baixo, dependendo do casamento das minhas irmãs. Bom, com doze anos eu quis ir para o internato, em Blumenau. Porque a minha irmã foi de castigo - a Lene - porque ela tinha rodado o quarto ano, repetido o quarto ano. Mas aí conseguiu o quinto ano, que começou naquela época, em Blumenau, e ela foi para o internato de castigo (risos).
P/1 – Um pouco antes de você chegar nessa parte, eu queria só voltar um pouco e perguntar algumas coisas do seu pai, do hotel, um pouco da sua infância. A primeira coisa é esse mal entendido do seu pai, acharem que ele era nazista e tal. Como é que era isso no cotidiano? Vocês sentiam isso?
R – Ah, nós éramos muito pequenas. O que minhas irmãs contam: no cotidiano, ele sofreu muito. Quando o Exército já estava lá em casa, ocupando todos os quartos - eram quarenta quartos - os soldados rasos ficavam acampados na praia, em barracas. E a minha irmã foi a Itajaí buscar víveres, a comida para o pessoal que estava lá. Porque com dezoito anos elas foram para a cozinha para cuidar da parte de preços, tudo isso, de arrumar... enfim, tomar conta do hotel. Porque o meu pai era a primeira pessoa... Ela encontrou o dono do Cartório, Almeida - foi um grande amigo nosso - e ele chamou: “Mause, Mause, vem aqui, correndo! Eu estou com a lista dos que vão ser presos por um acampamento de Chapecó, que eles estão tirando os alemães do litoral, e seu pai é o primeiro da lista. Vá correndo a Florianópolis falar com Nereu Ramos”. Imagina, Florianópolis, naquele tempo, levava quatro, cinco horas para chegar. E foi num dia de chuva, isso ela frisa bem - ela já faleceu, essa minha irmã - e ela foi correndo, chegou em Florianópolis e foi para o Palácio. E todo mundo se assustou, porque ela chegou toda molhada, toda encasacada. E aí disse para o pessoal: “Está aí a dona Mause, a filha do Zwölfer, de Cabeçudas, que quer falar com o senhor”. O Nereu Ramos era governador naquela época, imagina. E ele chamou ela, ligou para a esposa dele, que eu não sei o nome, não me lembro: “A Mause está aqui. Arrume o almoço para ela e dê um banho quente nela”. Pouquíssimo tempo depois ele suspendeu essa ida de prisão dele, mas ele teve que ir para Caminho das Areias, a casa do meu avô. E a minha irmã, a Lene, já falava Alemão correntemente e os militares provocavam ela para falar Alemão, quando ela estava no colo do meu pai. E ele não deixava ela falar Alemão, porque ia preso. E ele ficou lá quase um ano e elas tomando conta do hotel, com aquele Exército todo, você faz ideia. Então, ele tinha um orgulho de ser naturalizado que ninguém imagina.
P/1 – Brasileiro?
R – Nossa Senhora! Tinha um orgulho enorme de ser naturalizado. Isso eu me lembro, do hotel com as janelas pretas. Não sei que tinta, devia ser caiação porque não tinha tintas sintéticas ainda. E apareceu um risco de tirada de tinta, como pegou uma faca e puxou, porque era tudo de vidro, não podia acender uma luz dentro, tinha que ser tudo com vela. Eu era muito pequena e me lembro dessas coisas. E um vizinho nosso, que como meu pai nunca brigou com ninguém, então... mas nós tínhamos algum cuidado com essa pessoa. Viu o vidro riscado e foi imediatamente denunciar o meu pai, você vê que coisa incrível. Por isso que ele ia para o campo de concentração que tinha em Chapecó, não sei se em Xanxerê ou Chapecó, acho que era Chapecó. Teve um campo de concentração lá.
P/1 – Ah, simpatizantes.
R – Porque achavam que ele era nazista. Com certeza, ele devia dizer Heil Hitler, alguma coisa assim (risos). Porque Hitler invadiu a própria terra, não é? A Áustria. Depois saiu só com as pessoas empurrando, empurrando, empurrando o Exército, que coisa incrível, não é? É incrível. Então, ele dava emprego para todo mundo, todo mundo. Dois ou três anos atrás eu fui a Cabeçudas... porque agora nós não viajamos mais de estrada, por causa do meu marido que é muito idoso. Peguei o ônibus, com meu neto, para ir a Itajaí e só tinha pessoas de idade - então, não paga ônibus lá, pessoas de idade. E várias senhoras, velhinhas. Ali eles disseram: “Olha, essa parece uma filha da dona Maria! Quem é ela?”. Aí o meu neto disse: “A Beth”. “Ah! Bethinha, filha da dona Maria!”. Ele morreu de dar risada porque foram até à cidade contando histórias da dona Maria, que era uma mulher maravilhosa, mas maravilhosa realmente. Uma coisa assim, que atendia todo mundo, respeitava todo mundo. Nunca vi meu pai... Ele viu a primeira vez pessoa de cor em Dacar, quando veio para a América do Sul. Nunca vi meu pai gritando com uma pessoa. Aliás, nós tínhamos muitos empregados escuros. Nunca vi meu pai... Nós tínhamos empregados homossexuais, que naquele tempo era uma coisa rara, mas até eram engraçados os meninos (risos), divertidos, engraçados e divertidos. Tinha muito pátio, então eram os mocinhos que tinham que puxar, passar rastelo, essas coisas. Depois acabou a guerra, em 1948 o grande evento no hotel foi da Varig. Depois, minha irmã Mause casou-se, veio para Santos, morar em Santos - casou-se com um espanhol. Aos 50 - 1950 - fizemos a Primeira Comunhão. A Pup já morava na cidade, já tinha os três filhos também. Minha irmã Sig ainda não era casada, depois casou e foi para Porto Alegre. Eu fui para o internato, minha irmã já estava, só podia sair em feriados grandes e quem tinha nota boa de estudos, não podia sair do internato a qualquer forma.
P/1 – Agora, antes de ir para o internato vocês brincavam de quê, quando eram crianças? Tinha seus irmãos, mas quais eram as brincadeiras?
R – As brincadeiras?
P/1 – É.
R – Bom, nós tínhamos a praia, não é? Então, nós tínhamos o maior paraíso do mundo de coisa. Primeiro, a coisa fantástica da paisagem, a paisagem da praia é uma coisa assombrosa. Os pescadores. O nosso brinquedo, nós brincávamos com caixinhas de fósforos vazias, a Pinheiro pequena, para fazer enterro das formigas. É! Era uma graça. Pegávamos as colherinhas, fazíamos muito aqueles castelinhos de areia molhada. Quando tinha certas épocas do ano que tinha... todos nós aprendemos a nadar nas lagoinhas que a maré fazia; com três anos, quatro anos, já sabíamos nadar. O banho de mar era uma coisa assombrosa para nós. As ressacas eram uma coisa assombrosa! Porque nós tínhamos coragem, nós três, pequenos - minha mãe quase morria - de andar mais de cinquenta metros, sessenta metros para pegar as ondas enormes, impressionante. Se você furasse ela, bem por baixo, você não ia de trambolho. Tínhamos pneus, nossa bóias eram os pneus de carros, que ficavam muito rasgados. Mas a gente usava muito pouco isso na praia. E brincava-se de boneca. E como nossos sobrinhos eram da mesma idade, nós tínhamos muita gente para brincar. Bicicleta, todos nós andamos de bicicleta muito cedo. Eu tive uma bicicleta fantástica, que veio de navio. Hum, meu deus do céu! Não existe mais a bicicleta que eu tive. E andávamos muito, todas as piruetas que se faz eu conseguia pegar o movimento, subir no selim, abrir os braços e andar quinhentos metros, um quilômetro quase, em cima da bicicleta (risos). Tínhamos essa nossa empregada muito antiga, a Vó Nica que a gente chamava, e que ela morava na fazenda. A fazenda hoje é um bairro grande de Itajaí, mas, naquele tempo, era um bairro de gente muito simples, muito modesta. E ela tinha uma casa de madeira, toda arrumada, com terreno bem grande, e todos os domingos, fora da época de movimento no hotel, nós íamos almoçar com ela. A gente levava toda a comida e íamos almoçar com ela. E era uma festa incrível, porque nós convivíamos com todas aquelas pessoas muito simples e modestas que forneciam muita coisa para a gente, como por exemplo, lenha, o cal, a cinza dos lugares onde eles preparavam o cal para limpar a cerâmica. Os ladrilhos, limpava-se com água de cinza que você tirava da lareira - inclusive do fogão do hotel - sem dúvida nenhuma. O pessoal que vendia lenha, verdura, quando tinha que ser complementada. Meu pai era um...
P/1 – Um polo, não é?
R – Um polo de onde eles podiam chegar e vender tudo o que queriam, que ele comprava tudo. Porque era tudo feito em casa, tudo natural. Depois nós, pequenos, íamos de charrete para a escola, De vez em quando o condutor da charrete bebia e esquecia de pegar a gente (risos). Uma coisa que me marcou profundamente, em Itajaí e a minha infância, foram os enterros. E eu vi esses enterros na França. De calesse. Você sabe o que é calesse? São aqueles carros pretos, todos cheios de cortinas pretas, com bordas de franjas douradas, e os cavalos têm aqueles penachos. E tem quatro cavalos, cinco, dependendo da riqueza da pessoa. Eu vi isso na França, depois de 1974, quando eram militares passando pelas ruas, os enterros assim. E todo mundo fechava a casa quando vinha o cortejo. E as outras pessoas vinham a pé porque não existia carro. Os carros do meu pai eram comprados através de alguém que importava dos Estados Unidos. E toda a família ia ao cais ver o carro chegar no porto. E então ele, o Genésio Lins e o Irineu Bornhausen é que tinham os carrões da cidade, que eram as famílias... Um era banqueiro, o outro virou político e governador, todos vieram de muito baixo, hein? Se fizeram na vida. Ninguém roubou, isso torno a dizer. Não existia ladrão naquele tempo, de forma alguma. Bom, e as coisas eram assim. Quando chovia, caía barreira no lado da parte da praia, então interrompia a estrada - que é muito linda - de Cabeçudas a Itajaí, e nós tínhamos que vir pela fazenda. Agora, por exemplo, o capote que nós tínhamos, de inverno, era o que Mussolini usava na Itália. A boina de Tim Capacete era uma coisa extraordinária, porque vinha com um livrinho. E na cidade tinha a casa que fazia ferragens e produtos secos, sempre teve um Mercado Municipal em Itajaí, sempre teve. Hoje é bonito tudo isso, mas naquele tempo era bem tosco. E feira, muito pouco, uma coisa que veio bem depois, você não tinha... Supermercado, nem se fala. Mas tinha os atacadistas, tudo carregado nas costas. Como é que chama os que carregam a mercadoria para os navios? As pessoas que trabalham no porto? Estivadores. Estivadores, todos eram de cor. Todos puros de alguma parte da África. E eles carregavam - a madeira vinha num tratorzinho, que já tinha um pouco mais tarde, bem mais tarde - mas eles carregavam tudo no ombro, homem a homem, saco às vezes, como você vê em Rugendas. Eles carregavam para dentro do navio. Aquilo era um movimento - o porto - que era uma coisa impressionante. Parada... hoje param três navios grandes. Naquela época, o tamanho do porto que é hoje, paravam dezesseis embarcações que vinham da Europa. De madeira! Era uma coisa. Eu tive coragem de ir com a minha irmã mais velha, de vir a Santos com o Carl Hoepcke, que é aquele que afundou lá em Santos, você não deve ter visto. Quando eu olhava: “Meu Deus do céu! Como nós tivemos coragem de vir?”.
P/1 – Ele afundou depois?
R – Sim, sim, algumas viagens depois. Mas foi uma coisa em São Francisco, onde era a sede da empresa de navegação, da
Carl Hoepcke. Todo mundo se conhecia, o estado era muito pequeno, todo mundo de Joinville, todo mundo de Blumenau, Brusque, Jaraguá do Sul, Florianópolis, todo mundo se conhecia. Tem o museu e tem uma parte do Carl Hoepcke lá no museu. Eu digo: “Gente, que coisa impressionante”. E os atuns imensos, imensos, imensos. Eles acompanharam o barco até Santos. Mas peixes assim, de três metros de comprimento. Eles vinham com a onda, batiam no barco e voltavam, três dias de viagem que levava (risos). Era uma coisa impressionante.
P/1 – Você aguentava bem essas viagens? Você gostava? Como é que é?
R – Não, uma vez só que eu fui.
P/1 – Só uma vez.
R – É. Meu cunhado chegou atrasado para o casamento, a noiva quase estava já na cidade quando ele chegou de hidroavião, que pousava no rio. E o outro cunhado, o de Santos, o espanhol. E o outro cunhado, Benjamin, que era o único engenheiro da cidade, da área toda lá, durante trinta anos ou mais, ele tinha que ir lá registrar a chegada do navio, do hidroavião. Mas um negócio que vinha com galinha, com porquinho (risos), com velho, com velha, era muito interessante, muito interessante mesmo.
P/1 – Você falou um pouco dos enterros, mas pode falar mais um pouco como é que era?
R – Ah, os enterros, não é? Quando morria alguém... Eu me lembro quando morreu uma senhora vizinha nossa, ai que susto que eu levei! Eu fui para a escola e ela tinha uma vendinha de balas, guloseimas. E quando eu, curiosa, pus a cabeça assim dentro da sala, o corpo dela estava em cima de uma madeira. Porque você tinha que fazer o caixão primeiro. E eu saí correndo e desmaiei na rua. Porque eu vi uma pessoa, como se fosse um Papai Noel, atrás dela, enorme, alto, levei um susto. E a empresa WEG, que entregava os frios, embutidos, tudo lá no hotel, já me conheciam, me juntaram, levaram para a minha mãe, e eu quase desmaiada ainda, de susto.
P/1 – É como uma aparição, é isso?
R – Teve uma aparição naquela hora. Foi uma coisa assim. Eu tenho... eu sinto presença das pessoas, tudo isso. Na minha casa, eu sinto meu marido chegar dez minutos antes. Aí digo: “Puxa, vou até a porta para ver o que aconteceu que ele não abriu toda”. Daqui a pouquinho ele chega. Portas batendo, que eu digo: “O que é isso?” (risos). Mas não tenho medo, não.
P/1 – Você sente isso mesmo?
R – Sinto. Sinto, sinto. Uma vez, na França, em Nancy, nós pegamos muitos shows de son et lumières, lindíssimos, lindíssimos. Carlos não estava se sentindo bem, foi para o hotel e eu disse: “Não, eu quero esperar o final”. Ah! Em seguida que ele saiu, um pouquinho depois, eu senti uma capa preta me amarrar. Eu digo: “Meu Deus, o que é isso?”. Olhei, saí correndo (risos), fui para o hotel. Me aconteceu isso em Nova York também, experimentando um vestido preto. Depois que minha sogra morreu, eu nunca mais usei preto, de forma alguma, eu tenho horror de cor preta. Nem sapato eu uso preto, só a bolsa. Ainda bem que ela está caindo já aos pedaços, vou trocar (risos). E os enterros, os cemitérios, eram muito lindos. Hoje ninguém vai ao cemitério, fazem cremação, que é uma coisa horrível, não é? Quando passava o cortejo, até o final todo mundo fechava as janelas e as portas, era um respeito absoluto. Quase sempre tinha uma amante no velório (risos). Na cidade era muito comum.
P/1 – Isso te marcou muito.
R – Era muito comum a amante aparecer lá, rapidinho (risos). Mas eu nunca gostei de ir a enterros.
P/1 – Mas te marcou mesmo assim.
R – Marcou, marcou. E depois eu estava a pé, quando passou esse... eu já era grandinha, estava já no quarto ano, ou até na Escola Normal, tinha medo. Porque a cidade inteira ficava em volta disso, de coisa. E o cemitério sempre era bem longe. Hoje é perto de tudo, mas, naquela época, era bem longe e nunca vi ninguém ser enterrado lá - só minha mãe e meu pai, lógico. Mas assim, das pessoas. As crianças não iam.
P/1 – Mas mesmo assim você tomava contato, porque a cidade...
R – Lógico! Morreu fulano, morreu sicrano. Em acidente de carro, muito, porque naquela época bebia-se muito também. Ano novo era sagrado de ter acidentes enormes na cidade, sem dúvida nenhuma.
P/1 – E como era, para quem não conhece, conta para a gente como era Itajaí na época, e Cabeçudas. Como é essa relação? É perto?
R – Ah, muito perto. Três quilômetros e meio, todo cercado de praias, hoje maravilhosas, naquela época eram mais bonitas, porque eram mais selvagens. À tarde, minha irmã, Pup, que morava em Cabeçudas, nas marés baixas... Você sabe o que é pulsar? É uma rede que você joga para pegar os siris. Tudo isso era natural, a gente pegava na praia. O goiá, você tirava das pedras. O marisco, quando deixava, descia a maré, você tirava das pedras, não era assim congelado, era tudo natural, era uma coisa fantástica. E nós atravessávamos as pedras todas, não íamos pela estrada, íamos pelas pedras, na beira do mar. Pequeninos que nós éramos, mas todo mundo sabia nadar, todo mundo. E íamos até a entrada da praia da Talaia, que é a mais próxima da foz do rio onde meu cunhado fez o canal de entrada, todos
pescando siris. Mas não comíamos, não.
P/1 – Só pescavam.
R – É, só pescávamos para ter o prazer de jogar, porque a gente comia o goiá sim, nunca mais eu vi esse goiá escuro. Depois, essa minha irmã, Pup - hoje ela está com noventa anos, está com Alzheimer, não reconhece mais ninguém - mas ela foi uma pessoa fantástica na nossa vida. Ela nos ensinou a apreciar a natureza – até me arrepia, viu? A natureza... Ela tinha flores lindíssimas no jardim dela, tudo plantado por ela. Ela tinha trinta e nove afilhados filhos de pescadores; os pescadores jogavam o peixe para ela, de presente, na grama dela. Ela nos ensinou a rezar, agradecer a Deus por poder ver essa planta, de poder ver essa florzinha, de poder ver a borboleta. Ela nos ensinou a cantar. Ela fazia Natais fantásticos para a gente, fantásticos, fantásticos. Presépios que ela montava, ela mesma que montava esses presépios. Era uma coisa assim, foi uma irmã... Todas foram fantásticas, mas a Pup conviveu mais conosco, então, todos os bailes de mocinha meu cunhado e ela tinham paciência de nos levar e ficar lá no baile com a gente. Baile da primavera, baile do glamour, baile do verão, baile do inverno, baile do suéter (risos). Carnaval. Ela que determinava que roupa a gente ia usar, tudo isso, nesses lugares. Era uma coisa assim, extraordinária. Ela me ensinou uma outra visão da vida, a visão linda, que ninguém lembra numa cidade grande. E eu passei isso para as minhas aulas de pintura de porcelana. Eu dei, durante dezesseis anos, aula de pintura de porcelana para um grupo de amigas, muito amigas, a maioria mais idosas, e todas elas me diziam: “Beth, agora quando eu ando na rua eu vejo as cores, antes eu não via”. É incrível, não é? Então, eu acho que é uma outra visão que você tem, da vida ensinada por minha irmã Pup para todas nós, sem dúvida nenhuma. Os doces que ela fazia, a alegria dela, que ela passou para a gente. Eu sempre fui, dos três últimos, a que estudava pra burro, tinha tudo, fazia tudo o que minha mãe mandava, o meu pai mandava, organizava muito a parte do hotel. Quando saía para a escola eu já deixava todos os empregados com o que eles tinham que fazer para meu pai não chamar a atenção deles. Então, eu carreguei aliança de muito pescador, porque era muito loirinha (risos). Porque eu tinha medo de que eles não fizessem o trabalho e meu pai brigasse com eles.
P/1 – E você ia carregar aliança? Como assim?
R – Ah, a daminha. Nós tínhamos que carregar a aliança (risos).
P/1 – Entendi.
R – Carregar aliança. Então, depois, outra coisa que teve, o folclore que teve no hotel do meu pai com os hóspedes. No verão, nós brincávamos com os filhos dos hóspedes; lógico, depois de fazer as obrigações. Ficamos amigos de todos até hoje. Aquele passa anel, amarelinha. Como se brincava com amarelinha antigamente, riscado nas calçadas!
P/1 – No chão.
R – No chão, claro! Bola, jogávamos muito bola. Os mais velhos, as pessoas mais velhas da praia tinham rede de futebol, tinham rede de vôlei, que jogavam. Eu sempre fui mais para os trabalhos domésticos, eu sempre gostei mais de fazer bordados, aprender as coisas da casa, por isso me tornei uma grande dona de casa, até hoje, com setenta e quatro anos (risos). Exigente.
P/1 – Agora, como é que era essa divisão de tarefas? Quando vocês já eram crianças, os seus irmãos faziam o quê? O que você fazia no hotel? Você falou bastante, mas...
R – Nós duas, mulheres... As minhas irmãs grandes trabalhavam em tudo, porque ficou a Sig, que casou muito depois, 1956, 1955, 1956. Aí, as outras, eu e a minha irmã Lene, nós tínhamos avental e uma sainha porque nós não podíamos ficar de shorts dentro do hotel, tínhamos que ter outro tipo de roupa. Na rua, podíamos andar de short, mas não dentro do hotel. E tínhamos avental para não sujar a roupa. Eu não sei, eu sempre fui a mais esperta e sempre a que mais trabalhou. Até costurar, quando não tinha água e tinha que fazer lençóis novos, a minha mãe me colocava na máquina para fazer costura. Por isso que costuro até hoje (risos). Com dez, onze anos. Eu chorava, não pensa que não chorava, viu? “Por que não chama a Lene? A Lene nunca vem!”. E ela só punha o avental quando meu pai aparecia. Na cozinha, quando ela ouvia a voz dele, ela corria para pôr o avental (risos). E eu sempre tive uma... Acho que aprendi isso como criança - depois viajei muito, lógico, me eduquei muito, sem dúvida e tive sempre uma noção do certo e do errado. Então, eu ajudava demais, vinha as travessas todas, tudo tinha o seu lugar. Eu sabia direitinho onde é que é para pôr, onde é que tira, onde é que põe, para que mesa vai levar, para isso tudo, mas era uma coisa natural minha, não era uma coisa que eu tivesse que...
P/1 – Ser obrigada a fazer.
R – Ser obrigada a fazer. Eu fazia porque era obrigada, sem dúvida, mas a obrigação tornou-se uma atividade normal dentro do hotel do meu pai. E que me ajudou muito, com a família grande que eu tenho, sem dúvida nenhuma, depois. Então, foi realmente... Eu gostava muito da parte da lavanderia, por causa das máquinas, que era uma delícia passar aquela roupa toda naquelas máquinas fantásticas (risos). E depois eu casei muito cedo, com dezessete anos. A vida de adolescente começava com dezesseis, dezessete - antes disso você não fazia nada. Eram bailinhos nas casas dos amigos, cada um levava um prato, conversava-se, preparava-se a fantasia para o Carnaval. Eu me lembro do filme - com doze anos você podia ir à sessão das cinco horas da tarde - que foi Luzes da Ribalta, com Charles Chaplin. Ahhh, mas eu vibrei. Vibrei, vibrei, vibrei, vibrei, que você não pode fazer ideia, nunca mais esqueci na vida. Nunca mais esqueci de nenhuma cena do Luzes da Ribalta. E todos os filmes dele eu assisti, lógico. Eu sou uma cinéfila (risos), eu e meu marido. Mas em casa, atualmente, porque a gente pega os filmes na banca de jornal, não é? Isso aí tem que ser glosado, essa frase (risos). Mas todos os velhinhos pegam, lá na nossa rua.
P/1 – É? Na banca?
R – Nem fala! E depois, adulta, mais adolescentes, eram muitas jovens em Cabeçudas. Logo depois do almoço ia-se para o terraço do meu pai, todo mundo. Às cinco horas todo mundo tinha que sair para se arrumar para a noite, porque tinha o footing. Você sabe o que é footing?
P/1 – A dança?
R – Não. As mães e os pais, depois de um certo tempo, os frequentadores do hotel do meu pai, começaram a fazer as casas em Cabeçudas. Todas as famílias finas de Brusque, Blumenau, Indaial, Joinville construíram casas muito boas em Cabeçudas. Então, ficou um bairro muito chique da cidade. Iam para o,.. domingo, o terraço ficava lotado de pessoas da cidade e da praia. Almoçavam lá em casa, nos sábados e domingos, e, às seis horas - das seis às sete - tinha o footing. Elas se vestiam com jóias, com cabelos penteados, com roupas elegantíssimas, porque se fazia enxoval de verão e de inverno para você ter as duas roupas diferentes. E cada casa tinha uma costureira três meses num período, três meses no outro. Imagina! Não que nós tivéssemos vestidos, costurava para todo mundo. Lá em casa, era muita gente para quem ela tinha que costurar. Inclusive coisas para o hotel, lógico. E depois, de sete às oito, era o jantar. No fim do ano, depois do Natal e antes do Natal, tinha o bumba-meu-boi. Mas que coisa maravilhosa! Hum! Os hóspedes ficavam alucinados. Tinha um pátio muito grande, em frente ao hotel, na fotografia. E ninguém dava dinheiro nem nada para aquela gente. Eles viviam de pescaria. E não eram tão casebres assim, não. Um ou outro mais malandro que eram casebres. E depois, na Páscoa, tínhamos muitos hóspedes, todos os feriados grandes tínhamos muitos hóspedes. Agosto fechava-se o hotel, final de julho, para manutenção. Final de julho a gente ia para a casa de Ibirama. Aí, lá, nós tínhamos vida de família. De almoçarmos todos juntos, tomarmos café todos juntos, íamos para a cafeteria todos juntos, à missa todos juntos. Atravessar os rios, tomar banho de cachoeira. O permanente (risos) era um negócio... um capacete alto, cheio de fios e com pegadores assim, que ela passava um líquido no cabelo; todo mundo fazia permanente, até as meninas com doze anos, treze anos, já faziam. Passavam um líquido e depois punham aqueles pregadores para esquentar o líquido e ficar permanente (risos). Então, a gente fazia em Ibirama porque em Itajaí não dava tempo, realmente. E a cidade toda se conhecia, porque era muito pouca gente, muito pouca gente. Hoje você não tem como estacionar carro; as pessoas, você não conhece mais nenhuma. Meus netos, quando se formaram, não tinha um nome antigo, não tinha um nome antigo. Os dois netos lá se formaram, tanto em Joinville - agora, Engenharia - como a outra, que estudaram sempre em Itajaí. Eu tenho uma filha que mora lá e três netos que moram no apartamento que nós temos lá. É uma coisa impressionante, o porto. Há muito tempo eu não vou para lá. Nos verões, domingo, enchia a praia, total. Hoje não se dá um passo, todos os dias, de tão cheia. Barulhentíssima com aqueles carros que vêm lá de Goiás, Mato Grosso, com aqueles alto falantes - é proibido, mas ninguém respeita. Tiveram que levantar os muros por causa da - imagina, na beira da praia - por causa dos assaltos, por causa da invasão desse pessoal.
P/1 – Isso em Itajaí.
R – Itajaí. Mudou muito do nosso tempo. Nós íamos à escola de ônibus, descíamos na Matriz e, até o colégio, a gente tinha que passar pelos estivadores, que sentavam todos no chão. Nunca tivemos medo, nunca nos desrespeitaram. Nunca. Era uma coisa impressionante. Não existia confeitarias, nada disso. Isso era Blumenau, você tinha que ir para lá, não é? Mas o resto, tinha duas ou três casas que vendiam aviamentos, tecidos. Todas fecharam. Entrou o Ponto Frio lá e também fechou. Casas Bahia, pessoal que ainda conseguia sobreviver, acabou todo, não é? Tivemos grandes marceneiros em Itajaí, hoje não tem mais nenhum. Marceneiros! Meu Deus. Blumenau, a mesma coisa. Hoje... Eu não vou lá há muito tempo, então não... Eu sei que minha irmã reclama muito da falta de estacionamento, que não se anda mais. E se você vai para Camboriú e para Itajaí agora, ou você leva todos os víveres ou você não come. Porque não tem como chegar nas cidades, de tanto carro.
P/1 – Você me contou muito do hotel, a gente está falando bastante disso. Agora, você se lembra de algumas histórias que te marcaram mais com os hóspedes, ou coisas que aconteceram no hotel?
R – Ah, sim! Muitas.
P/1 – Pode contar para a gente? O que vier na sua cabeça.
R – Posso, posso, posso. Nós tínhamos sempre hóspedes fixos e ilustres. Por exemplo, houve uma reunião de governadores, do Sul do Brasil, do Brasil, de não sei quantos. Eu me lembro do Bento Munhoz, que era governador do Paraná, o Juscelino Kubitschek, que eu tive um orgulho muito grande, devia ter uns nove anos, onze anos, sei lá quando foi, que era governador de Minas, usava os suspensórios aqui em cima, a calça aqui em cima. E me viu de manhã, na calçada da praia, estava hospedado lá em casa e fez questão de dar uma volta comigo na praia. Depois, imagina, o governador, depois presidente, o que eu senti. Me lembro muito bem daquele que era da Marinha, como era o nome? Você não deve se lembrar, daqui a pouco eu lembro. Sentei no colo do Bento Munhoz, que era governador do Paraná. O Jânio Quadros, que teve uma excursão do Rotary Clube lá em Cabeçudas, entre um período que ele deixou de ser vereador, alguma coisa, mas já era candidato a governador de São Paulo nessa época. O senhor que fez a pintura, um senhor italiano que fez a pintura da igreja, que é belíssima, da igreja Matriz nova, belíssima, ensinou a todos os hóspedes do hotel no inverno, as mulheres - porque todas elas iam a Blumenau buscar bordados alemães, vinham começados, com as linhas, e depois você acabava a toalha - a como fazer o avesso igual ao direito, olha só! Parece que eu estou vendo ele hoje. “Mas como que vocês podem fazer um avesso tão feio, cheio de nós!” (risos). O tecido, e principalmente o ponto cruz, tem que ser todo certinho, não pode ser cruz atrás, ele tem que ser todo reto, um em cima do outro. E ele ensinou para todas nós como fazia, eu era criança naquele tempo mas aprendi (risos). Depois, todos os políticos de Santa Catarina daquela época, que já nem me lembro todos. Os governadores, que iam muito a Itajaí. Todos os prefeitos. Eduardo... como era o nome? Eduardo Gomes. O Jango, que tinha casa lá em Camboriú, foi muito. Aquele outro do Rio Grande do Sul, do PDT, como é o nome dele?
P/1 – Brizola?
R – Brizola. Antônio Carlos Reis, que foi senador, que fez a Constituição de 1988. O Jorge Bornhausen, governador, foi meu colega de aula. Desde que o pai dele foi governador, ele pôs um cabo de vassoura aqui e nunca mais ele abaixou a cabeça (risos).
P/1 – Mas ele cresceu com você.
R – Cresceu conosco, lógico. E os irmãos dele com minhas irmãs. Mas, assim, o pai dele e a mãe eram padrinhos da minha irmã mais velha. O Genésio Lins era da minha irmã Sig, acho que era da Sig. E da Pup era o Fritz Schneider com a Olita, que era de uma família de São Paulo, foi minha madrinha. Da minha irmã foi dos Ramos, a família Ramos toda, toda, toda. Todos os governadores de Santa Catarina. E o meu pai, uma vez, teve que receber o chefe do governo da Índia. E não podia pôr carne de vaca. Ah, virou piada na cidade, não é? E o dia lindíssimo, lindíssimo. Porque meu pai falava cinco idiomas, então todo mundo que ia à cidade, autoridade, ele que recebia as pessoas. Mas tudo tão lindo que você não faz ideia. Todas as mesas com flores, nossa, era um luxo só. E o Marcos Konder, que morou, até morrer, lá em casa.
P/1 – Ah, é?
R – Ah sim! Porque ela foi atrás da Olga Benário, que era comunista.
P/1 – Ela quem, a mulher dele?
R – A mulher dele, dona Maria, Maricota, não me lembro o nome direito. Uma outra hora eu te conto. E ela deixou o coronel Marcos Konder com duas filhas e três filhos homens. As filhas ficaram estudando no colégio Sacré-Coeur, em São Paulo, e os filhos foram para o Rio. Todos são ainda comunistas e, aqui em São Paulo, tem um Comparato, Konder Comparato. O avô deles morou lá na nossa casa, no hotel. E ele tinha uma coisa curiosa. Ele foi para... Eram donos, usineiros da fábrica de açúcar Adelaide, e foi para a Alemanha quando vendeu porque pensou que tinha conseguido para o resto da vida todo o dinheiro, não precisava mais trabalhar. Ele era muito esnobe, muito esnobe.
P/1 – Ah, é?
R – Conversava muito com os hóspedes, tudo. Tinha a mesa dele separada, mas ele era muito sociável também. A neta dele, a filha do Evandro Lins, a Teresa Lins e Silva, a mãe era uma das filhas do coronel. Ela tinha autonomia de entrar no quarto dele para ver como era o quarto, o que ele trazia da Europa. E em um desses verões - nós éramos pequenas - ele tinha ido para Baden Baden e trouxe um monte de fotografia de mulher pelada (risos), mas lindas, fotografias artísticas. E ela abriu a gaveta para todas nós (risos). Foi assim um show! Um show fantástico (risos). E vimos aquilo tudo muito depressa, corremos e fomos embora, e não contamos para ninguém. Mas depois, todo mundo descobriu (risos). Porque ele mostrava só para pessoas de mais idade, não é? Minhas irmãs, tudo isso. E era... Baden Baden, ele contava todas as histórias. Eu fui a Baden Baden, de tanto ouvir o coronel falar. Mas era... O dia em que ele usava o banheiro para tomar banho - e não tomava todo dia - então os empregados limpavam o banheiro, trancavam a chave e depois que eles tomavam banho, podia outros entrarem. Teve um fato muito incrível de uma senhora doida, com certeza, engoliu um anel que ela roubou. Não, que era dela ou ela tirou e acusou minha irmã mais velha de ter roubado o anel. E depois ela cuspiu alguma coisa. Sei que ela tinha engolido o anel, imagina. Morreram duas pessoas no nosso hotel, dois hóspedes. Três hóspedes. Uma senhora, que já chegou muito mal do avião, de Curitiba até Itajaí. Era horrível voar naquela época, não é? Nossa Senhora. Faleceu. E o médico que veio atender era um hóspede que estava lá, de Curitiba, e acabou casando-se com uma das amigas da minha irmã, que morava... das Gallottis...
que morava em Cabeçudas também. A família Gallotti era muito de políticos, de intelectuais, essa turma toda frequentou a nossa casa, constantemente. E depois faleceu um senhor, no quarto 15, também de Curitiba. E depois um outro, no 10-A. Dois senhores e uma senhora. Nunca mais ninguém ficou doente, ficavam queimadas, da praia; naquele tempo não tinha óleo (risos).
P/1 – Protetor solar.
R – Foram coisas que me marcaram muito, muito.
P/1 – O quê?
R – A minha infância, de ter esses acidentes, não é?
P/1 – Eles morreram de morte natural?
R – Natural, natural, todos morreram de morte natural, sem problema nenhum. Só que sempre precisava-se mandar fazer o caixão do tamanho do falecido, porque o resto era facílimo, era tudo muito perto. Não tinha essa multidão que tem hoje. Agora, não aumentou o número de escolas, não aumentou. Tem faculdade e o porto cresceu muito, sem dúvida nenhuma.
P/1 – De Itajaí.
R – De Itajaí. Cresceu muito, hoje é um porto grande, recebe navios de passageiros. Quer dizer, eles dão uma parada de dez minutos e vão embora, não é? O pessoal sai, vai a Camboriú, almoça e volta. Uma turma vai a Blumenau. Blumenau caiu muito.
P/1 – Ah, é?
R – Muito, muito, do nosso tempo de criança. Realmente. E o resto era vida normal. Brinquedos, você não tinha. Você tinha patinete de duas rodas, porque a calçada era muito boa, e você tinha bicicleta. Meu irmão tinha um cavalinho que hoje, eu tenho uma casa alugada para alemães, e tem um pequeno de três anos que tem o cavalinho que meu irmão tinha.
P/1 – Ah, é?
R – Ah, todo ele de couro, o rabinho, a crina, senta no cavalinho. Lindo o cavalinho!
P/1 – Eu não entendi uma coisa que você me falou, dessa história da mulher do coronel Konder.
R – Marcos Konder.
P/1 – Marcos Konder. O que ela foi?
R – Ela se apaixonou pelo comunismo. E foi quando veio pela história do... como nós falamos?
P/1 – Do Luís Carlos Prestes?
R – Do Luís Carlos Prestes, é. E foi para o Rio para entrar no partido do Luís Carlos Prestes. E os filhos dela todos entraram, e os netos hoje são todos comunistas. Eu, há pouquíssimo tempo, vi um deles - Fábio ou Flávio.
P/1 – Fábio.
R – Konder Comparato, neto dessa senhora. Velho já, já está com muita idade. Na Maria Lídia, meu Deus do Céu! E depois ela morreu em Munich, na prisão em que morreu a Olga.
P/1 – Ela foi deportada também?
R – Foi deportada, foi deportada. E o coronel ficou morando no nosso hotel, desde que ela saiu, 1930, vinte e pouco. Trinta e dois foi uma revolução, do Rio e São Paulo. As minhas irmãs conheceram ela, eu não conheci. Mas o coronel sim, muito. Era apaixonado por Lauro Müller, meu Deus do Céu! E eu nem sabia nada da história de Lauro Müller, levava cada puxão de orelha (risos)!
P/1 – Mas quem é Lauro Müller?
R – É um personagem de Itajaí. Também foi escritor, eu acho. Tem a rua Lauro Müller, que é a mais importante (risos). Eu nunca me interessei pelo Lauro Müller, mas o coronel exigia que eu ficasse. Todo ano ele trazia os broches, lindíssimos, que tem lá em volta das águas, em Baden Baden, quando ele ia. De miçangas pequeninas, pequeninas. Eu tenho até hoje algumas coisas dele, para todas nós. Depois tinha a família Hauer, de Curitiba, um senhor que ia todos os anos, solteirão, e ele levava para nós os chocolates Sönksen, que fechou a fábrica. Fechou há mais de vinte anos. A gente esperava o senhor Hauer com o maior carinho, com a maior felicidade! Porque todos os chocolates finos da Sönksen, que era concorrente da Kopenhagen, ele levava para nós e distribuía. Então, nós ficávamos felicíssimas. Acabou casando com a nossa costureira, Hilda.
P/1 – Ah, é?
R – Era uma mulher muito vibrante e acabou sendo quase enfermeira dele, porque ele perdeu uma perna por causa da diabetes. Então os hóspedes assim, o pessoal de Curitiba, Matte Leão, todos iam lá para casa. Os médicos. Meu Deus, os médicos de Curitiba, as férias deles eram lá em casa! Tinha um gaúcho, o “seu” Gentil, que ele ia no verão, sempre depois do dia 15 de janeiro, e ele deixava a minha mãe de folga. Ele é que fazia o churrasco para todos os hóspedes (risos), olha só!
P/1 – Um bom hóspede!
R – Como hóspede. E eles faziam... Naquele tempo tinha cestas de Natal muito grandes, eles faziam piquenique e ela que preparava todos os piqueniques para eles. Então, era uma família, não é? Você tinha, realmente, uma família. A Margarida Wollmann, que foi uma grande artista de Curitiba, e a madrinha da minha irmã mais velha, a Lene, pintava porcelana. Levava os pratinhos. Eu fiz para todos os meus netos, porque acabei aprendendo. Eu sou autodidata em quase tudo, viu? Eu passei um ano só, na porcelana. Mas o que eu faço! Não sabia que eu sabia desenhar, nunca tinha desenhado até cinquenta e quatro anos.
P/1 – Ah, é?
R – É. Aí é que eu comecei a fazer. Costura não, já bem mais cedo. Mas a pintura de porcelana... Tela, com cinquenta e quatro anos; pintura, um pouco mais cedo, com quarenta e cinco, por aí. Nunca pude imaginar que eu fosse fazer o que faço. Eu olho assim e digo: “Opa! Eu que fiz isso? Como será que eu fiz? Que cor eu usei?” (risos). Incrível, incrível, a vibração que eu tive de fazer as coisas aprendendo sozinha. Agora, fui rata de museu, não é? Eu e meu marido. De não sairmos de museu. Nunca fui para loja fazer compras. Via, mas eu aprendi a fazer as coisas, então fazia por conta própria. Incrível. Aí, o internato foi um período fantástico, fantástico, fantástico para mim. Muito. Aprendi datilografia, por isso hoje eu manejo o computador bem fácil, o teclado, tudo isso. E com doze anos fiz o curso de datilografia na Remington, era no internato.
P/1 – Na loja das máquinas mesmo.
R – É. E já entrei... Nessa época, bordava muito; fiz bordados lindos, porque a gente aprendia no internato. Era obrigado a fazer caseado, pregar botão, remendar roupa, tudo isso a gente aprendia no internato. Eram alemãs, freiras alemãs. Tomava-se banho duas vezes por semana (risos), lavava o pé todo dia de noite (risos).
P/1 – A gente vai precisar parar agora, mas, com certeza, a gente pode tentar marcar quinta que vem.
R – Ótimo.
P/1 – Então a gente estava em Itajaí ainda, a senhora tinha 12 anos, e o que estava fazendo?
R – Eu estava na primeira série do ginásio. Naquela época era até o quarto ginasial, e o internato só tinha até o quarto ano do ginásio. Como eu estava muito só em casa, sem os meus irmãos - José Bernardo e a Lene - eu quis ir para o internato também. E foi um período fantástico da minha vida, porque era dirigido por Irmãs alemãs, da Divina Providência, muito avançadas para a época, muito elegantes. As pessoas de Blumenau, nossas colegas de aula, eram todas filhas dos industriais de Blumenau, da gente conhecer muitas pessoas, de todas as moças, adolescentes das cidades do interior iam para Blumenau ou Florianópolis fazer a segunda etapa dos estudos. Eu me dediquei mais à datilografia, fiz o curso com doze anos, nunca esqueci, me ajudou no futuro, com o computador, muito. E a pirogravura e trabalhos manuais, que eu adorava. Minha irmã era esportista, chegou a ser campeã brasileira de tênis, representava todos os esportes que o Exército tinha e que podiam ser feitos por mulher; ela representava e foi campeã de todas as categorias. Era muito interessante. Nesse período, teve a maior enchente que já houve em Blumenau - em 1956, se não me engano. Eu me lembro - ontem comentei com meu marido - de que todos os médicos do Hospital Santa Isabel foram dormir no colégio, as enchentes eram... como chama-se? Avisadas. Quando chegava o rio Itajaí Açu, que vinha lá de Taió, do alto da serra, chegava numa cota, eles já avisavam a Blumenau. Itajaí quase não tinha muita enchente por causa da foz do rio, mas enchia também algumas ruas. Mas Blumenau, não. Blumenau era uma tragédia. Foi uma coisa incrível que aconteceu, que nunca vimos um negócio igual, ter três metros de água dentro da cidade, era uma loucura aquilo. Andava-se... nós não... ficamos presas no internato. Depois, teve um momento fantástico, histórico, que a gente, por ser criança, não valorizou muito: o dia em que o Getúlio se suicidou. E todas nós ficamos no pátio externo do colégio, todo o colégio. E a diretora era uma senhora alemã - freira - com toda a cerimônia colocou todos em fila, como se fôssemos marchar, ela anunciou a morte do presidente Getúlio Vargas, que foi dia 24 de agosto que ele faleceu, foi uma coisa muito diferenciada. Nesse período, eu também estudei piano e, mais tarde, fiz, na Cultura Artística, dois cursos com grandes pianistas, um violinista da Orquestra de Israel, regida pelo maestro Zubin Mehta, e a outra eu fiz curso de piano com a Margareth __________, que era pianista e professora da... como era o nome da escola? Daqui a pouco eu me lembro. Uma grande escola de Nova York, de piano, e isso me levou a frequentar depois, dezesseis anos, a Cultura Artística, sozinha. Meu marido não ia, naquele tempo dava para sair sozinha, à noite, de carro, e voltar tranquila, sem dúvida nenhuma. Bom, no internato, foram grandes professores, mas, naquela época, eu nunca me interessei por História - que coisa incrível - e sim Geografia, eu gostava demais. Tínhamos Francês com livros fantásticos que vinham da França. Inglês... Alemão era estudo à parte, não se podia estudar Alemão.
P/1 – Ah, é?
R – É. As lojas em Blumenau... só se falava Alemão e os donos é que eram os balconistas. E todas elas eram de madeira, o assoalho fazia plec plec plec, da mesma forma que, em Itajaí, os secos e molhados, os tecidos, os sapatos, as confeitarias. Muito mais tarde, que eu conheci bastante a Europa, Blumenau era o retrato da Alemanha. Hoje não (risos), sem dúvida nenhuma. Uma vez por mês, em algum feriado grande, você podia sair do internato. Você tinha direito a um pacote de bala, no fim de semana, se o seu pai deixasse dinheiro no caixa, porque também havia meninas que não pagavam o internato, eram bolsistas, vamos dizer assim. E nos tornamos amigas, até hoje, de todas. Era uma coisa muito incrível. E um sistema que o japonês adota hoje, você tinha que, não lavar a louça, mas você tinha que enxugar a louça, você fazia rodízio de comida na mesa. Éramos dez sempre, tinha algumas que, quando era a primeira, a gente não conseguia comer (risos). À noite, quando tocava o sino do Angelus, na hora do almoço e do jantar, seis horas, você tinha que parar para rezar, onde você estivesse. Então, foi um período de muita cultura, de muita disciplina, de muita religiosidade naquela época. Formei no ginásio, vim para Itajaí. Ia fazer o curso de Economia Doméstica, que era espera-marido, em Florianópolis, nas mesmas freiras do mesmo colégio lá de Florianópolis, que era o único que tinha.
P/1 – Antes de você passar para frente, eu queria só voltar um pouco no internato. Descreve para mim como era esse internato, como é que era.
R – Era como eu vi em Bonn, no museu de Bonn. As camas eram todas... as pequenas não tinham cortina, mas então era um cortinário em volta da cama, branco, e tinha uma abertura para você entrar no seu quartinho. Tinha um pequeno armário, tudo isso você tinha que levar de roupas: roupa de cama, roupa de banho, tudo isso. Uma comodazinha pequena, um criado mudo e uma bacia, que era nossa, própria, e jarra, que se comprava, esmaltada, onde você punha água todo dia, de noite, para lavar o rosto no dia seguinte, de manhã. Os pés eram lavados no corredor de fora porque tudo era terraço, dormitório para as freiras terem... conseguirem enxergar tudo. Tinha uma que andava sempre pelo corredor para ver se as crianças estavam bem, e era dividido por idade: de sete a dez, de dez a doze e, depois, as mais velhas tinham o quarto melhor, todas elas fechadas, as celazinhas. Muito raro a gente fazer bagunça, mas de vez em quando fazia-se.
P/1 – Ah, é?
R – Ah sim, muito raro. As menores. As maiores não podiam fazer, de forma alguma. E se você não arrumasse a cama super bem - até hoje eu faço isso, não pode ter uma dobrinha - quando você chegava na hora do almoço estava tudo de perna para o ar, para você fazer de novo (risos). Não tinha esse negócio de castigo, de ficar de joelho, nada disso, as freiras eram maravilhosas, amigas, tudo o que você queria elas lhe orientavam como fazer. Tinha hora de estudo, isso era parte do dormitório, sempre de uniforme. Os chuveiros, sempre tinha um que era o mais novo, então era o melhor - e banheira, tinham duas. E você fazia rodízio e tinha quinze minutos - até muito tempo pelo tempo de hoje, que é de cinco minutos no máximo - para você sair do banho vestida, não podia sair sem a roupa, não é? Então, terças e sextas, a gente tomava banho (risos).
P/1 – Mas também era frio, imagino.
R – Não se suava, realmente, muito; não era uma coisa assim... Não tinha desodorante, naquele tempo ninguém ficava cheirando mal (risos). Os pés, lavava todo dia, em conjunto. Não tinha nada, a gente punha meia o dia inteiro (risos).
P/1 – E como eram essas bagunças que vocês aprontavam?
R – Talvez a gente saísse, porque depois do jantar tinha um recreio, no pátio interno do colégio, em que podia andar de patins, podia conversar, e sempre tinha os grupinhos. E talvez você tivesse algum assunto que tivesse extrapolado naquele dia, e uma mais levada começava a contar as piadinhas, isso e aquilo, e aí fervia o dormitório (risos). Nós éramos, mais ou menos, cento e cinquenta alunas no começo; no último ano foram setenta e poucas, porque foram começando... Inclusive as filhas dos cônsules alemães, elas estudavam lá. Pessoas de Curitiba, com poder aquisitivo alto, tudo, mandavam as filhas para o internato de freiras alemãs. Tinha ele, Florianópolis e um no Rio Grande do Sul, da igreja protestante, em Novo Hamburgo se não me engano. Aí, você tinha horário de estudo de noite, quem quisesse, e tinha o horário de estudo de manhã cedo - quinze para as cinco tocava o sino, todo mundo tinha que levantar correndo. Aí você podia ir à missa ou para o estudo. Eu sempre fui à missa, porque não precisava, era boa aluna e não precisava estudar mais. E nós tínhamos, cada aluna, nas salas de estudo, o seu cantinho para pôr os livros, tudo super organizado, super limpo. Nossa, incrível. A comida era boa. Quando os pais traziam comida, você tinha que dividir com todos, não podia. Você tinha que limpar seus sapatos, como é o japonês que está entrando no Brasil, essas escolas em que você faz tudo. Quem fazia esporte, na hora do recreio, das cinco às seis, fazia o esporte. E quem não queria, fazia caminhadas no pátio, que era imenso, imenso, imenso.
P/1 – E vocês faziam algum outro serviço de limpar o lugar ou…?
R – Não, não. Cada um fazia a sua cama, cuidava da sua roupa, o armário tinha que ser perfeito, mas tinha as empregadas do colégio que faziam a limpeza de chão, essas coisas todas eram elas que limpavam. Tínhamos que sair do banheiro deixando tudo em ordem para a próxima entrar, lógico, sem dúvida nenhuma. Tudo seco, tudo arrumado. Agora, não me lembro como fazia com as toalhas para secar, acho que pendurávamos nas grades do corredor. Porque não eram todas que tomavam banho no mesmo dia, era rodízio, sempre com as menores, as maiores, e depois as médias. E quem lavava a louça eram as empregadas do colégio, mas nós enxugávamos e guardávamos.
P/1 – E quais eram as matérias que vocês tinham? Você já falou que tinha línguas, religião.
R – Ah sim, Matemática, Português, Desenho, as matérias básicas do ginásio. As línguas, Geografia, História, Ciências, não eram feitas em livro. Meus cadernos sempre ficaram no colégio para passar para as meninas, como exemplo. Ó, quanto elogio! Mas era verdade. Ciências, eu tinha paixão por Ciências. Então, você tinha que desenhar tudo. Foi a única coisa que eu fiz, o desenho das aulas de Ciências. E os cadernos tinham que ser sem orelha de burro, letra lindíssima, não podia ter sujeira nenhuma, nenhuma, nenhuma. E Geografia, nós tínhamos os mapas, isso já no ginásio. História, ai, era um professor muito chato, muito chato.
P/1 – Ah, é?
R – Avô dessa que era jogadora de vôlei, Moser, não sei qual é o primeiro nome dela.
P/1 – Ana Moser.
R – Ana Moser. O avô dela foi meu professor de História. Sempre impecável, de terno, altíssimo. Mas ele não era vibrante. Nós tínhamos Latim! Ai, como era chato o professor de Latim também, punha todo mundo de segunda época (risos). Segunda época não é recuperação, você tinha que voltar a fazer exames no começo do ano para ver se passava. E o professor de Inglês se tornou um grande pintor, Emmerich. De Inglês não, de Desenho. Quem sabia desenhar, ele adorava; quem não sabia, ele passava por cima (risos). Francês era uma irmã, Ludgera, que me ajudou, muitos anos depois, quando eu viajei muito para a França. E os livros eram do Larrouse, imagina, já existia. Mas trazer da Europa para a gente estudar em livros do Larrouse, no ginásio, era uma coisa do outro mundo, sem dúvida nenhuma.
P/1 – E o professor de Geografia?
R – Ah, maravilhosa! Ma-ra-vi-lho-sa. Não me lembro do nome dela, não sei se era Irmã Doroteia, maravilhosa. E você fazia com Geografia uma comunicação com escolas do Brasil todo, mandando fotografias da sua cidade, eles mandando, descrevendo a cidade. Correspondemos com a região Norte. É, que coisa engraçada, não é? E, no fim do ano, também era como agora, você tinha os exames feitos em folhas de papel, como se fosse o vestibular, que é feito em folhas de papel. Não existia nada de escrever xizinho. Se você fizesse uma redação religiosa, de religiosidade, você sempre tirava dez (risos), isso era o máximo, não é? Tínhamos o retiro espiritual também. Fantástico. Três dias por ano, às vezes duas vezes, vinham os padres que já eram monsenhor. Uma vez, em Itajaí, na Escola Normal, eu fiz com o nosso cardeal da Sé, que ele era monsenhor. Era uma coisa muito importante na nossa vida de crianças, porque nós vivíamos numa época em que a religião era muito mais forte até do que a família. A família toda era religiosa e você tinha que ser extremamente religiosa e cumprir com os deveres da igreja, sem dúvida nenhuma. Até hoje eu tenho meu missal, que foi mandado buscar em Roma, raríssimo quem conseguia, porque era muito caro e demorava muito para chegar. Todo folheado a ouro a beirada assim.
P/1 – E que história te marcou mais?
R – No internato?
P/1 – É. Histórias que você passou.
R – Olha, foi uma coisa engraçada. Tinha um morro do lado do colégio que, aos domingos, à tarde, você conseguia ver os meninos do Colégio Santo Antônio, que de vez em quando havia um encontro com a gente porque a gente passeava na cidade também, aos domingos. Ia comprar as balas, tudo isso, com as freiras, tudo uniformizado. E você sabe que tinha algumas que conseguiam flertar do lado? Do lado de cá tinha a avenida e o pátio que eles ficavam, então era uma comunicação engraçada (risos). Tinha a parte do colégio, muito bonita, que era onde os pais iam visitar os filhos. Então você tinha salas lindas para conversar com seus pais, tudo isso, cinco minutinhos, não era mais do que isso. Nos interessava o que eles nos traziam de bom, sem dúvida nenhuma (risos). Minha mãe tinha o contato com a gente toda semana, aquele telefone que rodava, rodava, rodava, marcava hora para dizer que horas que podia conseguir telefonar. Imagina, de Itajaí a Blumenau (risos). Ah, tinha uma coisa muito interessante. Como meu pai tinha hotel, quando inaugurou a Litorina, entre Blumenau e Itajaí, eu me lembro, pelo menos uns três, quatro anos seguidos, as alunas da classe, minha e da minha irmã - ela estava um ano atrás - nós íamos fazer um piquenique em Cabeçudas. E
todo mundo almoçava no hotel do meu pai. Então, era um dia de grande glória para mim e para minha irmã (risos). De graça. Ele dava o almoço, era uma alegria. Depois voltávamos, já de Litorina, para a escola, de novo (risos). Não houve um ponto excepcional. A enchente me marcou muito, o dia em que Getúlio morreu, e o resto era uma vida normal para a gente, não era uma vida de sacrifício, nada disso; evoluímos normalmente.
P/1 – E vocês se levantavam a que horas?
R – Quinze para as cinco.
P/1 – Quinze para as cinco?
R – É, quinze para as cinco. Hoje eu acordo às quatro da manhã (risos). Íamos dormir às oito e meia, eu continuo indo dormir às oito e meia (risos).
P/1 – Então você vai sair de lá aos 17?
R – Não. Com 14 eu acabei o ginásio, aí vim para Itajaí. Uma grande amiga minha, Ana Helena Bauer, que depois que eu casei raramente encontrei com ela porque ela morava em Florianópolis e eu em São Paulo, me convenceu a fazer Escola Normal em Itajaí. Foi fantástico! Ontem, eu vi uma moça da CBN falando com aquele professor Cortella, do Dia da Mulher. Mas o que era? Ginásio, Escola Normal? Eu digo: “Puxa vida! Nesta época, ouvir alguém falar em Escola Normal...”. Porque não existe mais esse nome, hoje você tem que fazer Pedagogia para ser professora. O que não é a mesma coisa, a Escola Normal é bem diferente. Fantástica! Eu estudei Psicologia, Pedagogia, Filosofia, Matemática, Geografia, História, Sociologia, tudo isso me ajudou na educação dos meus filhos. Cinco em cinco anos, faz ideia. Que eu tive que ter uma disciplina tremenda, não é? (risos). E a Escola Normal foi ma-ra-vi-lho-sa, ma-ra-vi-lho-sa, uma época em que você já é madura. E, no terceiro ano, eu conheci... Não, meu marido foi... Carlos foi para Itajaí fazer a estrada Curitiba ao Rio Grande do Sul, essa BR. Antigamente era BR-02, agora é BR-116, e mais um outro trecho, de Curitiba. Ele trabalhava na CBPO, companhia do tio dele, o Oscar Americano, e foi para lá com vinte e oito anos. E meu pai não deixou ele morar lá em casa porque ele era solteiro, então ele alugou uma casa (risos) do médico, perto do hotel, e ele almoçava no restaurante na terceira rua da praia, todos os dias. E todas as solteironas da praia - eu não vou dizer o nome delas porque um dia elas podem ver isso (risos) - elas sabiam que tinha um paulista solteiro, de família muito fina, e que era um engenheiro da CBPO nessas obras, principalmente no trecho Itajaí-Joinville e Curitiba-Itajaí. E todas fizeram de tudo para namorá-lo. Imagina, eu não tinha dezessete anos, tinha dezesseis quando fui buscar minhas notas do segundo ano, que eu tinha passado para o terceiro, da Escola Normal. Dez de dezembro. E você tinha que ir de uniforme. Eu estava de uniforme, meia três-quartos, saia azul marinho, blusa branca. E eu vi ele passar na minha frente. Hum! Não era uma pessoa de beleza estonteante, que você se encanta pela beleza dele, mas não sei, eu disse: “Eu vou namorar esse moço”. Para mim ele era um homem já, não era um moço. Bom, aí passou-se o tempo, chegou um primo dele, Oscar Americano Filho, o Casinho, com um outro primo dele, do Rio, e ficaram hospedados na casa dele. Como eles tinham a nossa idade, eles iam para o nosso grupo de jovens que ficavam no terraço do hotel do meu pai. E Carlos sempre chegava da estrada e tomava um banho de mar, porque as casas eram na beira da praia. E como os primos estavam lá, ele ia para o nosso grupo. Então, as que queriam namorar ficavam acesíssimas. Bom, vou encurtar essa história. E nós vínhamos todos com a família do doutor Evandro Lins e Silva, que se hospedava no hotel do meu pai todos os anos por causa do sogro dele que morava lá, o coronel Marcos Konder, por um baile. Mas era de oito às dez, ou às onze, em Camboriú, acho que no Baturité. Baturité não, não me lembro o nome dele, já acabou há muitos anos. E eu fui com minha irmã e as filhas todas deles, sobrinhas, tudo, a dona Musa, a esposa dele, e a cunhada, dona Rosa, que nos levava para Camboriú. E de repente, ele começou... Carlos estava lá também e começou a dançar com uma das moças que...
P/1 – Do grupo.
R – Não. Era muito mais velha do que eu, mais próxima da idade dele, solteirona da cidade (risos). E foi muito engraçado, porque eu fiquei meio decepcionada, lógico, e ela estava encantada, tornou-se cunhada da minha irmã no final. De repente, eles param de dançar e ele me tirou para dançar. E daí, 17 de janeiro - desse dia em diante nós começamos a namorar - de 1959. Aí bom, eu fiquei no auge, não é? O amor me emagreceu tanto que eu cheguei a cinquenta e dois quilos (risos), a paixão. Olha a coincidência que teve: minha irmã, de Santos, tinha um médico dos filhos dela, um pediatra, que a família era daqui de São Paulo, ele era irmão da Ema Pimenta, que, por sinal, era a maior amiga da minha sogra, a Lourdes Americano. E ela tomou informações para saber quem era. Como ele era muito mais velho, ficaram com medo que desse um golpe numa menina de dezesseis anos. Bom, aí foi uma coisa interessantíssima. Naquele tempo era tudo por correio, não tinha nada de comunicação, nem telefone dava. Saiu a casa do Oscar Americano, a que ganhou um prêmio, a Fundação, no Chile, na Casa e Jardim. Ela disse: “Compre a revista, mas não comente com ninguém”. Foi o recado que a minha irmã me passou. “E é de família muito boa, você não tem que se preocupar, mas seja sempre muito severa consigo mesma”. Minhas irmãs eram todas super religiosas, não é? E três meses depois ele quis me pedir em casamento: “Não, eu quero ficar noivo, noivo”. Mas eu não tinha dezessete anos. “Não, vamos esperar que eu faça dezessete anos”. Já alguém na cidade sabia, olhe só, naquele tempo já se espalhava isso, e espalharam que eu ia ser pedida em casamento, e eu nem sabia (risos). Naquele tempo pedia-se em casamento, não é? E demorou para chegar porque teve uma reunião com o governador, era o governador do Paraná, Moysés Lupion. E a estrada era muito ruim. E aí chegou à noite, quase dez horas da noite, e eu esperando lá. Ficamos noivos, aí eu continuei a Escola Normal e fui até mais ou menos. Em agosto, ele teve um acidente de carro - o carro capotou em uma das curvas - ele disse: “Eu não quero mais esperar até o fim do ano. Nós vamos casar em setembro”. E casamos. E estamos há cinquenta e sete anos casados (risos), é incrível, não é? Fizemos uma família fantástica. Veio... A família dele foi toda no meu casamento, foi muito bonito, diferentíssimo. E eu era... que nem tinha namorado e, naquele ano, todas as meninas com dezessete, dezoito anos casaram-se. Só que eu comecei o grupo. Foi uns dez casamentos na cidade seguidos; inclusive minha irmã casou também, em novembro (risos).
P/1 – Desse mesmo ano.
R – Em 1960 nasceu a nossa primeira filha, em Curitiba, Maria Ignez, que é médica pediatra hoje, já é avó de duas meninas, uma com dez anos, e já está com cinquenta e seis anos. Maria Ignez. Linda, linda, linda, uma boneca. Dois anos e três meses depois chegou o Toninho, nosso único filho, Antônio José. Um ano e oito meses nasceu a Ana Teresa. E depois, a cada dez meses, nasceram as outras duas - Sílvia e Fátima. Então, as três últimas pareciam trigêmeas. Para eu não perdê-las, eu já tinha aprendido a costurar, lógico, com tanto filho (risos), meninas. Eu tive que fazer um curso de costura que foi fantástico para mim, de alta costura, com uma grande mulher, Sílvia Carneiro da Cunha. E eu vestia elas todas iguais, de cores diferentes. E eu não tinha a situação financeira para comprar naquelas lojas chiques, nada disso, que era a Dulce e duas lojas de criança que tinha na Rua Augusta, que eram muito chiques. O que eu fazia? Eu ia na vitrine, copiava o modelo; embaixo, quase perto da Estados Unidos, tinha a Casas Pernambucanas, que tinha tecidos maravilhosos da América Fabril, do Rio, de Petrópolis se não me engano, a fábrica, e pegava aqueles tecidos lindos de criança, xadrezinhos, tudo isso. Até comprei uma máquina Vigorelli para poder bordar as roupas das crianças. E o resto da vida eu fiz todas as roupas dos meus filhos e dos meus netos. Alguns, porque a maior parte foi homem