P/1 – Maria, boa tarde.
R – Boa tarde.
P/1 – Primeiro, eu queria agradecer de você ter aceitado o convite pra essa entrevista. E agora, pra gente começar, eu queria que você falasse pra gente o seu nome completo, local e a data do seu nascimento.
R – O meu nome completo é Maria Aparec...Continuar leitura
P/1 – Maria, boa tarde.
R – Boa tarde.
P/1 – Primeiro, eu queria agradecer de você ter aceitado o convite pra essa entrevista. E agora, pra gente começar, eu queria que você falasse pra gente o seu nome completo, local e a data do seu nascimento.
R – O meu nome completo é Maria Aparecida de Barros Forini, mas me conhecem só por Maria Forini. Eu nasci no dez de outubro de 1949. E nasci em Jundiaí, estado de São Paulo.
P/1 – Fala o nome dos seus pais pra gente.
R – Meus pais são José Manuel de Barros e Ana Catarina Ardito de Barros.
P/1 – Fala um pouquinho pra gente da atividade deles, o que eles faziam?
R – Meu pai era funcionário público federal do Correios e Telégrafos e minha mãe era dona de casa, filha de italiano, quatro filhos (risos), ela era dona de casa.
P/1 – Então você tem três irmãos.
R – Tenho três irmãos. Um mais velho que se chama José Pompêo, eu, Maria Aparecida, um que chama Carlos Roberto e a minha irmã caçula que chama Vera Lúcia.
P/1 – Conta um pouquinho pra gente, Maria, o que você se lembra da sua infância, de quando você era pequena. Como era a casa?
R – Ah, era legal. Era legal a casa até seis anos, era em Campo Limpo Paulista e a gente morava na avenida do rio porque o rio corre assim e tinha as casas assim. Abria o portão e você tinha um espaço grande pra pescar, pra nadar no rio todo. Quando a gente começou a crescer, o meu pai começou a trabalhar em São Paulo e levar a gente pra São Paulo não seria legal, então ele preferiu ele se sacrificar e ele nos levou pra Americana, que Americana era uma cidade maior e a gente ia ter mais oportunidade de estudo. A gente foi a partir do meu primeiro ano primário.
P/1 – E o que você se lembra dessa mudança, o que ficou pra você novinha desse processo?
R – A única coisa que eu me lembro é que a gente foi morar na casa da minha nonna. Uma casa enorme com uma mesa enorme, que todo domingo era cheio de gente, os tios, as tias, os primos, todo mundo se reunia. E cada uma fazia uma comida ou levava pronta. Era muito gostoso. Tinha um pomar muito grande, a gente comia as frutas do pé, tudo. Então eu sou ainda dessa época gostosa. O meu pai sempre muito atento aos estudos, sempre quis que a gente estudasse, ele falava: “Olha, é muito importante porque se você não estudar, se eu consegui esse emprego hoje no Correios é porque eu sou formado em Técnico Agrícola, então eu tinha um conhecimento bom”, não no que ele foi fazer, mas ele sempre achou isso, quando minha mãe só fez os quatro anos de primário que já pra ela era mais difícil.
P/1 – Da nonna da parte do pai, é isso?
R – Não, nonna parte da mãe, porque a nonna, tanto ela como o marido dela e a família deles, veio na Primeira Guerra e eles que colonizaram Americana. Eles e os americanos, juntos. Os americanos vieram um pouco depois e se sobressaíram sobre eles porque eles tinham muito mais cultura, essas coisas. Foi na guerra civil que eles vieram, tanto que Americana chamava Vila Americana por causa deles. E os italianos foram trabalhar nas terras dos americanos porque eles vieram com muito dinheiro, coisa que os italianos saíram fugidos, eles mal tinham roupa do corpo. Quando o navio atracou, a minha nonna tinha irmãos que ficaram na vala porque tinha suspeita de uma doença que eu não me lembro o quê e jogava ali, morria ali. Já os americanos quando vieram, mesmo perdedores da guerra civil, eles já tinham uma outra coisa, uma outra mente, o sistema de agricultura deles era bem mais adiantado, que virou a terra da melancia, né? E os italianos se propuseram a trabalhar pra eles até eles irem adquirindo as terras deles. Mas ficou como Americana mesmo, não mudou o nome, não. Mas é predominantemente italiano, pelo menos as antigas famílias.
P/1 – E a família do seu pai também é de Americana?
R – Não. A família do meu pai, eles são Barros, são brasileiros, eles vieram, vamos falar, Nogueira veio da colonização espanhola e Barros da colonização portuguesa. Então eles são caboclos mesmo, são bem brasileiros.
P/1 – Você contou pra gente dessa mudança quando você era menina. E como foi começar a estudar, ir pra escola? Quais são suas primeiras lembranças deste período?
R – Olha, pra mim, eu nunca tive medo de nada, então quando teve que ir numa escola diferente eu tinha saído de um jardim da infância, que naquele tempo chamava jardim da infância só, onde começavam as brincadeiras, a gente levava lancheirinha, essas coisas. Quando eu fui pra Americana já era classe, fui alfabetizada, tudo. Foi diferente, eu acho que se eu tivesse ido no segundo, o meu irmão estranhou bastante porque Campo Limpo era uma cidade bem menorzinha, tudo, e em Americana já tinha o Grupo Escola Heitor Penteado, que é onde a gente estudava, naquele tempo era muito melhor estudar em colégio público do que colégio particular.
P/1 – E como é que foi essa escola, do que você lembra dela?
R – Só coisa boa! Aprendi a fritar bife, fora, o extracurricular, bordar. Eu adorava fazer tudo o que era diferente, que as professoras ensinavam. A jogar, eu jogava vôlei muito bem, então desde o primário eu jogava vôlei. E daí na Admissão, vocês não vão se lembrar disso, pra você ir pro primeiro ano de ginásio você tinha que fazer um vestibulinho chamado Admissão. E eu fiz pro colégio das irmãs, meu pai queria que eu estudasse lá. Eu ganhei a bolsa total. Lá eu me dei muito bem com o vôlei porque a gente saía muito, viajava muito pra jogar o vôlei, você entende? Lá pra mim foi muito legal. Também diferente estudar em colégio de freiras, muito mais rígido, menino não ia na classe de menina, aquelas coisas, mas foi muito legal também. Eu nunca tive medo do novo, nunca, nunca tive medo do novo, então pra mim não foi nada diferente. Quando eu fui fazer o ensino que hoje chama Médio, eu não sei como chamava primeiro, não era colegial, é um antes do colegial. Daí você também tinha que fazer um exame, mas aí o colégio das irmãs só tinha normal e eu não queria normal, eu queria fazer Científico mesmo porque eu sempre gostei muito de Exatas, então eu fui pra fazer o Científico lá.
P/1 – E conta, você lembra como era o uniforme do colégio das freiras?
R – No colégio das freiras, era uma boina azul marinho, uma camisa branca de tricoline com uma golinha fechadinha, uma gravata com um laço vermelho e azul marinho, um DS, Divino Salvador, e uma saia pregadinha, que tinha que estar impecável. Sapato preto e meia branca. Mas isso no colégio estadual também, naquele tempo, a gente também tinha uniforme, ninguém ia sem uniforme. Os meninos usavam uma jaqueta cor de caqui, uma gravata preta, era muito gozado.
P/1 – E qual era a sua brincadeira favorita na sua meninice?
R – Brincar com moleque, né? Sempre na rua jogando bola, deixava minha mãe e meu pai loucos. Nunca fui muito de brincar de casinha porque eu não queria ser dona de casa (risos), já sabia disso que não queria ser. Deixa eu ver o que mais. Ah, brincadeiras normais de criança. Na nossa época, a gente dormia de porta aberta, então é muito diferente, na cidade todo mundo se conhecia, quem não era parente, Zia, Ditto, Santa Rosa, era alguém que veio porque conheceu alguém, a gente era muito assim, então brincava na rua até tarde. Não tinha televisão, quando começou a televisão, ixi, só tinha umas horas que ela funcionava. Era gostoso porque quando meu pai trouxe a televisão de São Paulo pra nós os vizinhos todos assistiam em casa, era legal. Até na janela eles ficavam porque não cabia. Era gostoso.
P/1 – E conta pra gente da primeira vez que você ouviu falar de intercâmbio, de AFS, como é que foi essa história.
R – De verdade, Fernanda? Eu nunca tinha ouvido falar que existia isso. De repente, estou no segundo ano de científico, pedem licença acho que duas pessoas diferentes, não da cidade e falam: “Nós somos representantes do American Field Service”, e o American Field Service vai começar em Americana a oferecer bolsa de estudo aos melhores alunos do colégio”. Era o único colégio estadual e tinha o colégio das irmãs, mais nada. Nas irmãs não porque quem pagava não tinha bolsa. E os que vão fazer a primeira peneirada vão ser os professores, naquele tempo não chamava coordendor pedagógico, o seu Marcelo, e a dona Aparecida, que era a diretora. Eu recebi que eu fui classificada pra ir da minha classe. Chamaram meu pai na escola pra explicar tudo como era e meu pai falou: “Não, ninguém dá nada de graça pra ninguém. Levar uma filha com essa idade, 16 pra 17 anos, pros Estados Unidos pra morar um ano? Não é pra estudar”. Aí ele chegou em casa e falou: “A gente precisa tomar muito cuidado porque no mundo a gente tem grátis”, e a gente não tinha informação. É o que ele falou, você não tem internet, o jornal era difícil, você entende? Não tinha como buscar. E eu acho também que meu pai não quis ir buscar informação porque ele trabalhando nos Correios em São Paulo ele teria como se comunicar com os Correios do Rio e ver o que era. Mas não passou na minha cabeça, passou, eu não sabia o que era. Quando a Meire voltou do intercâmbio, putz, que legal, voltou tão diferente. O negócio é bom mesmo, mas não fui, foi ela no meu lugar, que ela fazia o clássico. Tá bom. Eu sempre fui envolvida em algum movimento, era envolvida no movimento da Igreja Católica, chamava TLC, Treinamento de Líderes Cristãos. E tinha vários que faziam e dentre eles gente que já tinha feito, irmão da Meire, Orestes, tinha o Marcos Bonassi, tinha duas meninas que estavam fazendo treinamento conosco. E eles falaram: “Pô Maria, você mora num apartamento enorme com três quartos, um suíte, aquela salona, aquela cozinhona. O Marco Haroldo que era um pititico e o Luiz, ah, hospeda um estudante”. Eu falei: “Eu? Eu não sei como ser mãe de adolescente”, tinha 26 anos. Daí o Marcos veio conversar e o Orestes: “Olha, nós damos todo apoio, olha como funciona”. Daí que falou AFS, veio o American Field: “Orestes, você é irmão da Meire?” “Sou!” “Nossa.” Ele falou: “Eu também fiz, Maria. A Arminda, minha irmã, também fez.”, esqueci o nome dele, do outro irmão, também fez: “Nossa, só eu não estou sabendo que todo mundo”. Aí o Marcos falou: “Eu também”. O Luiz chegou à noite da clínica, sentamos, conversamos e ele falou: “Legal, Maria, vamos fazer. Vamos pegar e ver o que é”. E deu muito bem. Ele nos ensinou muito, a gente ensinou muito e eu vi que isso era legal. Se você me manda no hospital cuidar de alguém, não vou. Cuidar de criança doente, não vou. Velhinho, não vou. Eu sempre achei que a gente deveria ter um motivo pra você viver. E eu acho que a doação de si, não é do que está sobrando, mas do seu tempo mesmo, com alguém. E na missão do AFS eu encontrei isso. Nós tínhamos uma caminhonete: “Maria, vão chegar tantos estudantes estrangeiros, a gente precisava fazer orientação de chegada”. Eu conhecia o prefeito, liguei pra ele e falei: “Empresta uma quadra pra gente? Você tem banheiro, tem chuveiro, bota todo mundo dormir na quadra” “Ah, pode” “Não tenho colchão” “A prefeitura tem colchão”. Ligava aqui pra São Paulo e falava: “Pode trazer, mas tem que trazer roupa de cama”. E assim eu fui trabalhando vários anos como base, até que chegou a hora do meu filho ir. Quando meu filho foi, o AFS estava muito ruim em Americana. E eu já estava preocupada com isso porque eram só jovens tomando conta, não estavam fazendo as coisas direito, você entende? Pra arrecadarem dinheiro um dia eles puseram um estudante que tinha medo de morto dentro do caixão de defunto pra fazer um Halloween. O Marco me contou, o meu filho, e eu barrei. Falei: “Ninguém vai andar na cidade carregando um caixão de defunto com um menino que tem medo”. Imagine, né? E aí eu comecei a tomar mais assim, até que chegou um dia que esses daí vieram do Rio de Janeiro, o Eduardo [Assed] não era ainda superintendente, acho que era Íris, Iria, um nome assim, dois funcionários pra questionar o que estava acontecendo porque os pais começaram a reclamar. E realmente eles foram postos fora do AFS. E o AFS, quando o meu filho chegou, o Rio de Janeiro falou assim: “Toca Americana”. E estava o Beto também, começaram a tocar. Só que um entrou na faculdade, o Marco fez USP [Universidade de São Paulo], ele fez Engenharia Elétrica, Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], e uma em Minas [Gerais], esqueci o nome. E ele entrou nessa de Minas e essas duas não tinha saído ainda a resposta. E ele foi pra lá, porque ele não sabia ainda da Unicamp e nem da USP, ele foi praquela de Minas que é Federal também. Mas não era o que ele queria, porque era elétrica de transformadores, coisas grandes e ele queria coisas pequenas, tipo rádio, pápápá, essas coisas menores, que depois desenvolveu o trabalho dele hoje que é com celular. E realmente aconteceu um fato estranho, nem merece ser citado e eu liguei no hotel onde ele estava. Não tinha celular. Ele falou: “Mãe, por favor, vai buscar essa menina nessa casa e leva pra nossa casa, põe ela no meu quarto porque ela é muito boazinha e vamos arrumar uma família pra ela. Eu daqui 15 dias volto, o Beto volta e a gente vê isso”. Só que no dia seguinte tem que comunicar no Rio, né? Ele falou: “Você vai ligar no Rio de Janeiro nesse telefone e vai falar que ela está em casa”. Nisso teve uma festa em casa e veio uma família que adorou ela. Então já no dia seguinte já levaram e eu já liguei que estava. Atendeu uma funcionária que falou: “Maria, por que você não fica presidente? Um está em Itajubá (MG) e o outro está no Nordeste, como que eles vão conseguir?”. Daí eu falei: “Tá bom, mas eu não sei nada”. Ela falou: “Eu te ensino”. E isso são 20 anos que eu estou como presidente do comitê. Hoje, a eleição foi feita agora, eu não me candidato mais, eu abro com um mês de antecedência a candidatura pra quem quer, ninguém se candidata e eles me aclamam porque eles sabem que até que eu tiver força eu vou estar. Agora eu sou aposentada, tudo mais fácil. Então, é isso aí. E eu cheguei no AFS assim.
P/1 – A gente já vai perguntar mais. Eu queria que você contasse porque da escola você já fez um recorrido aqui da sua trajetória rapidamente pelo AFS. Eu queria que você contasse como foi o processo de acabar a escola, o casamento, como é que você conheceu o Luiz.
R – O Luiz? A gente se conhece desde pequeno.
P/1 – É nada!
R – Sim! A mãe dele é prima segunda da minha mãe. Pra você ver como as coisas são.
P/1 – E como é que chegou no casamento e o fim da escola?
R – Eu vou falar pra você. Eu fazia cursinho em Campinas pra faculdade e ele também, só que ele tinha carro, ele era riquinho. Sempre foi, filho único, sempre tinha carro. E um dia eu estou no ponto de ônibus pra ir pra Campinas. Ele falou e falou: “Você não é Maria?”, eu falei: “Sou”. Ele falou: “Ah, você vai indo pro cursinho, qual cursinho você faz?” “Tal” “Ah, o mesmo, eu nunca te vi”. É que ele ficava no cursinho em Biológicas e eu ficava em Exatas, a gente não se encontrava. E eu comecei a ir com ele. Meu pai todo feliz da vida porque ele chamava de Luizinho: “Ah, o Luizinho que leva, ele é bonzinho”, Luizinho daqui, Luizinho de lá. Eu tinha terminado um noivado porque ele não queria que fizesse, aquelas coisas de homem bobo. Eu falei: “Quer saber de uma coisa, negão? Tchau e benção”. Isso foi em dezembro. Quando chegou em maio, o Luiz me pediu em namoro. Naquele tempo, pedia em namoro. Ele me pediu em namoro e eu aceitei. Falei: “Ah, vamos ver o que dá, né?”, porque ele é tranquilo, eu falo: “Você nasceu de 15 meses”. Eu nasci de sete, de verdade. Então, casa, né, dá certo. Ele não nasceu de 15, mas ele é tranquilo pra tudo. E foi e a gente quando viu estava junto, ele também trabalhava no mesmo TLC comigo. Namoramos, noivamos, casamos, depois de três anos tivemos o primeiro filho, a gente já começou a fazer a vida da gente. Daí eu já era funcionária da Caixa Federal, foi quando eu tive que deixar a faculdade, que eu passei na Caixa Federal e o horário da faculdade era integral, Matemática era integral na PUC [Pontifícia Universidade Católica de Campinas] e eu não podia ir à noite. Trabalhar à noite, não existia isso antigamente. E eu tinha que largar. E o meu pai precisava que eu ajudasse, estava tudo muito difícil, tudo. E eu falei: “Ah, quer saber de uma coisa? Eu já estou empregada, emprego público maravilhoso”. Hoje a Caixa não é pública, mas ela era, tinha décimo quarto salário, tinha salário alimentação, tinha um monte de coisa. Então eu falei: “Ah, vou deixar a minha. E outra, a gente quer formar uma família? Eu nunca vou ser uma cientista, nunca vou ser”. Eu fiquei um ano afastada da Caixa pra cuidar do meu filho, daí eu não consegui voltar, quem cuidava do RH [Recursos Humanos] que não era RH, era setor de, eu não lembro como chamava antigamente: “Ah Maria, fica mais seis meses. Agora você não recebe o salário como tesoureira, fica só o seu salário administrativo mesmo e com o seguro saúde”, que naquele tempo chamava Sasse [Serviço de Assistência e Seguro Social dos Economiários], “assim você não perde isso”. Só que depois eu engravidei, né? Aí eu falei: “Agora tchau. Agora não, vou cuidar dos meus filhos. Quando eles souberem pedir comida, limpar o bumbum eu volto a trabalhar”. Aí voltei sabe fazer o quê? Dar aula de sapateado. Aqui em São Paulo, no Kika Tap Center. Dei aula um tempo, dei aula em Americana, dei aula em Campinas. Eu dava aula como voluntária numa escola de crianças com síndrome de Down, machuquei meus dois joelhos e daí não deu mais pra dar aula. E o AFS sempre junto, sempre junto com tudo. Quer dizer que ele foi me envolvendo de tal forma que ele, como que fala? Me preenchendo a vida. Tanto que o Luiz veio até nós. Porque o outro voltou, veio com tudo. Depois o outro foi o João, veio com tudo também. João é voluntário até hoje. Mesmo morando em São Paulo ele faz parte do Conselho Diretor, quando nós precisamos dele, ele está presente nas reuniões nossas de comitê. Ele não é mais conselheiro, essas coisas, mas ele está presente em tudo, nas decisões.
P/1 – E conta como é que foi ser mãe.
R – É uma coisa que eu sempre queria, mas eu nunca tive certeza porque eu sempre falei: “Se eu seguir a Matemática, a carreira científica, mãe não dá certo. De jeito nenhum”. Mas meu instinto materno era maior. Eu sou mãe até hoje, mãezona. Um vai fazer 40 e outro tem 37, até hoje a gente se fala todo dia, conversa de tudo. Eu sou mãe mesmo. E agora sou vó. A minha netinha no dia dez fez um ano. Agora eu sou vovó.
P/1 – E Maria, conta , no final do dia o Luiz chegou, você começou a conversar com
ele e falou: “Vamos arriscar, vamos ver como é receber alguém em casa?”. Conta como foi quando esse estrangeiro chegou, o nome dele, como foi essa experiência de encontrar com o diferente.
R – Ele falou: “Maria, como nós vamos cuidar? Eu trabalho o dia todo”, porque ele trabalhava num órgão público como veterinário e depois à tarde e à noite ele tinha clínica, então ele saía às seis e voltava tipo 11 horas da noite. Eu falei: “Ah, isso eu dou conta”. Eu não estava trabalhando aquela época porque o Marco ainda era pequeno: “Ah, eu dou conta. Vai me ajudando, tem o Orestes, tem o Marcos”, esqueci o nome da menina, “que te ajuda, que vai ajudar e eles vão vir conversar com a gente”. Quando eles apresentaram, a gente viu que era uma coisa bem séria. Eu falei: “Por que não, né?”, ele falou: “Tá bom”. O dia que nós fomos buscar o Mark em Campinas, é uma sensação, parecia que eu tinha dado a luz. Quando ele viu a gente, ele falou: “Pai, mãe”, porque eles têm orientação, que nós brasileiros gostamos que chamem de pai e mãe, então eles já têm orientação lá no país de origem deles pra chegar e falar pai e mãe. E isso foi muito grande pra gente. Quando ele viu o Marco Haroldo, ele pegou no colo, sabe? Que ele tem um irmão menor que tinha uma deficiência, não sei qual, e que ele era tratado que nem bebê, então ele falou: “Eu vou ter um irmão bebê também”. Muito carinho, muito legal. Ele era muito companheiro da gente. Ele foi estudar a umas três quadras no colégio vocacional perto de casa, um colégio público. Mas ele fazia as amizades porque ele era muito assim, sabe? “Nós estamos indo pra tal lugar, você quer ir?” “Quero”. Gente, isso nunca eu falava, porque quando eu era adolescente eu não queria que me levasse, eu não queria estar junto fazendo as coisas. E realmente ele não, nossa, ele se sentiu muito. Por muito tempo ele escreveu o nome dele com Forini no fim. Até a gente tem um livro que ele mandou pra gente da Califórnia onde ele fala:
“Do seu filho querido, Mark Forini”. Então até hoje: “O seu neto nasceu. Você tem um neto agora que chama Zacarias, você tem um neto que chama...”. Ele tem meninos. Então, tudo isso vai acarretando. E depois dele continuaram os outros. “Ah Maria, acontece que tem uma menina que está numa casa e não dão comida pra menina”, acontece muito isso. “Você não quer pegar ela?”. Nossa, o colégio dela era lá em cima. O Luiz falou: “Não, eu não tenho tempo”. E aquele tempo não tinha van que fazia transporte, você morava perto da sua escola. A gente conseguiu a transferência pra esse colégio e ela veio morar com a gente. Mas ela morou duas semanas e logo depois foi embora. Eu falei: “Olha, Luiz, eu acho que eu sirvo pra ser mãe de menina também, né?”. E eu já estava grávida do João. O João eu já sabia que era homem porque eu tive rubéola no segundo mês. E teve que acompanhar com ultrassom a gravidez toda pra ver como ia reagir e tudo. Então eu já sabia que era outro menino: “Ah, que legal”. E toda vez, de toda região, já veio gente do extremo sul, já veio gente de Minas, de um monte de lugar pra ficar comigo. E eu sempre acolhi. Pra mim, chegam em casa e falo: “Você não é visita, tá? Eu não lavo calcinha nem cueca de ninguém e nem empregada, a comida é tal hora, isso é tal, você tem que me falar onde vai, com quem vai, como vai e como volta. Não tem com quem ir o pai leva e busca”. Porque o Luiz preferia isso. Então eu nunca tive problemas. E isso foi muito bom pros meus filhos. Se você ver o depoimento da Georgia. O Luiz queria que eu trouxesse uma fotografia que os dois estão na mesma cama jogando videogame, sabe? É muito legal. Pra quem nunca teve irmão que nem ela. Ele tinha acabado de chegar dos Estados Unidos, ele sabia bastante coisa, tinha vindo com um pouco de cultura de lá e trocar a cultura brasileira com americana e ter uma irmã quase da idade dele, um ano só mais nova, foi muito legal.
P/1 – E conta pra gente a história da Geórgia.
R – A Geórgia foi o seguinte. Em 1997 nós éramos uma região só em São Paulo toda. Em 97 a gente dividiu em SP-1 que pega a região metropolitana de São Paulo, pega a Baixada Santista, a parte de São José dos Campos, Jacareí, toda aquela parte lá, a parte da Sorocaba, Indaiatuba, alguma coisa, Americana, Campinas a região agora é metropolitana de Campinas porque até então não era. E o interior paulista, que Americana pega até Rio Claro, depois de Rio Claro, Leme, Pirassununga, vai pra cá, vai pra lá, pra Assis. Quando separou não tinha quem fosse conselheiro, aí falam: “Maria, você não quer ficar?” “Não sei” “Ah, o Luiz te ajuda”. Foi aí também que ele se sentiu. Eu falei: “O cargo é de um só, mas você ajuda Lu?”, ele falou: “Ajudo”. E passou acho que um mês eu recebo um telefonema do Almir, pergunta pra ele amanhã:
“Maria, estou com um caso seríssimo. Uma mãe quer que a menina vá embora de todo jeito. A menina é super pedante, ela é americana”, pápápá pápápá. Eu falei: “Almir, você tem como me trazer essa menina ou colocá-la num ônibus com segurança até Americana?” “Tem”. São Paulo-Americana. Eu fui na rodoviária esperar, ele pôs no ônibus. Ele falou pra ela: “Você vai ver, a Maria é brava, ela vai te ferrar lá”. Não foi bem ferrar que ele falou, sabe? Quando ela chegou, ela chegou toda assim, sabe? E ela tinha voltado de uma viagem do Nordeste, ela tinha o cabelo aqui. E ela jogou água oxigenada no cabelo inteiro. A rebelde sem causa. Você viu a fotografia, imagine branca. Como eu não ligo pra essas coisas eu falei: “Você vai sentar aí e você vai escrever em inglês”, eu chamo: “What do you do”, o que você quer fazer da sua vida, por que você veio, o que você está fazendo aqui. Ela foi escrevendo, escrevendo, escrevendo. Quando meu filho chegou, fez a tradução porque o meu inglês é muito ruim, continua e eu tenho medo de confundir uma palavra e você sabe, isso, em idiomas diferentes é muito perigoso, é um dos que dá maior problema é o idioma, você entender errado. Ele falou: “Não mãe, ela quer fazer coisa séria. Está acontecendo um monte de coisa na casa dela”. E ela já estava falando português porque ela tinha que pegar um ônibus e um metrô pra ir pra escola aqui em São Paulo, você imagine? Ela morava Vila Prudente, é onde tem um crematório. Ela morava lá, estudava não sei onde, perto da Avenida Paulista. Ó onde foi por essa menina, sozinha. Vinha de ônibus, voltava de ônibus, metrô, tudo. Eu falei: “Bom, aí já está errado porque tem a segurança, tem isso, tem aquilo”. Conversei, fui conversando com ela. E ela foi mudando. Toda aquela petulância que tinha ela foi mudando. É o que ela escreve lá: “De repente, eu aprendi que não se come só arroz, feijão e bife, eu aprendi que tem outras comidas. Eu aprendi que numa casa não se grita tanto”. Eu falo alto, falar alto é uma coisa, agora nunca grito com meus filhos, nem eu com o Luiz. Então é diferente, você entende? E ela foi, tudo, ela queria ficar lá. Eu falei: “Não, você não pode”. Uma das coisas de conselheiro é não poder ficar na casa, a não ser quando você encerra o caso e vê que não tem mais jeito, falta pouco pra ir embora, aí fica na minha casa, porque dá dó mandar embora. Você sai para um intercâmbio de 11 meses, no décimo mês ser mandado embora é um buraco pra tua vida. “Eu não fui capaz de completar”. Isso para um adolescente de 16 a 18 anos é muito grande. Isso pra mim é uma coisa que eu prezo muito e tenho muito cuidado em tomar conta dessas crianças nessa parte. Eu falei: “A gente vai arrumar uma família pra você”. Eu não sei com quem eu estava conversando, não me lembro: “Ah, eu tenho uma irmã que mora em São Paulo. Ela tem uma casa enorme, é ela e o marido só, são dois velhos. Mas a filha dela mora vizinha que tem um portão. Na casa da filha não tem lugar”, porque acho que tinha três filhas e tinha dois quartos só. “Mas eu acho que a minha prima pega”. Eu falei com o Almir, ele falou: “Se você colocar pode colocar”. E a gente conseguiu um colégio de freiras onde estudavam aquelas crianças. E ficou, ela morava na casa dos avós, fazia as refeições na casa da mãe e do pai e de noite ia dormir. Ela pegava no portão, no quintal, entrava e ia dormir porque não tinha lugar pra dormir, só. Nossa, foi uma vida linda, pena que foi pouco tempo. Mas as irmãs dela muito legais, eu já vim várias vezes, eles já foram várias vezes pra Americana pra gente almoçar em Páscoa, essas coisas. Isso que é o AFS, você entendeu? Eu falo que o AFS, vocês falam que a net é uma rede. Não, o AFS é maior que a net, porque ela tem um propósito, quando a pessoa quebra aquele propósito que é a nossa missão aquela pessoa fica mal. Porque ninguém é voluntário por uma coisa que você não está feliz. Lógico que quem é voluntário hoje do AFS, na idade de vocês, é uma escada, porque quando você põe no seu currículo:
“Eu sou voluntária do AFS”, você está um degrau, dois, três acima do próximo que vem atrás de você, pro teu currículo de trabalho, pra uma série de coisas. Então muita gente vai mas cai, porque ou você é ou você não é. Mesmo os funcionários, ou ele é ou ele não é, você entende? Tem que ser. Porque é o que eu falo, se eu tivesse mandado a Geórgia embora, porque era pra dar como não adaptação. Ela tinha emagrecido não sei quantos quilos. Isso é perigoso, a gente tem que mandar embora. Mas na outra casa ela engordou muito mais até. Veio pra Americana, quando estava em Americana eu levei no salão que eu vou, que é o melhor salão que tem em Americana, cortou aquele cabelo feio e tingiram da cor do dela, era meio avermelhado. Ela ficou feliz, ela falou: “Tem gente que cuida da gente”. A gente criou um laço muito grande com a mãe, com o pai. O pai dela foi militar na guerra do Vietnã, ele construía pontes, é engenheiro, então ele é uma pessoa mais séria, mas excelente. A mãe é reitora numa universidade. E quando ela passou do colégio público pro colégio das freiras ela não levou o papel pra ela poder ir já terminado o terceiro ano do Ensino Médio. E eu vim até aqui e conversei com as freiras e as freiras não queriam fazer porque foram poucos meses, ela não foi avaliada. Eu falei: “Cadê a caridade de Cristo aí? Pô meu, a menina sempre foi muito bem lá, por que não repetir a última nota?” “Tá bom, vamos fazer isso”. Eu tinha sido chaperone pra Chicago, levei uma turma grande do Brasil pra lá. E ela e a mãe dela foram me esperar no aeroporto em Chicago porque eles moram perto e eu levei esse papel. Tudo traduzido, tudo certinho, ela levou no consulado, o consulado brasileiro lá deu o ok, fez a tradução juramentada e ela entrou na melhor universidade, em engenharia elétrica. Então, é isso que eu falo, é isso que é AFS.
P/1 – Fala pra gente em algumas palavras qual é a missão do AFS.
R – A missão do AFS nada mais é do que eu te respeitar, respeitar ele e me respeitar. Por quê? As diferenças é que dão todas as confusões do mundo. Então a missão está lá bonitinha escrita, certo? Mas o final é esse: “Você tem um mundo melhor a partir do respeito” étnico, racial, orientação sexual, a parte de cor, a parte de política, a parte de religião e assim vai. Eu fui para um curso agora semana passada no Rio, até eu fiz a maior confusão. Me colocam num curso de Conselheira Regional, me colocam o caso de um menino que veio dos Estados Unidos e ficou na casa onde tinha uma irmã lésbica e ele não aceitava isso, então tinha que mandar embora. A gente tem que aceitar o homossexual mas o homofóbico também, a gente tem que aceitar. Ele é homofóbico eu não vou mandar ele embora por isso. Eu posso ajudá-lo a mudar, mas não pra voltar por isso. “Ah não, tem que mandar embora porque é diferente e ele tem que saber”. Mas ele também é diferente. Hoje no mundo a maioria aceita, então tomem cuidado com isso. A nossa missão é essa. Que nem quando falam: “Maria, o que é o AFS pra você?”, eu falo: “É a minha religião”. Foi a última palavra que eu falei quando eu recebi o Galatti, é a minha religião. Porque pela missão do AFS eu dirijo a minha vida, eu criei meus filhos, eu toco tudo. Porque nada melhor do que isso. Não é fácil você aceitar tudo, fazer tudo, mas você também cresce com isso.
P/1 – E conta como é ser conselheira durante tantos anos e qual é esse papel mesmo, um pouco da importância dele.
R – Ele é um papel importante porque a gente é um porto seguro do estudante. Se ele esgotou tudo no comitê que ele está ele vem pra mim, pra conselheira, conselheiro, quem seja, nós temos dez aqui no Brasil, um em cada região. Quando chega pra mim, o que você faz? Eu vou primeiro mandar fazer o “What do you do?”, o que você veio fazer aqui. Tem cara que fala: “Vim aqui porque no Brasil tem bunda de mulata na praia, tem futebol”. Tem isso, eles são muito sinceros. “Eu vim pra isso”. Bom, aí você vai trabalhar esse cara. Se você veio pra isso vamos ver o que mais você pode acrescentar nisso? E isso não vai menos de uma semana, não vai. E depois que você vai fazer. Então, o papel de conselheiro eu acho muito sério. Esse menino de Sorocaba, que o diretor era de Sorocaba, o Ciro, me ligou, ele era DR [Diretor Regional]: “Estou mandando o moleque embora”. Pegou maconha na mochila dele. Pegou maconha, alguém falou, vai embora, é regra crucial do AFS. Droga nenhuma, nem medicamento sem receita. Falei: “Manda ele pra mim” “Não, já mandei mandar embora”. Eu falei: “Não, você não pode mandar embora antes de falar comigo. Você é o diretor, mas o meu papel de conselheira não é ligado ao seu”. Liguei pro Rio [de Janeiro], falei com o Rio e o Rio falou: “Não, não tem arranjo de volta nenhum, os Estados Unidos não aceitou a volta dele”. Daí quando ele chega o Rio de Janeiro me manda a ficha médica dele, o perfil dele, a carta que ele escreve pra família, a carta que a família dele escreve pra família hospedeira, você vai vendo. Eu falei: “Não, o cara não é tão ruim assim”. Ele tinha descoberto há seis meses que ele era diabético. Ele falou: “Parei de beber”, ele escreve na carta. “Parei de tomar cerveja, que na Alemanha pode tomar, parei de fumar cigarro e...”. Lógico que parou também de puxar fumo. Certo. Eu falei: “Lá na Alemanha você fumava?” “Fumava” Cigarro?” “Cigarro” “Maconha?” “Maconha” “Qual outra droga você usava?” “Nenhuma” “Então por que você foi fumar aqui se você assinou os papéis do AFS que é claro isso? Seus pais assinaram e você assinou”. Ele falou: “Não fui eu, eu não sabia. Foi um japonês assim, assim e assim”. Por quê? Ele foi com o irmão numa festa da faculdade. O que rola em festa de faculdade? E ele estava triste porque ele não podia tomar chope, senão ele ia ter que ficar se dando quantas injeções? E ele sabe que tem um limite. Pra ele vir ele teve toda uma orientação médica, foi avisada a família aqui, tudo foi muito bem organizado. E ele falou: “Não fui eu, o cara pôs e falou: ‘Ó, o dia que você estiver triste como você está, você acende um, fuma escondidinho, ninguém vê, tá bom’”. Só que naquele dia a mãe, crica, pegou a mochila dos três filhos pra lavar e a dele tinha maconha. Então vai embora. Só que daí eu fiz todo o relatório e conversei com a mulher do Ciro, que é a Maria Eugênia, que talvez eles venham porque eles também são peça importante no AFS, ele viajou e ele ficou muitos anos trabalhando. E ela falou: “Maria, eu vou atrás desse japonês pra você”. Foi, chegou lá e falou: “Ó, você enfiou maconha assim?” “Pus” “Por quê?” “Por causa disso, disso e disso” “É verdade isso?” “É”. Acabou, não vai embora. Ele continuou mais 15 dias comigo, daí eu levei ele no médico, vimos todo o nível de glicemia dele, se ele estava fazendo as injeções direitinho. Porque ele fazia injeção assim, em cima da calça jeans mesmo. Então estava tudo em ordem, por que mandar embora? Naquela família ele não podia voltar, era um condomínio. A Maria Eugênia ficou com ele uns tempos e arrumou uma famíia legal, esse menino alemão completou um intercâmbio maravilhoso. Por que mandar embora? Agora tem uns que precisam, tem uns que você chega e fala: “Ô meu, você não se adapta, você fica o dia inteiro no celular, no Whatsapp, no Skype, com a sua família lá fora”. É a modernidade, coisa que no tempo dos meus filhos era uma vez por semana um e-mail que mandava, porque o e-mail você tinha que ir na escola pra mandar e-mail, o primeiro ainda nem isso. Então é o que eu falo pra você, o papel da conselheira é muito sério, é um papel que você tem que ter, como o Luiz disse aquela hora, feeling, sabe? Eu não sei, é uma coisa que eu sinto e eu sei até onde eu ajudo ou até onde:
“Basta porque agora você não tá. Vamos tentar mudar?”. Então aí o que você faz? São várias etapas. A outra etapa que você fala com ele. Bom, você já escreveu tudo o que você quer fazer. Agora eu quero algumas coisas gritantemente: “Eu quero que você faça, você acha que você vai ser capaz? Você vai ficar aqui na minha casa, eu te dou três dias pra você mudar nisso”. Ninguém é artista três dias. Bom, vê que está difícil ainda mas não é pra mandar embora você faz um Plano de Sucesso. O Plano de Sucesso eu não posso fazer sozinha, eu aviso a secretaria, à secretaria passo todos os problemas e a secretaria faz etapa por etapa, daí eles limitam o tempo. Plano de Sucesso eu não deixo ir embora pro comitê dele, eu quero junto com ele fazer ele melhorar, ele ou ela. É a facilidade que eu tenho de ser só eu e o Luiz, você entende? De ter uma escola a duas quadras, é a facilidade de ter dois quartos sobrando, dois banheiros sobrando. Mas às vezes tem gente que mora com mãe e com pai ainda, pra ser conselheiro como vai levar o estudante pra ficar uma semana, 15 dias? Então essa parte eu vejo que é muito importante. Não deu certo do Plano de Sucesso, você vai pro argument, aí o argument é feio porque daí vai pros pais naturais e pro país de origem, eles têm que assinar que eles concordam com tudo isso que a gente está pondo. E se ele deixar um item ele volta imediatamente, então o país de origem já começa a procurar passagem. Porque a passagem deles, por ser passagem de estudante, às vezes as aeronaves não têm tanto lugar, mas já começam. Quando passa disso, você vê, a Geórgia passou todos esses. Hoje, é mãe, tem dois filhos. Só amam o AFS. O papel de conselheiro, eu acho muito sério. Você tem que estar com o ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente] aqui na cabeça hoje em dia. Porque: “Ah, vamos fazer um churrasco? Vamos dar uma caipirinha pro gringo?” “Não, não pode”. Pelo ECA, hoje, a criança, não importa onde ela bebe, se ele for menor de idade quem deu a bebida vai em cana; se foi o dono da casa, se foi irmão, quem for, pelo ECA vai. Eu estava com um estudante no meu comitê, um paraguaio. Ele foi numa despedida de um alemão. O que eles estão fazendo agora? Eles levam H2O até aqui, daí joga vodka, fecha e entra assim. O que o pai acha que levou? H2O. Só que ele vai, bã bã bã, bum. O pai me ligou, o pai da festa. Liguei pro pai hospedeiro, o pai hospedeiro chegou e falou: “Maria, o negócio está feio... Vou levar pro hospital”. Eu falei: “Leva que eu estou indo”. Chega no hospital, está em coma. Está em coma? Imediatamente a polícia chega. Imediatamente. Acompanhado de um cara do Conselho Tutelar. O Conselho Tutelar, passou uma semana eu recebi intimação que tinha que ir lá. Fui, eu, o pai e a mãe. A gente teve que fazer um curso pra alcoólatra (risos). Eu falei: “Não, ele vai embora”. A semana que vem vai, já está indo embora, porque já era a segunda vez que ele fazia isso. A outra vez ele não ficou em coma, mas ele chegou em casa, deitou no sofá da casa, vomitou no tapete, fez xixi, fez cocô e dormiu lá. Quando a mãe levantou no domingo, aquele cheiro, aquilo tudo, daí a gente já passou direto ele pro argument. Ele não tem como porque pelo ECA não pode beber, você entende? Então o Estatuto da Criança e do Adolescente é muito sério. A criança tem que estar segura, tem que ter alimentação, então tudo isso eu como conselheira tenho que ver. Fora que a gente tem todo mês um contato mensal, o conselheiro local tem que colocar no nosso Global Link, que é o nosso site, como aquele estudante está passando. Quando não tem eu tenho que ferrar os presidentes porque: “Ah, estudante tá bem” “Tá bem o quê?”. Daqui a pouquinho vem: “Precisa mandar estudante embora porque ele fumou maconha”. O país lá não vai aceitar. E daí é processo. E tem muitos processos. Hoje em dia, todo mundo processa tudo, a gente tem que ter muito cuidado, tem que saber do ECA, tem que saber várias coisas dos outros países, e isso a secretaria nos ajuda muito, que tem os profissionais que fazem isso. “Estou com essa dúvida, o que você me ajuda?” “Isso, isso e isso. Maria, não pode fazer isso, mas isso pode”.
P/1 – E conta pra gente, Maria, dos prêmios. Você já veio hoje aqui trazendo dois pra gente ver e conhecer. Conta como foi a história de cada um deles pra gente.
R – Olha, como eu sempre fui muito ativa, eu nunca fui chaperone de chegar, ficar dois dias pra conhecer a cidade. Vamos supor, fui pra Seattle levar uma turma. Então conheço Seattle dois dias e volto pro Brasil. Não. Eu sempre tinha um jeito de arrumar um voluntário para eu ir nessa orientação da turma dos latinos que chegavam. Como que os latinos são tratados nos Estados Unidos a hora que chegam? Porque se tem uma orientação pra europeus e uma orientação pra latinos, isso no mundo inteiro. Como tem pra tailandês, pápápá. Por que? Porque são costumes diferentes e tem que trazê-los pra nossa realidade. Que nem, pros Estados Unidos os latinos tinham que se adaptar aos Estados Unidos e não os Estados Unidos se adaptar a eles. Então eu fui aprendendo muito, você entende? Você vai na Alemanha, você vê os pais participarem de tudo, aqui ninguém participava de nada. Comecei a obrigar. O pai não vem, não fica no comitê. Vai pro Comitê Campinas, vai pra Indaiatuba, pode ir pra onde vocês quiserem. Durante cinco anos, o Eduardo acompanhou isso, durante cinco anos seguidos o meu comitê foi o melhor comitê do Brasil até que tiraram o prêmio porque ninguém melhorava e só eu ganhava. Eu continuei bem. Você vê, o ano passado eu mandei 13 estudantes. São Paulo mandou 20. Quantos habitantes têm em Americana? Quantos têm aqui? Você entendeu? E pega essas coisinhas, quantos habitantes têm, quantos não têm, quantos que enviaram, quantos que receberam, papapa pra ganhar o prêmio. Até que o Eduardo me deu um prêmio, ele mesmo, assinado por ele, como uma honra de cinco anos consecutivos ter sido o melhor do Brasil. Esqueci de trazer esse, esse ficava lá em cimão e esqueci desse. Esses dois estavam lá porque um eu ganhei essa semana retrasada, o de 20, e o outro foi exposto porque muita gente não conhecia o Galatti. E os outros eu esqueci, senão eu tinha trazido. Eu ganhei um monte já. Então pra eu ganhar, eu acho que o voluntário não espera nada a não ser reconhecimento. É gostoso você ser voluntário e alguém reconhecer o seu trabalho, é muito bom. Eu acho que isso faz a gente criar força. E eu sempre recebi isso do AFS Brasil e do AFS Internacional, sempre fui muito bem aceita. Uma vez eu fui levar uma cleptomaníaca pra Alemanha, ela ficou na minha casa e eu fui levar, daí em Hamburgo que é a sede, eu cheguei em Frankfurt, eles me pagaram uma passagem de avião até Hamburgo e falou: “Escolhe o presente que você quer”. Eu falei: “Ah, comer numa padaria uma comida gostosa” “Não! Não é isso! Daqui você vai pra onde?” “Vou pra Itália, pra casa da minha filha italiana, que eu falei que ia ficar com ela um mês”. Ele falou: “Então você prefere ir de avião ou você prefere ir de Transalpino?”. Eu já tinha a passagem de avião, eles reverteram em dinheiro, me deram, era euro já e me deu a passagem de Hamburgo até Basel no Transalpino. Foi a viagem sozinha mais linda que eu já vi. Eu vi flocos de neve desse tamanho. Desci todo o alpe de trem, é a coisa mais linda do mundo. Isso pra mim, nossa! Foi um prêmio que eu nunca vou esquecer. E eu não sou de tirar fotografia, eu guardo tudo aqui. Então, você vê todo mundo cré cré cré. Eu não, quietinha no meu banco, eu tinha uma cabine pra mim, depois entrou um senhor, alemão ele e eu brasileira, ele não falava português e eu não falava alemão. Mas a gente se descobriu que ele ia pra Itália pra ir perto de não sei onde na Suíça esquiar, que os filhos já não queriam mais ele e ele esquiava sozinho, ele passava lá. Ó, nos entendemos com desenho, falando um pouco de inglês, a gente se entendeu. Foi um dia de viagem, a coisa mais linda. Isso é um prêmio. Agora, dia que eu estou gravando, que a gente está concretizando o Mundo Pra Todo Mundo que é a coisa que eu mais amo fazer na vida no meu comitê, eu estou gravando isso com um profissional, com tudo, gravando os quatro primeiros que ganharam esse prêmio nosso. Uma até ganhou só meio porque a mãe dela é professora, o pai trabalha bem, tudo, mas se não fosse metade ela também não iria. E toca o telefone da minha casa: “Maria, aqui é Tachi” “O que aconteceu Tachi?” “Você está sentada?”. Eu falei: “Tô, tô gravando aqui, estou com um profissional gravando, pápápá pápápá”. Ele falou: “Então sente. Você ganhou o prêmio Galatti”. Eu: “Ah!?”, eu nem sabia que tinham me indicado. Porque precisa uma pessoa do comitê indicar pra depois a região, depois aqui, o Brasil, e depois vai pro Board. O Board são todos velhos, antigos voluntários. Então é assim, você tem que preencher ficha, nossa, eu não preenchi. Eles têm todo meu histórico lá todinho escrito e eles me deram o prêmio. Quando falou isso pra mim eu chorava, eu ria, eu não sabia o que eu fazia. Porque pra mim foi uma emoção, foi um susto, você entende? A mesma coisa, o comitê fez cinco anos eu presidente, ah, vamos tocar. Fez dez anos? Ah, fez uma homenagem, tal, um ramalhete. Agora esse ano eles fizeram uma coisa, eles contaram a minha vida no AFS. Vieram ex-voluntários, tinha mais de 160 pessoas no almoço. Foi muito lindo. Então pra mim esse é um, do meu comitê, mas pra mim é o maior. O Galatti. E quando eu ganhei os pins do Archie [Green], né? A hora que ele chega, ele me coloca os pins e eu olho, ele fala: “This is the first war, this is the second war”, ele participou das duas. Eu chorava, né? Chorava que nem criança. Então pra mim isso, ganhar o prêmio é um reconhecimento. Mas se também não dão eu mando, sabe, e continuo fazendo. Mas eu acho que não teve prêmio que eu não ganhei, do AFS. Já ganhei de melhor voluntária da região, de melhor... Maria, não comitê, melhor voluntária do Brasil, melhor voluntária do mundo. Agora do comitê, eu tenho uma toca de prata eu tenho um monte, está tudo até meio preta, sabe? Mas não que eu não ligo, ligo. Eu falei pro Luiz: “Quero tudo no meu caixão, a hora que cremar eu quero que creme tudo. Porque se ficar pra filho, pra quem ficar, vai jogar fora. Então vai comigo, vai tudo comigo. Já avisa. Tem que fazer um aparte no caixão, faz um aparte no caixão e põe tudo. Ou se não na hora de cremar leva e fala: “Isso aqui tem que cremar junto”. É o único pedido que eu faço. Se você ler o meu discurso de lá e aquela declaração que eu dei você vai entender porque eu sou voluntário do AFS.
P/1 – Conta pra gente o que te faz ser voluntária do AFS?
R – Eu já te falei que é a missão. Eu acho que toda pessoa, eu sempre achei isso, tem que fazer algo impactando. Então quando eu não tinha o AFS eu impactei na religião, até que eu deixei de acreditar um pouco na Igreja Católica, não que eu deixo de ser católica, mas uma série de coisas eu não entendia então deixei essa parte. Eu acho que todo mundo tem que fazer alguma coisa. E se trabalhar só no AFS como voluntária pra mim não é nada, eu quero, o meu Mundo Pra Todo Mundo funcionando. Eu quero lavar o carro pra que aquela escola de cegos tenha as telas desse tamanho pro que tenha cegueira parcial possa ter um computador. Eu quero pra escola de surdos, eles terem o dinheiro pra fazerem audiometria que é uma coisa muito cara. Então eu tenho parceira com a Lions Americana Centro que faz com cegos e o Lions Americana Norte que é audiometria. O que nós fazemos? No Lions Centro, sabe Nota Fiscal Paulista? Não sei se você sabe isso, mas tem um monte de estabelecimentos que dão de presente pras entidades, eles ganham. Eles têm um voluntário que toda semana pega, só que chega de caixa, né? E tem que separar, você não pode ficar só digitando. Os meus estudantes que vão viajar e os estudantes estrangeiros que estão na cidade, eles são preparados – não é obrigado, se querem fazer esse serviço – todos vão. Então um vai de segunda de tal hora a tal hora, de segunda à sexta, depois que terminou, quem não tem curso de inglês, não tem judô, não tem não sei o quê vai lá trabalhar uma hora, duas horas e separam. Agora você vê se isso não é legal. Eu não estava no almoço porque eu fui pro Rio. Mas falou que de junho até agosto, que foi a última parcela que o governo pagou, agora vai pagar só em 2000 e não sei quando, eles conseguiram 62 mil reais. Você vê isso numa entidade pequena o quanto impacta em melhorar os programas de voice, comprar o celular pra eles de voice, colocá-los em trabalho. Tem um que hoje é dono de uma fábrica de vassoura. Cego, ele aprendeu a fazer vassoura, amarrar vassoura. Teve uma turma que veio aqui pra São Paulo aprender massagem, aquela quick massage. Isso eu acho missão do AFS. Não é só você acolheu o estudante, ah tá bom. Ele está aqui, está bem lá, se ele não está bem vem como conselheira, senão a gente muda de escola, pápá. Não, a gente tem que fazer ele ver o mundo diferente. E eu faço isso com os estudantes estrangeiros e com os outros, principalmente nesse Mundo Pra Todo Mundo. Eu estou triste esse ano, estou triste porque até agora eu consegui só 800 dólares. Mas também a quatro reais, quem que vai dar, né? 800 dólares a quatro, três mil e 200. Três mil e 200 eu não mando nem pro Paraguai. Hoje pra você ir pro Canadá custa 18 mil e 500 dólares. Já foi o tempo que o AFS dava, o meu tempo que era tudo grátis. Essa parte eu não gosto do AFS, mas eu deixo essa parte de lado e sigo na minha parte. Eu gosto de impactar pessoas, eu acho que a missão me ajuda isso.
P/1 – Você contou como foi receber o telefonema do prêmio Galatti. Mas como foi quando chegou a hora de você receber e ver que estava com você aquilo, que você levou pra casa?
R – Foi assim, a gente estava no congresso mundial. Antes teve o Congresso Mundial da Paz na Universidade de Columbia, já foi uma emoção, tivemos jantar na ONU [Organização das Nações Unidas], já foi outra emoção. Você imagine, sentou a embaixatriz, aquela que era do Sul, esqueci o nome dela. Ela é embaixatriz, ela não é mulher de embaixador, ela é brasileira embaixatriz da ONU do meu lado e o Al Gore do outro. Eu levitava, né? Eu levitava. Gente, um cara que ganha, não sei se ele mereceu ou não mereceu porque tem um monte de política, mas é um cara que faz alguma coisa, porque ninguém ganha a toa também. E ela aqui, a gente falando do problema de álcool, que eles têm muito medo que o nosso álcool desenvolva e a gente passa o pé no petróleo, por isso que o álcool está parado assim. Então ela falando que lá na ONU ela briga muito por isso, tudo. Você imagina eu no meio de duas pessoas falando disso? É muito demais. Daí já passa pra ir no dia que vai ter tudo. O Tachi, ele é [era] o presidente [do AFS] Internacional: “Maria, você não vem na convenção? Vai ter um almoço, você almoça. Sai, vai passear, vai na Quinta Avenida”. E com táxi preto pra mim, sabe? Falava português o senhor. Onde você quiser ir você fala pro motorista. Deu o roteiro pra mim, passei em Nova York dois dias. Na hora do prêmio, eu já tinha visto um cabeleireiro, ele falou: “Arruma o cabelo, bonitinha, porque isso vai”. Eu tinha uma roupa em ordem, apesar de ser à tarde, não foi a gala porque gala era longo, tudo, ele preferiu entregar o prêmio à tarde com todo mundo porque nem todo mundo participa da Gala porque a Gala você tem que pagar. Eu ganhei. Pra você ter uma ideia, o hotel que eu fiquei, você já assistiu o filme... Não vou saber o nome dela, que ela namora um senador, ela é camareira no hotel, usa roupa de outras pessoas e depois ela vai prum outro hotel? Naquele outro hotel eu fiquei. Cabia três travesseiros ingleses na cama, eu dormia atravessada e faltava um tanto assim pra Maria chegar lá, um barato! Tudo de primeira. Então pra mim, vamos deixar essa parte de lado. Mas na hora que chama o seu nome lá na frente você tem mais de 350 voluntários e você vê velhinho, você vê tudo. E de repente eu não era tão velha assim, você vê a foto: “Eu não sou tão velha”, é que geralmente bem mais velhos ganham. Agora eles estão tentando fazer os mais novos ganharem, mas houve um tempo que não era. Agora eu tenho, é que nem, ela preencheu tudo da história nossa, do que queremos, então por que não? Só porque ela não tinha, em 2007, eu tenho 66, quantos eu tinha? Tinha oito, eu tinha 50 e pouco, não era tão. Você vê, a japonesa é bem mais velha, o austríaco é bem mais velho, a neozelandesa é bem mais velha. Então assim, a perna treme, dá vontade de ir no banheiro toda hora. Mas eu tinha meu porto seguro que era meu presidente que falou: “Eu vou estar do seu lado e vou traduzir pra você”. Porque o meu maior medo é subir na tribuna e não falar o inglês direito, ou pedir tradução, você já viu tradução simultânea? Pipipi pipipi pipipi. Ah, é horrível. Aí o Tachi falou: “Vocês vão”, fomos num canto, treinamos duas, três vezes. E o Luciano é assim, advogado, desenvolto, tudo, e a gente fez isso. Aí quando eu vi os outros, eu fui a última. Quando eu fui aplaudida de pé eu chorava, o Tachi me abraçou e chorou. Aí vieram todos do Board, inclusive tem um do Brasil que é o Silverano, do Rio de Janeiro, que é uma pessoa importante no AFS Brasil porque ele fez acho que a primeira turma, acho que vocês já entrevistaram ele.
P/1 – Isso eu não sei te precisar.
R – Ele foi pro Board, então ele é. Então tudo isso, que nem eu, eu recebi do meu comitê a semana retrasada, na passada eu fui pro Rio, a outra, eles fizeram assim, eles pegaram o ex-voluntário mais antigo, eu vi que fez uma fila e me chamaram no palco. E foi passando de um pro outro, eu via que era um negócio. Até que chegou no voluntário mais novo que chegou esse ano e me entregou. Nossa! Aquilo pra mim. Daí eu entendi o que estava acontecendo, passar. Porque eu olhava assim: “Mas o que é, hein? Tá errado o negócio, esqueceram de entregar? Vão entregar uma placa pra mim e esqueceram?”. Não, daí tinha o cara que faz, como que chama o cara que fala lá? O que faz, esqueci o nome que a gente tem. Não é o cerimonial, mas ele é o que fala o que vai acontecer, vai chamando, faz tudo. Então quando ele falou: “A gente convida a presidente do comitê a vir pro palco”. Vai ter alguma coisa. Eu pude dar uma placa pro meu filho que não é mais voluntário, mas foi o cara que entregou pra mim a presidência do comitê. Foi muito bonito, isso pra mim foi legal. É onde a gente tem a fotografia de toda a família junto, que eu vou pedir pro João trazer pra você, que eu acho muito importante.
P/1 – Agora eu queria que você contasse pra gente como foi ficar do outro lado, quer dizer, ver os seus filhos indo pro intercâmbio, um pouco da experiência, ou até que você tinha tido essa proposta mas no fim não foi mas você mandou seus filhos. Como foi essa experiência pra você?
R – É horrível! Mãe é mãe! Meu filho me liga um dia: “Mãe, estou no hospital”. Mas ligou porque a mãe mandou ligar, não pode fazer isso assim, a mãe deveria ter avisado um voluntário que avisava o escritório do AFS nos Estados Unidos que avisaria o escritório aqui, que avisaria um voluntário e chegaria pra mim. A mãe dele tinha um celularzão assim, ela ligou e falou: “Pode falar pra sua mãe” “Mãe, um cara, um colombiano subiu pra defender uma bola no futebol, desceu com o cotovelo, estou com tudo quebrado aqui”. Liguei pra uma amiga que tem uma agência de turismo e falei: “Marca uma passagem amanhã saindo às seis horas” “Você é louca?! Se uma mãe fizer isso você deixa?”. Eu falei: “Não” “E você vai fazer?” “Vou, é meu filho. Agora eu não sou presidente de comitê, eu não sou nada! É meu filho”. Você entende? Você sofre. O meu filho que estava no Canadá falou: “Mãe, eu quero mudar de casa. Esse meu pai aqui me enche o saco”. Esse pai dele era separado da mulher mas ele teve a guarda dos três filhos e ele tinha uma namorada de Montreal. E quando o João foi a namorada ficou na casa como mãe. E os três filhos caíram fora porque não aceitaram. Sabe como é Canadá, cada um prum canto. Daí ele falou: “Meu pai chegou no quarto e me convidou pra ir na missa. Eu não vou na missa”. Bom, tudo bem. Sabe o fogão que você não vê, é de vidro? O pai dele pôs, acho que pra fazer café, alguma coisa e esqueceu. Passou o tempo da missa, o João dormindo lá em cima, chegou um monte de bombeiros que fez “Puuu”. O pai dele comeu o toco dele, ficou pê. Ele falou: “Não vou ficar”. Eu falei: “Calma, filho. Você quer ir pra uma outra casa? Aí você já sabe os efeitos. E na outra?”, nele eu tive calma de falar, tudo. Mas o filho machucado, daí eu expliquei, falei: “Vamos, o seu pai chegando, ele foi esquiar, você não quis ir junto, ele te convidou”, era aquele Mont Blanc lá, né? “Você não foi então eu acho que você deveria conversar com ele, pedir desculpa pela sua atitude e ver como ele vai agir, certo?” Veio ser padrinho dele no casamento, ele e a mãe, que agora são casados. É isso que eu falo, você entende? Os pais do meu primeiro filho também, os irmãos tudo casados, com filhos, se eles vêm pra cá, vêm pra casa do Marco, o Marco vai pra lá, você entende? Essa parte aí de mãe, você separa um pouco de voluntariado. Do João, eu não separei porque não tinha nada de perigo, mas o Marco, eu sabia que estava num hospital internado. Aí dói, viu?
P/1 – E pra gente ir encerrando, como que você diria que o AFS mudou a sua vida?
R – O AFS fez eu ficar com a mente mais aberta. O AFS deixou com que eu não cobrasse muito das pessoas e de mim mesma, querer mania de perfeccionismo, entender as pessoas. Ele me fez realmente entrar de cabeça na missão que é as diferenças, tanto que deu bate boca quando eu falei que a gente tem que aceitar também o homofóbico, tem que ter respeito também por ele. E eles acharam que não. Você entende? Porque eu vejo desse lado, eu vejo dos dois lados. O que o AFS deu muita foi empatia, coisa que eu não tinha e nunca tive: “Se vira, se não faz se vira”. Não, o AFS me fez me colocar no lugar dos outros. O AFS me deu muita, mas muita tolerância, eu não tinha tolerância. Abriu a minha cabeça. Lógico, quando você convive com pessoas de mundos diferentes, o mínimo que seja, ele abre a sua cabeça, entende? Então toda essa parte de empatia que eu não, eu falava: “Eu sou eu, os outros”, não vou no lugar dos outros. E também não queria que os outros ficassem no meu lugar, não, não é que eu queria troca. Mas aí eu vi que não, que a empatia é uma coisa muito importante, se coloca no lugar. A tolerância, por que nós temos essas guerras? É falta de tolerância. E me fez aperfeiçoar a parte de não ser perfeccionista, porque eu sou perfeccionista até num risquinho. Como dizia meu pai: “É matemática, né? Matemática é exata”. Pra mim não existe dois mais dois pode ser que vai dar tanto, não dá, tem que dar quatro, você entendeu? E isso é uma coisa que pesa na sua vida.
P/1 – E quantos filhos a senhora tem?
R – Putz, você me falar senhora já ficou ruim. Filhos?
P/1 – Pelo mundo.
R – Olha, eu tenho um canadense que é uma peste, ele é muito chato. Eu tenho a Geórgia que não foi minha filha mas ela me chama de mãe, eu tenho uma filha italiana. Filho, filho mesmo, eu tenho filho tailandês, o que esse menino me ensinou a ter paz de espírito, a não ser afobada. Você imagina, ele me ensinava coisas assim. Um dia ele falou pra mim: “Mãe, me leva no cemitério?”, porque eles não têm na Tailândia cemitério, é cremado. Eu falei: “Por que?” “Você sabia, mãe, que você conhece uma cultura pelo cemitério?”. Eu falei: “Eu não!” “Mãe, como que vai, como que fazem, como que faz a despedida pra outra vida, pápápá, pápápá”. Foi. Então tenho o Big. Deixa eu ver quem eu tenho mais. Eu tive um, ele era do sul e veio um africano, ele não usava nem sapato, nem nada, ia descalço na escola e a escola não queria. Um pé chato desse tamanho, que sapato que cabe? Porque ele era de uma tribo, aquela tribo que faz (faz barulho com a língua) pra falar, sabe? “Gente, vamos ter que aceitá-lo, ele vai, como que vai pôr o sapato?”. Com havaiana a gente conseguiu. Mas ele corria muito bem, sabe? Ele foi mandado embora porque ele fugia, a mãe não deixava ele sair e ele fugia do segundo andar, pulava e não se machucava. Deixa eu ver quem mais mais que tem. Tem esse daí. Ah, tem uma alemã, chama Sondja. Tenho filha mesmo ela, os outros é aqueles que vêm, sabe? Tenho mais uma tailandesa que chama Fim, que também veio de um outro e ficou. Se eu soubesse tinha trazido a lista pra você.
P/1 – Não, era só pra gente ter uma ideia.
R – São bastante, é mais de 20, bem mais.
P/1 – E como você se sente tendo uma família assim?
R – Grande?
P/1 – É.
R – Sou super feliz porque na nossa perspectiva de vida, do Luiz e minha, nós iríamos ter no mínimo oito filhos. Como eu tive rubéola no segundo filho a gente se propôs: “Se ele nascer com algum problema a gente vai pro terceiro pra ficarem dois legais”, porque se fica um que tem deficiência e outro não vai afetar o outro. Mas ele foi tão perfeito, tão perfeito, então a gente parou, a gente achou que foi um sinal dado de algum lugar pra que a gente não tivesse mais filhos. Se aconteceu a rubéola, foi provada, tudo, e ele não ficou com nenhuma, nenhuma sequela. No segundo mês fica com sequela de cabeça, de cardíaco, nada, nada, nada. Então a gente parou. De repente, eu tenho essa família enorme que quando tem alguma festividade. É difícil, eu tenho um equatoriano, quando ele voltou pra morar no Brasil porque ele entrou em Viçosa, que tem uma no Equador e uma faculdade irmã, ele voltou, ele não ia pro Equador no Natal, Páscoa, ele ficava com a gente. É muito gostoso. O que eu gosto muito é quando os pais vêm, pai, mais. Eu vou, eu vou muito também, recebo muito. Então essa família minha é bem grande. Você sabe que essa família causou muito ciúmes nos meus irmãos, né? Meus irmãos: “É só pros outros, só pros outros”. Eu falava: “Não, é diferente, só é diferente”.
P/1 – E agora pra encerrar a minha última pergunta é: o que você acha dessa iniciativa do AFS comemorar esses 60 anos contando um pouco da sua história através da trajetória de voluntários, de pessoas que estão ligadas diretamente?
R – Eu acho que isso é escrever uma história, que coisas que acontecem que se perdem. Não podem se perder. São coisas que impactaram pessoas. Como você vai perder 60 anos de uma história de Brasil, certo? Como que se perde? Não, eu achei genial a ideia! Se dependesse de eu votar porque eu não faço parte do conselho diretor, não faço nada, mas eu votaria a favor, independente de quanto vai custar, dinheiro o AFS tem. Então, eu achei genial a ideia.
P/1 – E pra terminar, quais são seus sonhos?
R – Meu sonho é utópico porque nunca teve: terminarem as guerras. Desde que o mundo é mundo existe guerra, mas melhorar um pouco. É bastante utópico, eu sei disso. Eu quero assim, o meu sonho, eu tenho o meu filho mais velho que é enfartado com 37 anos, que ele não tenha mais, que ele siga legal, o pai da neném. Que meus filhos continuem sendo honestos do jeito que eles são, trabalham na mesma empresa há mais de dez, 12 anos. E que eu e o Luiz, a gente continue, hoje é 14, a gente está fazendo 41 anos de casados, que a gente continue bem, junto. Que venham os netos, que está difícil, veio uma e olhe lá, não sei se vem mais. E que o AFS continue com uma missão, esse é o meu sonho maior. Porque dos meus filhos eu sei que eu cuidei da parte deles, do AFS eles passam de mão em mão, a rotatividade de funcionários no mundo todo, não só no Brasil, e de voluntários é muito grande. Então às vezes sai um pouco da linha. É isso que eu tenho pra te falar, Fernanda. E quero um mundo melhor, e gostaria que o mundo fosse pra todo mundo!
P/1 – Tá certo, muito obrigada, Maria.
R – Imagine, eu que agradeço a sua paciência de estar aqui ouvindo as histórias, que teria muitas e muitas e muitas, mas as que mais me lembrei, que eu fui pega de surpresa no dia da festa. Eu não entendi ainda direito, me mandou um vídeo, eu não tinha entendido. Aí eu perguntei: “O que é isso?” “O Ulisses falou que é isso, isso e isso” “Ah, a é? Tá bom”. Aí o Rio me ligou e marcou pro dia 15. Daí eu falei: “Pode ser”, e falei: “E se for dia 14?” “Tá bem”. É isso.
P/1 – Que bom, então, que deu certo! Estamos aqui, muito obrigada, viu Maria?
R – Eu que agradeço.Recolher