Museu da Pessoa

Com a proteção de São Vito

autoria: Museu da Pessoa personagem: Gina Labate Erriquez

P/1 – Dona Gina, obrigada pelo tempo, pela disposição.

R – Nada, imagina, tenho prazer em poder servi-lo. A hora que você quiser estamos às ordens.

P/1 – Tá certo. Você fala pra mim o seu nome completo, local e data de nascimento.

R – Meu nome é Gina Labate Erriquez. Nove de julho de 1931. O endereço?

P/1 – Onde a senhora nasceu.

R – Rua Agostinho Gomes, 984, apartamento 31/34, Ipiranga.

P/1 – Esse é o que a senhora mora hoje.

R – Moro hoje. Há 12 anos. Porque eu nasci aqui nessa rua, me criei nessa rua, senti quando eu fui embora porque eu amo o Brás, mas tem que crescer. Os filhos crescer, então a gente tem que acompanhar.

P/1 – A senhora nasceu na Fernandes Silva então.

R – Na Fernandes Silva, num cortiço. Muito bom.

P/1 – Como era esse cortiço?

R – O cortiço era maravilhoso, tive uma infância dentro desse cortiço. Não é como os que você vê agora, sujos, não. Era um quintal grande e toda a volta eram os quartos. A cozinha era coletiva, o banheiro e pra lavar roupa também, era tudo coletivo, tinha que estar disponível no momento que você não queria, é que você tinha que esperar, cada um esperava sua vez. Mas foi muito bom, gente muito boa, eu me criei lá e depois saí desse cortiço e fui pra outro, também muito bom. Aquele era só um quarto, fui para um com dois quartos, mas também banheiro coletivo. Mas olha, uma infância nota mil.

P/1 – Ah, é?

R – Meu pai era verdureiro, trabalhava com carrinho na rua. Nunca faltou nada em casa, graças a Deus a gente ajudava também nas compras, na arrumação do carrinho. E quando terminava ele punha nós no carrinho e levava numa garagem. E o nosso prazer era esse, sentar no carrinho e nos acompanhar numa garagem. Todo dia.

CORTE NO ÁUDIO

P/1 – Já que você está falando do seu pai, fala pra mim o nome dele e onde ele nasceu.

R – O meu pai, Francisco Labate. Nasceu na Itália, Polignano a Mare.

P/1 – Ah, polianês.

R – Ele é nato de lá. Veio pro Brasil no tempo que a guerra acabou, não tinha nada, não tinha trabalho, então ele veio se aventurar no Brasil. Sem ter ninguém. Ele, minha mãe e um irmão de cinco anos quando veio pro Brasil, depois nós nascemos aqui, eu e minha irmã nascemos no Brasil.

P/1 – Mas a sua mãe é de Polignano também?

R – Também, da mesma cidade. E meu marido da mesma cidade.

P/1 – Qual é o nome da sua mãe?

R – A minha mãe Ana Torres.

P/1 – Ana Torres. Eles se conheceram lá.

R – Se conheceram lá. Até meu pai foi desertor. Ele trabalhou na guerra, depois ficou num navio, depois no trem. O trem ia passar em Polignano a Mare, ele largou o trem e foi encontrar com a minha mãe. E aí passou a polícia, pegou e meu pai ficou trabalhando no navio de castigo. Mas pra ele foi bom porque ele fazia comida pros maiores lá dentro, mas ele não teve direito ao dinheiro da Itália que todo mundo ganha, ele não teve o direito por causa disso.

P/1 – E como ele conheceu a sua mãe?

R – Ele conheceu minha mãe porque é pequeno, agora Polignano tem 15 mil habitantes, então antigamente as famílias se uniam e apresentavam os filhos, chamavam embachetta em Polignano. E aí entre família não tem erro, você conhece a sua, eu conheço a minha e foi assim. Todo o pessoal da Itália que casou naquela época era assim. Depois que meu pai conseguiu arrumar uma casa com três quartos, aí vim morar em frente onde está o sapateiro, bem em frente à Associação. Ele alugava dois quartos para os imigrantes que vinham jovens e as mães falavam: “Procurem onde tem da mesma nacionalidade pra vocês não estranharem”. Então na minha casa moravam cinco. Saíram ou pra voltar pra Itália ou pra casar aqui no Brasil. Tem um que ficou 11 anos em casa, ele me chama até de irmã. Ele fala: “Gina, nunca fui tão feliz como eu fui na sua casa”. Era como filho, cama, mesa, roupa lavada, comida. Era um filho que a gente tinha lá em casa. Pra mim era um irmão, né? Pro meu pai e pra minha mãe era um filho. E assim fomos levando. Eles pagavam, meu pai conseguia pagar o aluguel que era mais caro. Aí saímos do cortiço, senão não sei até quando estaríamos lá. Mas tudo com muita felicidade. Eu trabalhava no Navajas, saía correndo pra ajudar com a mesa, fazer a salada, fazer tudo, pra depois voltar no trabalho. E à noite passava roupa. Mas foi bom, bom demais.

P/1 – Vou querer mais detalhes disso, mas antes só queria saber um pouco mais dessa história que você falou do seu pai fugir do trem pra encontrar sua mãe. Ele estava trabalhando?

R – Ele estava trabalhando. O trem foi lá, não sei se foi levar munições ou o que foi levar.

P/1 – Ele estava no exército?

R – O meu pai ficou 14 anos. Aí depois ele saiu, as saudades eram tantas, ele largou e foi até lá. E ele não poderia largar, ele estava tomando conta daquilo. Acho que a paixão foi demais, ele largou e foi encontrar com a mulher, quando ele voltou a guarda estava lá. Ele ficou preso um tempo e depois puseram ele pra trabalhar no navio, fazer comida. Aí ele fazia a comida pros tripulantes e pra todo mundo. Até eu aprendi muita comida que ele fazia lá, até que era gostosa, viu?

P/1 – Ah, é? O que você aprendeu com ele?

R – Eu aprendi a fazer, pra ele chamava _0:06:48_, isso em Polignano, né? É uma comida que era comida dos presos. Era batatinha, fazia o molho de tomate. Depois que a batatinha cozinhou bem temperadinha, cozinhava o macarrãozinho, tudo de sacos, misturava e servia com queijo ralado. Meus filhos amam, eu faço até hoje. “Mãe, faz tempo que você não faz _0:07:12_ a _0:07:13_”. Aí eu faço e eles adoram. Era uma comida simples, agora pros comandantes era outra comida, não era todo dia a mesma, cada dia variava. Ele fazia berinjela, fazia pimentão recheado, tudo coisa sofisticada. Mas valeu.

P/1 – E depois desse navio, foi aí que ele quis vir para o Brasil?

R – Depois que liberaram, que acabou tudo, ele quis vir embora pro Brasil porque era difícil pra ele arrumar emprego lá. E minha mãe tinha um menino, depois nasceu o neném, e eles vieram embora. Eu nasci aqui no Brasil, na Fernandes Silva.

P/1 – Só pra terminar essa parte, eles falaram como é que foi a viagem pra cá?

R – Foi no porão do navio, como imigrante. Ele veio na imigração sem pagar um tostão. Aí ele veio, foi não sei quantos dias, mais de 20, 30, que demorava muito, eram cargueiros, paravam em todos os lugares mas chegaram, graças a Deus.

P/1 – Você nasceu aqui. As pessoas não nasciam em hospital?

R – Não, era tudo em casa. Não era maternidade, que nascia no hospital. Até vou te falar uma passagem, a minha mãe quando foi ter o quarto filho, ela morreu. Eu tinha um ano e pouco. Aí meu pai ficou isolado, triste, com três filhos, sem ninguém no Brasil que o pudesse acolher pra ajudar. Muitas famílias se ofereceram, então cada filho foi numa casa. Eu fiquei numa casa maravilhosa, minha irmã em outra e meu irmão em outra. Até que meu pai depois, como aqui era embachetta, arrumaram uma outra mãe pra nós. Maravilhosa! Que não era madrasta, não era nada, era mãe! Ela só ensinou amor, paixão e aí meus irmãos foram casando. Eu fui sabendo que não era mãe nata, mas de coração, eu sempre considerei ela, a vida inteira, porque uma senhora me falou, eu tinha 17 anos. No cortiço. Ela me falou, eu queria bater na mulher. Eu falava: “Não é possível! Quero matar essa judia. A minha mãe, não”. Ela só tinha palavra de amor. Eu falo pra todo mundo: “Eu sou desse tipo, agradeço a ela”. Porque eu também só sei dar amor, só sei dar uma palavra amiga pra quem precisa. Eu estava no hospital eu era procurada por todos, que eu tive um enfarte, né, você sabe, até pelos médicos. Porque eu gosto de falar e gosto de falar coisas concretas, coisas boas, que a gente passou, tem gente que nunca viu isso na vida, né? Mas felicidade grande,

muito grande.

P/1 – Qual o nome da sua mãe?

R – Que faleceu? Maria Filomena Dragoni. Ela ficou com nós até os 82 anos. Meus filhos tinham paixão por ela, eu escondia a identidade porque na identidade estava Ana Torres e ela não tinha. Quando ela faleceu eu falei: “Está na hora de eu contar pros meus filhos”. Amavam ela. Aí eu fui contar e eles: “Mãe, nós já sabemos há tanto tempo”. Antes que eu, eles souberam crianças ainda. Mas para nós ela é nossa nonna e será sempre.

P/1 – Bonita essa história. Mas você não falava pros seus filhos que ela não era sua mãe, é isso?

R – Não falava, escondia a identidade, porque ela era Maria Filomena Dragoni e a minha mãe nata, Ana Torres. Então eu não queria que eles vissem. Na escola, quando era pra fazer alguma coisa eu sempre ia com ela meio escondida, entregava na mão e depois pegava. Mas foi uma besteira minha. Mas a gente tinha a impressão que tanto que eles amavam ela: “Mãe, não importa, ela é a nossa nonna, foi a nossa nonna e será sempre”.

P/1 – Então você não conheceu a sua mãe de sangue.

R – Não. Tenho fotos em casa, amo ela também porque ela me deu vida, mas infelizmente a vida dela foi curta.

P/1 – E qual o nome dos seus irmãos?

R – O meu irmão é Vito Francisco Labate. E a minha irmã, Isabel Labate.

P/1 – Qual é a diferença de idade?

R – É uns três, quatro anos cada um. O meu irmão é mais porque ele veio de lá com cinco anos. E lá na Itália chamavam meu irmão de príncipe, porque ele era o único menino que tinha nascido na família deles e chamavam ele de príncipe, coitado. Mas ele veio aqui com uma vida diferente, se adaptou, trabalhou. Ele morreu com 77 anos. Tinha bons amigos. Depois ele casou, teve quatro filhos. E a minha irmã idem, casou também, teve um filho só. E eu com três.

P/1 – E como era o Brás nessa época da sua infância?

R – Olha, o Brás na minha infância foi maravilhoso. Todos eram amigos, só tinha briga quando jogava Palmeiras e Corinthians, porque tinha espanhol e italiano. Quando tinha Palmeiras e Corinthians eles se batiam. Dali a pouco estavam todos no bar tomando uma cervejinha, aquilo era passageiro. Agora não, agora é violência. Então eu sinto muita falta, a minha época foi maravilhosa. Os meus filhos se criaram no Brás na rua. Com três aninhos eu escrevia no papel e iam na venda comprar coisas, o que eu precisava: “Mamãe está atrasada, vai você”. Três aninhos. O meu filho fala: “Mãe, quando eu morrer, eu quero que minhas cinzas sejam jogadas na Fernandes Silva”. Porque eles se criaram ali. Eu falo pra ele: “Filho, a mamãe não vai viver”. Ele está com 50 anos. “Pede pros teus irmãos, vai recomendando a outras pessoas porque eu não vou estar aí nessa passagem”. Ele fala: “A senhora vai viver muito, a senhora graças a Deus está sempre disposta, sempre bem”. Mas a gente não sabe, né?

P/1 – E você brincava do quê?

R – Com 26, 27 anos eu brincava na rua descalça, era uma maloqueira. De queimada, de (belim e bequilim? _0:14:31_), roda, era uma coisa. A minha infância foi divina. Eu entrava em casa só pra comer, ficava o dia inteiro na rua. Ia trabalhar, depois que eu fiquei adulta, moça, ia trabalhar, à noite era nós na rua. Os pais sentavam na calçada olhando nós, não era necessário mas eles ficavam. Eles compravam um refrigerante no bar que era na esquina e ficavam lá sentados, olhando, até dez, dez e meia. Chegava em casa tomava um banho rápido pro dia seguinte ir trabalhar. Minha infância foi essa, nada de mordomia de passeio, não tive nada disso, mas foi boa.

P/1 – Mas aqui no bairro tem muita coisa, né? Tem o Mercadão, tem o Parque Dom Pedro. Você ia?

R – Quando fiquei adulta eu namorava no Parque Dom Pedro. Conheci um italiano e fui namorar no Parque Dom Pedro. Eu fui muito namoradeira, isso não nego e conto pra todo mundo. E esse meu marido veio morar em casa como imigrante, eu conheci ele na minha casa. A gente começou a namorar, ia no Parque Dom Pedro, lá tinha guarda, você não podia parar. Ele falava assim quando nós parávamos numa árvore pra dar uns amassos: “Vai, circulando! Não pode parar”. Mas era bom, era bom demais. Em oito meses eu casei porque ele morava lá, ficou morando lá. Aí não precisou mais dos hóspedes morarem lá em casa e a vida foi essa.

P/1 – Quantos anos você tinha quando você se casou?

R – Quando eu me casei? Eu tinha 28. E ele tinha 27, mais novo que eu.

P/1 – Vamos voltar um pouquinho então? Você se lembra na sua infância o que tinha no Brás? Quem eram as pessoas que você mais conhecia, barbeiro ou mais algum que trabalhava.

R – Era barbeiro, eram os bares, armazéns, tudo eram amigos. Eles descarregavam cebola, alho, batata, arroz, feijão e tinha as catadeiras, agora não tem mais.

P/1 – O que é isso?

R – Eles furavam o saco pra ver a qualidade e o feijão caía. As catadeiras juntavam tudo num cantinho, peneiravam e levavam pra cozinhar. Às vezes o chão era sujo, elas tinham esse cuidado. Mas tinha muitas, até brigavam quem ia pegar. Eles falaram, do armazém: “Você vai ser daqui, outra de lá. Nós deixamos pegar, mas tem que ter ordem”. Então elas carregavam, levavam seus cinco, seis quilos pra casa. Todo dia que chegava mercadoria elas iam nos armazéns e ficavam lá. Tudo gente de longe, não era do bairro, porque no bairro eles não davam nada, só deixavam a sujeira no chão pra depois você varrer e recolher, era isso. E a gente tinha que varrer e recolher porque chovia, quando elas não vinham era um horror.

P/1 – O que acontecia?

R – Acontecia que chovia e o pessoal escorregava, caía, sabe? Uma cebola, um arroz, um feijão umedecia no chão. E nós éramos tão malandras que nós ficávamos na janela pra ver quem ia escorregar, pra dar risada (risos). Era molecada, né, era uma farra, viu? Era gostoso.

P/1 – Tinha muito caminhão passando lá?

R – Muito, muito, muito. Quando terminou pra nós foi uma falta porque era divertido. Aqueles carregadores, muitos carregadores fortes que carregava aqueles sacos numa violência, entravam no armazém e saíam. Depois que começou o supermercado já compravam direto, já não vinham mais pra cá, tiraram das feiras os cereais, era só no supermercado. Então foi muito triste pra nós, mas a vida tinha que progredir, né? Foi o progresso e foi ótimo. A gente teve que conviver sem eles. Agora tem alguns, mas não muitos porque não dá. Muito pouco, chega um caminhão hoje e daqui 15 dias chega outro, até que eles vendem aquela mercadoria demora. Antigamente não, entrava e à noite saía, supermercado comprava bastante, agora supermercado já faz o estoque deles, né?

P/1 – E era muito barulho?

R – Era.

P/1 – E como era, de noite, de dia?

R – Era muito barulho, às vezes ficava até meia-noite, uma hora descarregando. Mas a gente acostumava, o barulho não me incomodava.

P/1 – O caminhão.

R – Tinha uns que abusavam, ficava aquele motor, mas a gente estava tão acostumada que nem sentia mais o barulho. Muito legal.

P/1 – E você conheceu algum chapa?

R – Muitos, muitos. Ó, eu passava na rua, era só meu nome que saía. Até hoje ainda tem alguns que já estão com bastante idade: “Oi Gina, você tá boa?” “Eu to ótima, que saudade” “Agora a gente não tá mais aqui”, porque vinham a passeio, né? Mas eles eram muito educados, muito, muito, muito respeito. Porque a gente era mocinha e eles paravam, conversavam, tudo com respeito, nada com maldade, nem malícia. A gente foi crescendo, foi ficando, um corpinho daqui, um corpinho de lá, mas era tudo com respeito.

P/1 – E como é esse negócio do seu pai? Ele era verdureiro, ele andava por onde que você acompanhava ele?

R – Ele andava no bairro vendendo a verdura. Nessa época as verduras vinham em maços enormes. Eles juntavam três, quatro verdureiros e eles mesmos tinham que separar e fazer os macinhos e vender. Não era como agora que você já compra tudo pronto. Na época não, eles tinham que fazer. Aí eles vinham, meu pai rodava pela Benjamim, pela Santa Rosa, pela Alfândega, pela Assunção, cada um tinha seu ponto. Depois que terminava de servir essa freguesia parava na porta de casa, aí quem não estava na casa vinha lá comprar. Era frutas, elas às vezes estragavam um pedaço, tirava manga pra cá. O palmito vinha comprido como vem nativo, não era como agora que você só compra palmito nos vidros, na época não. Então ele vendia, quando ele não conseguia vender ele cortava ele todinho, tirava aquelas cascas e a gente fervia com limão e comia. Era uma delícia. Agora palmito não tem mais gosto. Era muito bom.

P/1 – E você acompanhava ele?

R – Eu acompanhava.

P/1 – De criancinha já.

R – De criança.

P/1 – Você fazia o que, ajudava ele?

R – Ajudava. Eu sempre fui danada, esperta, moleca. Eu ajudava em tudo, carregava caixa. Porque à noite tinha que tirar o que sobrava, então na minha casa tinha uns degraus e nós empilhávamos tudo atrás da porta pro dia seguinte, quando ele encostasse lá, pegar novamente. E assim era a nossa vida.

P/1 – Ele comprava onde essas verduras?

R – No mercado. Tinha o mercadinho da verdura, Mercadão grande, e tinha essa praça que vendia verdura pros verdureiros. Era uma praça que era tudo no chão.

P/1 – No Brás mesmo?

R – No Brás. Lá perto do Mercadão. Tinha uma praça grande e a gente ia, eu gostava de ir. O meu tio tinha banca no Mercado.

P/1 – Ah, é?

R – Ele vendia laranja e abacaxi. Quando não saía ele ligava, a casa da minha tia tinha telefone, na minha não, meu tio estava um pouco melhor de vida. Aí chegava lá, ele telefonava: “Vem pra cá que não está saindo nada”. Corria eu, a minha prima, a minha irmã, descalças, maloqueiras. “O abacaxi tá doce, o abacaxi tá maduro!”, ele falava que nós vendíamos tudo. Porque sabe, eles estavam cansados, o dia todo, iam três horas da manhã pra lá. E nós não, corria, vendia. Quando sobrava caju, pêssego, o meu primo fez caixinha, que nem tem baleiro do cinema, que agora não tem mais, eles punha as frutas lá e nós ia vendendo nos armazéns. E faturava, viu? Quando sobrava, é uma fruta perecível, estraga muito rápido, né, caju, a pera, o pêssego, já estava maduro. Eles compravam, porque a gente insistia. Quando nós voltávamos com a caixa vazia, meu primo era mais malandro, era mais velho: “Dá o dinheiro”, aí davam pra nós e falavam: “Se sobra alguma coisa vocês pegam”.

P/1 – Olha só.

R – Era. Mas pra nós era tudo farra, só risada e mais nada. Hoje você não vê muito o povo sorrir, viu? Nós era só brincadeira, risada, não tinha um brigar com o outro, não tinha ter ciúmes um do outro, quem podia fazer, fazia, quem não podia não fazia. Mas era simples. E os pais unidos da mesma maneira, sentavam na porta, conversavam o que era durante o dia, o que nossos filhos aprontavam. Faziam lanche. Que nós não parávamos nem pra comer. Faziam lanche e nós comíamos todos juntos. Era uma infância muito boa.

P/1 – Você andava com o pessoal, de amigos, um monte?

R – Sim, moços. Eu te falo, com 25 anos eu trabalhava e era moleque de rua. Chegava do trabalho, fazia o que tinha que fazer e corria pra rua. Não tinha tanto carro, a rua não era asfaltada, era de tijolos.

P/1 – Ficava fazendo o quê?

R – Conversando, brincando, correndo, jogando queimada, de pique, agora nem sabem o que é isso, a molecada não sabe o que é isso. A nossa brincadeira era essa, um caía, ajudava a levantar, passava um mercúrio na perna e assim fomos levando.

P/1 – Como era o Mercadão nessa época?

R – O Mercadão era como é, agora está modernizado, mas era a mesma coisa. As bancas eram mais antigas, uns reformaram, fizeram tudo box, mas era a mesma coisa. O Mercadão era aquilo, muita coisa fresca, maravilhosa, era a vida do pessoal do bairro e de longe ir no Mercadão. As frutas sempre arrumadinhas. Agora é tudo mais moderno, mas no nosso tempo, do tempo que era, era bom.

P/1 – Quem eram as figuras do bairro nessa época? Que todo mundo conhecia?

R – Todo mundo se conhecia, um ia na casa do outro: “Hoje eu fiz essa comida, vem comer”. Sabe, muitos já morreram, a gente nem lembra mais, jovem também morria, mas a gente sofria quando alguém ia embora, sabe? Quando alguém partia, pra nós era uma tristeza, era um a menos na nossa convivência. Mas o que ia fazer, a vida é essa, né? Muito cachorro na rua. Muito cachorro, muito gato. Cachorro andava em banco, quando estava no cio então, não te digo nada, era uma loucura.

P/1 – E tinha muito italiano?

R – Nossa, tinha! Todos da mesma cidade, só de Polignano a Mare, não tinha da outra nacionalidade.

P/1 – Vocês faziam festas?

R – Fazíamos festas na rua, festa junina, cada um fazia uma coisa e juntávamos na rua pipoca, batata doce, quentão. A gente foi aprendendo a fazer tudo. E fazia na rua, cada um levava um prato, juntava, punha as bandeirinhas. Até sanfoneiro nós contratávamos. Mas era gostoso, muito bom, muito bom.

P/1 – E tinha carnaval aqui também?

R – Tinha carnaval, tinha corte dos carros na rua, era na Rangel Pestana. E a gente sentava tudo com cadeira na Rangel Pestana e os carros passavam. Era uma farra, lança-perfumes, agora lança-perfume é pra outra coisa, na época você nem sabia que era pra cheirar. Espirrava nos que passavam, eles espirravam na gente, confete, serpentina, era uma alegria! Agora não, acabou tudo, o carnaval fica concentrado em um lugar só, nem todo mundo que vai. Eu fui só uma vez no sambódromo. Amei, mas o da minha época era melhor.

P/1 – E ficava sentado numa cadeira dessas assim.

R – Numa cadeira, as crianças no chão.

P/1 – Vendo passar.

R – Vendo passar. E passavam aqueles carros todos decoradinhos, carros de passeio, não tinha carros alegóricos, eram carros de passeios que faziam seus enfeites. E aqueles sentados no porta-mala em cima do estribilho do carro e assim passava. A gente gritava, cantava, tinha samba de carnaval.

P/1 – Cantavam o quê?

R – Agora é só samba enredo, né? Eram sambas curtos dos carecas.

P/1 – Você lembra de alguma que você gostava?

R – Eu lembro dos carecas que elas gostam mais, mamãe eu quero, tem essas músicas, pra nós era a maior farra. A gente ia no baile do Palmeiras.

P/1 – Ah, é?

R – Ô! Fui tanto em baile do Palmeiras, como era gostoso!

P/1 – Como era?

R – O baile do Palmeiras? Era com uma banda e a gente ia, mas pulava a noite inteira, com respeito, não tinha sabotagem, não tinha malandragem. As roupas, o mínimo que podia ser, era uma frente única, bem fechadinha nas costas pouco aparecendo. E a gente se trocava fora de casa, de casa saía normal porque o pai não deixava por nem calça comprida, nem batom. Na época era batom Naná. Agora tem tantas marcas de batom.

P/1 – Como era esse Naná?

R – Naná era um batom pequeno com uma tampinha branca.

P/1 – Só tinha esse.

R – Só tinha esse. Cashmere Bouquet, os perfumes não tinha o que tem agora é melhor. Você tinha que se contentar, agora você escolhe, o que você gosta mais você usa. Naquela época não.

P/1 – Que cor é esse Naná? Era vermelhinho?

R – O Naná? Era vermelho, era cor de rosa, era escuro, aqueles carmim, muito forte.

P/1 – E vocês se arrumavam em casa, chegava na rua e já fazia outra coisa.

R – Saía com os primos. A gente ia a pé, no Parque Antártica.

P/1 – É longe, né?

R – E os lança-perfumes ficavam todos jogados quando terminavam. E tinha os garrafeiros que falavam: “Agora vocês vão ajuda a catar”, porque aquele lança-perfume valia muito, a embalagem. Depois que passou a ser vidro, elas eram mais gordinhas e comprida, então naquela embalagem os garrafeiros vendiam. Aí terminava o baile, nós ficávamos esperando pra catar todos aqueles lança-perfumes pra poder, ele enchia um saco e nós íamos embora a pé. Cantando, brincando, pulando, chegava num instante em casa. Morando aqui, hein?

P/1 – Era gostoso andar de noite?

R – Era.

CORTE NO ÁUDIO

P/1 – Era gostoso andar à noite então.

R – Ah, a gente ia a pé na igreja, na Semana Santa, toda molecada, pela 25, ia pro centro, não encontrava uma pessoa, era muito bom. Você podia dormir sentado na porta que ninguém... Na minha casa só um tinha a chave, aí puseram um cordão, puxava o trinco e entrava. Quando não, uma cadeira atrás da porta. Olha que época boa. Nossa, meu pai saía de madrugada, ia embora. Às vezes a gente tinha medo, quando começou a aparecer esses moleques a roubar botijão de gás, coisas assim, não era pra te matar, não. A gente já começou a ficar com medo. Quando meu pai saía a gente ficava na janela olhando um pedaço, depois ele virava pra ir no Mercadão e não dava mais pra olhar. Mas graças a Deus nunca foi assaltado, nunca alguém ameaçou. Você podia andar tranquilo na rua, com mochila, com bolsa, com tudo que ninguém mexia com você.

P/1 – Você andava muito, mas tinha ônibus, tinha bonde aqui também?

R – Tinha bonde, tinha ônibus e nós fazíamos mais a pé. O Parque Shangai era perto do Parque Dom Pedro, onde está o metrô agora. A gente ia a pé, juntava uma turma e todo sábado e domingo o nosso passeio era ir ao Parque Shangai. Eu tinha arrumado um amigo, não sei como fala, que nem os vale, o que nós fazíamos? Entravam umas pessoas com aquilo, depois nós passávamos por uma fresta do fechado do Parque Shangai e eles entravam tudo sem pagar. Era uma farra, isso pra nós era a maior alegria e com chuva ou sem chuva nós estávamos lá. Nos plays, que agora nem tem mais, fora os brinquedos são todos os outros tipos, mas era muito bom. Que pena que o mundo mudou. Não sei, outros lugares eu não conheço, é uma pena que o Brasil virou o que é hoje. A gente tem muita tristeza em saber o que foi e o que é.

P/1 – Mas me conta um pouco mais como era antes. Você falou de futebol. Você sempre foi palmeirense, já era?

R – Era tudo palmeirense, os que vinham de lá já eram palmeirense. Até agora você vai pra Itália a passeio, quando meu filho vai, ele leva a camisa do Palmeiras, do Brasil, eles amam. E tinha os corintianos, era na outra rua. Aí quando terminava saía na rua, se o Palmeiras ganhava ou o Palmeiras perdia era aquela briga. E nós ficávamos assustados, mas daqui a pouco estavam se abraçando, tomando cervejinha, passou.

P/1 – Os corintianos moravam em que rua?

R – Eu morava sempre na Fernandes Silva.

P/1 – Eles também?

R – Eles moravam na Lucas, os corintianos. Tinha famílias que tinha sete, oito filhos homens. Na minha casa era um só. A minha tia tinha quatro homens. E nós ficávamos apavorados quando saía na rua, mas depois nós fomos nos acostumando porque não tinha mais do que isso, era um soco, um pontapé, um empurrão e acabava naquilo.

P/1 – Você ouvia no rádio?

R – No rádio. Não tinha televisão. Quando televisão foi um pai de um amigo meu que comprou na Fernandes Silva. E ele chamava, a gente assistia ao Arrelia, eu já era bem adulta. E depois o rádio era aquele rádio meio redondo. Quando aconteceu a guerra que você não podia ter rádio, blackout, você não podia ter nada disso. Você não podia ouvir nada. Getúlio, você não podia ter na parede.

P/1 – Ah, é?

R – É! Toda casa tinha um presidente italiano, tinha do Brasil, tinha que tirar, esconder tudo, porque se os guardar pegavam o pai ia preso. Então nós ficávamos tudo em volta do rádio, escutando. O blackout era terrível.

P/1 – O que é o blackout?

R – O blackout é que apagava tudo, todas as luzes à noite, não tinha uma luz acesa e eles andando.

P/1 – Os guardas.

R – Os guardas.

P/1 – Por que eles faziam isso?

R – Faziam isso porque não queriam que os italianos ouvissem ou favorecessem, sabe? Então a gente vivia assustado naquela época. Quando terminou foi uma alegria.

P/1 – Em 45.

R – Nossa mãe do céu. Aí começou o pessoal, meu tio já comprou televisão, o pai demorou mais um pouco. Coitado, meu pai o que ganhava era pra comer e pagar o aluguel. A gente tinha os amigos, não se perdia, não, estava na casa dos amigos e assistia tudo.

P/1 – Como era a casa que você ficou bastante tempo, a que tinha os quartos. Descreve ela.

R – Eu fiquei num cortiço até meus sete, oito anos. Depois eu mudei pra outro cortiço e fiquei até meus 20. Depois dos meus 20 anos que meu pai alugou a casa que vinham os imigrantes morar e deu pra pagar. Tinha três quartos, dois ele alugava. Em cima tinha outro quartinho, então eles punham duas, três camas em cada quarto, que eram grandes e assim era a nossa vida. Boa.

P/1 – Boa, né?

R – Boa.

P/1 – E essa casa que seu pai alugava, como ela era? Você entrava na casa.

R – Você entrava na casa e tinha quatro degraus, uma sala aí, um quarto aqui, outro quarto lá, a cozinha. Subia uma escada, que era lavanderia, tinha outro quarto lá em cima que também morava gente, tinha que subir pra lavar roupa. E era uma banheiro só. Aí foi que eu tive banheiro. A gente corria antes que eles vinham do trabalho. Eu saía do trabalho cinco horas, cinco e meia, era pertinho, era na rua do Gasômetro, chegava e já tomava meu banho antes deles, porque tinha que deixar para eles chegarem e tomarem seu banho.

P/1 – E como era com seus irmãos? Vocês andavam juntos sempre?

R – Sim. A diferença de idade, meu irmão foi crescendo, arrumou outros amigos, amigos que tinham posse de armazém, que chamava Noroara, o forte dele era amendoim. E o Luca, meu marido, trabalhou com eles depois que eu casei. Mas o meu irmão tinha esses amigos, tinham carro, levavam ele pra passear, senão era só no bairro, só na redondeza, né? Esse amigo levava meu irmão passear. Até hoje eles vêm almoçar e perguntam do meu irmão. “Nossa, seu irmão era maravilhoso” “Vocês também, vocês faziam a vossa parte, ele só tinha que agradecer, não é?” E foi assim.

P/1 – Quem era grande na zona cerealista nessa época? Você se lembra?

R – Na época era Noroara, Lamano, não existem mais. Depois que foram vindo os outros que agora eu não lembro o nome. Mas eles moravam no Brás, depois que foram comprando na Aclimação. Era só barês na Aclimação, só de Polignano a Mare. Agora não tem mais. As casas grandes. Agora mudaram, depois Morumbi, Moema, mas eles eram legais. Você precisava de alguma coisa eles tinham dinheiro mas se favoreciam, empréstimo, pediam dinheiro a juro. Se meu pai tinha qualquer dinheirinho corria pra dar no juro: “Ah, vou comprar uma casa”, mas nunca chegou a isso. Toda a vida pagou aluguel. Ele emprestava pros outros, mas não comprava. Era preferível guardar em casa e ter o dinheirinho, né, o juro era tão pouco, eles eram muito sabidos, né? Eram mais estudados, inteligentes, quem tinha os armazéns. Mas vivemos, nunca faltou nada em casa.

P/1 – Vocês comiam muito das coisas que tinham na zona cerealista? Vocês chegaram a ver coisas novas chegando na zona cerealista, alimentos novos?

R – A gente viu chegar na zona cerealista os armazéns de laticínios, que não tinha, só tinha no Mercadão. Pra você comprar um laticínio, um cabrito, tudo no Mercadão. Um salame, uma linguiça. Aí depois começou a zona cerealista na Santa Rosa. A gente ia lá, era mais em conta as azeitonas. Depois abriram umas pra cá. E assim foi crescendo, os armazéns de cereais foram ficando pequenininhos, a produção maior aqui é batata, cebola e alho, não tem mais cereal, cereal acabou muito cedo. Então agora você anda por aí e você vê, é só cebola, alho e batata.

P/1 – Tempero também.

R – Tempero tem muito. Muito tempero que o pessoal vem comprar, tem essas coisas, mas cereais não tem mais.

P/1 – E fala um pouco como é que você conheceu a Associação São Vito. Ela já existia quando você veio pra cá?

R – A igreja? Era uma capela, pequenininha. Depois os polianeses foram vindo, a igreja de São Vito tinha na terra deles, na Itália, em Polignano tem duas ou três igrejas de São Vito maravilhosas e eles começaram a se agrupar, fizeram uma associação, aí foram crescendo, virou igreja. Em cima construíram cinco andares. Era pra ser médico, odontologia, tudo que era de médico, mas não foi feito nada porque ninguém ia pra doar, era tudo doação. O médico tinha o seu trabalho e não podia, então aquilo foi ficando. Depois começou com escola. Eu comecei pequena, a gente fazia bingo. Com sete, oito anos eu já era da Igreja São Vito. Fazia bingo. Quando vendia selinho, agora não é mais selinho, agora é carnê, né? Vendia selinho nos carros que passavam pra ganhar dinheiro pra eles poderem levantar. E foi isso. Até quando teve os fundadores mais ricos tinha uma placa enorme com os nomes deles na igreja, que depois tiraram, de mármore, bem na entrada da igreja. Eles foram os fundadores que patrocinaram com muito dinheiro, senão não tinha acontecido aquilo, aquela igreja bonita como está.

P/1 – Isso é a igreja de São Vito aqui, né?

R – Começamos a fazer quermesse. Montava no sábado, no domingo à noite desmontava porque tinha os armazéns, era muito trabalho. Meu filho com quatro, cinco anos carregava as lonas na cabeça. Porque tinha que desmontar, eles tinham que pôr no armazém lá. Agora não, agora é tudo diferente, tem os boxes. Na rua ainda é difícil, mas tudo na rua é arrendado, não é nada como nós aqui agora que construímos aqui, graças a Deus, a nossa festa é muito boa. E quero que Deus me dê muita saúde para eu continuar sendo voluntária, sou voluntária há 54 anos e agora ninguém mais quer ser voluntário. Você chama alguém pra vir pra ajudar: “Quanto eu vou ganhar?”, então a festa se torna pequena porque sobra pouco. E aí é um monumento, tem muitas despesas, então não sei se isso vai durar muito tempo. Tenho muita tristeza. Espero que cabeça jovem que vem agora continue com bastante amor como a gente teve.

P/1 – Mas como é que começou a Associação?

R – A Associação começou com os imigrantes que vieram da Itália, começaram a se agrupar porque em Polignano sempre teve associação. Lá tem associação de aposentados, associação de jovens, associação de tudo. É pequenininho. Eles se admiram, quando vêm pra cá passear de ver que monumento é isso, porque o deles é um quadrado, eles se reúnem, ficam até na porta sentados. Quando eu fui lá era assim. E eles vêm aqui e ficam encantados. Falam: “Como a festa é, que continue”, porque acabando vocês não sei, não. Ninguém mais, é muito trabalho. Por fim de semana é 250 quilos de fígado cortado em cubinho, não sei se você conhece, chama guimirela. Você já comeu? É um churrasquinho assado na brasa, não tem nos restaurantes, nas churrascarias, só tem aqui. Aqui veio de lá. Então é aperfeiçoado como é feito lá, é igual. Então vem italiano, japonês, espanhol, baiano, amam! Médicos. Amam vir aqui pra comer isso. Eu corto todo esse fígado e as mamas enrolam. E depois à noite a gente espeta pra poder servir. Muito bom, muito bom.

P/1 – Mas a associação aqui no Brasil, essa que a gente está, tem quantos anos hoje?

R – Noventa e sete.

P/1 – Então quando você nasceu já existia.

R – Já existia. Aí eram os pais que lutavam mais, vinham, ajudavam. Depois os filhos foram crescendo, os pais foram ficando com mais idade, aí passou pra nós.

P/1 – Então quando você estava crescendo já era aqui nesse espaço?

R – Não, era na rua.

P/1 – Era na rua mesmo.

R – Era na rua. Montava barraquinha no sábado de manhã pra funcionar à noite. E era o quê? Cinco quilos de fígado. Olha a diferença! Tinha uma barraca de doce, tinha uma barraca do coelho, essas coisas. Tinha aquilo de jogar a bola na latinha. Depois foi vindo mais barracas, mais coisas, veio churrasco. Mas na época era muito pequenininho. E era feliz, se ganhava mil reais nós estávamos feliz.

P/1 – Era mais pra região mesmo.

R – É pra região, pra ajudar a igreja. Porque na época não tinha como tem agora de pedir, passar sacola. Apesar que a nossa paróquia não dá muito lucro porque o povo não é de posses, dá o que pode. Mas nos outros bairros era de 50 reais dentro do saquinho, de dez pra cima, porque tem gente de mais posse. Então é bom ajudar porque a igreja não vive, não tem se não ajuda. O dízimo agora, antigamente não tinha dízimo, agora tem.

P/1 – E a festa de São Vito foi crescendo ao longo do tempo.

R – Ela foi crescendo. Nós estamos aqui que tem creche, foi doada pela prefeitura acho que há uns 25 anos.

P/1 – Esse espaço.

R – Esse espaço. Aí foi a creche, tem as crianças não sei se você já conversou lá, tem a creche com as crianças, então a gente está feliz porque estamos cooperando com o progresso, né? Precisa de creche, tem pais que trabalham que não tinha, aí os pais vêm e deixam. Meus netos ficaram aí.

P/1 – Ah, é?

R – É. Antigamente era com quatro meses, agora é com um ano. Então nesse ano o pai tem que se virar pra deixar o filho. Com quatro meses já era menos, então arrumava alguém que ficava quando não tinha creche pra poder trabalhar, porque pai e mãe trabalhavam. Então graças a Deus meu filho trabalhava, meu caçula, meus dois mais velhos não me deram neto, meu caçula deu. Então os dois trabalhavam e foi posto aqui. Mas tudo legalizado pela prefeitura, não porque eu trabalhava aqui tinha oportunidade do meu ser primeiro, não, fazia inscrição, quando era chamado ia. Até hoje. Eu acho justo, se você tem um filho que precisa tem que fazer sua inscrição e esperar sua vez, não é? Todo mundo fala: “Ah Gina, você trabalha lá, é fácil”. Não é fácil, tudo é na honestidade, não é?

P/1 – E você tem alguma história que você lembra que te marcou com relação à festa? Sei que todas são marcantes, mas alguma coisa que você...

R – A nossa festa marcante foi quando passou pra cá. O chão era tudo de terra batida porque aqui era um lugar que os caminhões que pernoitavam guardavam dentro de estacionamento. Então era só de caminhões, pedrilho. Quando nós começamos não tinha nada disso, era separada com madeira as barracas, foi muito marcante. Pra nós foi uma alegria maravilhosa porque já não tinha tanta chuva, se chovia tinha as lonas, chovia aqui, cobria, chovia lá, cobria. Depois foi crescendo, foi fazendo pouco por dia, foi feito um negócio, um arco, sabe? E esse arco foi progredindo, tanto serve pra nós trabalharmos na festa como quando as crianças da escola, na creche, os maiores descem, brincam, fazem a festa no palco, se formam, é muito bonito. A nossa alegria é maravilhosa.

P/1 – Fala pra mim como é que vocês fazem a festa, do começo até o fim. Começa quando, quando vocês começam a preparar.

R – Esse ano vai começar 21 de maio e vai até a primeira semana de julho. Então nós começamos a preparar, por exemplo, dia 14 já começa porque não pode deixar as coisas muito tempo. Aí faz o fígado, faz a berinjela, o churrasco já encomenda tudo, vamos se preparando. No começo nós fazemos almoços até acho que sete ou oito de maio, depois para eles poderem montar, fazer a decoração e assim dá tudo certo. A gente pensa: “Não vai dar”, na noite não estar nada pronto, mas chegou o primeiro dia, que é maravilhoso, a festa está em andamento, todo acomodado, tudo guardadinho, é só o que vai usar na festa, muito bom.

P/1 – E que quantidade vocês fazem de macarrão, como é de molho?

R – Ah, os molhos? O nosso molho é só feito de tomate. Muitas firmas oferecem as latas de molho pronto, mas nós não aceitamos, porque tem que pôr a propaganda. Nosso forte é o molho que é feito de tomate. Sessenta, 70 caixas por fim de semana. Macarrão não sei se é dois mil quilos, vai um monte. Você já veio na festa? Precisa ver o povo que vem. Porque essa parte, aqui é a cantina, tem que fazer reserva e a parte de lá só tem mesas pra apoio, é de pé, o pessoal compra, leva, tem aqui, tem lá, come e depois sai, levam pra casa, por isso a porta é entra e sai. Aqui não, aqui já é contado. Já tem reserva.

P/1 – E enche assim?

R – Lotado, pra você conseguir é briga. Não é lotado tanto no início porque ainda o pessoal não está acostumado com festa junina em maio, agora pra junho é lotado, até o final. Se continuasse julho seria julino, seria ótimo, mas não dá pra tanto, o pessoal cansa também, porque move muito as pessoas pra trabalhar.

P/1 – Então a festa de São Vito junta com festa junina e vai...

R – Vai até festa junina, a nossa festa é de São Vito, o que tem é de festa junina, né? Por isso que é junho. O pessoal espera junho pra festa junina.

P/1 – Aí vocês mudam a comida ou fica a mesma coisa?

R – Não, a nossa comida é ficazzella, macarrão, guimerela, antepasto, ficazza, polenta com linguiça, é assim. Primeiro tinha porpeta, mas não tem elementos pra trabalhar, a porpeta é feita na hora, saía muito,viu? Mas ninguém mais quis trabalhar nisso. Mas mesmo assim, graças a Deus, só as ficazzella, tem duas barracas de cada. E guimerela também tem duas, uma pra cá e uma pra lá. Eu trabalho na de lá.

P/1 – Em guimerela?

R – É mais agitado. Aqui é mais tranquilo. Eu gosto onde tem agitação. Moleza, calma, ficar assim esperando não é comigo.

P/1 – E como é que faz a guimerela?

R – A guimerela nós fazemos na terça-feira. Pode congelar, né? Então a guimerela vem uma peça de fígado, tira a pele, corta tudo em cubinhos pequenos, dois centímetros cada um dos dois lados. Aí elas enrolam uma renda que chama banha rendão. Parece um lanchinho, o pessoal que não conhece pensa que é goiabada enrolada no queijo, dá essa impressão. A gente arruma tudo num tacho, cada tacho tem 15 quilos pronto, quando chega a peça tira pra descongelar na noite. Por exemplo, pra sábado nós tiramos na sexta-feira. Aí cobrimos bem e ainda fica congelado, mas já dá pra você trabalhar. É feito dez pedaços daquele com folha de louro, só vai sal e folha de louro, não tem tempero nenhum. Aí a gente vai acumulando num tablado e vai na brasa. Então tem que trabalhar com uma garrafa d’água porque a renda derrete, cai no fogo e pega fogo. Tem que trabalhar sempre com uma garrafa pra não queimar. Não pode queimar. O fígado, se queima, fica amargo. Então o pessoal vem, é suculento, é macio. Pra te falar um negócio, eu tenho um médico que faz transplante de fígado, ele falou: “Mas isso pra mim não existe”. Ele vem aqui e come quatro, cinco espetos. Cada espeto tem dez pedaços. Ele fala: “É a coisa mais louca”. Vem muito médico. Tem o meu ginecologista, doutor Galo, também é apaixonado. Nossa, como eles gostam! Quem prova não acredita o que é a maciez do fígado.

P/1 – E você fica fazendo e atendendo.

R – Desde que eu comecei a trabalhar na festa eu comecei fazendo fígado. Primeiro eram cinco quilos, fazia na hora e servia na hora, acabava rapidinho, mas a cabeça deles era aquela, fazer cinco quilos. Depois eu passei pra dez, foi aumentando, agora é 250 quilos.

P/1 – Por fim de semana?

R – Eu que encomendo no Mercadão. Eu quero fígado especial, então vem fígado importado, não tem nervo no meio. Porque se você vai começar a tirar o nervo e se você comer um pedaço daquele que tem nervo você tem que tirar da boca. Então tem que tirar todo o nervo. Então é fígado especial. Se compra na feira é um fígado rígido. Então quando você faz ele fica duro. Quando termina nós não podemos comprar em nenhum lugar porque até pra nós fazermos é difícil. Então tem que ser o fígado macio que nas feiras não tem. Mesmo que você vai fazer na sua casa, esse fígado que você compra no Mercadão é maravilhoso. Eles não trabalham com fígado se não é importado. Eu tenho que encomendar uns 15, 20 dias antes pra eles poderem fazer um estoque, né?

P/1 – Como é o dia da festa, tem música ao vivo?

R – Tem banda, tem sim música italiana. E de vez em quando toca algum forrózinho, um samba, o pessoal gosta. E dançam pra caramba.

P/1 – Ah, é?

R – Ooooo. É uma maravilha. Tem duas bandas, 15, primeiro uma, depois na segunda parte é outra banda. Primeira banda, esqueci o nome. Menino, essa que vem na segunda tem uma sanfona, ela desce e vai tocando. Aí forma aquele cordão grande, tudo com os pandeiros na mão, aquilo dá uma alegria maravilhosa. É muito bom, muito bom.

P/1 – Você está ansiosa pra chegar?

R – Eu tô. Não vejo a hora. Fiquei doente agora, né, eu pedia só pra São Vito: “Se você me quer me dê mais um tempo na vida”. E ele me deu, porque precisa de mim ainda. A hora que chegar, muito triste, mas vai acabar.

P/1 – Você pede pra São Vito muita coisa?

R – Eu peço pra São Vito, pra todos os santos, mas São Vito é que a gente tem mais intimidade, vamos falar assim, a gente tá muito presente com ele. E ele atende.

P/1 – Ah, é?

R – Atende. Pode pedir uma graça pra ele que ele atende.

P/1 – Ele te atendeu muito já?

R – Muito. Muito. Principalmente na saúde e na criação dos filhos, para que crescessem crianças sem compromisso nenhum, sadias, estudiosas. Ele tinha 15 anos, o São Vito quando faleceu. Ele é dos jovens. Drogas. Quantas mães escrevem nos bilhetes dos filhos que se drogam? Até a gente ajuda, ajuda essa molecada.

P/1 – Como é São Vito? Ele é padroeiro de quê, de onde ele vem?

R – Ele é de Polignano, foi achado na água, como Nossa Senhora Aparecida. Acharam ele, um São Vito todo quebrado, montaram ele e depois foi crescendo. Mas na Itália, ele é muito procurado, a festa deles é no mar, é maravilhosa. Aqui como nós não temos mar, a abertura nossa é maravilhosa. O pessoal na abertura fica doido pra vir. E o encerramento também é muito lindo, tudo é alegria. Tudo é alegria, graças a Deus não tem nenhuma briga. Com tanto povo, bebe seu vinho, bebe sua cerveja, não tem uma briga. Por quê? Ele nos está protegendo, a proteção dele é muito grande. Você já pensou acontecer uma briga com tanta criança, tanto povo? É triste. Você fica de olho fechado. A gente olha e fala: “Meu Deus, que maravilha”. As filas da rua chegam a encontrar com a de cá, dá toda a volta. Porque vem bastante gente que compra pra levar pra casa e vem pra comer também o macarrão, tudo. Ó meu neto! Que lindo, saiu da escola.

P/1 – Como é que você tira força pra fazer tudo isso?

R – Ah, por eles! Por Jesus, por São Vito, por tudo. Estou sempre disposta. E nunca falei palavra que eu estou cansada. Elas não se conformam: “Gina, você não se queixa de nada”. Pra quê? Se eu me doei a isso, o meu negócio é ser voluntária, como gosto de ser num hospital, mas não tenho tempo. Se eu tivesse tempo, nossa, eu seria uma voluntária de muita posse porque eu gosto de dar muita palavra, sabe? Se um doente está no hospital e não tem um amigo que venha, que mora longe, tem um voluntário que vai lá e fala. Eu fiquei internada 15 dias. Menino, você não queira saber o que eu fiz no hospital.

P/1 – O que você fez? (risos)

R – Ah, de procurar, de saber: “Você tá bem, precisa de alguma coisa?”. Eu estava lá, mas eu queria ajudá-los. Os médicos não se conformavam. Eu queria, na minha vida, estudar Medicina. A minha paixão é essa. Mas pai italiano, filha mulher não pode. Só filho homem. E meu irmão não quis saber nada de escola. Nós levávamos ele com minha mãe na entrada, esperava a saída, ele tinha saído pela outra porta e não frequentava a escola. Pra ele aprender e não ter a carteira com o dedo nós fomos praticando, ensinando ele a fazer o nome dele. Eu falava pro meu pai: “Tá vendo, o senhor não me deixou”. Depois eu fui fazer um curso prático de Enfermagem. Aí aplicava injeção, fazia curativos. Minha vida, minha paixão. Até o pessoal que é médico fala: “Gina, você daria, você tem essa coisa dentro de você”. Tenho mesmo, adoro! Às vezes o farmacêutico fechava pra plantão e quem tomava antibiótico tem os horários: “Não se preocupa, você vai na Gina”. Aí vinham tudo lá: “O seu Ernesto mandou” “O seu Ernesto mandou e eu atendo”. Ah, que paixão!

P/1 – Você sempre quis ser médica, ajudar as pessoas?

R – Sempre. Mas infelizmente, a mulher tirava o diploma era ou costurar, ou aprender a fazer sapatos, o que tinha, o bairro era isso. Mas costura eu nunca gostei, sapato eu detestava, eu fazia aquilo porque tinha que trabalhar, mas não era do meu agrado.

P/1 – Você foi pra escola até quando?

R – Até tirar o diploma, não repeti nenhum ano. Minhas notas eram excelentes. Fui no Grupo Escolar Romão Puiggari. Orlando Simonetti o diretor, maravilhoso. Eu faço amizade fácil, não sei se você já reparou, eu gosto de falar e faço as amizades muito fácil. Em ponto de ônibus, em supermercado, na fila, converso com todo mundo. Eu nasci pra isso.

P/1 – Como é que foi essa escola, foi legal?

R – Foi legal, foi legal. A escola era ótima, era estadual, mas muito boa, você aprendia coisas maravilhosas. Agora não sei se o ensino está dessa maneira, mas não está tanto, porque a gente ouve tanta coisa que fica até com dó de quem tem que estudar. Mas era muito bom, você aprendia, os professores davam a alma pra ensinar. Se fosse preciso dar uma reguada, dava, pra você aprender. Eu como era falante, eu ficava de costas pra professora, de joelho na cadeira falando com a da frente. Uma vez ela viu e me deu uma reguada aqui, dona Judite. Eu falei pra ela: “Ai” “Você tá errada” “Tô mesmo”. Imagina, de costas pra professora? Cabeça de criança, né? Mas eu gostava. Mas sempre fui boa aluna.

P/1 – Você aprontava muito, mas era boa aluna.

R – Ah, boa aluna. Nunca meu pai ou minha mãe foram chamados pra qualquer coisa porque eu era boa aluna. Sempre ajudava, sabe? A quem estava mais pra baixo na escola, a gente procurava ajudar. A minha vida foi essa, eu nasci pra isso.

P/1 – Você ia andando pra escola também, ia e voltava andando?

R – Eu ia das 11 às duas. Cada um tinha um horário, né? Começava das sete e ia até às seis da tarde e depois tinha à noite. Mas nós sempre estudamos de dia.

P/1 – E você se lembra de algum professor que te marcou nessa época. Quem eram os professores, não tinha muito...

R – Eu adorava as professoras, eram todas boas. Bravas. Tinham razão de serem bravas pra criança ter um pouco de receio e respeitá-las. Agora ninguém respeita mais, ninguém quer mais ser professor, porque eles avançam na professora. Meu sobrinho é formado em Biologia, ele foi dar aula. Menino, ele teve que repetir um aluno, o pai desse aluno foi na escola ameaçá-lo: “Meu filho não pode repetir” “Mas o seu filho também tem que ter frequência na aula. Ele não presta atenção”. Agora eles querem que passe todo mundo, sem sabedoria. Então como que acontece? Era melhor a época que eu era do que agora. Eu pergunto pros meus netos: “E a professora? Respeite-a” “Vó, vou gravar, a senhora fala toda hora isso, todo dia” “Falo. Primeiramente respeitar a professora porque você está fora de casa e ela é como a sua mãe e o seu pai”. Agora os pais não falam nada disso, acham que o professor tem obrigação de dar a educação. Não é? Professor está lá pra te ensinar, não pra dar a educação que você aprende em casa. Não é? A vida mudou, tivesse mudado pra melhor do que eu tive a minha infância do que como está agora. A gente esperava isso, mas não aconteceu.

P/1 – Mas nessa época quando você começou a namorar, na adolescência, como é que foi essa passagem?

R – A passagem foi maravilhosa. Tinha o parque, que a gente ia no Parque Shangai, sempre saía com namorado. Se não tinha arrumava lá e você saía com ele. Eu fui muito namoradeira, MUITO. As amigas acham graça, como que eu fazia aquilo. Tinha vez que eu marcava encontro com três, quatro. Uma vez eu não podia sair de casa, que eles estavam um numa esquina, outro na outra e outro na outra. Aí eu enfrentei, falei: “Olha, não vou sair com você hoje”. Não acontecia nada, eles se conformavam. Aí eles iam na igreja que ofereciam as músicas. Aí pra mim um cara que era meu namorado ofereceu “Hipócrita”. Ele tinha razão porque eu era hipócrita mesmo. Depois eu conhecia nos bailes, matinê, só tinha matinê. Quando tinha nos clubes à noite os pais não deixavam. E nem a matinê. Eu inventava que tinha uma procissão, que tinha uma igreja longe e meu pai acreditava. E eu ia nos bailinhos. Ai que delícia! Sempre gostei de dançar. Depois que eu fiquei jovem, adulta, já com namorado fixo eu falei pro pai: “Eu te enganei muito. Porque você queria, a gente não fazia nada de mal, mas vocês não deixavam e a gente era obrigado a enganar. Eu gostava de dançar”. Ora. Minha vida era uma baile. Nossa senhora. E saía com namorado, um fixo e outro fora (risos). Mas tudo na decência, no respeito, beijinho não fazia mal pra ninguém, o resto nada.

P/1 – E o que você gostava de dançar, que músicas?

R – Ah, era muito bolero, rumba, muito samba, tudo isso. Glenn Miller, que tinha aquelas músicas de sax. Ai que delícia! Muito bom! Eu era uma que não parava na cadeira. Tinha uns que quando tocavam tango ficavam na porta do banheiro. Eu não queria dançar sempre com o mesmo, ele chamava Goirino. Eu também gostava de dançar com ele porque ele era uma dançarino nato, mas eu queria dançar com os outros também. Aí quando eu saía pra lavar, meu Deus do céu, entrava no banheiro, saía e ele lá na porta esperando. Isso era baile de clube à noite que eu arrumava uma família que me adotava pra levar. Meu pai não levava, mas eu ia. Eu cantava todo mundo. Eu gostava, né, não tinha outro divertimento, ou era o Parque Shangai, ou era você passear no Parque Dom Pedro durante

o dia, brincar lá, não tinha nada mais.

P/1 – E como é que se paquerava nessa época?

R – Ah, se paquerava com uma piscada, cantava, sorria. O sorriso era tudo, você compra qualquer pessoa, né? Ser falante, ter um sorriso, te acham simpática. Às vezes a gente não é bonita, mas tem simpatia que agrada a pessoa.

P/1 – Era sutil, assim?

R – Era. Aqui, eles vinham e falavam: “Nossa, Gina, às vezes eu vinha almoçar aqui por causa tua”. Você agrada. Eu nasci assim. A pessoa tem que nascer, não pode ser grossa, você tem que ter o seu tipo de agradar. Não com interesse nenhum, agradar a pessoa fica feliz que acha que você está agradando e recebendo bem. Mas agora, meu Deus do céu! Eu sofro com isso, viu? Eu queria que todos fossem como era na época. Algumas não eram, porque tem gente que é muito fechada, mas era a natureza da pessoa, eram legais, a mesma coisa. Mas eu sempre ia na frente, abria as portas pra tudo (risos).

P/1 – Agora, você se lembra o dia em que você conheceu o seu marido, o Luca? Como é que foi, você estava em casa.

R – Então, ele estava em casa, comia, mas eu não sabia que ele tinha interesse em mim. Pra mim ele morava lá, tudo bem. Aí teve um sábado de aleluia que tinha missa meia-noite, antigamente era meia-noite, a a gente ia porque saía a procissão do Jesus ressuscitado. Quando a gente vinha embora as minhas amigas falaram: “Vamos em casa abrir um ovo de páscoa”, ela morava na mesma calçada que eu. Aí nós fomos e ele foi também. Aí no abrir o ovo de páscoa ele falou comigo que queria namorar. Eu falei: “Primeiramente você fala com meu pai, porque você mora na minha casa”. Eu tinha que sair, né? Ele falou com o meu pai depois de uns dias. Meu pai falou: “Não tem nada morando aqui os dois, eu quero respeito. Você pense só no respeito, mais nada”. Então durou oito meses, casamos e estamos até hoje, 54 anos juntos. Me deu três filhos maravilhosos, uma menina e dois meninos. Meus filhos são educadíssimos, todos formados, graças a Deus, porque eu lutei, lutei pra eles serem. Na infância eles estudaram na Caetano de Campos, na Praça da República. Um entrou pelo sorteio, faz o sorteio na roleta, até estava grávida do outro, é tudo mãe, coronel, era tudo isso. Eu gritava tanto quando chamou o número do meu filho, foi número 111. Até eu falo que o Maluf ajudou nisso porque ele é 111 (risos). Aí, todas as mães depois do meu filho começaram a gritar. Falei: “Tá vendo, uma tem que se iniciar”, porque era uma alegria. Com tantas crianças pra estudarem no Caetano e o meu filho ser sorteado, ô!

P/1 – Era o melhor colégio da época, né?

R – Nossa. E as professoras eram maravilhosas. Quando o meu filho formou no quarto ano tinha que fazer admissão pra entrar no ginásio. Aí tinha uma professora de Matemática, ela queria a caderneta do meu filho como exemplo. Eu falei: “Ah, eu dou pra você, mas e guardar essa lembrança?”, não tinha uma falta, não tinha uma repressão, tudo tem. Porque a pressão em casa era muito grande, eles só podiam brincar na sexta-feira à noite, a liberdade deles, sábado e domingo. De segunda à sexta era estudar. Eu ia nas reuniões e elas falavam: “A senhora não precisava vir” “Não? Mas se você está perdendo o seu tempo eu tenho que vir porque vocês estão orientando meus filhos”.

P/1 – Você se casou com 28 anos, né? Antes disso você já trabalhava e trabalhava do quê?

R – Com calçado. Depois eu fui trabalhar no Mercadão, depois que o Navajas foi para o Ipiranga, quando chegou o Luca e o meu pai não deixaram eu ir pra lá. Mas eu tinha que completar a minha aposentadoria. Aí meu primo tinha essa banca no Mercado, ele falou:

“Eu te registro e você vem. Quando você pode vir”, que eu tinha os filhos pequenos, “você vem. Quando você não pode, você tá pagando a tua aposentadoria”. E foi assim que eu me aposentei, com um salário mínimo, que é uma beleza, graças a Deus, mas tenho. Pros remédios dá. Agora pra comer tem a do Luca. E eu moro com meu filho, não pago aluguel, não pago nada, então dá pra ter uma vida mais tranquila, senão, não daria.

P/1 – Você começou a trabalhar nesse Navajas?

R – Eu fui com nove anos.

P/1 – Nove anos?!

R – Não podia, porque passava fiscalização e não podia, era com 14 anos. Eles me escondiam dentro do quartinho, no almoxarifado. E eu me escondia lá e eles não viam, passavam, passavam pelo escritório e depois que eu saía pra trabalhar. Com nove anos eu comecei a trabalhar.

P/1 – Era o quê esse trabalho?

R – Primeiro eu comecei a passar cola no calçado. Tinha que trabalhar, ou era naquilo ou era costurar, ou bordar. Eu não gostava disso, tinha que me contentar com um. Aí eu aprendi com umas mulheres que trabalhavam em casa, pegavam o serviço e faziam em casa, fui aprender com ela e depois fui trabalhar no Navajas. Me chamaram e eu fui, nove anos. Mas eu dava uma produção, menino! Eu sempre fui de trabalhar. Eu saía de casa era pro trabalho, o lazer era depois que saía do trabalho. Não tinha essa, com nove anos a minha mãe foi operar a catarata e quando ia operar a catarata nessa época ficava de dez a 11, 12 dias no hospital, num quarto escuro. Não podia ver como agora, que opera e vai embora de ônibus pra casa. Mas a minha mãe enxergava uma formiga no chão. Aí eu tinha que cozinhar, porque meu pai trabalhava. Tive que cozinhar. Minha irmã não era muito disso, aí eu me dedicava a correr, fazer a corrida e trabalhar. Eu aprendi até a matar e depenar o frango com essa idade. Por isso que eu gosto da cozinha até hoje, a cozinha pra mim é a minha paixão. Pode vir na minha casa se você não é convidado, dez pessoas, pode vir que eu armo a mesa, parece um banquete. A minha irmã que fala: “Mas como você fez tudo isso?”, é porque eu amo, é amor. Na cozinha se você não tem amor não sai. Ter por ter, como tem agora, precisa ver se tem profundidade nisso, não é só ser gastrônomo, tem que ter vontade, amor, que do pedaço de uma coisa você faz dez coisas. Você pega uma carne e você faz ela de quatro, cinco tipos.

P/1 – E você continua nessa fábrica. É uma fábrica, né?

R – Que eu trabalhava?

P/1 – É.

R – Continuei até casar. Eles não queriam que eu saísse, não me deram baixa na minha carteira. Quando eu fui me aposentar eu tive que procurar o advogado onde estava o arquivo do Navajas pra ter uma carta para eu poder me aposentar. Porque eles não deram baixa porque não queriam que eu saísse.

P/1 – Porque gostavam muito.

R – Mas meu marido era italiano, machista, não deixou eu trabalhar. O que eu fiz? Fui trabalhar nesse mercado que o meu primo tinha banca até completar. Depois que completou eu comecei a fazer coisa em casa, aí já tava a minha aposentadoria prestes a sair. Aí eu comecei a fazer ficazza, comecei a fazer cartelatta, berinjela e vendia pros armazéns, tinha uma boa clientela. Até agora eles querem, eu falo: “Não, chega. Meus filhos se formaram, trabalham”. Um é engenheiro, a outra trabalha na CET, Recursos Humanos. O meu pequeno foi mais difícil, ele começou Educação Física. Como futebol era a vida dele, ele rompeu o ligamento no terceiro ano de Educação Física e o professor falou: “Você vai ficar oito meses sem poder vir à faculdade fazer educação”. Aí eu falei: “Meu Deus, como pode, oito meses”. Aí nesses oito meses ele desistiu. E também porque pra você abrir uma academia e esperar cliente é muito difícil. Agora todo mundo faz, mas quando meu filho começou ninguém fazia. Aí eu falei: “Não interessa, eu quero o canudo. Seja do que for, o canudo pra mim é essencial”. Ficou uns dois ou três anos sem exercer nenhuma escola. Ele me ligou, eu estava na praia: “Mãe, entrei na faculdade. Comércio Exterior”. Maravilha, ele trabalhava no Itáu, foi um campo bom pra ele. Não interessa o que for, tem o canudo vai fazer a faculdade, vamos lutar pra você fazer a faculdade”. Fez, formou-se e a mesma coisa eu falo pros dois filhos que ele tem, uma menina e um menino: “Vocês têm que lutar para ele ser bom na escola”. Agora é tudo feito rapidinho, não é assim, não é assado, se o professor chama a atenção o pai vai lá querer brigar. O Luca apanhou muito na Itália, na escola. Ele é formado também só no primeiro, mas ele tem uma sabedoria, melhor do que faculdade. Porque as primas dele eram professoras e ai se não estudasse.

P/1 – Seu marido fazia o que na época?

R – Ele tinha um depósito de ferro-velho. Depois ele pôs um sócio, ele já tinha o depósito, o sócio veio e entrou, mas passou a mão até o último fio de cabelo. Sentou no chão novamente, sem nada. Aí eu comecei a fazer novamente as coisas e graças a Deus, que seja feliz quem fez, eu sou feliz dessa maneira, muito feliz. Não precisa ser rico pra ser feliz. Meus filhos estão encaminhados, cada um tem seu trabalho. Minha filha trabalhando na CET, o Pascoal é engenheiro eletrônico da Oi e o meu filho é do Itaú.

P/1 – Qual é o nome dos seus filhos?

R – A minha filha que é mais velha é Maria Domênica Erriquez. O Paschoal, Paschoal Erriquez e o meu pequeno é Francisco Paulo Erriquez. Quer dizer, vem em nome da família, porque ai se casava e não punha o nome do pai ou da mãe! Agora não tem mais isso, não. A minha filha foi a primeira, levou o nome da minha sogra, o Paschoal foi o segundo, levou o nome do meu sogro. Aí veio o Francisquinho que levou o nome do meu pai, também tem direito, né?

P/1 – Tá certo (risos).

R – Aí parou nisso, senão seria o nome da minha mãe. Mas parou nisso.

P/1 – E como é que foi o parto dos seus filhos, você se lembra como foi o dia?

R – Foi de cesárea.

P/1 – Os três.

R – Os três. Porque eu não tinha dilatação. Eles faziam de tudo para eu ter normal, mas eu não tinha então... esperava o máximo, mas foi cesárea.

P/1 – E como foi o primeiro dia que você foi mãe?

R – Nossa, uma alegria! Eu adoro criança, adorava criança, vivia com os filhos dos outros no colo. Nossa, foi uma paixão.

P/1 – Você estava em casa, estourou a bolsa?

R – Estourou a bolsa. Estourou a bolsa em casa, agora os outros não, a gente já foi mais preparada, não esperou nada porque já tinha chegado. Como não tinha dilatação eu tinha sempre que estar em contato com o médico se não passasse o tempo, então ele falava: “Está no prazo pra você internar”. E o Francisquinho eu fui porque eu fiz laqueadura, já foi marcado, já foi tudo direitinho.

P/1 – E você chegou a ir a Polignano depois?

R – Fui em Polignano em 89.

P/1 – Como é que foi essa viagem?

R – Maravilhosa. Polignano é um presépio, é maravilhoso.

P/1 – Ah, é?

R – Nossa, é tudo natureza. Aquelas casas. Meu pai trabalhava... não está aí as casas, ó lá nos de lá. As casas são todas em cima do mar, nas pedras. Meu pai morava numa casa daquela e pescava pela janela. Então a emoção foi tão grande eu ir pra lá, ver tudo isso. É muito lindo. Se você tiver oportunidade um dia vá. Qualquer buraco nas pedras que eles abriam era uma casa. Olha que coisa! E todos tinham sua casinha feita assim e por isso que aqui tem muito arco, porque na Itália é tudo arco. Então o nosso presidente era de Polignano a Mare, a paixão dele era arco. E ele fez também sacadas, cada janela ele fez uma sacada de madeira. Depois que abriu a creche a sacada era perigosa, então foi obrigada a tirar porque os representantes que vinham falavam: “Tem que tirar, criança é peralta”. Então a sacada não tinha aquelas portas, sabe, era só sacada. Aí ficou a janela, foi posto grade. Mas Polignano é lindo. Comia-se muito bem. A guimerela da Itália também é muito gostosa, mas eu acho a nossa mais ainda (risos). Mas o mar de Polignano é um azul turquesa que é lindo, não tem sujeira. Todas as ruas são plantadas com frutas, figo da índia, figo normal, tem outros nomes, cucumbra que é um outro negócio que aqui não tem. Olha, você ia lá e pegava seus figos desse tamanho, tudo na rua. Porque eles não tinham aqueles quintais, tem casa que dá no mar. Se tiver oportunidade aproveita, vai pagando aos poucos sua passagem e vá. Tinha hotéis, e a Grotta Palazzese, maravilhosa. E nós tínhamos amizade e toda noite o dono do hotel queria que a gente fosse lá pra telefonar pra família. Aí a gente ligava de lá, tomava seu vinho com ele, era uma comida. Pista de dança de vidro, as ondas batiam, olha, é coisa de sonho! É coisa de você fechar os olhos e falar: “Será que estou vendo?

Eu estou vivendo isso?”.

P/1 – E você chegou a ver mais ou menos onde seus antepassados moravam lá?

R – Sim. Muito, muito. Estão lá as casas ainda porque são feitas assim com eles, vai passando. Como a gente não se criou, não conviveu, se não teria a nossa também lá. Mas infelizmente meu pai veio nascer aqui, mas eu gostaria. E o meu filho já foi cinco ou seis vezes, ele vai por causa de Polignano, ele vai conhecer outros países, agora ele foi pros Estados Unidos porque pegou pouca férias, 12 dias só. Senão de lá ele já iria pra Polignano, mas não deu pra ir, ele: “Mãe, minha tristeza é essa, não pude ir até Polignano”. Eu falei: “No ano que vem, você já conhece vários lugares, vai só pra Polignano”. Ele ama todos os países que ele vai, Alemanha, foi pra Jerusalém, muitos lugares, muitos, mas ele ama.

P/1 – E agora você está com quantos anos?

R – Eu? Oitenta e quatro.

P/1 – Tem algum sonho pro futuro?

R – Tenho, muitos! Eu tenho disposição a ele. Meu futuro é querer fazer uma viagem, voltar novamente, conhecer muito o Brasil, eu só conheço Fortaleza e Natal, muito lindo. Fomos fazer um congresso lá pela

Abav, pra três mil pessoas. Então cheguei a conhecer por esse motivo, porque se não, condições a gente não tinha pra isso. Como o nosso presidente aqui era presidente da Abav e eles faziam os congressos deles em cidades diferentes e aí nós fomos. Mas que dias maravilhosos! Fiquei dez dias em cada lugar. O jantar era um dia só, mas depois nós tínhamos que recolher tudo o que tinha levado, levava tudo daqui, o molho, o antepasto, as mussarelas, os queijo ralados. Então como a gente sabia que naquele dia seria feito o jantar, já era escalado, a gente já levava tudo pra não ter desperdício. Aviões eram fretados só pra isso, iam 50 pessoas. Mas ó, que felicidade! Trabalhava naquele dia só, depois era o jantar dos outros. Mas todo mundo falava do jantar italiano, o nosso era jantar italiano. Eles apresentavam coisas boas, mas tudo fácil, o nosso era tudo complicado (risos).

P/1 – Você gosta MUITO de cozinhar mesmo, né?

R – Eu adoro. Eu adoro.

P/1 – Como é que você se sente quando você está cozinhando?

R – Ah, me sinto realizada. Sábado e domingo pra mim é festa. E quando estou aqui, quinta e sexta é outra festa. Porque agora não é tão grande, foi maior já, mas é muito bom. Eu gosto de fazer tudo o que precisar fazer, eu faço. Não precisa me mandar. Se você tá precisando de mim lá, estou presente. Acabei o meu, não vou ficar sentada, vou te ajudar. Acaba mais rápido, né? Oito, dez mãos é mais fácil.

P/1 – E tem alguma coisa que você gosta mais de cozinhar ou tudo?

R – Tudo. Tudo. Gosto de preparar. Tudo eu gosto de fazer. E meu filho Paschoal puxou a mim, a minha filha também, ela fez técnico em Nutrição, ela faz as comidas como eu, mas não por causa da Nutrição, lá ela aprendeu muita coisa, mas ela faz porque ela aprendeu comigo. E o Paschoal também. Agora o meu mais novo só queria farra, pouco ficava na cozinha para aprender. Agora graças ao Paschoal eu falo: “Paschoal, aprende muita coisa pra não perder a tradição. Pode cada nacionalidade tem a sua tradição. Então a nossa você não pode perder” “Ai mãe, mas a senhora faz tudo correndo e não fala o que vai, o que não via, quando vou ver já está pronto”. Agora domingo ele vai fazer uma massa e eu vou olhar. “Eu só vou te falar isso, isso e isso, você que vai fazer. Quero que você aprende”. Sardela, patê de berinjela, tem que deixar uma tradição. Se eu for embora de um dia pro outro não aprendeu nada. A minha filha adora a cozinha também. Ela não está trabalhando na Nutrição porque ela fez estágio nos hospitais e ela detesta, não puxou a mim, ela não quer isso, ela diz que tem muita pena. A gente tem pena, mas tem que ter coragem. Então ela preferiu ir na CET, ficou em Recursos Humanos, fez curso, entrou, depois _1:33:54_, sabe? E está muito bem, já se aposentou mas trabalha ainda porque não querem que ela vá embora.

P/1 – Agora o que você espera pro futuro aqui da Associação e da festa?

R – Eu espero que ela complete seus 100 anos, que eu esteja presente, que acho que vai ser uma festa maravilhosa. E que daqui pra frente quem tem cabeça boa, com vontade de trabalhar, que ela cresça mais ainda, que não se perca, porque foi um trabalho muito lindo, não pode perder essa festa, trabalho maravilhoso. Então vamos ver se conseguimos. Eu não vou estar presente, mas quem está verá.

P/1 – Quantos anos a festa tem agora?

R – Esta festa? Noventa e sete.

P/1 – Noventa e sete? Tá chegando, né?

R – Tá chegando. Quero que São Vito dê força pra nós, os mais antigos, poder aproveitar. Mas não sei, nós perdemos uma amiga que também trabalhava, uma mamma, em 15 dias ela foi embora. Pra nós foi muito triste. Muito companheira. Cada um que vai embora de nós é muito triste.

P/1 – Quem que foi embora?

R – Foi a Olímpia. Em 15 dias deu uma abençoada doença da moda que é agora. E se ela soubesse que ela tinha essa doença ela não aguentaria nem os 15 que ela aguentou porque ela não soube. Se você falar pra ela: “Olímpia, vamos no médico? Eu vou e você passa numa consulta” “Ah não, tenho medo que ele fale que eu tenho câncer”. A cabeça dela era essa e ela morreu disso. Não sentia nada, deu uma pancreatite e virou câncer. Ficou toda amarela, de repente foi embora. Faz uma falta. A gente chama o nome dela toda hora. Mas enfim é um caminho e temos que seguir, não é? Uns mais perto, outros mais longe, estamos no mundo pra isso.

P/1 – Você pensa também um pouco no futuro do Brás, da zona cerealista? Como é que você acha?

R – Eu queria que o futuro do Brás fosse acordado. O Brás dormiu muitos anos. Nunca, nunca foi feito nada pro Brás, sempre aquilo, sempre aquilo, desmancham uma casa, fazem um armazém. É um comércio bom, mas à noite é uma tristeza. O Brás à noite é uma tristeza. Então eu falo: “Meu Deus”, sempre eu debati isso com muitas pessoas que vinham perguntar: “Por que o Brás morreu dessa maneira?”, sujo, lixo nas esquinas acumulado, o povo tá muito porco também. Sabe, tem tudo isso, não vamos culpar só os de lá de cima, o povo também que não coopera. Mas podiam ter feito praça, alguma coisa. Essa ponte da Monsenhor de Andrade, quantos anos tem projeto de fazer uma passagem? Você não pode passar lá. Eu passei muito indo pra Oriente, agora você não pode. A porteira era aberta, passava carro, os trens paravam. Fecharam tudo! Por isso que o trânsito também é louco. Tem muitos carros, mas pra que fechar uma coisa que funciona? Quem ia de carro passava lá e já estava na Oriente.

P/1 – Você está falando da porteira do Brás, é isso? Como é que era?

R – A porteira era uma ponte que tem aí na Monsenhor de Andrade, passando a rua Flórida. Mas era muito boa, você atravessava ela na maior facilidade, você tinha dentista pra lá, você ia. Depois não pôde passar mais. E continuaram os assaltos. E ela está assim, morta, parada, fazem filmes sobre ela mas não sai daquilo, não sai daquilo. Tem um projeto que falam que vão fazer, que mostram que fez. Eu não posso falar pros meus filhos: “Vocês vão ver tudo isso como está, vocês vão ser homens grandes, feitos e vão ver como está. Olha, mamãe já tem idade e continua a mesma coisa” que o meu pai falava pra mim: “O projeto morre engavetado”.

P/1 – Você queria que melhorasse então.

R – Ah, se melhorasse o Brás seria bom, ninguém ia embora daqui.

P/1 – Mas você acha que vai melhorar, tem chance?

R – Eu espero que tenham consciência que no Brás sejam feitos todos os projetos que estão engavetados. Muitos, muitos, muitos. Eles tiraram os cortiços, mas fizeram armazém. Não fizeram uma coisa boa, uma praça maravilhosa que pode ir se divertir. A molecada era só ir brincar na rua, não tinha nada, não tem lugar. Agora tem a danceteria, tem isso, mas tudo longe. Quem não pode pagar pra ir? Não vai. E quem entra na malandragem? Se apossa, como o PCC. Quantos amigos dos meus filhos entram no PCC? Esse grande aí era amigo do meu filho, jogava futebol na rua, que já era malandro, jogava com o revólver na trave. Olha o que virou. Seguiu o mau caminho. Filhos de delegado, frequentavam minha casa. Porque minha casa sempre foi cheio de molecada, eu sempre dei apoio pra molecada. Tinha vez que na minha casa, que eu morei aí, ainda tem o prédio, você pode sair fora e ver, tem duas sacadas pra cá e duas pra lá, eu morei aí 35 anos. Essa casa também tinha três quartos, mas era só nossa, não era alugar. Pegava aqueles jogos de botão fazia um campeonato, era no corredor, era no quarto, era na sala, era tudo. E eu amava, fazia biscoito pra eles, eles tinham total liberdade. Você tem que ver esses meninos, o que são pra mim. O que eles falam de mim. Porque eles viram que eu os recebia de porta aberta, fazia tudo e faria novamente. E são bons meninos. Os que pegaram o caminho errado porque quiseram, tinham tudo pra ser perfeitos, mas não quiseram. É isso o que acontece. Segurança fraca, não podem fazer nada, se eles fazem alguma coisa dão um tapa na sua cara e você mereceu você é punido. Então é o que está dando, cada dia pior. Espero que venha uma pessoa de força, de coragem, pra fazer coisas melhores, mas não tem. Eu espero que eu chegue a ver um Brasil maravilhoso como era, pobre, gente pobre, mas não com tanto dormindo na rua, todos tinham um abrigo pra ficar, agora não. Cada dia que você passa numa rua te entristece, você tem vontade de chorar. Ele não está lá porque quer, a situação obriga. Não é? Então vamos ver se muda, se não muda, a inflação está lá, o dólar está lá em cima. Eles estão bem e o Brasil cada vez mais pobre. E ainda estão apelejando pra isso? O que é isso? Ninguém quer saber de nada. Ninguém, só pensam pra eles. Não vou citar nomes porque se fosse para eu falar nomes é muito grande, é muito grande. A gente sabe, mas não pode falar porque deixa pra lá. Espero que a consciência pese na cabeça de cada um, o mal que está fazendo pro Brasil, um mal muito grande. É uma pena, você tem pavor de ser brasileira. Eu não vou embora do Brasil porque já fiz minha vida aqui, se não não moraria mais aqui. É irritante você escutar tanta coisa e ninguém faz nada. Agora vem uma desculpa, agora vem outra, agora vem outra e vão apelando. Assim vão passando os anos e você roubando. Rouba, rouba, rouba e não é pouco. Hoje de manhã eu escutei aquele fez 20 milhões. Que 20 milhões é dinheiro que seria pro Brasil, não é? Como um só vai ter dinheiro, os outros não? Ah, não! Eu tenho pena, pena de quem vem vindo. Eu espero que essas crianças que cresçam, cresçam com maior alegria, não com medo. Porque a gente tem medo de viver nesse mundo em que nós estamos. Não tem só São Paulo, São Paulo que é grande mais, mas qualquer capital por aí, vivem apavorados, ninguém faz nada. Ninguém faz nada. Eu queria um dia ter um microfone numa televisão para poder falar tudo o que eu sinto. Mas você não pode. É democracia, mas se você falar você é capaz de ter qualquer coisa, o dinheiro manda tudo.

P/1 – Você gostou de falar com a gente?

R – Adorei. Adorei. Não sei se você gostou porque eu falo muito. E se abro a boca vou falando. Mas amei, vocês são maravilhosos, tomara que tenha muitos que façam o vosso trabalho, que sirva pra muitos exemplos tudo o que a gente falou, que vamos falar ainda, que continue. Não é? Vocês estão ouvindo, que são jovens e futuro. Espero que isso seja tudo verdade. A gente fala do coração, não fala só da boca pra fora, fala do coração e da alma, pra ver tudo maravilhoso. Para um dia os filhos chegarem num lugar e falarem: “O Brasil está uma maravilha, está ótimo”. Mas vamos vivendo. A trancos e barrancos vamos vivendo. Um dia bem, um dia mal, se não aguenta mais falar sempre a mesma coisa e estamos sempre naquilo.

P/1 – O que você achou de contar um pouco da sua história? Você gostou?

R – Ah, gostei! Nossa, amei! Amei, a minha história é essa. O meu cortiço era maravilhoso, brincava, limpo, o chão você podia passar a língua, era tudo limpo. Era tudo coletivo, mas tudo limpo, sabe? Tem uns meninos que vêm no colégio almoçar, não lembro mais o nome do colégio, eles vêm pra contar a história, saberem do cortiço. E eu sempre falei pro professor: “Mas eu não vou falar mais, o cortiço é aquilo” “Mas você está falando pra outros. Esses que você falou já seguiram pra outra e você está falando pra outros que estão entrando”. Você tem que ver que crianças sabidas, cada pergunta que faziam: “Como que era coletivo?” “Tinha fila. Você não assistiu ‘O Imigrante’, que ficava na fila pra ir no banheiro? Era assim. Quando não tomar numa bacia dentro do quarto, quem tinha pressa”. Mas era bom, era maravilhoso.

P/1 – Tá certo, Gina, muito obrigado, viu?

R – De nada, lindo! Quando você precisar estou às ordens. Espero que isso sirva pra você, uma coisa boa.

P/1 – Foi, foi ótimo.

R – Que eu dei uma orientação e vocês agradeçam.

P/1 – Pode deixar, obrigado dona Gina.

R – De nada!