P/1 – Doutor João, fala o seu nome completo, data e local de nascimento pra mim.
R – João Antônio Navarro Belmonte. Nascido em São Paulo dia 19 de julho de 1941.
P/1 – Em 41. Você nasceu em que hospital ou não foi em hospital?
R – Não, no meu tempo a coisa era mais modesta, então ...Continuar leitura
P/1 – Doutor João, fala o seu nome completo, data e local de nascimento pra mim.
R – João Antônio Navarro Belmonte. Nascido em São Paulo dia 19 de julho de 1941.
P/1 – Em 41. Você nasceu em que hospital ou não foi em hospital?
R – Não, no meu tempo a coisa era mais modesta, então a gente nascia em casa. Eu também nasci em casa na Avenida Rangel Pestana, número 1035, na casa oito.
P/1 – E como era que o pessoal fazia, o procedimento? Nascia em casa e aí?
R – Eu era muito pequeno, então não consigo te dizer como é que era o procedimento (risos). Eu presumo, pelo que a gente apura hoje, que eram partos normais e eu, toda a informação que eu tive da minha mãe, é que foi parto normal. Todos os filhos dela nasceram de parto normal e foram sete os filhos.
P/1 – Todos em casa.
R – Todos em casa.
P/1 – E qual o nome do seu pai, ele nasceu onde?
R – Meu pai é de origem espanhola, Pedro Navarro Melhado, o nome dele. Ele veio da Espanha em 1910 como imigrante e se radicou aqui no Brasil trabalhando no interior, mais especificamente em Novo Horizonte que é uma cidadezinha perto de Araraquara. Cresceu lá, conheceu minha mãe, casaram e em seguida vieram pra São Paulo, onde todos os filhos acabaram nascendo.
P/1 – O seu pai contou qual foi o motivo dele sair da Espanha?
R – Quem contou não foi meu pai, a mãe dele é que contava isso pra gente. Os velhos tinham muito receio da guerra que se desenvolvia, então meu pai tinha irmãos mais velhos já em idade de servir o exército nosso aqui, lá deve ter outro nome, e consequentemente irem pra guerra. E por receio dessa proximidade é que meus avós paternos resolveram vir pro Brasil porque não tinha guerra.
P/1 – Seu pai tinha quantos anos quando ele veio pra cá, o senhor sabe?
R – Dez anos, um pouco menos de dez.
P/1 – E ele conta como foi a viagem, você se lembra?
R – Essa viagem demorava 40 dias pra chegar aqui. Nesse mesmo vapor em que eles vieram pra cá veio também o que depois virou o meu avô materno. E a minha avó materna faleceu na viagem, o corpo dela foi inclusive, segundo relato deles, jogado no mar. Então devia ser uma viagem muito sofrida porque como imigrantes eles ficavam sempre nas partes mais deletérias do navio, que nem era navio na época, eram vapores. Deve ter sido uma viagem muito sofrida. E daqui, descendo em Santos, eles já foram encaminhados pra onde meu pai se criou, em Novo Horizonte. Porque um tio meu tinha uma fazenda em Novo Horizonte e ele fez o que chamava na época de uma Carta de Chamada, que era para trazer os imigrantes pra cá que não tinham condições de bancarem a viagem sozinhos, então, eles vinham por essa Carta de Chamada, pra trabalharem aqui. Então o meu avô com os filhos mais velhos vieram todos pra trabalhar na fazenda e o meu pai acabou acompanhando a turma toda, né? E ficou nessa fazenda até o casamento e a vinda pra São Paulo, como eu te falei agora há pouco.
P/1 – Entendi. Então fala agora um pouco a história da sua mãe, o nome dela e a família dela.
R – Minha mãe é Maria Belmonte Navarro. Originalmente Maria Belmante Aro, que era o nome do meu avô materno. Ela sempre foi uma doméstica, uma mulher muito dedicada pros filhos, com esse monte de filhos que ela tinha não tinha condição de fazer qualquer outra coisa que não ser cuidar de casa e de filhos. O que ela fez muito bem sempre, ela criou todos os sete filhos, todos sadios, todos vivos até hoje. Eu ainda trabalho, mas todos eles estão aí e foi o que ela fez. Analfabeta também, sem qualquer estudo, sem qualquer preparo a não ser o que decorria da criação desse monte de filhos que ela tinha e da casa, que sempre foi uma casa muito grande.
P/1 – E ela tem origem espanhola também.
R – Também.
PAUSA
P/1 – Pode continuar. Estava falando da origem da sua mãe.
R – Ela também era espanhola, ela era de Garrucha, Espanha, deve ser esse o nome. E também veio muito menininha, era mais nova do que meu pai; viajaram no mesmo navio, ele próximo a dez anos, ela devia ter uns quatro ou cinco. O que a gente tem de conhecimento dessa viagem dela, ela se criou nessa fazenda também, uma fazenda que o pai dela conseguiu depois comprar.
P/1 – Você sabe o nome dela, da fazenda?
R – Não sei, onde ela se criou não sei. Também em Novo Horizonte, a localidade lá chama Paineirão. O nome da fazenda, acredito que nem tivesse nome. E essa é a história deles. Aqui em São Paulo moraram sempre no Brás, nessa casa onde eu nasci, eu e mais dois irmãos meus nasceram também, que são abaixo de mim e ficaram no Brás até quase praticamente o fim da vida. Porque num determinado momento, meu pai já bem idoso foi morar na praia, ficou um pouco na praia e aí acabou arrumando um problema de saúde e faleceu. Com o falecimento dele minha mãe voltou pra São Paulo e ficou na casa de uma das irmãs, da caçula, até o óbito dela.
P/1 – Em que ano ela morreu?
R – Boa pergunta.
P/1 – Faz muito tempo?
R – Você perguntou o ano? Faz nove anos. Ela morreu no dia dois de dezembro de... nove anos atrás. Dia dois de dezembro eu tenho certeza porque foi o dia, ela faleceu no dia (emocionado)...
P/1 – Sem pressa seu João. O senhor quer um lenço, uma água?
R – Não, já passou. É que ela morreu no dia que nasceu minha neta. Ela morreu às quatro horas e a minha neta nasceu às oito (emocionado). Desculpe.
P/1 – Não tem problema. Ela estava com alguma doença?
R – Ela tinha alzheimer, já tinha uma demência em razão da idade. Mas ela já tinha perdido noção de quase tudo, ela já não conseguia mais comer sozinha, então foi um descanso pra ela. E foi isso o que aconteceu com ela.
P/1 – Mas ao mesmo tempo que teve essa perda você ganhou uma neta, foi isso?
R – No mesmo dia do óbito dela nasceu a Giovana, que hoje tem nove anos e vai completar dez anos agora em dezembro, no dia dois de dezembro, que é uma glória pra gente (risos).
P/1 – O que você acha disso?
R – O que eu acho disso? Eu acho que são as compensações, né? Você perde alguma coisa que é muito querida e acaba encontrando uma outra que vem a ser quase tão querida como era aquela, sabe? Eu falo disso e me emociono (chorando). Eu sou muito, muito família, essas coisas mexem muito com o meu sentimento,. Vocês me desculpem, mas...
P/1 – Não tem problema.
R – Eu não vim preparado para uma coisa como isso, sabe? Vim preparado pra falar do meu pai (risos) e da atividade que ele tinha e do que ele era respeitado e respeitador.
P/1 – A gente vai chegar lá já.
R – Não pensei que eu tivesse que falar da minha mãe, das minhas netas (risos).
P/1 – Mas a gente vai voltar pra lá então.
R – Isso vocês vão tirar depois daí, né?
P/1 – Sim, fica tranquilo, isso não vai estar na íntegra, nem no livro. Agora, seu João, voltando então, o senhor estava falando da sua mãe. Você cresceu então no Brás, você nasceu no Brás.
R – Nasci no Brás, me criei no Brás. Saí do Brás pra casar. Eu saí do Brás por volta de 1970, mais ou menos, 70 e pouquinho, me casei e fui morar na Mooca. Eu fiquei na Mooca um ano até a gente descobrir uma gravidez da minha mulher, aí eu tive que vender o apartamento que era muito pequenininho e compramos uma casa grande, já na Zona Leste. E ficamos na Zona Leste 35 anos, até minha mulher achar que a casa era muito grande e precisava de um lugar menor. Aí vendemos a casa e compramos um apartamento na Mooca, nosso ponto de origem de casamento. E hoje a minha mulher está querendo voltar praquela casa (risos) porque apartamento dá muito trabalho.
P/1 – Agora voltando lá pro Brás onde você nasceu, me fala primeiro como era essa escadinha. Você é o filho mais velho, como é que é?
R – Não, eu sou o quinto filho. Então tem mais dois abaixo de mim.
P/1 – São homens, mulheres?
R – Nós somos em quatro homens e três mulheres na família. Então tem duas mulheres e dois homens mais velhos do que eu e tem um homem e uma mulher mais nova do que eu.
P/1 – E no Brás vocês moravam todo esse tempo na mesma casa?
R – Na mesma casa.
P/1 – Como é essa casa? Conta pra mim.
R – É uma casa muito antiga. Não sei, acredito que ela deve ter... ela continua lá ainda e ela deve ter hoje alguma coisa como mais de cem anos. Ela já era antiga, uma casa bem rústica quando nós fomos morar nela. Não tinha as divisões que hoje existem, era uma casa feita para ser ocupada, sem nenhuma preocupação arquitetônica no sentido de proporcionar
conforto pra quem estivesse lá dentro, sabe? Então ela tinha... deixa eu ver se me lembro quantos quartos: um, dois, três quartos, uma cozinha, um quintal bom, banheiro
lavanderia era tudo fora da casa. E meu pai muito preocupado como ele sempre foi com o bem estar da família, ele construiu uma edícula que passou a ser a cozinha da casa, com isso ele ampliou o espaço que nós tínhamos. Mas uma casa sem conforto nenhum, uma casa que você entrava, dormia e é só o que ela tinha, não tinha nenhum aparato feito para oferecer conforto ou para quem tivesse utilizando. Eram quartos todos iguais e todos eles interligados, não tinha corredor, uma porta separando um quarto do outro (risos).
P/1 – Devia ser uma coisa...
R – Bem rústica, bem rústica.
P/1 – Com pouca privacidade, imagino.
R – O único quarto que tinha privacidade era o quarto dos meus pais, o resto não, o resto era tudo dividido por paredes mas sem ter porta fechando, esse fechamento era feito com cortina que minha mãe colocava lá. Era uma negócio bem grosseirão mesmo, mas também a molecada se acomodava dentro daquilo e não tinha muita preocupação (risos).
P/1 – E você ficava sempre com seus irmãos, como era dentro de casa? Eles brigavam, se davam bem? Com quem você se dava melhor?
R – Olha, em sete irmãos você tem, pelo menos estou falando especificamente no meu caso que eu tinha muito muito apego aos meus irmãos. Mas cada um tem um tipo de comportamento, um gênio, então com dois ou três eu me dava muito bem, com os outros era brigas constantes, mas brigava e daí a cinco minutos estava tudo de bem outra vez (risos). Não tinha nenhuma mágoa, como não tenho até hoje, por qualquer coisa que um tenha feito pro outro. Até hoje a gente se relaciona, se encontra, não é com muita proximidade porque hoje nós estamos bem distantes um do outro, um mora em São Bernardo, outro em Guarulhos, outro em Itu, outro em Itapecerica da Serra, então a distância e a gente se encontra muito pouco. Mas se fala muito por telefone, tal. Então o relacionamento que nós tínhamos quando pequenos continua até hoje sem nenhum problema. De vez em quando tem uma rusga com um deles, mas daí a cinco meses, dez meses já se desfaz e volta tudo à normalidade outra vez (risos).
P/1 – Mas você se lembra do que vocês brincavam na rua, ou dentro de casa, como é que era?
R – Lembro. Lembro, lembro. Nós sempre fomos muito pobres, a gente não tinha muito brinquedo. Os nossos brinquedos nós fazíamos, eu e meus irmãos fazíamos. O que a gente tinha de melhor era um carrinho de rolimã, então era uma briga pra quem ia ficar com o carrinho à tarde. E o resto era uma bola de pano que se fazia, uma meia velha cheia de papel dentro pra poder brincar, esses eram os nossos brinquedos. Um estilingue de vez em quando. Não tínhamos brinquedo como tem hoje essa molecada, que tem tudo o que é eletrônico, bicicletas e motonetas. No nosso tempo não tinha, pelo menos a minha fase não houve, os nossos brinquedos eram feitos por nós mesmos, pedaço de madeira com um furo na ponta servia de carrinho, se colocava uma pedra em cima era um caminhão que estava trabalhando, entendeu? Coisas bem rústicas que a gente próprio fazia.
P/1 – E pega-pega, esconde-esconde, futebol?
R – Olha, eu tive uma infância muito feliz porque o Parque Dom Pedro, que é próximo de onde a gente morava, ele tinha áreas onde a gente ia jogar futebol. Se jogava futebol, por exemplo, a gente chamava de baixada do rio, é a margem do rio Tamanduateí, que não era tão poluído como é hoje, embora talvez já fosse poluído, mas não na quantidade em que ele é hoje. E nosso sábado e domingo era jogando bola lá. Um pouco mais velho, um pouco mais, não tão criança a gente já conseguia jogar bola no final de semana nos campos de várzea que tinha muito naquela época. Então na época tinha 18 ou 19 campos de futebol ali, do município, pra jogar futebol. E dois ou três moleques se reuniam, formavam um time e pronto, esse time quando conseguia arrumar chuteira ia jogar contra um outro time em um outro bairro. Essa era a vida que nós tínhamos lá. E passar a ter uma coisa mais assim, só já como adulto. Minha primeira bicicleta, por exemplo, eu comprei com 19 anos e eu comprei, eu não ganhei do meu pai, eu comprei uma bicicleta. O primeiro carro foi comprado com 30 anos.
P/1 – Vocês nadavam no rio?
R – No rio Tietê.
P/1 – No rio Tietê?
R – No rio Tietê. Aqui na esquina da rua Cantareira tinha uma estaçãozinha de trem ali e a gente entrava naquela estação pra pular no rio Tietê e nadar lá.
P/1 – Como era? Era legal, era bom?
R – Isso era fantástico! O momento, era divino aquilo! Eu tive um pouco menos essa atividade de nadar em rio porque eu sempre tive esse trabalho com o meu pai, então eu não podia me expor a muitas coisas porque eu sabia que ele dependia e qualquer acidente que eu tivesse iria complicar a vida dele. Então eu me reservava um pouco e fazia outras coisas como, por exemplo, remar no Corinthians. Eu sou sócio do Corinthians desde 1952, 53. E lá no Corinthians eu remava e a gente tinha um barco de quatro remadores com o patrão, nós descíamos o rio Tietê até aqui no Floresta e subíamos de novo. Era um rio absolutamente navegável pra gente com barquinho pequeno. E feliz da vida, quando você voltava, embora estivesse cansado porque pra subir o rio remando era bem... pra mim que sou pequeno era muito sacrifício porque eu andava com três grandes no barco e eu tinha que ter um desempenho muito maior do que o deles pra compensar essa diferença de tamanho (risos). Mas chegava no Parque São Jorge absolutamente feliz da vida. Um banho, trocava de roupa e estava com meu fim de semana ganho, essa era a atividade que nós tínhamos. Não sei se outros teriam a mesma satisfação que eu, mas eu tinha essa felicidade.
P/1 – Antes de chegar na questão do trabalho eu ia perguntar mais algumas coisas desse período. A primeira é, você falou que é corintiano. Desde quando você é corintiano, você se lembra quando começou essa paixão por futebol?
R – Ah, olha isso é alguma coisa obtida por influência do meu pai. Ele era corintiano. Então ele sempre foi muito família e ele pegava todos nós, os homens da família, pra assistir ao jogo do Corinthians no Pacaembu, que era o único lugar que tinha. Ele só não conseguiu fazer com que um dos meus irmãos virasse corintiano, que ele é palmeirense até hoje (risos). Escolha dele, mas todos os outros são corintianos. Mas foi influência dele. Ele nos levava pra assistir aos jogos, ele começou a nos levar no Parque São Jorge, que é a sede do Corinthians, e isso acabou ficando. E eu sou até hoje e não sou muito fanático, mas fico feliz quando ele ganha (risos).
P/1 – E você se lembra de algum jogo dessa época que te marcou, algum jogador que era seu ídolo? Como que era essa paixão nessa época?
R – Ah, vários ídolos, vários, do Corinthians vários ídolos. Luizinho, Baltazar, Cláudio, Gilmar... vários, tem vários. Esses foram, pra mim, os principais.
P/1 – Você ia no jogo, tinha camisa?
R – Não, não, não. Essa coisa de usar camisa, isso é hoje, naquela época não tinha. Você ia com a roupa normal e torcia e não tinha briga dentro do campo, sempre torcia pra um, do teu lado torcia pro outro e tudo bem, não havia essa coisa que existe hoje, esse risco que você enfrenta para eventualmente assistir a um jogo do Corinthians e Santos, por exemplo. Você sabe que o risco de ter um confronto ali de torcidas é muito grande. Eu não vou assistir a um jogo de futebol há muitos anos, muitos, muitos. E não é por conta de ter uma televisão que me passa isso, não. É por receio de você ter que se enfrentar com alguém lá, sabe? A gente vê na televisão, cada jogo a PM tem que estar disposta pra separar, pra modificar trajeto, morte por briga, então isso tudo eu acho que afasta pessoas como eu que já tenho uma certa idade, do campo. Gostaria muito de voltar a assistir mas não tenho nenhuma intenção de voltar, não. Enquanto eu tiver uma televisãozinha colorida eu fico em casa (risos) assistindo.
P/1 – Agora como era o Brás nessa época? Onde vocês iam se divertir, como era o mercadão, a zona cerealista?
R – O Brás era fantástico. O Brás era o que existia de melhor. No Brás nós tínhamos, no sábado à noite, por exemplo, na Avenida Celso Garcia, de fronte ao Cine Piratininga, pouca gente deve lembrar disso. O Cine Piratininga foi o maior cinema do Brasil. E na frente dele, no sábado à noite era onde o pessoal ia desfilar. Então as moças ficavam andando num determinado circuito e os jovens em circuito contrário, eventualmente para encontrar alguma pessoa que fosse, e saíram vários casamentos dessa relação. No domingo era futebol de manhã e à tarde um cinema, haviam vários cinemas. Cine Piratininga, o Roxy, o Cine Glória (pausa). Festa junina, por exemplo, eu não sei se aqui... aqui na Igreja São Vito fazia quermesses todo mês de junho, sábado, domingo e feriado. Aquelas coisas tradicionais italianas. No último dia, no dia 29 de junho, todo dia 29 a igreja promovia uma queima de fogos que era alguma coisa assim esperada, não era só pelo Brás, não, eu acho que era esperada por São Paulo, que o que se reunia de gente pra assistir àquela queima de fogos era uma queima de fogos feita durante o dia. E o famoso pau-de-sebo. Você talvez nem saiba o que seja o pau-de-sebo (risos), mas o pau-de-sebo era um poste de madeira bem alto que eles passavam graxa nele. Em cima tinha alguns presentes: presunto, alguma coisa. Quem conseguisse galgar aquilo e chegar em cima pegava. Então eram equipes. Nós tínhamos a nossa equipe ali do pessoal dessa região do Brás, da Maria Domitila, da rua Pires Ramos, nós éramos uns 12 e nós já tínhamos mais ou menos selecionado os que ficavam embaixo pra que os outros fossem subindo formando uma pirâmide pra pegar os brindes que tinha lá. Isso era fantástico, isso era uma delícia. O prêmio em si nem compensava, mas era a satisfação de ter ganho da equipe da Caetano Pinto, por exemplo. Eram equipes que montavam e nós já tínhamos um esquema mais ou menos pronto, a nossa inscrição era sempre a terceira, por exemplo. Por que a terceira? Porque as duas primeiras já tiraram uma parte grande de graxa daquele poste (risos). Então quando a gente vinha já tinha um pedaço muito grande que era facilmente escalado. Então tudo isso era fantástico, eu tenho saudades do Brás até hoje, tenho amigos ainda que moram no Brás, que moram na Maria Domitila, que moram na Pires Ramos, que são as ruas onde a gente ficava. E até hoje a gente se encontra de vez em quando, hoje com um pouco mais de receio porque a região não é muito atrativa, ela já oferece uma série de riscos, como toda a cidade oferece. Então os nossos encontros são em uma cantina, por exemplo. Aqueles jovens que hoje já são casados vão com as respectivas mulheres e a gente se encontra de vez em quando num restaurante, numa pizzaria, numa churrascaria. E o que acontece e o que se desenvolve lá de conversa é do nosso tempo de criança. Não tem outra coisa que a gente conversa a não ser daqueles tempos, da bicicleta, do carrinho de rolimã, do Parque Dom Pedro. Então, esse é o Brás.
P/1 – Tem alguma história que te marcou bastante, que você sempre se lembra, você sempre conta, que te aconteceu na infância?
R – Tenho várias.
P/1 – Qualquer uma que você queira contar que você se lembra pra gente agora.
R – Eu tenho várias. Mas, por exemplo, eu falei agora há pouco pra vocês que a gente é que fazia os nossos brinquedos. Mas eu tinha na rua onde eu morava, que era uma vilinha, uma rua sem saída, um amigo que o pai dele era bem situado econômica e financeiramente. Ele tinha brinquedos bons como uma bicicleta Philips, por exemplo. E eu sabia andar de bicicleta e ele não, então para ensiná-lo eu também usava a bicicleta dele, então eu tinha que dar umas voltas pra depois ensinar a ele a pedalar e a se manter e tal. Um desses dias nós resolvemos limpar a bicicleta. Com paninho, passava o paninho. Numa dessas de passar paninho com um pano que eu estava limpando a corrente da bicicleta e ele virando aquele pedal e o pano enroscou naquela corrente e o meu dedo andou e triturou na corrente. E eu tenho essa deficiência até hoje e acho isso fantástico (risos) porque me lembra da bicicleta azul do Décio no Brás. Então são coisas, várias coisas. Nós tínhamos um vizinho nessa rua onde eu morava, o fundo dela dava para uma chacrinha que tinha, entrava pela rua que era paralela à avenida Rangel Pestana. Nós fizemos um furo naquele muro, nós fomos quebrando, tirando tijolo, pra fazer um buraco pra poder entrar por ali pra roubar goiaba dessa propriedade. Então alguém entrava, subia na goiabeira, pegava as goiabas, voltava e colocava os tijolos de novo ali (risos) pra ele não saber que tinha. Então era uma série de coisinhas desse tipo, tem muita, muita coisa pra contar.
P/1 – Você se lembra dos carnavais que tinham lá? Vocês celebravam carnavais?
R – Os carnavais eram de rua, de uns blocos que andavam, que passavam, desfilavam na avenida Rangel Pestana. Então as pessoas de mais idade colocavam cadeiras na avenida e ficavam sentadas e os blocos passando. Os blocos eram grupos de pessoas que inventavam uma fantasia qualquer e saíam batendo um tamborim qualquer. E passava gente a noite inteira, até três, quatro horas da manhã estava passando gente. Esse era o carnaval nosso. Carnaval de salão, de brincar, isso já muito pra frente que aconteceu porque na nossa época, na minha época de infância, de juventude, o carnaval era isso, era ficar na rua ali jogando confete em alguém, lança-perfume, era autorizado, era permitido o uso de lança-perfume porque ninguém usava aquilo pra se drogar, a não ser pra brincar, jogar nos outros, né? Então esses eram os nossos carnavais.
P/1 – E você nessa idade já conhecia a região da Santa Rosa, o Mercado Municipal, frequentava lá?
R – Já, já.
P/1 – Trabalhando pro seu pai ou também você já brincava um pouco lá?
R – Eu conheci essa região da Santa Rosa – a gente chama de zona cerealista, mas naquele tempo era Santa Rosa – muito pequeno. Meu pai montou um armazém de cereais na rua Américo Brasiliense e como ele era semi-alfabetizado tinha dificuldade no que precisasse ser escrito. Então eu, chegando da escola por volta de 11 horas, estudava de manhã, já vinha pro armazém pra ficar com ele à tarde emitindo nota fiscal, que eu já sabia escrever. Isso se prolongou até os meus 18, 19 anos, 20 anos. O tempo todo trabalhando com ele ali, nessa caminhada nós fizemos de tudo na rua Santa Rosa. Na Santa Rosa tinha um trem da Companhia de Gás de São Paulo que passava nela. Então eu chocava, pegava uma carona com esse trem na Rangel Pestana e vinha pela Santa Rosa até a esquina onde o armazém existia.
P/1 – Era um bonde?
R – Não, era um trem, trem mesmo. Trem, uma maria fumaça que vinha carregada de carvão coque pra descarregar no largo do Pari. E a gente chocava, o termo era chocar (risos), subia na traseira do trem e vinha, pra não ter que vir andando. Enchente. Tinha carroça na rua Santa Rosa no tempo em que eu comecei a vir pra cá. O transporte de mercadorias de algumas pessoas que compravam pra pequenos armazéns em bairros, muitos deles eram feitos por carroças.
P/1 – De burro?
R – Com burro puxando. E depois começaram a vir os caminhões, então as carroças já paravam de vir pra cá e agora caminhõezinhos é que faziam esse transporte. A evolução dos tempos, né?
P/1 – E tinha bonde na zona cerealista? Trem? Tudo esses trilhos no chão?
R – Na Santa Rosa bonde não, bonde só na Rangel Pestana. Na Santa Rosa era só os trilhos dos trens, que depois também pararam. Asfaltaram ali por cima dos trilhos e acabou, a tração do gás acabou, só caminhões e automóveis fazendo a passagem pela rua Santa Rosa. Mas a minha lembrança da Santa Rosa persistiu porque eu saí dela um pouco e voltei em seguida, e aí já adulto. Meu pai tinha nesse armazém um sócio que saiu e entrou um irmão meu e a firma passou a chamar Pedro Navarro e filho, cuidando já com muita propriedade de alho, onde ele era especialista nisso.
P/1 – Era mais alho, então?
R – No começo era só alho que ele mexia. Ele tinha um sítio arrendado onde ele plantava esse alho que vinha pra São Paulo pra ser feito em tranças, isso chamava réstia. Eles eram trançados e essas tranças eram vendidas na rua. O alho vinha, não é como é hoje que a dona de casa pega já a cabeça limpinha. Naquele tempo não, ela vinha com toda a rama da terra. E disso eu participei muito. Fiz muita trança de alho no armazém. Até que chegou um ponto que isso começou a ficar inviável pela entrada maciça de alhos mais manufaturados do que aquele que nós tínhamos, então a preferência passou a ser para esse outro que era uma caixinha pequena, não precisava ser uma caixa com dois metros de comprimento, ela vinha numa caixinha de dez quilos, já vinha só a cabeça, era só tirar a palha e o dente estava exposto. O nosso não, o nosso tinha todo um aparato de sujeira dentro dele que eram as ramas.
P/1 – Isso foi mais ou menos que ano que você acha que começou esse processo?
R – Ah, isso já foi por volta de 1970, mais ou menos, 69, 70.
P/1 – O seu pai vendia mais pra quem, pra feirantes?
R – Pra feirante, feirante.
P/1 – E eles vinham no armazém do seu pai de carroça às vezes, de caminhão?
R – No começo sim, agora no fim já não, no fim já era de caminhão. Eles já compravam, eles já tinham se posicionado, alguns já tinham sua própria condução, vinham, compravam, carregavam pro seu comércio. E outros já tinham acertos feitos com motorista, por exemplo, então ele pegava mercadoria pra três ou quatro compradores e no fim da tarde ele levava, distribuía e entregava pra cada um. Mas agora já feita por veículos motorizados, não mais por cavalo, não (risos).
P/1 – E como é que seu pai conheceu esse negócio do alho e falou: “Não, vou fazer esse trabalho agora, de armazém”.
R – Meu pai se criou na roça. Quando ele veio pra São Paulo, que ele não conhecia absolutamente ninguém aqui, mas tinha um conhecido do pai dele que encontrou com ele, ele foi lá pedir alguma informação do que fazer aqui em São Paulo, que pra ele era uma novidade absoluta: “Olha, vai lá no mercado ver o que tem”. E aqui no mercado ele viu alguma coisa, ele sempre foi muito inteligente, ele viu a possibilidade dele continuar fazendo aquilo que ele sabia, que era plantar, mexer com terra, mexer com enxada, e produzir aqui um produto qualquer que era do conhecimento dele pra um consumidor que pegava aquilo e que ele sabia que ia vender. Então foi esta a tônica, a mecânica que ele encontrou. E foi pro interior, arrendou um sítio lá que era do meu avô materno, ele arrendou um sítio, contratou gente ali pra preparar a terra, pra plantar, colher o alho, trazia este alho pra cá, industrializava ele de uma certa forma rústica pra vender. Mas isso tudo da cabeça dele, ele é que mecanizou e encaixou essas peças pra chegar onde chegou, né?
P/1 – E o que mais vendia comumente lá na Santa Rosa, na zona cerealista, na época, você lembra, os produtos?
R – Tinha de tudo. A zona cerealista tinha de tudo, como tem hoje. Nessa época já tinha cebola, batata, alho, feijão, arroz, essa parte de enlatados. Já tinha alguma coisa até de bebidas, aí já tinha de tudo. Ela já era o que ela é hoje, hoje um pouco mais modernizada, mas ela com o advento desse comércio e a evolução desse comércio que foi se modernizando, bancos vieram pra lá, e isso obrigou alguns comerciantes, como o meu pai, por exemplo, que era um comerciante pequenininho, a parar a atividade dele, ele não tinha condição de enfrentar grandes armazéns que foram postos ali do lado dele. Então ele foi obrigado a se desfazer daquele ponto que ele tinha, passando para um outro empresário que está lá até hoje. Hoje não mais aquele que comprou, mas o filho dele. No mesmo local. Quer dizer, de tudo veio pra lá. Tudo o que é comestível veio pra Santa Rosa. Eu falo Santa Rosa mas eu estou me referindo à rua Mendes Caldeira, à rua Benjamin de Oliveira, à Américo Brasiliense que hoje é Eurípedes Simões de Paula, rua do Lucas, aquele centro, que pra mim ainda é Santa Rosa, mas não é mais Santa Rosa, é a zona cerealista. Evolução até do próprio Mercado Municipal. O Mercado era um ponto onde a gente vinha pra comprar verdura. E hoje não, hoje o Mercado é um polo de atração do mundo. Mas o que você come hoje no mercado você já comia naquela época, não com essa variedade, com essa evolução técnica de hoje, mas um sanduíche de mortadela, por exemplo, no Mercado Municipal, tinha quase a mesma quantidade que tem hoje (risos). Só que naquela época você comia mortadela porque não podia, não sobrava dinheiro pra comer uma outra coisa melhor, não era atração como é hoje. Mas tudo o que tem hoje tinha naquela época também.
P/1 – No Mercado falavam que vendiam até bicho vivo. É verdade, o senhor se lembra como era na época?
R – No Mercado tinha de tudo. O Mercado Municipal é dividido em duas partes, uma parte dele, que é a de hortaliças e de legumes, e o mercado em si. No mercado se vendia de tudo: frutas, carnes, animais, tinha ali na entrada, hoje tem ainda, mas na entrada dele você tinha uma seção de pássaros que eram vendidos, então era uma mercado modelo (risos), um mercado que você quer comprar de um chaveiro a um cachorro, por exemplo. E enquanto você não comprava o cachorro você comia sanduíches diversos ali (risos).
P/1 – Agora, você começou a estudar onde, doutor João?
R – Grupo Escolar Romão Puiggari, na avenida Rangel Pestana. Depois Liceu Vera Cruz, na rua Piratininga. Depois Ginásio São Paulo, na avenida Vautier. Depois Liceu Acadêmico São Paulo, na rua Oriente, no Brás. Tudo isso no Brás. Depois eu fiz Colégio Alfredo Pucca, eu fiz o Clássico. Depois eu fiz Faculdade do Sul de Minas, eu fiz Direito.
P/1 – Antes de chegar na faculdade como foi essa formação sua? Como era a escola na época? Era boa, ruim?
R – Eu sempre frequentei escolas boas. O Grupo Escolar, por exemplo, era uma escola estadual. Depois saindo de lá eu fui fazer, mudou muito a nomenclatura, mas no meu tempo a gente fazia o primário, depois fazia admissão, que hoje não tem mais admissão. Admissão era pra você se preparar para entrar pro ginásio. E eu fui fazer admissão no Colégio Vera Cruz, que era um dos bons colégios na época, o governador Jânio Quadros foi professor lá, ele foi professor meu lá. Aí eu tive que fazer mais um período que eu fiz na avenida Vautier. Eu fiz uma preparação pra entrar no Liceu Acadêmico São Paulo, eles faziam exame de seleção para admitir os alunos, não é fez matrícula está dentro, eles selecionavam. E eu fiz o meu ginásio todo lá no Liceu Acadêmico São Paulo. Só que eles terminavam o ginásio e parava, eles tinham científico, eles não tinham o clássico, que é o que eu queria fazer pra carreira que eu pretendia seguir depois. Então fui obrigado a sair do Liceu Acadêmico São Paulo e fui pro Colégio Alfredo Pucca pra fazer o clássico.
P/1 – E qual era a diferença entre clássico e científico? E você já queria ser advogado nessa época?
R – O clássico era mais dirigido à formação mais filosófica, o científico era mais técnico, pra quem mexia muito com Matemática, que o clássico não tem. O científico era mais pra quem ia fazer ciências não tão exatas como medicina, como engenharia, que precisava ter esse entrosamento com Matemática. E o clássico não, o clássico precisava de um pouco mais de Filosofia, um pouco mais de Estudos Sociais pra carreira que você ia seguir depois. Eu não sabia que fazendo Direito eu ia ter que depois voltar a aprender tudo o que eu deixei de fazer antes (risos) porque Direito é uma ciência que não é exata e que implica um conhecimento vasto de quase tudo o que existe sobre a terra.
P/1 – Como assim?
R – Você tem que conhecer, por exemplo, de mecânica. Você pode ter uma situação em que o problema todo era um problema mecânico: um carro que teve uma dificuldade mecânica que você tem que tomar conhecimento de como aquilo se originou, de como aquilo se resolve pra poder expor tudo isso e defender essa tese. Você pode ter que ter conhecimento, por exemplo, de uma cirurgia pra pedir uma indenização por um dano moral por um erro médico. Claro, você não vai conseguir fazer a cirurgia, mas você tem que saber como ela deveria ser feita pra não ter chegado onde chegou. Então eu acho que ela é muito eclética. Eu resumo, alguns me condenam por isso, mas eu digo que advocacia é a profissão mais cerebrina que existe. Porque o médico tem que saber, tem que ter um dom de Deus pra ele poder fazer o que ele faz. Mas ele faz aquilo, ele sabe que se ele abre uma barriga, ele vai encontrar lá as peças funcionando. Direito não é assim. Direito você tem que abrir uma coisa e você pode encontrar trocentas coisas por dentro (risos). Eu entendo que ela é muito cerebrina. E por isso que os advogados são chatos, por isso que os advogados acabam morrendo cedo, por isso que eles ficam velhos mais cedo que os outros (risos). E por isso que quase todo advogado não tem cabelo e tem muita ruga (risos).
P/1 – E desde cedo você falou: “Quero ser advogado”? Desde quando foi isso?
R – Na verdade eu não gosto muito de falar sobre isso. Eu não tinha nenhuma tendência pra ser advogado, eu nunca pensei em ser advogado, eu gostava muito era de coisa dinâmica, de coisa que precisava ter movimento, como ser motorista de caminhão, por exemplo, era um sonho que eu tinha. Só que de repente acontece uma coisa que me levou a repensar essa minha possibilidade. Eu fiz Direito, fiz um Direito bem, bem mal feito porque não era aquilo que eu tinha como fonte, mas consegui pegar um canudo e dar pro meu pai. E continuei fazendo o que eu fazia, que era mexer, eu era vendedor de automóveis. Eu fui vendedor da Chrysler, da Ford, até que um dia eu falei: “Pera um pouquinho, cinco anos de sofrimento, cinco anos de fome, de luta, pra continuar vendendo automóvel? Não, eu vou ser advogado”. E resolvi, de repente, ser advogado. Fui pra empresa onde eu trabalhava, pedi a demissão e comecei a procurar. Encontrei alguns amigos, falei: “Olha, estou na área, vou começar a advogar”. Alguns amigos me deram muita força para que eu começasse porque eu não tinha a menor vocação, eu não tinha o menor interesse, o interesse apareceu neste momento. E eu tive que começar a fazer o que eu não tinha feito antes, que era estudar, me dedicar e aprender a arte de advogar, entendeu? Aí encontrei pessoas maravilhosas que me orientaram, me ensinaram, me apoiaram. E desde 71 eu venho advogando. Eu criei a minha família, formei a minha família, que é minha mulher e duas filhas, com a advocacia, então eu não sou advogado, eu estou advogado.
P/1 – O que é muito diferente, né?
R – É. Porque o “eu sou advogado” é aquele que estudou. Eu tenho uma filha que é advogada. Mas ela estuda, ela é formada há nove anos. A minha briga com ela nesse período de estudo era que ela parasse de estudar. Ela se formou há nove anos, vai fazer dez anos agora em dezembro, e ela estuda três, quatro, cinco horas por dia ainda hoje, então ela é advogada, ela não está, ela vai continuar sendo sempre, porque ela é, ela fez aquilo que ela queria ter feito na vida, sabe? Então se interessa por qualquer assunto que surja, ela vai pesquisar. Eu hoje digo pra ela: “Amanda, vê pra mim tal coisa aí que eu estou com uma dificuldade”. Em dez minutos eu tenho a resposta pronta, ela É advogada, eu estou advogado.
P/1 – E como surgiu esse sonho de ser caminhoneiro? Foi vendo o pessoal aqui na zona cerealista, por acaso?
R – Não, não. Trabalhando com meu pai no armazém eu tinha uma vida de jovem meio irregular, eu não tinha patrão, o patrão era meu pai, então tinha umas coisas que a gente fazia de noite, indo pra baile quase três vezes por semana. E isso incomodava meu pai. Aí ele me pôs pra ser o comprador de mercadoria dele no interior. Então eu tinha que ir, fui a São Roque, Piedade, toda aquela região comprando. Eu era obrigado a ir pro mato comprar, eu tinha que descobrir onde é que tinha o que ele precisava no armazém, que era cebola, batata, milho, então comprava. Naquele tempo se ensacava cebola, eram réstias como eu te falei agora há pouco, você punha aquilo num saco, pesava, costurava, carregava um caminhão e esse caminhão vinha pro armazém todo dia, descarregava e voltava. E eu pagava frete. Eu falei: “Que coisa estranha, estou pagando”. E comprei um caminhãozinho. E eu vinha com o caminhãozinho pra cá e voltava. E isso me animou muito porque eu quando era menino, meu pai tinha uns amigos que eram caminhoneiros. E de vez em quando eu viajava com um deles pra Novo Horizonte, onde eu tinha parente. Aquilo pra mim era o máximo, estar dentro de um caminhão e viajando, aquilo era, não existia coisa melhor. Então isso ficou na cabeça, até hoje, se eu tivesse menos idade e se não tivesse os compromissos que eu tenho, ah eu compraria um caminhãozinho pra me divertir com ele (risos).
P/1 – O que você gosta da viagem? É estar na estrada, é olhar? O que você sente?
R – Eu tive um amigo que também tinha o sonho de ser caminhoneiro. E ele comprou um caminhãozinho velho e saiu de Novo Horizonte com esse caminhão carregado vindo pra São Paulo. Ele ia pra São Bernardo. Quando ele estava saindo um desses amigos do meu pai, caminhoneiro velho, falou pra ele: “Olha, você aproveita bem isso que você está saindo aqui porque todo mundo vai te dar um tchauzinho, todo mundo vai falar: ‘Ô, boa viagem’, mas daqui meia hora, se você estiver rodando, ninguém mais te conhece, ninguém vai te falar nada (risos). É só isso aqui, é quando você sai e quando você volta, viu?” (risos). Então isso ficou na minha cabeça também. O caminhoneiro tem que gostar daquilo que ele faz. Eu não sei se eu me daria bem sendo caminhoneiro, é uma coisa que eu gostaria de ter feito. Pode ser até que na segunda viagem eu dissesse: “Tô fora, não quero mais saber” e ponto. Mas era um sonho que eu tinha que eu não realizei. Mas eu gostaria muito de ter sido, pelo menos ter tentado.
P/1 – Agora, você começou a advogar em 71 e quando é que você entrou pra Sagasp ou conheceu o sindicato?
R – Quando eu comecei a advogar eu conhecia o presidente do sindicato. Ele trabalhava numa empresa aqui da zona cerealista. E eu fui conversar com ele: “Eu estou aí no meio, vê”. Ele pegou algumas coisas que a empresa tinha ali, algum cheque sem fundo, algumas coisinhas pequenas e me passou. E isso eu fiz, entrei com algumas ações de cobrança e comecei a me familiarizar com algumas pessoas aqui. Advocacia pra mim no começo foi muito complicada, até que eu resolvi: “Não, eu vou parar, eu vou voltar a fazer o que eu fazia antes porque na advocacia eu não vou conseguir sobreviver”. Aqui neste prédio tinha uma empresa que era representante comercial de um grande exportador. O dono dessa empresa, infelizmente pra ele e felizmente pra mim, infartou e naquela época o infarto não era como hoje, vai lá e põe uma molinha e amanhã está bom. Ele infartou de novo, teve problemas e a empresa dele não podia parar. E como eu estava com aquela dificuldade na advocacia, o Dadá, junto com outro amigo dele, que era sócio desse: “Você não quer ficar tocando a empresa do homem lá? Você faz alguma coisinha que você tem tua e toca a empresa dele”. E eu vim pra cá, pra tocar a empresa dele. E fiquei fazendo o que era preciso pra que essa empresinha dele não parasse e descobri que havia um meio, por intermédio de uma ação judicial, que evitava que o comerciante, quando ele importasse algumas coisas, ele deixasse de pagar um imposto. Fui me inteirar como funcionava aquilo, descobri como funcionava, montei um mandado de segurança. Aí nessa altura eu já tinha um relacionamento razoável aqui no pedaço. Conversei com um dos comerciantes: “Quando você for trazer alguma coisa vamos fazer um mandado de segurança”. E ele: “Tá aqui, pá pum”, e deu certo. E eu comecei a impetrar mandado de segurança e impetrei alguma coisa como 220 em seis meses. Isso me deu um fôlego, me deu dinheiro, permitiu que eu comprasse roupa nova (risos). Só que depois de seis ou sete meses acabou porque criaram uma lei impedindo que isso continuasse. Mas eu já tinha aquilo tudo em andamento. Aí esta empresa em que eu estava trabalhando aqui no prédio, o dono voltou pra ela e aí me dispensou (risos). Então montei um escritório com um outro colega, um pouco mais aparelhado, e continuei advogando. Passado um tempo o advogado que era
advogado do sindicato teve um problema com alguém, eu não sei quem foi, nem que tipo de problema foi, eu sei que ele foi desligado do sindicato. E o Dadá me chamou: “João, estou precisando de um advogado lá” “Eu não tenho essa maleabilidade que fulano tinha, mas eu fico enquanto você precisar. A hora que você arrumar um melhor você põe, eu saio, tudo bem?” “Tudo bem”. E foi assim que eu vim pra essa casa, há 35 anos.
P/1 – Até hoje.
R – Até hoje. Felizmente. Hoje é uma parte da minha família, eu não saberia viver hoje dizendo: “Não, não, não estou mais no Sagasp”, entendeu? Sagasp é como se fosse um outro filho meu. Trinta e cinco anos quase aqui dentro, todos os dias, então isso não se apaga. E acho que não fui muito ruim nesse espaço de tempo porque eu continuo aqui, né? E foi isso. Sagasp pra mim é uma realização.
P1 – É? Por que você acha?
R – Por conta disso, porque eu vim aqui pra cá pra tapar um buraco, o advogado que estava aqui, que foi demitido, é muito competente. Eu nem sei se ele está vivo ainda, mas é um advogado que eu tinha MUITO respeito por ele, ele era muito competente no que fazia. Não sei o que foi que originou a discórdia dele aqui, mas fiquei muito preocupado porque eu achei que não tinha a condição de substituir aquele advogado. Então vinha pra cá pra tapar o buraco, alguma coisa que pudesse ser preciso se estivesse ao meu alcance eu fazer, enquanto o sindicato não tivesse uma pessoa mais categorizada pra por. E se eu estou aqui esse tempo todo é porque eu acho que acabei suprindo as dificuldades que tinha, né? (risos). E isso pra mim é prazeroso.
P/1 – Mas conta pra mim como era a Sagasp quando você entrou. Você já conhecia ela? Como é que era a fama dela? O que ela fazia?
R – Não. A Sagasp tem 80 anos. Se eu estou aqui há 30, ele existe há 50 anos antes de eu chegar. E o Sagasp era uma entidade restrita à zona cerealista, entendeu? Então o Sagasp foi criado por conta da zona cerealista. Os presidentes que se sucederam aqui tinham a visão da zona cerealista, daí no fim já tinha uma coisa de importação, mas muito pouco. E era esta a atividade do Sagasp. Da minha vinda pra cá, não que isso seja mérito meu, não é isso que eu quero dizer, é só marcar do tempo, eles elegeram o presidente que é hoje presidente. Ele se elegeu como presidente aqui. A partir daí, associando uma série de outras coisas, o Sagasp começou a ter uma participação maior no segmento, com infiltração honrosa dentro da Federação do Comércio do Estado de São Paulo. Porque havia na época um diretor do Sagasp que era membro da Federação do Comércio, então ele é que dominava isso tudo, ele é que gerenciava isso tudo, mas a visão dele era restrita àquelas coisas. Quando ele começou a diminuir o tempo dele, até por conta da idade que vinha chegando, a novidade que era o presidente do Sagasp, que também não era do ramo, passou a ser do ramo e começou a se inteirar de coisas maiores, começou a haver um crescimento. O Sagasp hoje é a segunda contribuição para a Federação do Comércio no Estado de São Paulo. Ele tem uma penetração hoje, ele representa mais de oito mil empresas no estado de São Paulo. O Sagasp foi lembrado pra participar de comissão negociadora com os comerciários no estado de São Paulo, coisa que nunca tinha participado antes. De repente ele foi lembrado pela influência que ele tinha, que ele poderia e deveria fazer parte de uma comissão que negociava as convenções coletivas com os comerciários. Eu participei dessa convenção.
P/1 – Quando foi isso?
R – Eu participei dessa comissão por vários anos por conta de pertencer ao Sagasp. Mas também o Sagasp foi convidado por conta de eu estar participando de alguma coisa. Então as duas coisas nos levaram a participar dessa comissão. E essa comissão durou uns três ou quatro anos e depois eles dissolveram a comissão. Mas nós temos, ainda hoje, uma participação ativa nesses movimentos sindicais na Federação do Comércio. Isso tudo pelo dinamismo do presidente que veio e que depois foi substituído por um outro que não teve tanto, não deu continuidade ao que vinha sendo feito. E depois esse presidente voltou outra vez, foi substituído por um outro de novo e sempre assessorando essa presidência recém-chegada e hoje ele está como presidente, é o terceiro mandato dele. E por força desse envolvimento dele no meio é que o Sagasp é hoje o que é, com 80 anos de atividade, um dos sindicatos mais representativos do comércio no Brasil. Não sei o que mais eu poderia te falar, eu acho que eu te falei tudo aí do Sagasp. O Sagasp hoje é referendado em qualquer atividade comercial que aconteça no país, o Sagasp é lembrado. Vereadores, deputados, deputado federal, governador atende o presidente do Sagasp, no telefone se for preciso. Isso é influência do trabalho que ele desenvolve. É um dos poucos sindicatos que eu conheço que não tem a preocupação arrecadatória. Claro, ele tem que receber, tem que arrecadar porque ele tem compromissos, tem um grupo de funcionários eficientes, ele tem esta sede que é própria, então tem uma série de despesas e precisa ter arrecadação. Mas não é alguma coisa: “Tem que cobrar, tem que receber”. Não é isto, isso não é ponto primordial pro Sagasp, sabe? Ele tendo pelas arrecadações que ele tem, a mensalidade do Sagasp hoje é 30 reais por mês pra ser sócio. Então o objetivo não é ter saldo pra aplicar, o objetivo é estar dentro das atividades necessárias para que o segmento não se corrompa, essa é a atividade do sindicato.
P/1 – O que é corromper na visão do sindicato, você acha?
R – Você pode ter, por exemplo, uma política, eu não estou falando política no termo político de presidente, senador, não é isto, ele pode ter um critério de trabalho que seja prejudicial, por exemplo, para uma importação. Então se proíba um tipo de importação. Você proíbe a importação de alho, por exemplo. Vai faltar alho na tua mesa, na minha, na mesa de todo brasileiro porque ninguém tem noção, o sindicato tem, mas pouca gente tem noção do que é consumido de alimento pelo Brasil. Isso com cebola, com alho, com batata. De repente aparece alguém aí que diz: “Não, nós temos que manter a cultura, a produção brasileira de cenoura”, por exemplo. Então nós vamos proibir a importação de cenoura da Argentina e nós vamos criar um imposto pra que essa cenoura da Argentina chegue aqui muito cara, que ela não possa competir com a nossa, então você não vai comprar, você vai usar a nossa. Isso pode ser prejudicial. Essa é a política a que eu me referi, entendeu? De por exemplo, teve um tempo aí que se proibiu a importação de cebola. Eu impetrei mandado de segurança para que tirassem aquele gravame que tinha porque ia faltar cebola, ninguém tem noção que se consome no Brasil alguma coisa como um milhão de quilos de cebola por dia, entendeu? Essas coisas o sindicato tem, este presidente tem isso presente o tempo inteiro. Então esta tônica dele, essa perseverança de não permitir que algum tipo de política dessas que eu me referi agora sejam incrementadas e que possam prejudicar o abastecimento. Isso é corromper, entendeu? No meu modesto entendimento. Não é aquela corrupção que pegou dinheiro da Petrobrás e comprou iate.
P/1 – Uma questão de abastecimento e também de manter as empresas, né?
R – As empresas se mantêm. Você tocou num ponto... as empresas aqui da zona cerealista, todas elas, com raríssimas exceções, são empresas centenárias, empresas que vieram de avô pro pai e agora está na mão do filho. Algumas dessas empresas não conseguiram se manter na mão do filho e acabou quebrando. Mas elas todas são centenárias, 98% dessas empresas que você vai encontrar aqui embaixo na zona cerealista são empresas que estão aí há cem anos ou mais. E todas elas com um único objetivo: de prover o abastecimento. Alguns ficaram ricos, mas a maioria não ficou. Algumas exceções têm aí no meio, mas a maioria se manteve porque não era o objetivo daqueles antigos fazer fortuna. Não, ele tinha que trabalhar e dizer pra família dele que ele estava trabalhando e que ele tinha três empregados, esse era o espírito da coisa. E a maioria se mantém até hoje assim. Não existem milionários aqui, que tenham ficado milionários explorando a zona cerealista.
P/1 – E me fala o que exatamente acontece. Você tem a sua sala e o que vem diariamente pra você de problemas que você tem que resolver na sua função? O que é mais comum que aconteça?
R – Na minha função você fala como, como advogado?
P/1 – É. Aqui no sindicato.
R – Aqui no sindicato?
P/1 – É. Surgiu um problema assim, comum. Que tipo de problemas que vêm?
R – O nosso departamento jurídico não tem tido problemas grandes. Nós temos algumas reclamações trabalhistas de empregados que a gente faz a defesa, mas a atividade minha, aqui no sindicato, tem sido mais de orientação a algumas empresas e de participação nessas negociações com a Federação do Comércio, negociações coletivas de trabalho, esse é o ponto maior que a gente tem aqui, pelo menos que eu desenvolvo. E de vez em quando aparece alguém que tem um problema, que no porto não conseguiu liberar uma mercadoria por um motivo qualquer. Um outro que quer obter uma cota pra trazer um determinado produto. Ou então uma sanção do Ministério da Saúde criando um embaraço por conta de uma determinada substância que tem no produto, ou que deixou de ter um atestado dizendo que aquilo não existe. O Departamento Jurídico do sindicato hoje não é um apartamento que tenha uma atuação assim maluca, brilhante, não é. Ele é mais consultivo.
P/1 – Do que?
R – Ele é muito consultivo, muito participativo porque muita coisa a gente resolve... ontem nós tivemos um problema aqui com empresas grandes, com sindicato de empregados e resolvemos aqui. Ia ser preciso esse sindicato de empregados entrar com alguma coisa como umas 80 ações, mais ou menos, para resolver um problema que eles acham que têm. E nós resolvemos aqui ontem sentados na mesa. É por isso que eu falo que é mais consultivo, sabe? Não existe tanto interesse em promover ações. Não, nós queremos resolver o problema do comerciante. Como é que se resolve? Você pode resolver isso conversando? Nós vamos resolver. É preciso discutir? Nós vamos discutir. Não tem jeito, tem que entrar com uma ação, então vamos discutir numa ação. Mas é o último que a gente chega, normalmente a gente resolve isso na metade do caminho. Alguma coisa que eu aprendi nesses 30 e tantos anos aqui, né? (risos).
P/1 – E pelo que eu entendi você está sempre tendo que se ligar com a questão política mesmo de ministérios, do governo ou não?
R – Não, a gente tem essa participação no que diz respeito às atividades representadas pelo sindicato. Tudo que seja do governo estadual, municipal ou federal, mas que possa de uma certa forma interferir na atividade dos nossos representados, alguma coisa a gente politicamente tenta acomodar, mas nós temos um departamento aqui de informações, tudo o que aconteceu: “Olha, o ICMS vai deixar de ser cobrado de tal coisa em tal situação”. Isto é feito um comunicado pra todos os nossos representados, entendeu? Então esta preocupação a gente tem, de ficar acompanhando isso.
P/1 – Entendi. E você se lembra de algum caso que foi muito difícil pra você resolver, ou que foi muito marcante que você se sentiu bem em fazer? Enfim, que te marcou de alguma maneira, alguma situação nesses anos na Sagasp?
R – Tudo o que você faz é marcante. Pra mim tudo o que eu faço é marcante (risos).
P/1 – É problema, né?
R – Mas nós tivemos. Os problemas acontecem e às vezes um problema atinge 20 empresas. Outras vezes atinge só uma. E nas outras atinge oito mil empresas. Então tudo o que você faz é marcante, né? Muita coisa aconteceu aqui que a gente discutiu e conseguiu resolver. Vem na cabeça uma dezena de situações que foram criadas, algumas até patéticas, né? Havia, por exemplo, uma proibição pra se importar ervilha partida. E por que a proibição? Porque a ervilha importada de um determinado lugar, ela poderia trazer uma doença que poderia contaminar a plantação de ervilha no Brasil. Que se ela fosse plantada ela poderia criar outro problema. Mas pera, ervilha depois que partiu não germina mais, ela não tem como ser plantada. O Ministério da Agricultura não tinha se atentado para esse detalhe. Então vários importadores quiseram importar e foram impedidos, até que um dia... o tesoureiro aqui do sindicato, um antigo tesoureiro, veio aqui desesperado: “Estou importando e não posso trazer porque tem uma portaria dizendo assim, assado”. Pô, mas a ervilha depois que parte pode reproduzir? Não. Partiu, acabou, só serve pra comer, ou pra moer e fazer farinha. E nós fizemos um trabalho com o ministério, mostrando pra ele que a ervilha que estava se importando era uma ervilha partida, e partida ela perdeu aquela possibilidade de germinar e de produzir alguma coisa (risos). Eles chamaram um técnico lá e o técnico falou: “É, partiu acabou”. Aí revogaram aquela portaria que tinha 40 anos. Pra mim isso é importante. Você vai dizer: “Pô, mas é a estupidez de alguém”. Tá bom, mas quem levantou aquela tese fui eu, mostrando que aquilo não era possível. Embora tivesse sido uma estupidez no começo, ela prevaleceu por um monte de tempo e nós tivemos a felicidade de mostrar que eles estavam errado. Vai dizer? “Bom, mas isso não alterou muito”, mas pra mim alterou, pra mim engrandeceu, entendeu? E como essa tem várias coisas. Essa me apareceu agora na cabeça aqui, mas várias coisas.
P/1 – Algum momento de crise que aconteceu e vocês tiveram que resolver?
R – Tem coisas que aconteceram no sindicato que eu participei que eu não fui o mentor dessas coisas, mas que produziram efeito. Politicamente se criou aí num determinado tempo uma situação que obrigava os comerciantes a venderem os produtos que eles compravam pelo preço que eles compraram, sem ter lucro. Sabe, uma coisa assim, absurda. E o presidente: “Mas nós não podemos continuar com isso”. Fez, diligenciou e ninguém mexeu em nada. Ele falou: “Nós vamos fazer um holocausto, vamos fazer o seguinte, vamos ficar uma semana com a zona cerealista fechada”. E fecharam. Ninguém abre armazém, os armazéns serão fechados durante uma semana. Você vai provocar um caos no Brasil porque da zona cerealista sai abastecimento pro estado inteiro e pra outros estados também. Então a média de caminhões, nós temos levantado isso aqui, que entram e saem da zona cerealista dá mais de mil por dia. Agora, se fechar a zona cerealista, esses mil caminhões não vão transitar durante uma semana. O que eles trariam ou o que eles levariam não vai acontecer. Gente que vai ficar esperando um saco de arroz no armazém não vai chegar. Bom, vai ser um inferno. Ameaçaram de prender o presidente. Ele teve que se esconder um dia ou dois (risos), eu fiquei tomando conta do armazém dele, entendeu? São coisas que aconteceram aqui, isso não é mérito meu, é mérito do presidente, porque foi ele que falou: “Vamos fechar!”, isso se divulgou e tinha informação da polícia pra ele de que a polícia federal vinha aqui pra prender ele, por ter criado este movimento (risos). E isso aconteceu várias vezes com outras situações, então ninguém mais compra, ninguém mais vende, entendeu? É o dinamismo, isso aqui não é uma coisa estanque, isso aqui é dinâmico, vira todo dia. Hoje uma caixa de alho custa 50 reais, amanhã encostam dois navios pra descarregar, ela cai pra 30. Semana que vem, que descarregou aquele navio e se vendeu tudo, ela vai pra 80. Quer dizer, não existe parâmetro pra dizer: “Não, eu compro por dez, eu vendo por 12; eu vou comprar por dez e vender por...”. Não tem, eu compro por dez e vendo por 12, mas eu posso ter que pagar 18 na outra semana (risos) e vender por 15 na outra semana. Então é muito dinâmica essa atividade da zona cerealista. E do comércio de cereais em geral, né?
P/1 – Agora, queria perguntar uma contextualização um pouco histórica. Você acha que no período da ditadura militar existia algum parâmetro de negócio, ou o governo tratava de um jeito x e depois na redemocratização de um jeito y, você acredita que aconteceu isso ou depende do governo?
R – Ah não, essa interferência aqui não se aplica. Porque é a lei da oferta e da procura, ponto. Se você acha que não vai dar certo o produto não planta e se ele plantar e achar que o preço não é o que ele quer, ele deixa estragar lá no mato e ponto final. Então não tem, essa interferência não se aplica aqui.
P/1 – Mas por exemplo, nesse caso que você falou do lockout foi uma questão governamental, não foi?
R – Mas é o tal negócio, aí foi uma outra coisa. Você comprava mercadoria e você se credita do imposto. Aí você vende essa mercadoria pelo preço que você comprou e você passa o imposto. Eu estou fazendo o quê? Eu estou só tendo trabalho. E havia proibição de se incorporar alguma coisa no preço daquele tipo de mercadoria, entendeu? Então por isso ninguém mais mexe, para, fica sem vender e sem comprar.
P/1 – Entendi. E o pessoal fala muito da questão de abertura de importações nos anos 90, por exemplo, com o governo Collor. É desse tipo de coisa que eu estou falando.
R – O governo Collor não mexeu muito, não é do meu conhecimento que ele tenha mexido muito na agricultura. Eu acho que o Collor, de uma certa forma, incrementou tudo no país, inclusive sistema de informática, ele revolucionou. Ele dizia que os nossos carros eram carroças. E começou a haver uma importação de automóveis que tem até hoje, não tinha. Mas essa parte da agricultura que é a parte de atuação do Sagasp, eu não vi alguma coisa assim que fosse muito influente.
P/1 – Mas com os importadores?
R – O importador...
P/1 – Ele não é da alçada do sindicato?
R – O importador de cereais vai ser sempre a mesma coisa, ele vai importar aquilo que ele vende no armazém dele desde que o preço que ele está comprando seja alguma coisa que ele entenda que ele vai conseguir ganhar alguma coisa em cima, ponto. Entendeu? Então ele já tem um cálculo feito pra esse tipo de operação. Ele sabe que vai comprar por dez dólares e ele vai ter quatro dólares de despesa, custou 14. Mas ele vai conseguir vender por 16 dólares, então ele ganhou dois dólares, que dá 20% do que pagou originalmente, tá bom. É esta a filosofia que tem.
P/1 – Entendi. E com todo esse tempo que você passou aqui, você vê alguma mudança, você acha que mudou bastante o perfil do comerciante, do cliente?
R – Mudou muito.
P/1 – Da própria arquitetura?
R – Não, a arquitetura não porque a zona cerealista era o que ela é hoje. Se tentou, inclusive, conseguir alvarás de funcionamento pros armazéns e não conseguia porque os armazéns não estavam construídos pra receber a autorização dentro do que a lei especifica que ele deve ter. Tanto que está se mudando essa lei constantemente. Então nessa parte arquitetônica e estrutural não, continuou como era, os armazéns com mais de cem anos e tal. Agora houve, sim, uma mudança de mentalidade, porque do pai pro filho é uma outra geração. É uma geração que já usa celular, que já usa equipamento eletrônico, que naquela época não tinha, naquela época eles faziam conta numa folha de papel. Hoje já são os computadores, houve uma modificação radical nisso, né? Aqueles que vieram pra cá e que não são tradicionais, que não era o pai ou o avô que tinha o comércio e eles acabaram viram pra cá por uma razão qualquer, eles já vieram com uma tradição mais moderna, eles já vieram como vocês estão aí, com celulares modernos, com o zap zap, que naquela época não tinha nada disso. Telefone você tinha que pedir uma ligação pro interior, você pedia pra telefonista: “Eu quero falar com Santo André”, ou com Ribeirão Preto, era uma semana para completar a ligação. Hoje você vai direto e fala. Então essa modificação aconteceu sim, e eu acho que pra melhor.
P/1 – E na questão dos clientes, muitas pessoas dizem que o perfil da venda está mudando também.
R – Sim, também! A mesma coisa, né? Aquele dono de um botequinho, de um emporiozinho que vinha pra comprar uma coisa, hoje ele já faz até por telefone essa compra. Mudou tudo. A vinda de supermercados que não tinha, isso tudo provocou uma alteração radical no conceito de quem compra e de quem se serve também.
P/1 – E quais você acha que são os planos dos comerciantes da zona cerealista hoje? Qual é
futuro que eles veem, o futuro que vocês debatem aqui na Sagasp?
R – Existe sim algumas coisas que estão sendo ventiladas por aí. Se pensa hoje em construir aqui na zona cerealista o maior mercado a céu aberto de cereais do Brasil. Hoje são armazéns, está se pensando em fazer ali um calçadão pegando três, quatro, cinco ou seis ruas pra fazer um mercado a céu aberto, que não tem, no Brasil não tem. Isto é o modernismo, é desse povo que está chegando aí hoje, que está hoje aí radicado, que pensa nessa evolução.
P/1 – Como é que fica a Sagasp nisso? Vai mudar? Porque são atacadistas, né?
R – Se isso acontecer a Sagasp muda, mas não muda radicalmente porque vão continuar sendo os atacadistas que estarão vendendo de uma outra forma, mas eles não mudam o conceito de atacadista que eles têm. E o Sagasp representa o comércio atacadista, então a representação, mesmo com pequenas mudanças vai continuar sendo a mesma.
P/1 – E você conhece muitos dos comerciantes que estão ali, que estão há muito tempo?
R – Eu conheço alguns. Eu não tenho um contato constante com eles, eu tenho um grupo que faz parte, porque só pode fazer parte da diretoria se for comerciante. Então a diretoria nossa é uma diretoria com um número razoável de diretores, consequentemente um número razoável de comerciantes e eu os conheço. E conheço alguns de outros tempos, embora eu não conheça todo mundo que está aí, tem muita gente nova que eu não conheço, embora eles saibam quem eu sou, eles sabem que João Belmonte é um assessor jurídico do sindicato, mas eu posso não saber quem ele é, entendeu? Então esta relação, existe, quando eu me apresento: “Ah, você que é o João?”, mas não tenho um contato com todos eles, não. Aqueles que vêm aqui normalmente sim, esses a gente conhece todo mundo.
P/1 – Agora queria voltar um pouco lá pra sua infância porque você nessa época, eu sei que existem alguns estabelecimentos que estão até hoje lá, até de barbeiros e comércio. Tem pessoas que você conhece hoje no Brás ainda, que estão lá? Você falou que tem alguns amigos que moram até hoje. Mas e pessoas que trabalham lá em serviços, a própria...
R – Veja, eu estou fora do Brás há 40 e tantos anos. Então eu tenho relacionamento com aqueles amigos que eram amigos de infância e juventude. Agora nesses 40... eu morei 35 anos na Zona Leste e já estou há cinco na Mooca. Só aqui são 40 anos. Gente que veio pro Brás nesse espaço de tempo eu não conheço. Aquelas lojas, aqueles armazéns que a gente se servia quando era menino não existe mais, aqueles comerciantes, a totalidade deles já morreu porque eu estou falando 60 anos atrás, então se eles já tinham 40, 50, 60 naquela época não existe mais. Então o Brás hoje está bem modificado, de um bairro com algo próximo a 60% de residência, hoje ele é 80% de comércio. Só essa alteração já faz com que eu não tenha mais relacionamento com ninguém.
P/1 – Tinha muitos italianos na sua época, né?
R – Italiano e espanhol.
P/1 – Espanhol.
R – Tem duas ruas lá no Brás, uma delas é a rua Carneiro Leão. E a paralela com ela é a Caetano Pinto. A Carneiro Leão era uma rua de espanhóis, a Caetano Pinto era uma rua de italianos. Os italianos quando vinham procuravam ficar perto da colônia deles, então as festas, a tradição era tudo italiana, e da Carneiro Leão era tudo espanhola. Eles conviviam bem ali entre os dois, mas eram duas tradições literalmente diferentes.
P/1 – Mas vocês conviviam assim, tinha festa de São Vito, por exemplo, tem até hoje. Os espanhóis iam e os italianos iam nas festas dos espanhóis? Tinha essa...
R – Ah tinha, a convivência era normal, só que pra morar eles se separavam. Então os filhos de espanhóis tinham mais amigos nessas ruas dos espanhóis e os filhos dos italianos, nessa rua dos italianos. Uma bobagem que existia no tempo, mas que era preservado.
P/1 – E quais são as diferenças entre as culturas espanhola e italiana pra você que viveu isso aí? As festas, os costumes, o que difere mais?
R – A cultura? Não saberia te dizer a diferença de cultura.
P/1 – Você não precisa abstrair tanto, mas o que você viveu, que era caracteristicamente espanhol, que você falava isso é espanhol e isso é italiano.
R – Mas veja, no Brás, por exemplo, nós tínhamos algumas cantinas. Essas cantinas, a tradição delas era espanhola e italiana, tinha muita pizzaria, pizzaria é italiana, então era comum os espanhóis irem comer pizza na Avenida Chic, que era a melhor pizza que eu já comi na vida. Essa interação existia. A festa da igreja São Vito era uma festa tipicamente italiana, mas todos os espanhóis vinham pra esta festa. E ela se processava no mês de junho inteirinho e era espanhol, italiano, não havia como tem hoje muito chinês, muito oriental, não tinha, era espanhol e italiano, ponto. E tudo o que se fazia era para essas duas camadas (risos), não tinha como diferenciar.
P/1 – Agora indo pra outra parte da sua vida, queria comentar com você e saber como você conheceu sua esposa.
R – Ah, eu gosto de falar isso (risos). Eu estava fazendo o clássico num colégio, à noite, e o presidente do centro acadêmico desse colégio tinha umas ideias meio subversivas e uma noite o Dops entrou e interditou o centro acadêmico. Então bom, precisava nomear dois interventores que ficassem responsáveis pelo centro acadêmico, que estava lacrado. Aí nós fomos indicados, eu não sei por que, porque eu era amigo do filho do dono da escola, do Alfredo Pucca, então fui indicado eu e um amigo meu, o Taleb. Tá bom, então nós fomos interventores do grêmio, beleza. Isso nos deu, na escola, um certo status. No intervalo entre duas aulas a gente descia pra tomar um café, fumar um cigarro, comer lanche. Numa dessas noites que nós descemos tinha uma fila pra pegar o lanche. Nessa fila tinha uma menina. Eu olhei e falei pra esse meu amigo: “Vou casar com essa menina” “Você é louco!” (risos) “Vou casar com ela”. Fui lá, conversei com ela: “O que você está fazendo?” “Vou pegar um lanche” “Qual é o lanche?”, aí eu entrei na cozinha: “Me dá tal lanche”, dei o lanche pra ela. “Não precisa pagar, fica tranquila”. E no dia seguinte fiz a mesma coisa, no outro” e estou casado com ela há 42 anos.
P/1 – Qual é o nome dela?
R – Alice.
P/1 – E ela faz o quê, hoje, o que ela fazia na época?
R – Hoje ela cuida da casa, do marido, das filhas e das netas. E da mãe que tem 102 anos.
P/1 – 102 anos!?
R – É. Mas ela é psicóloga da formação. Eu falei agora há pouco que na advocacia eu formei minhas duas filhas e a minha mulher. O sonho da minha mulher era ser psicóloga, mas nunca conseguiu por questões várias, inclusive a financeira. E depois que nós casamos já tinha as duas filhas, um dia ela veio e disse: “Eu estou com vontade de fazer faculdade” “Tenta”. E na primeira posse de um primo dela, que é o presidente hoje aqui, ela foi, fez o vestibular, entrou na faculdade e fez brilhantemente um curso de Psicologia. Tão brilhante que ela foi contratada pela faculdade pra ser coordenadora das formandas em Psicologia daí pra frente, então brilhante, brilhante. Só que depois nós tivemos um problema de saúde em casa e ela resolveu se dedicar pra se resolver esse problema e parou, inclusive, de clinicar. Mas ela é psicóloga de formação.
P/1 – E como é que foi o dia que você virou pai, você lembra?
R – Lembro (risos).
P/1 – Como é que foi? A bolsa estourou quando, como é que foi isso aí?
R – Não, isso foi um sofrimento, foi um martírio. Nós fomos numa quinta-feira pro médico, ele examinou e falou: “Olha, você já está com um pouco de dilatação, então você vai pra casa, essa dilatação vai aumentar e de tarde, se você sentir que está com alguma coisa você corra pro hospital. Se não acontecer nada à noite você se interna porque você vai ter problema na madrugada”. Tudo bem. Aí foi pra casa, eu vim, trabalhei um pouco, ela me ligou: “Estou indo”. Cheguei em casa, botei ela no carro e hospital. Chegamos no hospital a obstetra que estava de plantão examinou: “É, você já está com dilatação, está com trabalho de parto, vai internar”. Tudo bem. Seis e meia, sete horas da tarde, qualquer coisa parecida com isso. Oito e meia mais ou menos vem uma obstetra: “Olha, eu vou botar um comprimidinho na língua dela, meia-noite você é pai” “Pô, legal”. Foi embora. De vez em quando ela vinha. Na época que a Alessandra nasceu a coisa era muito empírica, então eles tinham um canudo que colocava na barriga da mulher e ficava escutando os batimentos cardíacos. O médico que fez todo o pré-natal, ele tinha um aparelhinho que ele colocava e a gente escutava o som, aquilo, num equipamento. Ela vinha de vez em quando, punha aquilo e tal. Quase meia-noite ela me diz: “Vem comigo”. Eu saí com ela do quarto e disse: “Está tendo problema aí” “O que foi?” “Não, ela está com trabalho de parto, está com contração, não está sentindo dor, é problema”. Eu falei: “Puta que pariu, e agora? O que eu vou fazer? Vou ligar pro médico”. Esperei um pouco, uma e pouco liguei pra ele. “Doutor, olha, tá assim, assim” “Não se preocupe, isso é coisa pra mim e pra menina que está atendendo aí, fica tranquilo”. Tá bom. E duas e meia, quase três horas, ela vem, põe aquele bagulho lá e fazia um sinal pra mim e eu saí atrás dela. “To te falando, tá com problema aí, cara” “Mas o doutor Edson falou...” “Ele não sabe o que está acontecendo, tem problema aí, vamos ligar pra ele de novo”. Três e pouco da manhã: “Doutor Edson” “Orra, me deixa dormir!” “Não pode deixar o senhor dormir. Eu estou aqui acordado, apavorado, essa louca me dizendo que tem problema e o senhor pede pra deixar o senhor dormir, pô? O que é isso? Eu não sou médico, doutor Edson” “Não, mas...” “Doutor Edson, ela me falou que meia-noite nascia, depois que o senhor mandou dar aquele comprimidinho pra ela. Ela tomou o comprimido e não aconteceu porra nenhuma e eu vou ficar tranquilo aqui?” “Pode deixar”. Aí uma meia hora, a enfermeira, a japonesinha louca lá vem e diz: “Ó, eu vou estourar a bolsa”. Puta merda. Eles deixam, não sei se hoje é assim, acredito que já não seja mais, estou falando de 40 anos atrás. Eles deixavam uma espadinha de plástico que era pra estourar a bolsa. Ela entrava no quarto e eu tinha que sair. E ela saiu e falou: “Estou te falando, não dá pra estourar a bolsa”. Veio com uma espada de aço mesmo, entrou e eu falei: “Meu Deus, o que você está fazendo?” “Não, eu vou estourar a bolsa, ela mandou”. Daqui a pouquinho ela volta: “Estou te falando que tem problema?” “O que aconteceu?” “A bolsa está seca”. Não é possível. Telefonei de novo: “Doutor Edson” “Pô João, pelo amor de Deus, me deixa dormir” “Doutor Edson, eu não vou deixar o senhor dormir. Eu vou fazer diferente. Agora são quase cinco horas da manhã, se o senhor não estiver aqui às seis horas da manhã eu vou procurar outro médico, que ela me disse que a bolsa está seca. E se a bolsa está seca a minha criança está com problema. Então se o senhor não estiver aqui às seis horas da manhã não precisa vir mais, eu vou procurar outro médico”. Eu volto pro quarto e minha mulher: “Chama a enfermeira, chama a enfermeira!" "O que foi?” “Estou toda molhada aqui”. A posição em que ela estava há muito tempo, quando ela estourou a bolsa o líquido amniótico ficou todo parado, quando ela se mexeu aquele líquido, que deveria ter saído quando ela furou, saiu. Daí ela vem correndo com aquele coisinho, eu falei: “Esse não, você vai botar um que eu quero escutar”. Chamou o diretor do hospital, cinco e pouco da manhã estava um tiroteio no quarto da minha mulher (risos). Aí apareceu o aparelhinho de botar e escutar os batimentos cardíacos. Seis e meia, quase sete horas o doutor Edson chegou. Me chamou: “Pô, precisa ter respeito” “Não posso ter respeito, doutor Edson. Essa louca está me dizendo desde a meia-noite que estão com problema, eu tenho que ligar pro senhor pra saber. Ou vou acreditar no que ela está falando, que tem problema?” “Não, vamos. Tá bom, eu vou levar e vou abrir. Tá bom? Ela podia ficar até de noite assim, mas eu vou abrir” “Tá bom, doutor, então abre”. Eu e a minha sogra. Aí a minha mulher vai pro centro cirúrgico e eu fico com a minha sogra esperando alguma notícia. Dali a pouquinho acende uma luzinha cor-de-rosa lá: “Da dona Alice, quem é?” “Sou eu” “É uma menina”. Pô, legal, uma menina. Aí minha sogra: “Aí, tá vendo, uma menininha”. Aí a enfermeira vem e diz: “Você quer ver a neném? Vai sair ali” “Ô, quero”. Então tinha uma janelinha aqui e a porta era aqui. E nós estávamos aqui na sala de espera. Aí saiu o carrinho, a enfermeira: “O senhor quer ver?” “Quero”, aí abaixei, abri, olhei: “Não é minha filha” “Como?” “Não é minha filha”. Fechei de novo, minha sogra ficou brava comigo: “Não se pode renegar um filho”. Aquela enfermeira que tinha me chamado antes abriu: “Vai embora, essa não é a dele! Essa não é a dele!”, aí a minha veio depois. Aí eu abri e falei: “Essa é a minha”. Eu conheci minha filha sem tê-la visto nascer porque era a cara da minha mulher, igualzinha, como é até hoje. Então (risos) essa foi a primeira filha que nós tivemos.
O médico antecipou, aquele filho da mãe, porque ela nasceu na sexta-feira de carnaval. Ele não quis perder o carnaval dele porque ela iria nascer na segunda ou na terça-feira. Então pra não perder o carnaval que ele ia pro Guarujá, porque ele tem casa lá, ele antecipou pra sexta-feira o nascimento, ele fez uma cesariana e aproveitou o sábado, domingo, segunda, terça e voltou na quarta. Mas foi assim. O nascimento da Alessandra foi assim, graças a Deus, beleza, sem nenhum problema. Mas com todo esse desconforto da noite inteirinha escutando uma maluca me dizer que tinha problema (risos), embora não tivesse. Graças a Deus.
P/1 – E hoje você tem neto também?
R – Tenho duas netas, a Giovana que vai fazer dez anos, e a Luísa, com dois anos e nove meses. Duas feras aí, maravilhosas.
P/1 – E você tem algum plano pro futuro, tem sonhos? Quais são seus sonhos hoje?
R – Eu só não quero viver 102 anos.
P/1 – É?
R – Sabe, eu quero ter uma vida como eu tive até hoje, tranquila, sem muitos altos e baixos e ter saúde. Eu quero morrer com saúde e lúcido, entendeu? Porque diminuí muito já a minha atividade, a minha atividade hoje está basicamente centrada aqui no sindicato. O meu escritório tenho muito pouca atividade, não faço questão de aumentar o meu ritmo de trabalho no escritório, sabe? Estou me dedicando bastante a uma chacrinha que nós temos aqui no interior. E quero aproveitar mais essa chacrinha. Nós já temos há muito tempo mas passava cinco, seis meses sem ir pra lá. E agora eu e minha mulher resolvemos que nós vamos começar a usar um pouco mais aquilo, sabe? Eu adoro aquele espaço. Tenho muito pouca coisa feita lá, mas quando eu chego lá eu revigoro, eu vou mexer com planta, eu vou mexer com telhado, com tinta, eu espaireço lá. E eu estou querendo me dedicar agora mais a essa atividade da chácara do que qualquer outra coisa que eu possa fazer.
P/1 – O que você achou de contar um pouco da história do sindicato? Como é isso pra você?
R – Do sindicato? Você está perguntando pra mim? Ah, o sindicato, eu acho que eu não saberia hoje conviver sem o sindicato. O sindicato passou a fazer parte integrante do dia a dia, ele é como se fosse um outro filho que eu tenho. Tudo aqui pra mim é familiar, então não tem alguma coisa no sindicato que eu desgoste, eu me dou com todo mundo que tem aqui, todo mundo me respeita, eu respeito todo mundo. E minha mulher hoje fala: “Você é sindicato”, então tudo o que a gente vai fazer, primeiro eu me preocupo com o sindicato, sabe? A não ser minha atividade profissional que tem coisas, amanhã, por exemplo eu não venho pra cá porque eu tenho uma audiência que é muito séria e eu vou deixar de vir pro sindicato pra fazer a minha audiência. Mas do contrário eu sou sindicato acima de qualquer coisa. Todas as atividades que envolvam o sindicato junto com federação ou com outros sindicatos eu participo, eu faço questão de participar, sabe? Todas as reuniões de diretoria eu é que presido, eu é que faço ata. Então o sindicato me complementa hoje. Hoje pra mim o sindicato é 90% do meu dia a dia.
P/1 – Como é que foi contar um pouco da sua história hoje pra gente?
R – Foi prazeroso. Foi bom, foi bom. Foi triste num pedaço mas, mas me senti bem, me senti bem. Tem coisas que eu lembrei que já estavam de certa forma esquecidas, a gente conseguiu trazer isso à tona e me dá uma satisfação maior que mostra que eu ainda não tenho alzheimer (risos), que eu estou me lembrando ainda das coisas. Foi bom, foi prazeroso pra mim participar. Não esperava esse tipo de coisa, eu pensei que seria um outro tipo de conversa, mas fiquei feliz, fiquei feliz fazendo esse romaneio pra vocês. Romaneio é um termo técnico aqui deles, né? Mas fiquei contente, sim. Não sei se foi o que vocês esperavam, mas eu me senti muito bem e me enalteci com isso.
P/1 – Obrigado, viu, doutor João?
R – Eu é que agradeço a oportunidade.
P/1 – Foi ótimo.Recolher