Histórias Que Reciclam
Depoimento de Maria Tereza Montenegro
Entrevistado por Lucas Torigoe
São Paulo, data
Realização Museu da Pessoa
HQR_HV08_Maria Tereza Montenegro
Transcrito por Karina Medici Barrella
P/1 – Tereza, obrigada pela paciência e seu tempo, a sua consideração. Você fala...Continuar leitura
Histórias Que Reciclam
Depoimento de Maria Tereza Montenegro
Entrevistado por Lucas Torigoe
São Paulo, data
Realização Museu da Pessoa
HQR_HV08_Maria Tereza Montenegro
Transcrito por Karina Medici Barrella
P/1 – Tereza, obrigada pela paciência e seu tempo, a sua consideração. Você fala pra mim o seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Meu nome é Maria Tereza Montenegro, nascida em São Paulo no dia 25 do um de 66.
P/1 – E o seu pai, qual o nome inteiro dele?
R – Meu pai eu não sei quem é, até hoje não tive conhecimento. A minha mãe nunca falou e também passou em branco, no meu registro não tem o nome do meu pai.
P/1 – Sua mãe é Eunice, certo?
R – Minha mãe é Elenice.
P/1 – Qual é o nome inteiro dela?
R – Elenice Montenegro.
P/1 – E ela nasceu quando?
R – Ela nasceu na Bahia, no dia 22 do sete, agora já não sei o ano direitinho.
P/1 – E por que ela veio pra São Paulo, como é que foi a história dela?
R – Ela não fala muito dela, sabe? Minha mãe é uma pessoa muito reservada. No entanto na família eu só conheço... Eu não tenho tio, nem tia, nem nada, só é eu e minha mãe, ela nunca apresentou ninguém, nem avós, nem ninguém. E ela me deu para uma família quando eu estava com um ano e meio de idade. Então tenho meus pais de criação, tenho mãe irmãs, tudo de criação.
P/1 – E quem é essa família que a sua mãe te deu? Quem são eles?
R – Ela não faz parte da família consanguínea minha. A minha mãe conheceu eles e me deu pra eles quando eu era pequena porque ela tinha que trabalhar e não tinha ninguém pra cuidar de mim. Ela me deu para uma família para eles cuidarem, pagava uma certa quantia e depois minha mãe sumiu e nunca mais voltou, me deixou lá nessa casa.
P/1 – E onde era essa casa?
R – No Capão Redondo.
P/1 – E quem que morava lá, quem foi sua mãe adotiva?
R – Minha mãe adotiva foi, aí sim, a Eunice. O nome da minha mãe adotiva é Eunice e o meu pai Jackson. O meu pai faleceu faz três semanas. Eles me criaram, eles ficaram comigo até por volta dos 18 anos. Com 18 anos eu saí de casa e fui morar sozinha.
P/1 – E como é que foi crescer no Capão Redondo? Como era a sua infância? O que você fazia?
R – Ah, eu brincava muito. A gente brincava muito, éramos muito levados, meus pais iam trabalhar e a gente ficava aprontando. Mas a gente começou a trabalhar todo mundo muito cedo porque meu pai me pegou, sou filha adotiva, mas no total somos em nove filhos, então eu fiquei bem no meio, tem quatro pra cima e quatro pra baixo de mim. Então nós tivemos que começar logo cedo. Meu pai colocava a gente na casa dos familiares que tinham um pouco mais de dinheiro, colocava cada filho numa dessas famílias pra poder servir de empregada doméstica, então eu comecei a trabalhar com nove anos de idade.
P/1 – Antes de ir pra essa parte do trabalho, vocês brincavam do que na época, no Capão Redondo?
R – Ah, a gente brincava de tudo. Brincava de escorregar naquelas montanhas, porque ainda não tinha asfalto nem nada disso e estava começando o bairro, então tinha aqueles bandos de barro assim que você colocava o papelão e descia se arrastando no papelão. Andava de bicicleta. E também a gente ia pra feira fazer carreto pro pessoal. E nisso a gente ficava brincando de jogar um tomate no outro, a gente brincava de várias coisas. Brincadeira de roda, de esconde-esconde. E era muito gostoso. Pular corda, coisa que as crianças não fazem mais. A gente não tinha esse negócio de videogame, computador, nem nada disso. Era muito gostoso porque hoje a gente vê as crianças só confinadas dentro de casa. E a gente não, realmente nós tivemos vida e vida com abundância. Brincava no cipó no meio das árvores que tinha perto de casa. Brincava também de bolinha de gude, pipa, essas coisas todas, era muito gostoso. Eu tive infância.
P/1 – E que mais vocês faziam por lá? Como era o bairro? Onde vocês iam se divertir, sair?
R – O bairro era muito perigoso na época, tinha muita marginalidade, se matava muita gente. Final de semana, toda vez a gente até sabia qual era a nossa diversão.
P/1 – Ah, é?
R – Na sexta-feira tinha os bailes e no sábado aparecia um monte de gente morta. Então a gente já ia lá e sabia, tinha uma praça onde tinha uma rua onde dava bifurcação pra outras sete ruas, era um redondo assim, vira e mexe tinha neguinho morto ali. Eram uns três pontos que tinha neguinho morto e a gente ia lá ver, a nossa diversão era assim. Mas quanto a nossa infância ali, era gostoso também que as pessoas não tinham maldade, você podia ficar brincando prum lado e pro outro, saía a hora que queria, voltava. Quanto a roubos, um negócio que tinha muito era negócio de tráfico de drogas e também roubo, né? Pessoal roubava banco, corria pro lado do Capão Redondo porque foi muito conhecido, e até hoje é conhecido por conta da marginalidade. E sempre tinha aquele problema dos policiais estarem correndo, bandido correndo e a gente tudo ali achando que estava brincando, no meio da brincadeira ali, a criançada tudinho. E também eu não sei, eu me lembro e até eu estava falando com uma amiga minha esses dias, tinha uma época que a Kibon, acho que as empresas de sorvete, acho que tinha lotes de sorvetes que estavam pra vencer ou sei lá o que era, eles colocavam no caminhão e davam pra gente na rua. Dava as caixas de sorvete. Então a gente naquele frio chupando sorvete (risos). Era muito gostoso, a gente ganhava muitas coisas também das mulheres, das igrejas católicas, essas coisas todas, davam um monte de coisa pra gente quando criança. Era bom.
P/1 – E você gostava de ouvir rádio, assistir TV? Tinha música na sua casa?
R – Aí já não era mais na infância, acho que eu já estava mais na adolescência e tudo. Aí a gente ouvia já umas musiquinhas, pegava aquelas fitas cassete, colocava no gravador lá e ouvia, a gente inventava também de cantar no microfone e depois ficava ouvindo a tristeza que a gente tinha gravado. Mas era muito bom. Ficava curtindo uma fosse porque já estava paquerando os molequinhos. E as outras irmãs pegavam namorado seu (risos) e aí...
P/1 – Então voltando um pouquinho, vamos voltar pra essa parte. Você falou que começou a trabalhar cedo. Como é que foi, como é que era trabalhar, o que você tinha que fazer?
R – A casa que eu trabalhei era de uma prima nossa de segundo grau já. Ela tinha as crianças pequenas então eu ajudava ela cuidando das crianças, brincando com eles, levando até a escola, que a escola era bem pertinho, na mesma rua, então levava até a escola, trazia. Lavava uma louça. Não tinha responsabilidade da casa no todo, mas a minha irmã mais velha também estava lá comigo, abaixo da mais velha, era a Cleusa que trabalhava ali. Então ela fazia a parte do trabalho mais pesado e eu fazia o mais leve.
P/1 – Isso foi até que ano?
R – Eu trabalhei assim na casa das pessoas mais ou menos até os 12 anos.
P/1 – E você estudava também nessa época?
R – Estudava.
P/1 – Qual foi a primeira escola que você entrou, você se lembra?
R – Eu estudei no colégio Mario Rangel, lá perto de casa. Eu fiz da primeira série até a oitava série lá.
P/1 – Ah, bastante.
R – Fiquei bastante tempo lá.
P/1 – Como é que era lá?
R – Ah, lá era muito gostoso. Mas eu sempre fui terrível, aprontava demais, batia nos meninos, batia nas meninas, arrumava confusão. Fui expulsa da escola, mas aí não tinha como me mandar embora de uma vez porque a minha mãe foi lá na casa de meus pais, me deixou lá e tudo, mas não deixou meus documentos. Ela fez a matrícula na escola, então minha mãe de criação ia lá e ficava chorando, pedindo pelo amor de Deus pra ficarem comigo senão eu iria perder aula porque não ia poder estudar porque não tinha o documento pra poder fazer a matrícula. E aí a coitada da diretora tinha que me aguentar mais um pouco. Eu jurava que não ia fazer mais isso, daqui a pouco já estava fazendo de novo. Mas era assim, era muito gostoso a época de escola que a gente tinha as aulas de Educação Física, que eu acho que o que a gente mais esperava era a aula de Educação Física pra ter atividade lá fora, com os amigos de classe, de outras classes também integravam com a gente, aí tinha campeonato interclasses. Era muito gostoso, eu gostava de handebol e basquete.
P/1 – E você tinha já alguma preferência por alguma matéria? Educação Física, Matemática.
R – Eu nunca tive muita afinidade em estudo, não. Fui descobrir depois com o meu filho mais novo que é o Ygor que eu também tenho dislexia. Ele tem dislexia severa, eu tenho uma branda e o meu outro filho do meu, eu dei herança pros meus filhos foi isso, dinheiro eu não dei, mas dislexia eu dei e bastante até (risos). O mais novo tem severa, o do meio tem branda e ali vai. E eu também tenho dislexia, então acho que por conta disso a gente não tinha muito interesse de estudar, só foi despertar o interesse por uma matéria, que foi a Matemática, quando eu já estava no segundo grau.
PAUSA
P/1 – Você estava falando do problema de dislexia, que você descobriu que você teve, né?
R – Eu tenho.
P/1 – Você tem.
R – Eu não tenho como tratar, não tem tratamento pra isso.
P/1 – Não existe tratamento.
R – Não. Você tem que aprender a conviver com ela, né? O Ygor, por exemplo, o Ygor tem uma dislexia severa, ele não consegue guardar informações. É igual você ter, ali você tem a planilha de Excel e você tem a planilha de Word. O que é pra você pôr no Word você pôs no Excel, e do Excel pôr no Word. E quando você vai procurar a sua informação você vai procurar no Excel, mas só que ela não está no Excel, está no Word. Então você não consegue encontrar o arquivo que ela está. E você fica perdido, você fica nervoso e tudo. Você tem que aprender a lidar com isso e você vai conseguir lembrar das coisas bem lá na frente. No entanto, hoje ele pode, ele tem um documento onde ele pode fazer uma prova e tem que ter uma pessoa lá pra ele estar respondendo verbalmente pra pessoa e tem que pegar e aguentar do jeito que dá.
P/1 – E quando você descobriu que você tinha esse problema?
R – O Ygor estava na escola, ele tinha feito já a primeira série uma vez, foi pra segunda vez, na terceira vez queriam passar ele mas não tinha condição, ele não aprendia nada. E uma, a dislexia, muitas vezes acompanha as pessoas que são hiperdotadas, né? Você vê um monte de casos em televisão aí que a pessoa, Albert Einstein mesmo era disléxico. E ali vai, né? Aquele que faz Missão Impossível, esqueci o nome dele.
P/1 – Tom Cruise.
R – Tom Cruise também é disléxico. Essas pessoas são sempre muito hiperdotadas e você não consegue, eles camuflam a dislexia. E o Ygor sempre foi muito inteligente. Na escola, desde pequeno aprontava demais, então eu batia nele todo dia porque ele não aprendia nada. Esfregava a cara dele no caderno, batia, ficava até tarde da noite, arrebentando ele no pau, eu falei: “Meu, não é possível que o moleque é tão vagabundo”. E parecia ser vagabundo. Eu peguei, fui na escola, a escola falou: “Olha mãe, esse menino pode ser de tudo, mas jamais ele vai ser professor de Matemática. Ele pode ser até um pintor de qualquer coisa, mas isso aí não aprende de jeito nenhum”. Eu falei: “Putz grila, eu vou ficar com um moleque burro”. E já vai indo (risos). Aí passou pro segundo ano, repetiu, o segundo ano ele fez não sei quantas vezes, foi pro terceiro, tudo sem saber escrever. Aí ele chegou na quarta série e eu falei: “Gente, não é possível”. Fui atrás de psicóloga, a psicóloga fez todos os testes e falou: “Olha mãe, ele é assim, assim e assim e parari parará”. Eu falei: “Não tem dislexia?”, porque eu já tinha lido de tudo. Ela falou: “Não, ele não tem dislexia, eu fiz alguns testes com ele, não tem”. Eu falei:
“A senhora tem certeza que ele não tem?” “Não, não tem” “Ah, então vou cobrir ele no pau”, da-lhe pau, batia que era uma beleza. Aí eu falei: “Não é possível”, fiquei lendo de cá, de lá e fui vendo algumas características que tem a dislexia e ele também tinha. Aí eu insisti com a psicóloga e ela falou: “Vamos fazer um teste”. Aí eu fui pra Associação Brasileira de Dislexia e eu descobri até com isso, que achei muito legal, que o dono da Arapuã, quem conhecia as lojas Arapuã antigamente, ele que trouxe os especialistas para o Brasil porque ele tinha um filho assim. Ele foi tratar fora e falou: “Já pensou no Brasil quantas pessoas têm e todo mundo desconhece isso?”, e aí ele trouxe esse especialista que formou a ABD, a Associação Brasileira de Dislexia e lá o Ygor foi feita uma junção médica com mais ou menos uns cinco profissionais e aí foi descoberto que ele tinha a severa, né? E aí depois falou: “Mãe, isso é hereditário”. Fizeram alguns testes comigo e viram que era comigo mesmo.
P/1 – E voltando um pouquinho você disse que trabalhou até os 12 anos na casa de...
R – Parentes, né, mas era casa de família.
P/1 – E depois você continuou trabalhando em outra coisa?
R – Aí eu fui trabalhar numa firmazinha de um primo da gente em terceiro grau. Ele tinha aquelas geleias reais. Você colocava na caixinha que tem os buraquinhos parecendo casa de abelha e você vai colocando a caixinha, fecha a caixinha e ele tinha uma equipe pra vender. A gente trabalhava embalando isso daí. Aí depois disso ele abriu uma empresa de brinquedos didáticos e também a gente fazia a mesma coisa, montagem toda, embalava e aí tinha uma equipe que vendia nas escolas.
P/1 – Com esse primo você ficou até quando trabalhando?
R – Eu fiquei trabalhando com ele mais ou menos até os meus 15 anos, perto dos 16 já.
P/1 – Você se lembra o que você fez com o seu primeiro salário?
R – Ah, com o meu primeiro salário eu comprei uma bicicleta. Ah, eu sonhava em ter uma bicicleta! Eu comprei uma bicicleta usada, que eu amava minha bicicleta, eu ia trabalhar direto com a bicicleta e voltava. Eu tenho um irmão que não vale nada, ele ficava só esperando, espreitando pra andar na minha bicicleta. Aí um dia eu cheguei em casa e a minha bicicleta não era bicicleta, tinha virado um oito. Meu irmão entrou na frente do ônibus (risos) com a bicicleta. Aí eu fui brigar com ele e ele falou: “Ah, pega esse lixo” “Lógico, tá toda zoada”. Mas eu chorei demais. E ele nem queria saber, ficou só rindo e ainda tirava sarro da minha cara, foi triste.
P/1 – Vocês andavam todo mundo junto, brincavam juntos, os nove?
R – É, a minha irmã mais velha começou a trabalhar muito cedo e já trabalhava fora e a pra baixo da mais velha ficava cuidando da gente. Mas a gente brincava tudo junto, quando arrumava uma bicicleta era um sentado na bicicleta, outro no cano e outro na garupa, eram três na mesma bicicleta. Na maioria das vezes a bicicleta não tinha nem freio, né? Então pra parar você se jogava, corria pra dentro do mato e todo mundo pulava no mato (risos).
P/1 – E depois, lá por esses 15 anos você começou com essas coisas de namorar, de ir atrás dos meninos.
R – Não, com 16 eu comecei com isso. Eu comecei a namorar lá pelos meus 16 anos, dava uns beijinhos nos meninos, era mais animadinha.
P/1 – E como é que se fazia nessa época? Você ia falar com o cara, mandava uma carta.
R – Não, naquele tempo a gente ficava brincando de beijo, abraço e aperto de mão, né? A gente já colocava os moleques que a gente queria dar uns beijinhos, aí quando estava lá com o olho tampado a amiga dava um cutucadinha no olho, aí você já sabia que era o menininho que você queria abraçar. Era beijo, abraço, aperto de mão e uma voltinha na praça. Aí na voltinha na praça você pegava o peão lá na praça, né? (risos)
P/1 – E aí que começa baile, essas coisas?
R – É, tinha os bailinhos e tudo. E eu como já nasci numa família adventista, a gente não podia frequentar baile. Então era escondido que a gente ia, pulava a janela de casa, meu pai e minha mãe dormia, a
gente pulava a janela e ia. Nem dançar a gente não dançava, ficava segurando a parede lá do baile e ficava lá olhando os outros dançarem, paquerando os meninos. Mas aí ninguém queria muita coisa com a gente não, porque a gente não era muito enturmada, de ficar dançando com o pessoal. E naquele tempo você sabe, tem as meninas mais enturmadas, mais bonitinhas, que sobressaíam. E a gente ficava lá só olhando. Mas era gostoso mesmo assim.
P/1 – E o que se ouvia nessa época de música no bailinho?
R – A gente escutava muito Tim Maia, Jimmy Bo Horne, aquele samba rock também. Samba também tinha bastante, Fundo de Quintal também tinha naquela época. Era nesse segmento aí.
P/1 – Nos bailes.
R – Nos bailes.
P/1 – Isso é o quê, anos 80?
R – É, os anos 80.
P/1 – E como era essa vida na igreja que você falou? Vocês iam todo fim de semana?
R – Nós sempre fomos de sábado, domingo e quarta-feira.
P/1 – Quarta-feira também?
R – Quarta-feira também. De sábado era sempre na parte da manhã, quase a parte da manhã toda, que era das nove horas e terminava ao meio-dia; no domingo era de umas oito até uma nove e na quarta também das oito até às nove.
P/1 – Você sempre gostou, foi uma coisa que você acompanhava, que te tocava?
R – Sempre gostei muito porque eu acho que quando você tem uma referência cristã você tende menos a fazer coisas que não deve. Coisas assim, maldade com as pessoas, mexer no que é dos outros ou furtar alguma coisa, então tudo você tem aquele conhecimento de um Deus, que te olha, que te cuida e também de uma forma ou de outra te guia mostrando o que é certo, o que é errado. Então acho que quando você tem uma criação cristã te ajuda bastante isso. E nisso daí eu sempre gostei, sempre tinha uma programação jovem, tinha o coral da igreja, também tinha aulas de piano, aulas de violão e essas coisas gostosas, né?
P/1 – E era no Capão Redondo a Igreja.
R – Isso, era no Capão Redondo, Jardim Colégio.
P/1 – E depois dos 15 anos você estava estudando onde?
R – Nos 15 anos eu comecei no colégio que eu fiz o segundo grau. Eu sempre esqueço o nome daquele colégio.
P/1 – Não tem problema se esquecer.
R – Não lembro agora.
P/1 – Mas você fez nesse colégio até o terceiro ano.
R – Isso. Eu fiz o primeiro e o segundo, aí parei no segundo, fui morar em Goiânia, morei por um ano e meio em Goiânia, depois que eu voltei eu terminei.
P/1 – Por que você foi morar em Goiânia?
R – Porque teve uma oportunidade de emprego lá e minha mãe falou: “Vai tentar lá”, porque tinha uma vizinha nossa que trabalhava no tribunal de justiça. Ela mudou pra lá e ela era concursada e tudo, foi pra lá e quando ela foi ela tinha essa oportunidade de emprego e eu fui pra lá também. Mas eu não me adaptei muito não porque lá é muito quente. E lá tem bastante lésbica também, onde você vai as mulheradas ficam te paquerando, não dava certo.
P/1 – Você não gostou (risos).
R – Não, não gostei.
P/1 – Agora vou fazer uma pergunta de reciclagem. Nessa época que você tinha 18 anos ou na sua infância, reciclagem era um tema que tinha na escola, no dia a dia ou uma preocupação?
R – Nem se falava, nem se falava. Nunca nem ouvi falar de reciclagem. Mesmo na faculdade eu nunca ouvi falar.
P/1 – Ah, é?
R – Nunca ouvi falar.
P/1 – No cotidiano as pessoas não tinham esse problema de...
R – Nada, nada. Ninguém. Eu lembro depois que eu entrei na reciclagem eu lembro que eu já vi pessoas quando eu era menor, nessa idade aí, coletando papelão, que é o que a gente via sempre, era papelão e latinha, mas agora o restante do material nunca vi. E nem sabia o que a pessoa, sabia que ele vendia pro ferro velho, era papelão, latinha e também passava na época quando eu era menor, quando eu não tinha nem os meus nove anos ainda, passava uma carroça que trocava panela por pintinho e rapadura pro povo (risos). Eu tomei muito cacete da minha mãe, pegava as panelas dela e trocava por pintinho, quando ela chegava em casa estava todo mundo lá brincando com um monte de pintinho. No segundo dia os bichinhos estavam tudo morto (risos).
P/1 – Mas tem um problema também, hoje em dia cresceu muito o lixo com embalagem, mutas embalagens.
R – É verdade. Na época a gente não tinha tanta embalagem.
P/1 – Como é que era?
R – A gente ia comprar feijão, você comprava feijão e pegava aquele papel marrom.
P/1 – Saco de pão?
R – Saco de papel marrom que eles pegavam lá com uma coisa parecendo uma xícara grande. Pegava o feijão, colocava, colocava no peso aí, fechava o pacotinho e era daquele jeito ali. Você não tinha sacolinha no mercado, a gente tinha que levar de casa pra colocar, então era pouquinha embalagem mesmo que se tinha. Sabão em pó era vendido no saquinho, só o sabão em pó mais top que era numa caixinha e olhe lá, ninguém tinha dinheiro pra comprar aquilo, né? Então assim, hoje o custo de vida eu acho que a gente tem mais condição de compra, antigamente não se tinha condição de compra, tanto que até frango pra você comer só no Natal, você só comia pé, pescoço e carcaça, é o que se comia. Carne, nossa senhora! Só quando aparecia o décimo terceiro, alguma coisa. E também naquela época quando você tinha filho recebia o salário, acho que era salário família, alguma coisa assim. Meu pai ia lá sacar, cada vez que minha mãe ficava grávida ele ia lá e sacava um dinheirinho, que era o dia que ele comprava a carne. Então tinha que esperar minha mãe ficar grávida de novo pra gente comer carne, era por aí. Mas eu acho que hoje a gente tem muito mais condição, né? E também as coisas aí cada vez estão mais modernizadas e cada modernidade põe-se uma embalagem. Um negocinho, põe-se uma embalagem, aí tem muito mais reciclagem do que antigamente. Antigamente a gente ainda pegava o nosso lixo e queimava. O lixeiro passava lá uma vida ou outra. O meu pai ainda conta que no tempo dele quando passava lixeiro passava com a carroça pra pegar lixo. Eu já não peguei o tempo da carroça, não. Era demorado o lixeiro pra passar.
P/1 – Agora, depois que você terminou o ensino médio como é que você estava na vida? Você tinha alguma coisa em mente, o que você estava fazendo?
R – Eu estava trabalhando já num laboratório de análises clínicas, eu examinava sangue, fezes, urina, essas coisas todas. Sabe que eu nunca tive prospecção de pensar no que eu queria ser na vida, nem nada disso, as coisas foram acontecendo na vida. Aí teve uma época em que eu ainda pensei, eu sempre tive loucura pra correr de moto, sempre quis ser corredora de moto. Desde pequena já ficava andando com umas mobiletezinhas velhas lá, montava e ficava acabando com o juízo dos vizinhos tudinho que a bicha fazia só barulho e não andava, né? Eu consegui com muito custo depois da bicicleta, eu trabalhei, trabalhei e comprei uma motinha, uma mobilete. Aí tirei o motor dela de mobilete e pus de moto cinquentinha da época, que tinha, aí a bichinha já corria melhor. E aí era o meu sonho, correr de moto.
P/1 – E por que você acha? Você assistia na TV corrida de moto ou era só a sensação?
R – A sensação, era muito gostoso. Até hoje, eu subo na moto, o coração bate, dispara, eu amo, amo, amo esse negócio. Só não continuei porque tive um acidente de moto, tive traumatismo craniano aí eu parei. Minha mãe vendeu minha moto na época e eu fiquei sem nada.
P/1 – E você conheceu seu marido nessa época?
R – Não, eu já estava morando sozinha. A minha mãe sumiu por um bom tempo e aí quando eu tive esse acidente de moto eu fiquei no hospital. Por eu ficar no hospital eles não encontraram documento meu, nem nada e depois com muito custo, eu tinha um namorado na época, ele pegou e levou meu RG, tudo e aí viram o sobrenome da minha mãe e foram atrás dela pra encontrar. Porque o meu namorado na época sabia que eu morava sozinha, ele falou assim: “Eu não conheço ninguém da família dela”. Foram atrás da minha mãe, ligaram pra ela, aí a minha mãe falou: “Ah, não tenho nenhuma filha com esse nome, não”. Mentira, né, porque não queria ir lá, porque tinham falado que eu tinha me acidentado. E ela trabalhava em casa de família. E eu peguei e fui parar lá na casa dela. Estava com a cabeça toda enfaixada, parei na porta da casa dela e falei com ela: “Mateus que pariu que balance, se vira. Até hoje não te incomodei, não precisei, mas agora eu preciso”. Aí ela falou com a patroa dela e eu fiquei morando com eles lá. E foi ali que eu conheci o meu ex-marido, que eu casei na época.
P/1 – E nesse período do acidente você tinha quantos anos?
R – Eu estava com 20 anos.
P/1 – Trabalhava no laboratório ainda?
R – Laboratório, deixa eu ver se eu estava ainda no laboratório. Não estava mais em laboratório, eu estava na Omni, estava numa financeira.
P/1 – Você trabalhava com administrativo?
R – Isso, administrativo. Trabalhava com a parte de TI, trabalhava em análise de computação.
P/1 – E você estava conhecendo sua mãe de novo, é isso? Como é que foi?
R – Voltei pra casa dela, mas minha mãe nunca deu de falar muito, não. Eu chegava do trabalho, ela fazia a minha comida, me dava o prato de comida pronto, eu tomava banho e ia dormir. Ela não falava nada. Se eu falava ela só escutava e mais nada.
P/1 – E como é que você conheceu o seu ex-marido?
R – Então, a minha mãe de criação sempre foi do candomblé, então ela ia na sessão macumba lá perto de casa (risos). E tinha lá todo esse pessoal que chamava ela de tia, esse que foi meu marido chamava ela de tia também, não sei o que mais. Aí cheguei lá, negão bonitão, vistoso, que ele era lutador de boxe, né? Eu falei: “Ôpa, não tenho nada pra fazer, ele também não”. Chamei ele pra ir no cinema, ele concordou, aí começamos a dar uns beijinhos. E num dos beijinhos já fizemos até filho e tudo, aí foi (risos). Eu casei. Conheci ele, casei com ele e fiz filho em três meses. Rápido, né? Também fiquei 19 anos casada.
P/1 – E como era ser casada com um lutador de boxe?
R – Ah, assim, eu nunca gostei de ver as lutas dele. Ele ia lá nas lutas e tudo o mais mas eu fui só duas vezes ver as lutas dele, mas era muita ignorância, um ficar batendo no outro só por competição, eu achava aquilo uma tolice. Você bate, bate no outro, um sai machucado, o outro sai meio zoado também pra poder dizer que ganhou? E não ganhava nem dinheiro naquilo, credo!
P/1 – Como era esse meio nessa época? Tinha aposta?
R – Ele lutava era assim, como eles falam mesmo? Não é profissional, esses outros que lutam por lutar. Ele ganhava título só, medalha, essas coisas todas, mas não ganhava dinheiro.
P/1 – E você tinha que cuidar muitas vezes dele?
R – Ele chegava muito arrebentado, aí você tinha que pegar e passar umas pomadas (risos), cuidar que os olhos estavam inchados com os gelos, no outro dia nem abria o olho. Era punk. Mas ele gostava, ele amava, se sentia o máximo.
P/1 – E você trabalhou com TI, essas coisas? Como é que você veio trabalhar com isso?
R – Eu fiz o segundo grau técnico, aí eu fiz voltado pra Computação. Fiz o segundo grau, fiz os três anos de Processamento de Dados.
P/1 – E você se casou em que ano?
R – Eu casei em 89.
P/1 – Qual é o nome dele?
R – César Augusto.
P/1 – E você disse que teve um filho logo em seguida.
R – É, tive meu filho mais velho, o Caio.
P/1 – Como é que foi o dia que ele nasceu?
R – Ah, foi muito legal. Como já tinha sido tudo preparado direitinho, tinha médico particular e tudo, então tinha a data certinha pra ele nascer. Tudo assim foi calhando direitinho, mas o legal foi quando eu tive ele, porque o meu ex-marido também é negro, né? Ele é bem mais escuro do que eu e quando filho de negro nasce é igual urubu, nós nascemos brancos e depois ficamos pretos (risos). Quando ele foi ver o moleque, o moleque vermelho pra cacete, aí ele falou assim pra mim: “Você não presta, esse filho não é meu, não!” (risos) Eu falei: “Então tá bom, deixa pra lá, eu não vou nem importar”. Aí minha mãe estava lá me esperando, eu peguei e falei: “Mãe, eu já estou voltando pra casa porque eu não vou ficar com esse ignorante, não”. Aí o médico falou pra ele: “Me desculpa, com o perdão da palavra, eu não tenho nada que me meter na sua vida, mas eu vou te falar um negócio. Você já teve filho alguma vez?”, ele falou: “Não, é primeiro filho”. Ele falou: “Então, você pesquise um pouco antes porque filho de preto é igual urubu, nasce branco e depois fica preto. Ele é vermelho desse jeito porque ele vai ficar preto, você entendeu? Pode ver. Já vai vendo nas unhinhas do moleque assim que já tem uns marronzinhos na junta e depois o bichinho vai ficar preto”. Aí ele: “Não, não sei o quê”, aí ele chegou em mim: “Não, preta, desculpa” “Ah, agora vai pros quintos dos infernos, você disse que eu não prestava”. Porque pra eu casar com ele já foi uma palhaçada. Ele falou pra mim assim: “Ah, agora que você está grávida vamos morar junto”. Eu falei: “Eu não, não gosto de você, por que eu vou morar junto?”, aí ele falou assim: “Ah, porque você está grávida de mim” “Não, porque eu estou grávida não quer dizer que eu vou casar com você, sai fora”. Aí minha mãe falou: “Ah, você se vira, que eu não mandei você arrumar sarna pra se coçar. Ou você mora junto, o que você vai fazer eu não sei”. Eu falei pra ele: “Tá bom, vamos morar junto”. Quando eu fui pensar em morar junto a minha sogra pegou e falou bem assim: “Ah, tá interessada no que ele tem e não sei mais o quê”, e parari parara. Aí eu falei: “Sabe de uma coisa?”, até então ia morar junto, como a velha encheu o saco eu falei: “Não, agora eu quero casar no papel” “Tá bom, vamos casar no papel”. Eu falei: “Mas eu não quero o seu sobrenome, não”. O sobrenome dele é horrível, é Jacinto. Eu falei: “Jacinto que eu vou me lascar, mas vamos casar”. Chegando lá aceitou porque hoje em dia você pode casar sem o nome do marido, né? E o marido pode até pegar o sobrenome da mulher se quiser. Eu falei: “Eu te dou o meu que é mais legal”, ele disse que não queria, que também tem que honrar o nome dele, pá. Quando chegou lá na frente do juiz, o juiz falou assim: “Como vai ficar? A senhora vai pegar o sobrenome dele ou não?”, eu falei: “Não”. Aí na frente do juiz ele falou: “Mulher minha tem que ter meu sobrenome”. Eu falei: “Ah, pois então fica aí, fio”, e fui embora. Aí o juiz falou: “Se vocês não estão se dando bem agora é melhor vocês não casarem”. Falou o que eu queria, voltei pra casa. Depois de 15 dias eu voltei lá pra casar direitinho que aí ele aceitou que eu ficasse com o meu nome, senão não casava, não.
P/1 – Mas como é o humor dele?
R – Ele é muito gente boa. Ele é uma pessoa muito carinhosa, muito gente boa, muito família, até os cinco anos de casados nosso ele era muito dez, muito presente, estava sempre ali me ajudando. Mas depois ele se envolveu com droga. Ele já bebia, mas aí eu acho que as drogas já existiam antes, mas ficou mais intenso depois desse período. E foi ficando cada dia pior a situação, ficou um tempo que ficou insustentável, eu acho que a pinga já começa a comer os neurônios e a droga começa a subir pra tudo quanto é lado, aí já não dava mais. Não dava.
P/1 – E quando o Caio nasceu você estava morando onde?
R – Eu estava morando aqui mesmo. Onde hoje eu moro, lá em casa são dois terrenos, então eu moro num terreno e ele mora em outro. Eu moro numa casa e ele mora na outra.
P/1 – E onde fica esse terreno?
R – Nós moramos aqui na Vila Madalena.
P/1 – Que rua que é?
R – Rua Doutor Luís Augusto de Queirós Aranha.
P/1 – E como é que é lá?
R – Lá é um bairro nobre, um bairro muito gostoso aqui, que é Alto de Pinheiros, né? É um bairro muito gostoso de se morar, tem umas casas, as ruas são muito arborizadas e tudo. E lá nesse contexto todo de casas maravilhosas tem duas ruas que é a Vila Ida, duas ruas de casinhas mais humildes, é tipo vila mesmo, uma vilinha. São só essas duas ruas que têm e o contexto todo em volta só aqueles casarões. E muito gostoso, muito tranquila, quase você não vê gente na rua, só vê de vez em quando o pessoal passear com seus cachorrinhos ou fazer um esportezinho. Mas é bom. Eu moro ali já vai pra 26 anos, só conheço de falar bom dia e boa tarde a vizinha da frente e a vizinha do lado. É bom que não tem ninguém fofocando na rua, não tem um monte de criança, um monte de cachorro, porque você vai pra bairro menos favorecido o tanto que você vê de criança na rua você vê de cachorro, gato, papagaio, tudo, lá não tem nada disso, ainda bem.
P/1 – E como é que você acha que foi pros seus filhos crescerem lá?
R – Ah, eles gostavam. Até hoje eu tento pegar e tirar eles de lá e eles falam pra mim que não vão. Como eu te falei, eu vou acabar indo sozinha pra me livrar deles.
P/1 – E depois do Caio veio quem?
R – Aí não passou nem dois anos. Nossa, eu quase morri! O Caio estava com um ano, eles têm diferença de um ano e quatro meses de um pro outro. Porque aí nove meses você fica grávida, mas não cheguei a ficar nem nove meses grávida do Ygor, com cinco meses e meio eu tive ele. O Ygor nasceu prematuro com 800 gramas, aquele que está aqui e você conheceu ele. E aí pra pegar e cair a ficha que eu estava grávida eu só fui saber que eu estava grávida do Ygor quando eu estava com três meses. Com cinco meses e meio ele nasceu.
P/1 – E como é que foi isso daí? Foi difícil?
R – Muito difícil. Porque eu não queria ter sido mãe do Caio, que eu não queria ter filho nenhum. Já fui mãe do Caio, aceitei, quando eu estava terminando de aceitar já estava grávida do Ygor. Eu queria morrer. Eu trabalhava no oitavo andar aí eu falava pro povo: “Eu vou me jogar daqui, eu não aguento” (risos). E uma, quando eu ficava grávida eu ficava pior. Já não era bonitinha mas ficava mais feia ainda. Magra, magra, os peitos lá na frente e barriga, só tinha peito e barriga e mais nada. E o resto, os braços seco, seco parecendo aqueles etiopanos passando fome, sabe?
P/1 – E ele ficou muito tempo incubado, como é que foi?
R – Ah, ele ficou no hospital em torno de um mês e meio, quase dois meses, pra poder pegar peso, que ele nasceu com 800 gramas e só saía do hospital com dois quilos. E ele demorou bastante pra estar saindo do hospital.
P/1 – E eles deram trabalho pra você, crescendo, faziam muita algazarra?
R – Ah, faziam. O Ygor pior. Porque o Ygor sempre foi muito travesso. Quando pequenos os dois aprontavam muito na creche, aí depois quando um pouquinho maior eu colocava eles na perua pra poder ir pra escola e eles não quiseram mais ir de perua, queria ir com as próprias pernas porque a tia da perua era chata e não sei mais o quê. Um com oito anos, outro com seis e um pouco queriam andar. O Caio eu já deixei andar de ônibus sozinho, mas o Ygor eu deixava na perua ainda. Quando o Ygor fez nove anos, o Ygor não sabia ler, como eu te falei por causa da dislexia, então eu ensinei ele a andar de ônibus. Mas daí ele aprendeu rapidinho porque pegava a carteirinha dele de ônibus, os passes, e rodava São Paulo quase toda. Vira e mexe neguinho com ele com dez anos encontrava com ele na Paulista. Eu trabalhando e o moleque na Paulista. Eu falei: “Mentira que o meu filho está lá, coitadinho, ele não sabe”. A gente que é mãe só vai saber depois, a gente é a última a saber, sempre. Os outros falam: “Você é mãe, você não sabia?”, não, você não sabia mesmo, é verdade. Eles conseguem te enrolar a um ponto e você olha pra cara deles e fala: “Nossa, meus filhos são santos, anjos”.
P/1 – Eles deram trabalhinho então.
R – Nossa, deram trabalho.
P/1 – E são seus únicos filhos.
R – São, os dois.
P/1 – E quando eles tinham seus dez anos você estava trabalhando no quê?
R – Com dez anos eu estava na Gradiente. Eu trabalhava na parte de atendimento ao cliente da Gradiente e eu fazia parte jurídica da Gradiente ali. Eu fazia como preposto, tinha que defender a Gradiente em juizado de pequenas causas, Procon e quem fazia isso era eu.
P/1 – Você ficou até que ano lá?
R – Eu fiquei até 2003.
P/1 – E por que você saiu de lá?
R – Eu saí de lá porque a empresa foi à falência.
P/1 – Ah, é?
R – Foi à falência. Aí eu saí de lá, foi quando eu comecei a mexer com reciclagem, em 2003.
P/1 – E como é que você ficou sabendo desse negócio de reciclagem?
R – Eu tenho uma amiga que tem uma ONG, a Cida. E ela cuidava muito de crianças que não tinham como estudar, não tinham o contexto de ir pra escola e depois não tinha lugar onde ficar depois da escola. Então ela ficava cuidando disso daí tudo. E ela começou a fazer uns trabalhos artesanais com produtos recicláveis e ela começou a ter conhecimento disso também. Foi quando a Marta abriu a oportunidade de sociedade fazer uma parceria com a prefeitura, abrindo essas cooperativas de reciclagem, onde as pessoas já trabalhavam ali, unidos, vendendo o material delas com muita dificuldade e aí foi quando teve essa primeira oportunidade onde São Paulo deu um boom na parte de reciclagem por conta disso, essa iniciativa que teve a prefeitura na época.
P/1 – Em 2003, 2004?
R – Um pouco antes foi a Erundina que fez isso, depois logo foi a Marta. E eu entrei na época da Marta, da Erundina eu nem sabia o que era isso.
P/1 – Então você fez o quê? Você investiu nisso?
R – Uma amiga me chamou e falou pra mim: “Tereza, logo que você não está fazendo nada, fica aí cabisbaixa, chateada porque saiu do serviço, vamos fazer algum serviço social”, eu falei pra ela: “Meu, serviço social não tô a fim não, o que é isso? Tenho tanta coisa pra fazer da vida”. Aí ela falou assim pra mim: “Não, a gente vai ajudar um pessoal a mexer com reciclagem e tudo o mais”. Eu conversei em casa com a minha mãe e minha mãe pegou e falou assim pra mim: “Você tá louca, ir mexer com lixo? Se mexer com pobre você fica mais pobre ainda. Você já tá toda fuzilada, vai mexer com pobre?”, eu falei: “Mãe, mas o povo tá precisando”. Ela falou: “Tá bom, quando você precisa de alguma coisa alguém vem te dar aqui na tua porta?” “Ah mãe, mas não estou fazendo nada” “Arruma ocupação, vai fazer alguma coisa. Menina, você estudou pra quê?”, e eu comecei lá. Eu falei pra minha amiga: “Eu vou ficar uns três meses aqui, te ajudo nesses três meses, recebo meu seguro desemprego e a gente vai tocando e eu vou pensando no que eu vou fazer”. E aí comecei a ajudar ela, o que ela fez? Comecei a ajudar ela, daqui a pouco ela foi me largando, me largando, me largando sozinha e eu fiquei: “O que eu vou fazer com esse povo?”. Eu não sabia nada de reciclagem, foi as meninas que me ensinaram, que já sabiam tudo sobre reciclagem e nós começamos, fomos indo e até hoje, os três meses meus já vai agora em 2016 vai pra 13 anos. Em janeiro, 14 de janeiro, vai fazer agora 13 anos.
P/1 – Na época como era a situação das pessoas que trabalhavam com lixo?
R – Muito delicada, viu? Muito delicada. As pessoas praticamente trabalhavam só pra poder se alimentar. Por uma cesta básica elas faziam muita coisa. No entanto, a gente quando ia pedir alguma ajuda pras pessoas a gente não pedia ajuda de maquinário, nem nada, era cesta básica, o que comer pro pessoal. A situação era bem difícil. Eu tinha saído da empresa na época e tinha recebido a minha rescisão. E o pessoal chegava sem dinheiro de condução pra ir trabalhar, sem comida porque não tinha comida em casa, aí eu comprava uma marmita, dividia pra dois, três. E ali foi a minha rescisão todinha, gastei nisso (risos). A minha mãe ficava: “Tá vendo? Não falei pra você que a gente entra rico e sai pobre nesses negócios? Vai mexer com pobre pra você ver”. Fazer o quê. Até o carro que eu tinha eu vendi na época também. E ali foi.
P/1 – E por que isso acontecia? Como era a situação na reciclagem na época?
R – Olha, a situação da reciclagem na época já era bem difícil. Hoje a gente tem um leque maior de venda, muitos materiais naquela época você não conseguia vender, hoje praticamente você vende todos, só não vende as embalagens que os designers aí, que o pessoal de marketing inventa, tem umas embalagens que os caras inventam mas eles não têm a percepção de perguntar ao pessoal lá da ponta: “Olha, o que a gente vai fazer com esse material depois que a pessoa consumiu a mercadoria? O que a gente vai fazer?”, não tem venda, tem coisas que não têm venda e tem outras que é muito dificultoso pra se vender. E você tem o mesmo trabalho de separar um tipo de material, aquele tipo de material. Por exemplo, PET. Você tem a PET branca, a azul e a verde. Agora inventaram a laranja, uma empresa de água aí inventou uma laranja. E essa daí não tem venda, você fica com ela parada. E se você conseguir vender você vai vender a 40 centavos, enquanto a outra você vende a 1,40. É o mesmo trabalho pra vender por menos valor. E a conta da reciclagem até hoje não fecha, como também antigamente. A prefeitura te dando espaço, te dando maquinário, pagando água, pagando luz como ela faz, ela faz tudo isso aí pela gente e a gente agradece muito porque isso daí abate bastante no valor do material, te ajuda bastante na contribuição do material, mas mesmo assim a conta não fecha. Porque se você pegar esse material todo, vende esse material todo e se forma numa receita pra poder pagar pros cooperados, pra você ter uma renda mais ou menos hoje de dois salários mínimos por cooperado, dois salários mínimos e meio, que hoje uma pessoa não sobrevive com esse valor, porque se você paga aluguel, água, luz, imposto e ainda tem que comer. Porque cooperado parece que é assim, cooperado não faz um filho só, sabe assim, uma pessoa que tem muita consciência dentro da cooperativa você pode chamar lá dentro e pergunta: “Quantos filhos você tem?”, o que tem pouco tem cinco, entendeu? Isso que tem televisão, tem computador, tem notebook. Agora tem o zap que te prende bastante, né? Ainda bem, tomara que os outros agora comecem a pensar a fazer amor pelo zap que aí não faz filho. É o que eu falo pro pessoal: “Gente, com todas essas tecnologias neguinho faz filho ainda”. E o pessoal tem muita, a demanda deles é muito grande pra pouco dinheiro. Hoje você tem que arrumar, algum subterfúgio a gente já cobra de alguns locais pra poder ir fazer a coleta seletiva e aí nos ajuda também na receita. Mas tem as quedas, os altos e os baixos. E naquele tempo era a mesma coisa, naquele tempo era até pior que tinha materiais que não tinham reciclagem. Depois, com o tempo pra cá que o pessoal já foi vendo: “Ah, esse material PS vamos pegar e reciclar isso que a gente sabe já há uma demanda”. Mas antes só era papelão, papel branco, sacolinhas que eram apara colorida, apara branca, e jornal e revista. Ah, vidro também e a sucata. Material fino como sempre, sempre teve. Mas aí o restante que você vê, PP, PAD, PET, não sei o quê, depois que foi aumentando. Já tinha, mas a procura não era tão grande.
P/1 – Agora como é que funciona o ciclo todo? As pessoas produzem o lixo, aí ele vai pra onde? Como ele chega até aqui?
R – Começa assim, o cara numa empresa teve uma ideia, aí o designer vai lá e compra a ideia. Como eu te falei, não pergunta nada pra ninguém, ele acha que vai vender, então põe o negócio à venda. Vendeu-se. Comprou, a dona de casa leva pra casa, ou que seja uma empresa e tudo o mais. Aí separa-se, hoje a gente dá educação ambiental dentro dos condomínios, as pessoas fazem a separação e segregam tudo num local só e depois disso vem o caminhão e retira. É marcado os dias para a coleta seletiva em cada rua aqui em São Paulo.
O caminhão retira, traz pra cooperativa onde é feita toda a separação. Depois de separado é prensado a gente faz um lote ali, um comprador pra vir comprar um papelão tem que ter 12 mil quilos, então você deixa lá os 12 mil quilos prensados, liga pra ele, ele vem, busca e paga isso com três a cinco dias úteis, está o dinheiro na conta. E ali vai, material por material, a gente vai separando e vendendo pra depois no final do mês ter a receita, a gente tira primeiro todas as despesas da cooperativa com telefone, material de limpeza, EPIs, essas coisas todas. Tira-se esse valor, tira-se os 10% que seria o fundo e o restante é feito o rateio entre os cooperados. E cada um conforme produziu. E aí depois sim, que a gente... aí no fim aquele fundo é feito depois um rateio, em cada mês de março é feita a prestação de conta. E quando a gente faz a prestação de conta a gente decide o que vai fazer com esse dinheiro, se vai comprar um equipamento, se vai ratear pra todo mundo pra ser um décimo terceiro fora da época, essas coisas assim.
P/1 – Esse comprador, quem que ele é? O que ele compra esse produto, o que ele faz?
R – Então, tem conforme o segmento. Você tem a Suzano. A Suzano compra papel branco e o papelão. E com o papel branco ela faz o Reciclato, um papel reciclado que volta de novo pro mercado com essa apelação da parte da reciclagem. E o que a gente vem brigando faz muito tempo é que a partir da hora que a empresa, quando você compra um material você já foi tributado, PIS, Cofins, ICMS e tudo o mais, depois que ele voltou pra reciclagem você é tributado novamente. E aí você pode ver, hoje se você for comprar um papel Reciclato no mercado, ele é mais caro do que o branco. E você vai pegar e ajudar que a reciclagem continue como? Mesmo com a apelação. Muita gente compra porque tem consciência e tudo, então vou pagar um pouco mais caro, mas a maioria das pessoas que não tem consciência vai lá e compra o branquinho. Mas eu não acho justo, quando ele voltou pro mercado como Reciclato ele teria que ter incentivo, não uma cobrança. Porque é menos produto jogado no lixo, é menos coisa que vai pro aterro, é um material que deu emprego pra muita gente. E é um emprego aonde ninguém é tributado, ninguém tá pagando nada porque o cooperado paga o seu INSS, o cooperado paga tudo, ele paga a condução dele, ele paga tudo, tudo sai do bolso dele. Então ele não está sendo um custo pra sociedade e nem pra prefeitura, que seja. Então eu acho que teria que agregar naquele material pra depois voltar pra ele, que agora é o que nós estamos tentando aí, foram feitos os acordos setoriais, a logística reversa, não ficou boa como a gente queria, mas já vai nos ajudar bastante. Eu acho que agora, se isso for realmente feito, for fiscalizado, a conta fecha, onde todo mundo vai ser feliz. Você que está lá fazendo seu design, que fez mal feito e mandou pra mim uma coisa que não vai dar em resultado nenhum, mas mesmo assim eu vou estar ganhando porque você fez isso, chegou lá, eu triei e não tive pra quem vender, mas tive o trabalho. E eu vou receber por isso. Agora a conta vai fechar.
P/1 – Agora me conta um pouquinho da história da cooperativa aqui. Ela sempre esteve aqui, sempre foi assim?
R – Não, nós fundamos a cooperativa de fato e de direito em 19 do quatro de 2004, que já saímos com a documentação, tudo. Trabalhávamos desde 2003, mas a documentação só foi sair em 2004. E nós ficávamos na Sumidouro, ali onde tem hoje a Praça Victor Civita.
P/1 – Na Vila Madalena mesmo.
R – Fica ali em Pinheiros mesmo. É uma praça muito linda, maravilhosa, tem nossos nomezinhos lá na praça, no mural, tem uma fotinho muito distante lá. Mas o Roberto Civita, o filho do homem lá, quando passava de helicóptero lá em cima ficava xingando a gente porque era a mendigaiada do lado da Abril Cultural. Ele passava de helicóptero e tudo. Eu fiz até a proposta pra ele poder abraçar aquela cooperativa como uma parte social pra eles e colocasse lá o nome da empresa dele e tudo o mais, fizesse uma empresa modelo. Mas não, ele não queria a mendigaiada nem perto dele. Fez que fez que fez até tirarmos nós de lá. E ele fez a praça dele que hoje tem a praça com o nome dele e tem até cadeado, ela abre e fecha, sabe? Eu nunca vi praça sendo da prefeitura, mas tudo bem, quem sou eu? Briguei muito na época, mas não adiantou. Aí eu fui lá pra antiga usina de compostagem, que fica lá na Macedo Soares, 6.000, é Marginal mesmo mas já lá próximo da Marginal Pinheiros. Aí ficamos lá de 2008 até 2012. Todo lugar que eu vou se torna praça ou parque, sabe? Aí lá vai ser o Parque Villas Boas. Aí tirou a gente de lá, foi uma brigaiada de novo e até hoje está lá, só o mato tomando de conta e nós viemos pra cá. Agora aqui nós não vamos sair mais porque aqui foi feito um acordo aí, nós temos uma concessão, só falta a documentação, de 99 anos aqui. E esse terreno saiu no Diário Oficial e tudo, que é destinado à Cooper Viva Bem. Então agora a gente daqui não sai mais.
P/1 – Que ano que foi isso?
R – Nós mudamos pra cá em 2012. Nesse ano eu não estava na cooperativa, eu fiquei de 2004 até 2010 como presidente, aí 2010 passou a Elma a ficar no meu lugar e eu fui pra uma empresa alemã trabalhar. Eu trouxe pra cá essa empresa que faz reciclagem de geladeiras. Eu fiquei trabalhando com eles de 2001 até 2013.
P/1 – E você voltou pra cá.
R – Depois de 2013 até 2014 eu trabalhei numa outra empresa de reciclagem de isopor, depois que eu voltei pra cá.
P/1 – E hoje vocês reciclam quais produtos? Qual o produto mais?
R – O que impera aqui, que são os mais volumosos, é ferro, papelão, papel branco, isopor e vidro, esses são os materiais volumosos, que a quantidade maior ou de peso ou de volume. E depois o restante, todos os outros materiais, que é PET, PP, PAD, PVC. O que mais eu tenho aqui? O alumínio. Ai cacilda, eu tenho muita coisa aqui, não dá pra lembrar tudo não.
P/1 – Não tem problema (risos). Agora vocês têm rivalidade com outras cooperativas, como é que é?
R – Tem umas cooperativas que a gente se dá melhor, mas não que tenha rivalidade. Tem cooperativas que você está mais em evidência, vocês estão sempre juntos. Eu trabalho muito com a CooperAção, em primeiro lugar, que está mais junto de mim. Eu e Neilton, Neilton me ensinou muito a trabalhar. O Vira Lata também me ensinou muito. Aí tem o Jaçanã que hoje sou eu que ajudo eles. Depois tem a Coopamare que é referência aqui em São Paulo, a cooperativa mais velha acho que no Brasil no todo, a Coopermare, eu acho que ela já tem uns 25 anos de cooperativa. E depois tem também a Lúcia que está na mesma reta minha aqui na Marginal. E tem um monte de gente, mas esses são os que estão mais perto de mim. Então a gente conversa mais. O Carioca está lá no outro extremo, na Zona Sul, mas também falo muito com ele, a gente troca figurinhas de preço, pra quem você está vendendo, vejo se meu valor está igual ao dele, como está o valor no mercado. Então vira e mexe a gente está entrando em contato mais por conta da venda do material pra poder estar sempre agregando maior valor. Quando vem comprador aqui que eu sei que está pagando bem legal eu já ligo já pros mais próximos: “Tem um comprador aqui, já estou te indicando pra ele”, já mando o comprador ir lá também. E assim a gente vai fazendo.
P/1 – Vocês vão se ajudando também, né?
R – É, vamos se ajudando, o máximo que a gente pode.
P/1 – E agora essas pessoas que vêm trabalhar em cooperativas, quem elas são geralmente? Você acha que tem um perfil?
R – Olha, eu não sei, amigo, mas eu acho que parece que sai tudo da mesma latinha, depois é que a gente vai vendo o que é melhor (risos). O que acontece? As pessoas chegam aqui com aquela carinha de coitado, precisando, precisando de um emprego. Depois que cair pra dentro acha que não tem que fazer mais nada. Porque a linha de cooperativismo, eu acho ela muito bonita, desde que desse certo. Mas não dá muito certo porque o ser humano já é mau por natureza. Eu leio todo dia de manhã, eu tenho um livro que eu faço meditação matinal, aí estava lendo sobre uma pesquisa que foi feita aonde umas pessoas fazendo essa pesquisa, médicos e tudo o mais, pra ver até onde o ser humano ia. Colocaram umas 30 pessoas numa sala e umas 15 em outra sala. Essas 15 pessoas que estavam na outra sala ficavam fingindo que estavam tomando choque. Os profissionais chegaram nessas 30 pessoas e falaram: “Olha, nós estamos com 15 pessoas aqui na sala de cá e elas roubaram, mataram, estupraram, fizeram vários delitos, desde delitos menores como delitos maiores e vocês vão sentenciar eles. Aqui eu tenho três tipos de choques: o pequeno, o médio e o severo”. Falou pra eles: “Vocês podem fazer de tudo, podem conversar com as pessoas antes e tudo o mais”. Todo mundo ouviu, não conhecia as pessoas, nunca tinham visto, mas foram pouquíssimos os que pegaram o de pequeno grau de intensidade pra dar choque, todo mundo pegou o severo, pra ir logo lá. E nisso a pessoa, quando eles encostavam a pessoa fingia que estava realmente tomando choque. E as pessoas ficavam olhando com aquele sadismo pra ver a desgraça. No entanto você vê: “Ah, tem um acidente”. Neguinho já olha pra ver se tem sangue, se degolou o pescoço, porque é isso que o povo gosta de ver. Então assim você vê que na cooperativa não é diferente, as pessoas entram com todo aquele histórico de coitadinho, quando começa a trabalhar e tudo você começa a ver que as pessoas estão querendo ver a desgraça daquela formação. As pessoas não lutam junto pra poder crescer. Você começa a lutar, três, quatro vêm contigo, cinco, seis, mas outros já ficam só tacando pedra pra ver o negócio desmoronar. Eu não sei o que a gente vai fazer com o ser humano, eu acho que independente de ser cooperativa também, você vê que numa empresa você tem um outro olhar, as pessoas não deixam de ser maldosas, mas na empresa você chega pro cara e fala: “Olha, hasta la vista, tchau, foi bom enquanto durou”, você não precisa ter motivo, nem nada, você pode dar fim nele. E quando ele é seu sócio, como você vai fazer? Ele é teu sócio, ele não quer trabalhar hoje, o que você vai fazer com ele? Você fica meio sem ação, você fica muito engessado nesse negócio. Por mais que você faça um regimento interno, alguma coisa assim, você está engessado. Porque ele tem a mesma cota parte que você, só que ele não tem a mesma responsabilidade que você. Você veio com um intuito, o outro vem com intuito de bagunçar. E aí, como você faz? Esse negócio é um caldeirão pronto pra explodir, filho. Ferve, ferve que é uma beleza. E você tem que estar o tempo todo ali, ó. Você dura, tem uma peteca e segurar o negócio. É difícil.
P/1 – Uma coisa que eu perguntei pro Ygor era a respeito dos carroceiros. Qual é a relação que vocês têm com eles, como você vê essa profissão do carroceiro?
R – Olha, eu sempre achei a profissão do carroceiro, pra mim é uma tamanha ignorância, é uma... Eu não posso, nem escravidão pra mim é considerado como isso. Porque escravidão você apanhava e tudo o mais, parari parará, mas você vivia naquele local, você comia daquele local, você lutava por aquilo, você não tinha salário, você não tinha nada. Hoje não, o coitado sai com uma carroça, puxa nas costas aquele peso desgraçado, que já foi feito um estudo que se ele começar com nove anos com 35 anos ele já está morto. E eu não vejo mais cavalo fazendo tração de carroça, só se for pra bonitinho, né? Não pode. Agora ser humano puxando carroça? Tem uns caras que chegam a puxar carroça, que eu já ouvir história aí, com 800 quilos nas costas, gente! Como??? Desce uma rampa aquela carroça levanta ele e volta. Quando eu entrei nesse negócio a minha ideia era pegar e tirar esses carroceiros da rua. Fui, conversei, pensei que eu estava fazendo um bom negócio: “Nossa, vou ser a salvadora da pátria, meu nome vai sair até no jornal”. Pensei comigo. Mas me lasquei. Quando eu fui atrás do primeiro: “Eu estou aqui porque eu gosto”. Eu falei: “Tudo bem, de repente é opção dele”. Fui em outro, em outro, em outro. Olha, nesses anos todos, 13 anos vai se fazer, eu consegui só tirar três pessoas da rua. Três. Eles gostam, é isso que eles querem fazer, mas eu acho que eles gostam porque eles nunca experimentaram diferente. Da pessoa pegar lá o material e eles também não querem, como eu te falei, pra você ver como cooperativa é diferente, eles não querem ter o compromisso de entrar em tal horário, sair e ter o dia pra receber, eles querem todo dia o dinheirinho deles. Mas por conta do quê? Por conta da nossa sociedade que não aponta uma coisa diferente, alguma coisa nesse estilo. Ou então definitivamente proíbe: não vai poder mais. Porque gente é atropelada com essas carroças, as pessoas se drogam e sobem dentro da carroça. Você pode ver, você vê o marido puxando e carroça, a mulher e o cachorrinho dentro da carroça – esse daí é o retrato, né? E os dois bebendo, essas coisas todas. Eu acho que a partir da hora que a pessoa, se você pegar, tem pessoas que vêm da carroça e trabalham aí, já pararam de beber, já não bebem mais porque aqui você tem tempo e horário pra isso e praquilo; se se droga, se droga menos. Já não está mais na rua, já tem uma condição de uma moradia. Então tudo isso daí melhora. Acho que se nossa sociedade, o nosso prefeito falasse, igual o prefeito reduziu aqui as pistas tudinho, nós xingamos, achamos ruim, brigamos e pulamos. Mas com isso daí diminuiu muito os acidentes, né? A gente já sabe aí que os estudos feitos já se poupou mais ou menos 89 pessoas desde que ele começou até agora ter morrido. Porque todo dia você via um motoqueiro estatelado aqui, você via dois a três motoqueiros estatelados, é morto mesmo, não estou falando machucado, os machucados a gente nem está falando deles. Porque hoje diminuiu a quantidade de pessoas dentro dos hospitais porque também diminuiu, tudo isso é custo pra sociedade e pra prefeitura. E quando você também tira uma pessoa dessa, você aumenta a qualidade dela de vida, a perspectiva de ver o mundo. Porque daquele jeito que as pessoas vivem, pra mim eles não têm perspectiva, não vê nem futuro. É aquilo ali: “Eu trabalho, compro meu garrotinho de pinga e se eu lembrar de comprar comida tudo bem, senão vai só nessa”. Garrotinho, garrotinho, quando vai ver o cara tá morto debaixo da carroça, está ali na rua. Vira e mexe você vê, tempo do frio você vê, vira e mexa tem uma pessoa ali morta na rua. Acho que se a gente começar a trabalhar nisso. Eu nunca vi com bons olhos. Nunca comprei material de carroceiro e nunca hei de comprar. Porque cada vez estão fechando os ferros velhos, a viagem que ele fazia que era pouca ele está fazendo três vezes mais, então cada vez fechando mais o círculo pra eles saírem dessa vida. E eu acho isso legal, eu acho muito legal o que o prefeito está fazendo.
P/1 – Você conheceu a vida de algum deles de perto?
R – Conheci.
P/1 – Você falou, mas você tem alguma história pra contar pra gente?
R – Eu conheci. A Marilice mesmo, eu acabei de vir da audiência dela hoje. Ela trabalhava na rua puxando carroça, eu conheci ela na rua e deixei meu cartãozinho com ela. Ela pouco se importou, passou um ano, eu estava sempre ali passando na rua e ela estava ali. Ali ela pegou e foi me procurar lá e ela falou: “Posso trabalhar aqui?”, eu falei: “Lógico que pode”. Ela começou a trabalhar com a gente, depois que ela começou a trabalhar com a gente ela até terminou a casinha dela que estava sem fazer, sabe aquelas coisas que você faz um quartinho, aumenta um outro quartinho? Ela conseguiu terminar a casinha dela e trabalhou comigo uns bons anos. Ela estava trabalhando, que nós temos postos de coleta dentro do Pão de Açúcar e ela estava em um desses Pão de Açúcar, até que ela passou mal, teve apendicite. Chegou no hospital e o médico diagnosticou errado, ela foi pra casa e acabou morrendo. Mas assim, tem essas histórias e tem outras mais onde você vê a diferença que faz na vida da pessoa, você trabalhar com a reciclagem ensina.
P/1 – Tem algo que você se lembra de pessoas que trabalham aqui hoje, alguma história que te marcou bastante?
R – Ah, eu tenho a Mailsa que trabalha aqui. O Paulo hoje não está aqui também. O Paulo cometia delitos mil, roubava os outros, roubava banco, roubava carro e vendia droga. Triste, triste, triste. E o Paulo não sei se ele já puxou cadeia ou não, mas eu tenho outros aqui que também já puxaram cadeia, o Paul, o Ricardo e os outros mais. O Paulo, eu trouxe ele, ele é parente do meu ex-marido de terceiro grau. Aí ele me procurou, eu falei pra ele: “Meu, você não vai causar transtorno pra mim, não”, que eu já sabia da índole dele, terrível, terrível. Aí pus ele pra trabalhar aqui. Sempre trabalhou muito bem. Resumindo: ele roubando essas coisas ele chegava a ter 30, 50 mil reais no bolso em um dia. Passava dois, três dias não tinha mais nada. E a vida dele era a mesma, até a roupa era a mesma, o sapato era o mesmo. Ele não sabia onde que gastava. Depois que ele veio pra cá ele já conseguiu comprar um apartamentozinho dele, está pagando ali, a vida dele melhorou bastante. Ele casou no papel tudo direitinho. Então assim, muda a vida da pessoa, muda bastante. O Paul a mesma coisa, tá aí também, mora ali perto de casa, casou, tem filho e tudo o mais. A maioria deles não larga do baseado, né? O baseado vem fumando na rua, já, até chegar aqui. Vira e mexe a polícia está aqui fazendo batida, já tem que ir lá buscar eles lá porque a polícia prende, para lá: “Mas senhora, tá com baseado” “Filho, ainda bem que está só com baseado” “Certeza que não estava vendendo?” “Não tava, eles estavam vindo fumando. O povo se fuma, vocês mesmo, policiais, cheira cocaína, só está fumando um baseado” “Ah, mas a senhora não pode falar isso” “Posso, posso falar sim, porque eu tenho boca pra falar o que eu bem quiser. Agora os meninos estão indo trabalhar, vocês não vão deixar? Por causa de um baseado. Agora eu sei que pode, tudo pode nessa terra”. Aí eles largam lá os meus meninos e eu trago eles de volta.
P/1 – E qual é a história da Maísa que você falou?
R – Da Mailsa? Era assim, a Mailsa sempre foi pobre de gritar de fome, ela perdeu um filho até por causa de fome. O filho dela passou fome, a fome era tanta que o menino morreu por conta de não ter o que comer. E quando ela veio trabalhar aqui comigo eu me lembro que eu dei pra ela o primeiro salário, ela jogava pro alto porque ela nunca tinha visto tanto dinheiro assim. E a gente ganhava pouco, hein? E ela achou que aquilo era muito dinheiro. Nossa, ela contava aquele dinheiro e recontava. E ela tem assim, eu acho que ela tem oito ou nove filhos, sei lá eu, tudo de escadinha. Os meninos hoje estão tudo maior e tudo o mais, mas ela teve uma história muito triste de vida, sempre catando as coisas na rua, essas coisas todas, pedindo pra poder ajudar os filhos. Porque o marido só faz os filhos e depois some, né? Só é pai enquanto está com a mulher, depois que separa parece que não é mais pai, não visita, não ajuda e a coitada tem que se virar sozinha. E a maioria das histórias dessas mulheres aqui, hoje nós temos já um estudo feito que nas cooperativas 85% são mulheres, os homens estão tudo em casa cada vez mais sem fazer nada, tudo virou preguiçoso. Eu até falo pros outros aí, os homens são vagabundos e o povo fica meio revoltado comigo mas é por aí, né? Que agora eles ficam cuidando da criança e cuidando da casa e a mulher sai pra rua pra trabalhar, está desse jeito. As mulheres são difícil de trabalhar com elas e tudo, mas elas têm mais comprometimento do trabalho do que os homens, elas não piam na missão, trabalham que é uma beleza.
P/1 – E o que você achava atualmente, quais são os maiores desafios que vocês enfrentam aqui mas também a própria questão que a reciclagem enfrenta no Brasil.
R – Eu acho que hoje a maior demanda que a gente enfrenta ainda é o ser humano. O serviço é difícil? É. Os sobes e desces, porque a reciclagem é que uma coisa assim que vai, não, ou vai subindo. Não, ela é sobe e desce. Você tem dezembro, janeiro, fevereiro e março vai melhorando. Aqui, em outubro pra dezembro já começa a cair os preços, você fica quatro meses na pior, muitas vezes sem conseguir vender nada. Aí já começa a subir. Quando você começa a sentir o gostinho já cai de novo, e assim vai. Quando não tem nenhuma crise, quanto tem crise vai de pau a pau o tempo todo. E a gente fica naquela história, eu
falo: “Não, eu vou largar disso, eu vou largar disso. Não, vai melhorar, vai melhorar” (risos). Vive naquela perspectiva que vai melhorar. “Ah vai acontecer isso, vai acontecer aquilo” “Ah, agora teve o acordo setorial, vai melhorar” “Ah, a gente vai ser remunerado pelo serviço prestado”. E a gente está acreditando, né? A gente é besta, acredita em qualquer coisa (risos). Mas eu acho que a dificuldade maior mesmo é o ser humano e a reciclagem no todo porque mesmo você puxando a carroça, você está ali puxando a carroça e tudo e você chega lá no cara pra negociar. As pessoas são tão cachorras a ponto que o coitado lá veio com aquela carroça ali onde daria pra dar cem reais pra ele, o cara ganhar cem reais na boa. Mas não, o cara dá pra ele 40 reais e o cara fica com 160. É aquela coisa, eu sou esperto, você é o abestalhado. E dentro do setor de trabalho dentro da cooperativa ou de qualquer coisa é sempre assim também. Eu sou esperto e você é o idiota, e ali vai, né? Acho que é o ser humano. O ser humano é a pior coisa que tem pra gente poder resolver a situação.
P/1 – E atualmente você disse que mudou um pouco a situação. Você vê um avanço de 15 anos, 10 anos pra hoje?
R – Não.
P/1 – O que você acha que mudou?
R – A gente vê hoje que os compradores estão mais criteriosos pra comprar, mas também a gente tendo uma qualidade melhor de material. Assim, eu sempre me sobressaio, não querendo me gabar das outras cooperativas, mas a gente se sobressai sempre na separação do material. A gente separa, o cliente vem aqui e fala: “Olha, eu gostaria que fosse assim”, aí eu já pergunto pra ele: “Mas por quê?”, aí ele me fala o porquê, e parari, parara. O maquinário dele não é diferente dos outros, certo? Então o que eu faço? Eu passo a fazer a separação como ele pede e quando chega outro comprador: “Ôpa, nossa, então você separa a apara preta das outras aparas, assim, assim, assado? Putz, era assim que eu precisava mas nunca consegui que a cooperativa fizesse”. Então você já está no caminho certo. Aí o outro vem e fala outra coisa pra você, você vai e faz daquele jeito. E ali a gente consegue. Sempre assim, o meu material sempre é em torno de dez até 20 centavos mais caro do que as outras cooperativas. Então os compradores chegam aqui e eu já falo pra eles: “Ah o meu preço é tanto” “Ah, mas eu pago tanto” “Então vamos lá ver o meu material” “Não, não, realmente vale”. Aí ele se propõe a pagar.
P/1 – E você tem alguma previsão pra essa cooperativa?
R – Nós estamos aí com uma proposta muito grande de crescimento que a gente pensa em dobrar, até triplicar. Nós temos agora uma intervenção da prefeitura junto com o dinheiro do BNDES que vai fazer uma reforma aqui todinha, você não vai ver mais essa barreira que você vê aqui, a água aqui inunda, né? Eu vou acompanhar, dessa vez vão deixar eu acompanhar todinha a construção, a mudança toda que vai ser feita. Porque hoje eu tenho uma outra cooperativa também, eu tenho uma outra cooperativa dentro do CD na Anhanguera. Lá eu fico dentro de um complexo e o material que eu pego é só desse complexo, então não é porta a porta, não é de dona de casa nem nada. Lá hoje os cooperados meus, se eu for pegar, o primeiro mês que foi mês passado que nós trabalhamos 14 dias deu um ganho de mais ou menos mil e 500 reais pra cada um. Se eu fechasse o mês vai dar em torno de uns 2 mil e 500 reais pra cada um. Muito bom, não é? Ótimo. E eu quero chegar nisso aqui também, tá? Lá eu já vi, se eu trabalho com material bom, limpo, que eu tenho que fazer somente a separação eu já consigo agregar um bom valor. E lá ainda eu pago pela locação do local, pago pelo uso do maquinário, pago um ônibus fretado pra levar o pessoal, que não é baixo. A minha despesa fixa, fora a variável, é 65 mil reais lá que eu pago. E ainda consigo pagar tudo isso pro cooperado. Então pra você ver, o negócio é bom? É. A conta fecha? Desde quando você tenha alguém pra te ajudar, né? E lá teve. Teve um grupo que apostou na gente e a gente está ali, estamos com as nossas dificuldades dentro de uma empresa, você sabe que as pessoas não querem se adequar, mas a gente vai se adequar. E aqui também a mesma coisa, a gente vai ter um maquinário de ponta, que já faz uma pré-seleção do material e a gente vai caminhar também.
P/1 – A gente já passou por umas pergunta finais, eu sei que você tem pouco tempo. Você acha que existe muito preconceito contra quem trabalha com lixo, reciclagem?
R – Eu acho que o preconceito maior é de quem trabalha mesmo com esse material porque as pessoas de fora estão muito abertas a abraçar os catadores, eles não sabem o quanto eles são queridos e quanto as pessoas de fora têm essa visão deles. As pessoas são muito agradecidas a essas pessoas, as pessoas já têm consciência que se essas pessoas não existissem, hoje a prefeitura fez um estudo que a gente está chegando a mais ou menos, vamos dizer, a 5% da reciclagem. Não, nós já temos um estudo garantido que nós já estamos em torno de 12%. Por conta do quê? Os carroceiros não passam na documentação que entra pra prefeitura, ela só está fazendo das cooperativas credenciadas. Se você pega os carroceiros igual sempre fez, fez um estudo tudinho do que vai direto pro aparista, que é o atravessador antes de entrar na indústria. Foi feito esse estudo onde já viu que 12% já está sendo reciclado. Todo mundo sabe que se essas formiguinhas, esses carinhas que pegam com a carrocinha, outros que a gente chama de morcego, que passa com caminhão, com carrinho velho, com fusca aberto, a perua zoada, esses aí pararem e a gente parar, pronto, gente, eu falo assim, com conhecimento de causa: se eles pararem e a gente parar por três dias você já vai ver o caos nessa cidade, entendeu? Porque é MUITO material, é MUITO. A prefeitura fazendo com o compactador, a gente fazendo e tudo o mais, ainda você sabe quanto vai pro aterro? Então a gente tem uma demanda muito grande, as pessoas já sabem da necessidade porque os meios de comunicação têm ventilado o tempo todo, novelas têm falado. As pessoas que não gostam de nada assiste novela, né? Porque pessoas inteligente têm ideias inteligentes, pessoas fúteis gostam de ver novela. Então o povo que gosta de ver novela já aprende na novela. E ali vai, não tem quem não fale sobre isso hoje. E eu acho que as pessoas que trabalham aqui dentro só precisam saber dessa importância dela no ecossistema. E coisa que não sei como a gente vai pôr na cabeça deles. Eu já chamei psicólogo, já chamei de tudo aqui, não adianta. Elas saem daqui e parecem MacGyver, saem todas pintadas, bonitonas, que parece que nem estavam aqui. Aí olham para um lado e pro outro e tchum pra fora pra ninguém saber que estavam na cooperativa. Agora namorado deixa lá na esquina e vem (risos).
P/1 – É mais uma questão de quem trabalha mesmo se ver com dignidade.
R – É de quem trabalha. E dar valor e chegar: “Não, eu trabalho com reciclagem, sou catadora”. Pronto, é uma profissão já, né? É uma profissão que não existia mas agora já existe. No entanto se você ver aí atrás de você a Pronatec está dando curso só pra nós catadores, eu tenho essa proficiência.
P/1 – E quais são os seus sonhos?
R – Meu sonho pra futuro. Primeiro, tem um pessoal da Tetrapack que está dando “Construindo Futuro”, que foram escolhidas quatro pessoas aqui dentro pra mais tarde assumirem o meu cargo. E dessas quatro pessoas agora só tem duas, dois já caíram fora. E aí a gente está, o meu futuro era, hoje pegar uma pessoa e colocar pra assumir como está aparecendo várias portas se abrindo pra eu abrir outras filiais que eu abri já uma e está abrindo outras coisas grandes também para eu estar tocando, era pegar e ensinar um, colocar aqui, ensinar outro, colocar ali, ensinar outro. E dali pra frente só estar passando e ajudando eles no que precisa pra eles poderem andar e fazendo outros pra poder pegar e ter essa visão onde eles possam se ampliar no conhecimento, mudar até, aí esse presidente daqui muda praquela cooperativa de lá, esse muda pra cá, entendeu? No que um está dando certo aqui conversar com o outro ali e de vez em quando: “Ah, vamos mudar de cooperativa, você sai daqui, eu vou pra lá”, pra fazer os outros experimentos. Porque eu acho que esse negócio de troca é muito legal. E hoje eu tenho uma abertura muito grande na cooperativa do Jaçanã, eu entro lá, eu mando nos cooperados do cara lá, eu faço e aconteço e eles gostam porque cada vez que eu chego lá eu tenho uma ideia diferente e sobe o valor deles. E ele já faz o papel de estar cobrando os outros pra mim porque vira e mexe tem umas pessoas que não pagam, então eu ponho ele lá porque ele é bravinho, ele vai lá e faz isso pra mim.
PAUSA
P/1 – Só resta perguntar pra você o que você achou de contar um pouco a sua história.
R – Ah, muito legal, né? Gostei. Eu acho que dentro do contexto todo você parece que, eu nasci, fui caminhando pra cair na reciclagem mesmo, né? Se eu queria ser alguma coisa, o meu sonho era correr de moto, não, tem que correr no lixo (risos).
P/1 – Eu perguntei até a você, você teve outros sonhos na sua vida e o que você acha? O que aconteceu?
R – Eu acho que eu também não anotei na época, pelo que eu sonhava nem nada disso. Eu achava assim, ah não deu certo e eu já parava de brigar por isso. Agora não, acho que quando a gente é muito novo, você acha que tem... Sei lá eu, primeiro que você não pensa no futuro, quando você é novo você não pensa no futuro, você acha que o futuro é aquilo ali. E aí quando você chega numa idade, nos seus 30, 35, você começa a pensar no futuro. E hoje já não. Agora assim, eu não tenho mais grandes sonhos, mas assim, os sonhos pequenos que eu tenho tido eu tenho conseguido completar, né? Agora mesmo eu tenho juntado um dinheiro faz tempo para eu comprar o carro dos meus sonhos, estou quase perto, mas ele vai vim, acho que esse ano ainda eu consigo. Mas vambora lá.
P/1 – Mas você não conseguiu fazer essa coisa da moto mas eu acho que você conseguiu fazer muita coisa, você não acha?
R – Eu acho que fiz muita coisa por muita gente, ajudei muita gente, mas depois que eu comprar meu carro eu vou comprar uma moto para eu poder ficar circulando nas rodovias. Vou comprar uma Repsol, que é o meu sonho. Depois do carro. Vou comprar a moto porque meus filhos ficam o tempo todo: “Não, mãe”, porque eu já ia comprar a moto agora: “Não, mãe, você vai morrer”. Eu falo: “Seu medo de eu morrer não é nem por causa da mãe, é por causa que vão passar fome”, porque os dois, o que ganham eles gastam tudinho.
P/1 – Tá certo então, Tereza, obrigada, viu? Foi ótimo.
R – De nada.
FINAL DA ENTREVISTARecolher