Projeto Vale do Rio Doce
Depoimento de Luiz do Amaral de França Pereira
Entrevistado por Eliane Barroso e Paula Ribeiro
Rio de Janeiro, 07/08/2001
Código: CVRD_HV097
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Andréa Afonso
Revisado por Leonardo Sousa
P/1 - Bom dia, a gente começa sempre pedind...Continuar leitura
Projeto Vale do Rio Doce
Depoimento de Luiz do Amaral de França Pereira
Entrevistado por Eliane Barroso e Paula Ribeiro
Rio de Janeiro, 07/08/2001
Código: CVRD_HV097
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Andréa Afonso
Revisado por Leonardo Sousa
P/1 - Bom dia, a gente começa sempre pedindo aos nossos entrevistado que digam o seu nome, local e data de nascimento.
R - Muito bem, Luiz do Amaral França Pereira, nascido em São Paulo em 1936, infelizmente já faz muito tempo. Quer o dia também? 19 de janeiro, é irrelevante mas é.
P/1 - E o nome de seus pais?
R - É Justino de França Pereira e Inocência do Amaral de França Pereira.
P/1 - O senhor podia nos falar um pouquinho sobre a origem de sua família, por parte de pai e de mãe?
R - Bom, meu pai, França Pereira. Esse França do nome dele é da família Galvão de França de Guaratinguetá que é uma família muito antiga, tem até um livro sobre a história da família. Começou em 1710 no Brasil quando veio um português chamado França, que não me lembro do primeiro nome dele, veio para o Brasil e teve nove filhos, um dos quais é esse Frei Galvão que foi recentemente beatificado e está talvez para ser canonizado. Mas a família não tem nada de santa, esse foi o único santo da família. Então uma família muito antiga, de origem portuguesa de Guaratinguetá. E o Pereira era um alferes que uma das filhas, neta já que se casou ou bisneta talvez desse primeiro português. Eu não sei muito sobre a história desse alferes mas era um do descendente de português que ficava vivendo já há algumas gerações no Brasil. Minha mãe era filha de um poeta brasileiro paulista muito conhecido, chamado Amadeu Amaral que foi da Academia Brasileira de Letras, da Cadeira 33 de Olavo Bilac que era o patrono dele, da Cadeira dele, da Cadeira que ele ocupou e foi presidente da Academia Brasileira de Letras também. De modo que eu já nasci rodeado de livros, de documentos, de literatura, poesia, etc. Minha mãe lia poesia em casa. Meu pai gostava muito, ele declamava também. Era um ambiente em casa, não vou dizer intelectual mas um ambiente muito culto, de um nível de cultura muito alto. Todos estudavam, meus irmãos todos... São quase todos advogados aliás. Uma família típica de classe média paulista, sem recursos financeiros mas com muita tradição familiar.
P/1 - Você conheceu o seu avô, os seus avós?
R - Não, infelizmente quando eu nasci o meu avô Amadeu Amaral, os quatro já tinham morrido mas o Amadeu Amaral tinha morrido há pouco tempo em 32, quatro anos antes de eu nascer, morreu com 54 anos de idade, morreu mocinho, mas naquela época ele era considerado não tão moço. Morreu de febre amarela, veja só. Mas deixou o nome em muito livro publicados de poesia, de literatura.
P/1 - Ele tinha um estilo em particular?
R - Ele completo era parnasiano mas ele era vamos dizer, mais que poeta, além de poeta ou mais do que poeta ele era jornalista profissionalmente. Ele foi diretor de redação, redator chefe do Estado de São Paulo muitos anos. Ele era muito ligado a essa família Mesquita que são donos do Estadão até hoje. Tem até um quadro enorme da figura dele com fardão da Academia no Estado de São Paulo em São Paulo. E ele era muito ligado a folclore, fez muitos estudos folclóricos também o que gerou essa sala, Amadeu Amaral no Museu, ali no Catete, Museu da República.
P/1 - Qual foi o bairro que você passou a sua infância em São Paulo?
R - Pois é, eu nasci na Alameda Jaú, que fica ali paralela à Paulista, a segunda paralela, a primeira é Santos e a Jaú que é Jardim Paulistano, acho que é como se chama. E a transversal à Rua Augusta com a Rua da Consolação e paralela à Paulista. Mas eu morei ali uns quatro anos e em 36, em 40 nós nos mudamos para a Av. Rebouças, esquina da Rua dos (?). Essas duas casas estão lá até hoje. De vez em quando eu passo lá e vejo as casas onde, até eu me lembro, até hoje eu me lembro da casa, dos detalhes porque eu passo lá de vez em quando e vejo. Agora eu já não sei mais se eu lembro daquela época ou se lembro de ter visto mais tarde também. Mas aí eu fiquei nessa Av. Rebouças, esquina da Rua Lisboa, agora é uma rua movimentada, na época era uma rua de terra, chovia, tinha uma campinho de futebol. Uma lama danada, a gente ia jogar futebol, essa coisas de infância, de garoto. São Paulo naquela época tinha 1 milhão e pouco, um milhão e meio de habitantes. Eu andava de bicicleta pelo bairro todo, por tudo que é lado, eu ia de bicicleta até o Bairro do Bixiga onde eu tinha um amigo lá, passava por debaixo do túnel, tudo de bicicleta naquela época. Vê se agora um menino da classe média anda no túnel da Nove de Julho de bicicleta? Não há hipótese. Naquela época quando chovia a gente descia a Av. Rebouças, quando chovia era um verdadeiro rio porque descia muita água e eu descia de bicicleta no meio daquela água. Era uma festa, São Paulo naquela época, infância é sempre uma festa.
P/1 - Esse campinho de futebol era aonde?
R - Nessa Rua Lisboa, transversal da Av. Rebouças onde, era perto da minha casa, eu morava na casa da esquina da Av. Rebouças e ia pela lama jogar futebol. Naquela época era a garotada do bairro, sem limites sociais, eram garotos de todos os tipos, jogando bola juntos. Era uma democracia muito boa, tinha muitos amigos ali. Eu me lembro muito de um amiguinho que era o meu predileto, com quem eu jogava sempre bolinha de (?), se chama bolinha de vidro e ele vivia lá em casa, a gente vivia jogando essa bolinha, tal e era um garoto bem pretinho, bem escuro mesmo e eu tinha outro amigo, que era um outro bem amigo também que era bem loirinho. E eu era um intermediário ali, mais para louro talvez e nós éramos muito amigos. Vivíamos jogando bola de gude, etc. Naquela época tinha a mania de fazer ginástica, musculação, tudo. Era uma infância muito boa, passeava muito de bicicleta, estudava num colégio público, numa escola pública. Naquela época o ensino era bom, era razoável pelo menos, nas escolas públicas de São Paulo. O curso primário foi numa escola pública perto da minha casa e o ginásio depois eu fiz, os dois primeiros anos anos, numa escola pública mas já no nível do ginásio, no bairro de Pinheiros. Eu ia de bicicleta para a escola e voltava. Eu ia para a escola e levava minha irmã que é quatro anos mais nova no cano da bicicleta para a aula de balé. Imagine, para a aula de balé. Outra coisa que a gente fazia era chocar bonde e caminhão, segurava no caminhão ou no bonde e ia embora, junto, na velocidade que o caminhão fosse a gente ia. Até um dia que eu escorreguei num trilho e a bicicleta se meteu debaixo da roda do caminhão e em vez de passar em cima da minha perna, graças a Deus, passou por cima da roda da bicicleta. Aí eu nunca mais me meti a chocar bonde ou caminhão porque era perigoso. Mas você vê o que era São Paulo naquela época, eu tinha 10 anos de idade, isso foi em 46.
P/2 - Como era a sua casa?
R - Essas duas casa eram boas. Essa da Av. Rebouças que eu me lembro mais detalhes, era uma casa com... não tinha muito terreno mas era uma casa grande com relação ao terreno. Tinha altos e baixos, dois andares, a escada, embaixo tinha um hall de entrada, um living grande, tinha uma sala de refeições que a gente chamava de copa, um escritório, um banheiro e uma cozinha; cômodos grandes e do lado de fora tinha uma garagem grande, dava dois a quatro carros. Bom ou dois ou quatro. Acomodações de empregados. Em cima tinha quatro quartos e um banheiro. Só que naquela época tinha um banheiro só para a família toda. Fazia fila e revezava. Era uma casa grande, boa e confortável e não tinha muro, naquela época tinha muro baixinho, de oitenta centímetros. Não tinha assalto, não tinha roubo, ninguém se preocupava com isso, né? E tinha uma escada externa que ligava direto aos quartos dos garotos. Tinha o... Então eu vivia subindo e descendo aquela escada, eu pulava do telhado para o andar de baixo, fazendo um movimento lá, ia espionar minha irmã namorando. Ficava olhando lá. Era uma casa confortável, boa, eu tenho recordações muito boas lá. E a casa anterior, onde eu nasci, era mais ou menos parecida com essas casas antigas, da década de 40, antiga hoje, naquela época eram novas.
P/2 - E a escola? Como aluno, como o senhor era?
R - Pois é, bom aluno sempre, nunca repeti ano mas não era brilhante. Não era excepcional no primário e no ginásio, fui um aluno comum. Eu era muito bom em matemática, sempre, desde muito pequeno sempre tive muita facilidade com matemática. Por isso eu vim depois a estudar engenharia. E então, mas eu também gostava por causa dessa tradição de línguas e de literatura, de poesia em minha casa. Gostava também muito de línguas, de português, francês então tinha facilidade tanto para o lado da parte de literatura e línguas como da parte de matemática o que fazia com que eu fosse bom aluno em quase tudo. Não era um aluno excepcional. Depois mais tarde eu me dediquei mais, fui um aluno muito bom na Universidade mas no ginásio não era não. Tanto que eu fiz até um exame porque naquela época se fazia exame, não sei se ainda se faz, de admissão para o ginásio quando você terminava o primário você fazia um exame para entrar no ginásio. E eu fiz no colégio público, na escola Caetano de Campos na Praça da República, que é famosa, tradicional, onde meus irmãos já tinham estudado e eu fui reprovado. Então foi uma decepção muito grande porque meus irmãos já tinham estudado mas eu era um pouco rebelde e não me dedicava tanto quanto devia. Acabei que fui estudar nessa outra escola em Pinheiros.
P/1 - Qual era o nome?
R - Você sabe que estou tentando lembrar aqui mas não me lembro. Escola… Fica na Rua Prudente de Morais. Era uma escola com nome de uma pessoa, mas não me lembro.
P/1 - O ambiente da casa, seus pais recebiam muitas visitas?
R - Não, meu pai trabalhava muito, desse tipo que sai de manhã cedo e só volta para jantar. Naquela época quase todo mundo almoçava em casa mas ele não. Ele era comerciante em São Paulo, ele tinha comércio então ele saía de manhã cedo de casa e jantávamos a família toda. Tinha que ser o pai, a mãe, os filhos ali... ficava em casa e ia dormir. Não recebia ninguém em casa não, levávamos uma vida bastante reservada.
P/1 - Como era a atividade profissional de seu pai?
R - Nessa época ele tinha atividades variadas, entre comércio e indústria. Nessa época ele era dono de uma loja, na Líbero Badaró se não me engano, uma loja de ferragens, de fogões importados e máquinas. Anteriormente ele tinha sido comerciante de máquinas de café e nesse ramo ele ganhou muito dinheiro, ficou muito rico. Basta dizer que em mil novecentos e trinta e pouco ele tinha dois carros com dois motoristas, um para ele e outro para atender a família. Coisa que naquela época em São Paulo só quem era milionário e ele não era. Mas ele ganhou bastante dinheiro com o negócio do café mas em 29, com a crise do café, o crack da bolsa, do mundo inteiro, principalmente em New York houve uma quebra generalizada de atividades, não conseguiam exportar mais café, as fazendas de café não valiam mais nada, a produção de café não valia mais nada e ninguém conseguia vender. Os fazendeiros que tinham comprados as máquinas, que o meu pai vendia que eram produzidas no Brasil por um amigo dele e sócio, e ele vendia... ele já tinha vendido as máquinas e quando veio o crack não conseguia receber. Os fazendeiros chegaram a oferecer para ele as fazendas como pagamento das máquinas porque as fazendas também não valiam mais nada. E aí ele não queria, não aceitou, nunca aceitou a fazenda dos outros na desgraça, não podendo receber. Naquela época, principalmente, pelos menos as pessoas decentes, não tiravam proveito da situação então ele nunca recebeu e acabou que ele perdeu esse dinheiro. Um dinheirão nessa época, sei lá, ele contava a história de quatro mil contos, sei lá que moeda era essa, contos de réis, perdeu muito dinheiro, teve que vender tudo praticamente e recomeçou com essa loja de ferragens na Líbero Badaró até que ele comprou a Movelar, essa fábrica de móveis no Paraná, Curitiba. Aí ele revezava, ele ia para Curitiba e voltava para São Paulo durante alguns anos.
P/2 - E quem exercia a autoridade dentro de casa?
R - Olha, quando ele estava em São Paulo era ele, era muito patriarcal mas com ele fora a maior parte do tempo, então era a minha mãe naturalmente. Mas o casal tinha, era nitidamente uma casa patriarcal onde ele dava a última palavra e tudo tinha que ser reservado para ele, não pode isso, não pode aquilo, tem que reservar para o seu pai, o seu pai vai chegar. Não era o bicho papão mas era aquele personagem que todo mundo tinha que estar limpo, com o banho tomado porque o pai ia chegar. A minha mãe mantinha muito essa mística do pai, da autoridade paterna. Mas na prática no dia-a-dia era ela quem comandava porque ele estava o dia todo fora, saía cedinho e voltava de noite. Ele contava que nessa época ele andava tão ocupado que quando pegava táxi, dava o dinheiro e não esperava o troco, ia embora, não podia perder tempo, você vê, a vida dele era uma correria danada.
P/1 - Em termos de educação religiosa, sua mãe era uma pessoa muito religiosa?
R - Era, ela era, meu pai não. Ela era muito católica, rezava, nos levava para ver procissão, tinha aquelas procissões em São Paulo, a gente ia assistir a procissão, quando passava o andor principal com a Virgem, etc. Tinha que ajoelhar na calçada, e a gente ajoelhava direitinho lá. Aliás, o povo todo ajoelhava. E a gente também, então eu sempre cresci nesse ambiente religioso, apesar de ser uma cidade grande que religião é menos difundida, minha mãe era uma pessoa muito religiosa. Mas também ficou nela, meus irmãos e eu próprio nunca fomos muito não.
P/1 - Você se lembra de algumas dessas procissões, qual era o caminho, por onde passava?
R - Não, não lembro não, não lembro mais não.
P/1 - Era perto da casa de vocês?
R - Era, ali não era longe não. Não me lembro em que rua porque naquela época eu era pequeno e quando chovia muito... mas não me lembro detalhes das procissões não. Só me lembro que a gente ajoelhava.
P/1 - Depois do ginásio, qual foi a escola, você continuou na mesma escola?
R - Pois é, o ginásio, o que foi que aconteceu é que eu fiz esses dois primeiros anos nesse colégio e aí o meu pai então me levou para trabalhar com ele em Curitiba, ele ficava então entre Curitiba e São Paulo. Eu fui trabalhar com ele pequeno, tinha 13 anos de idade, tinha acabado o segundo ano e o terceiro e o quarto ginásio eu já fiz em Curitiba.
P/1 - A família toda foi para Curitiba?
R - Não, ele foi levando os filhos homens, dentro daquele espírito patriarcal. Ele levou primeiro o meu irmão mais velho depois o segundo e depois eu. Somos três irmãos e três irmãs. Então eu fui o terceiro a ir para Curitiba. O meu primeiro irmão já tinha voltado e estava o segundo ainda estava lá. Então ficamos os dois trabalhando com o meu pai. Foi quando eu comecei a trabalhar, já... eu cheguei lá uns dias depois de ter feito treze anos.
P/1 - E o objetivo era ficar próximo dos negócios do pai, era isso?
R - O objetivo era ele precisava de um sucessor na fábrica, na Movelar. Ele não queria ficar lá o resto da vida dele. Ele era paulista, arraigado em São Paulo queria voltar para São Paulo. Então para tocar a fábrica e liberá-lo para voltar para São Paulo. Então ele tentou com os dois irmãos primeiros e não teve sucesso e então tentou comigo que também não teve sucesso porque eu enveredei para a engenharia. Acabou que ele vendeu a fábrica e voltou para São Paulo, sem sucessor.
P/1 - Mas como é que são as suas lembranças desse período em Curitiba, qual foi o seu primeiro trabalho na fábrica?
R - Pois é, o meu trabalho na fábrica, ele me pôs na parte de encaixotamento dos móveis, veja você. Com martelo e prego lá encaixotando, auxiliar de encaixotador, aprendendo a encaixotar os móveis para ter contato com o produto né? Durante um período, não sei, durante alguns meses, aí depois ele me colocou como auxiliar de escritório e eu fiquei trabalhando sempre como auxiliar de escritório. Trabalhei na fábrica cinco anos. Com 16, 17 anos já estava no final do científico, na época, agora já não se chama mais científico, segundo turno né? Como é que se chama, segundo grau né? Então com 17 anos eu era praticamente o gerente da fábrica porque ele ficava a maior parte em São Paulo, a maior parte do tempo, e eu tinha então que emitir o faturamento nos bancos, emitir as faturas, receber o dinheiro, pagar os operários, pagar os fornecedores, os materiais todos. Quer dizer eu muito cedo aprendi a administrar um business, um negócio né? É claro que não tinha a visão que adquiri mais tarde mas pelo menos eu sabia que tinha que ter caixa para pagar as coisas, e providenciava aquilo. E tinha meus relacionamentos com os gerentes de banco. Nessa época, aliás eu conheci esse Bamerindus, estava nascendo lá no Paraná, era um banco pequeno era de um Comendador Vieira, né? Acho que era Vieira. E eu me lembro perfeitamente de ir ao Bamerindus para descontar duplicata da fábrica e conversava com o gerente e era um banco pequeno lá do Paraná que depois se transformou num gigante.
P/1 - E você morava aonde?
R - Eu morava num apartamento que ele tinha na Praça Tiradentes , no centro da cidade, em frente da Catedral, ali. E ele tinha um apartamento e eu morava com ele e meu irmão. Depois o meu irmão voltou e eu fiquei só ele e eu lá. E depois eu mais tarde me mudei para a porta da fábrica porque eu às sete da manhã eu tinha que estar na porta controlando o relógio de ponto dos funcionários. Entrava entre seis e meia e sete. Então eu achava melhor dormir na própria fábrica e acordava de manhã e já estava ali, né? Mas era uma vida dura para um garoto de 16, 17 anos porque era uma fábrica de madeira, uma casa de madeira. Não tinha nem água quente. Para lavar o rosto de manhã com aquele frio de Curitiba a água gelada, às vezes endurecia, congelava dentro do cano. Era uma vida apertada.
P/1 - Que tipo de móveis ele fabricava?
R - Móveis domésticos, assim, salas de jantar, mobília de quarto, armário, cômoda, mesinhas de cabeceira, cama.
P/1 - De madeira?
R - Madeira, tudo de madeira. No Paraná, como é até hoje né? Um centro moveleiro, móveis de madeira, móveis de imbuia. Na época tinha muita imbuia lá no Paraná. Hoje não deve ter mais, outras Movelar devem ter cortado, usado a imbuia toda para fazer a mobília. Agora está usando a madeira da Amazônia.
P/1 - E quão grande era a empresa, quantos empregados eram?
R - Olha era uma fábrica, um número que eu me lembro, eram uns sessenta, setenta empregados. Tinha um certo movimento. O faturamento eu não me lembro mais, as moedas mudam tanto né? Mas dava para manter aquela mão de obra de setenta empregados; não era muito pequenininha não. E eu garoto, ele viajava, vinha para São Paulo e ficava meses, semanas em São Paulo e voltava lá e eu tocava o dia-a-dia da fábrica. Eu e o mestre que era o chefe da produção, a parte técnica, o mestre moveleiro.
P/1 - E como era o seu dia-a-dia? O estudo era de noite?
R - Era muito apertado; no ginásio eu estudava, os dois anos, terceiro e quarto do ginásio eu estudava de tarde e trabalhava de manhã na fábrica. Depois nos três anos científicos eu inverti, estudava de manhã e trabalhava de tarde na fábrica. No primeiro ano, depois no segundo e terceiro eu trabalha de manhã e de tarde e estudava à noite. Acho que até os três anos científicos, os três anos científicos, eu trabalhava o dia todo e saía as seis horas da fábrica. Pegava o ônibus, jantava no restaurante universitário ali no Passeio Público e já emendava direto na escola que era o Colégio Estadual do Paraná que era encostado ali no Passeio Público, onde acho que é até hoje E aí saía às dez horas da noite, e ainda pegava dois ônibus para chegar lá na fábrica para estar de manhã cedo para abrir o ponto seis e meia, sete horas. Isso com 16, 17 anos. E me acostumei com trabalho duro desde cedo. Foi bom por um lado e ruim por outro né porque...
P/1 - Não sobrava tempo para diversão.
R - Não sobrava tempo para nada Só sábado e domingo. A fábrica trabalhava sábado até a hora do almoço. Então tinha sábado à tarde e domingo para descansar.
P/1 - E o que é que você fazia nas horas...?
R - Ah, em Curitiba eu tinha os amigos, eu ia muito para o Ibeu, Instituto Brasil Estados Unidos, a gente jogava ping pong, tinha aulas de inglês e andar à toa na rua, naquele frio danado, paquerando as loirinhas lá. Tinha muito polonês lá em Curitiba, nessa época, ainda têm, muita loirinha e tal. A gente ficava… garoto, 16 anos, 17, queria saber era de... Bebia muito também, porque com o frio o pessoal bebia desde muito cedo e os pais sabiam, não tinha problema nenhum. Iam tomar a sua caipirinha, seu chopp, né? E ficava andando pela rua XV de Novembro que é a rua principal. Imagina que tinha um footing no domingo e a gente andava para lá. Fechava a rua ao trânsito de veículos e as pessoas vinham da cidade toda passear ali na rua principal, na rua XV de Novembro para um lado e para o outro e namorar, paquerar, ficar. Engraçado, né? Vida mesmo de cidade de interior. Curitiba podia ter duzentos, trezentos mil habitantes naquela época, nem isso, duzentos e cinquenta mil habitantes. Cidade bem pequena, né? A gente andava de bonde! Bonde, ônibus, tomava muito vinho, comia aquelas comidas italianas ali de Santa Felicidade, não sei se vocês conhecem Curitiba. Tem até hoje restaurantes lá em Santa Felicidade cuja origem eu conheci naquela época porque era um restaurante que tinha um italiano que resolveu abrir um restaurante na própria casa dele e vendia lá, fornecia meia dúzia de pratos típicos italianos e a gente pegava um bonde, descia no ponto final do bonde e andava lá uns cem ou duzentos metros para chegar no restaurante do italiano. Era uma coisa bem primitiva, uma casa de madeira como tem muito no Paraná e lá a gente ficava. Eu ia com meu pai muitas vezes nesse restaurante.
P/2 - E nessa época, quer dizer, você já tinha, já estava tendo uma certa clareza que não queria dar continuidade aos negócios do seu pai? Já almejava uma profissão diferente para você?
R - Não, nessa época eu imaginava que eu ia ser o sucessor dele, que eu ia tocar a fábrica e estava me preparando para isso. Mas aí quando eu cheguei na época do científico, cheguei ao final do científico, eu precisava fazer uma faculdade. Aí eu resolvi fazer engenharia. Aí eu prestei concurso para a prefeitura, para ser desenhista da prefeitura porque eu vi que não podia tocar a fábrica e estudar engenharia ao mesmo tempo. Não dava, né? Então eu fiz um concurso lá, para desenhista da prefeitura e passei, fui aprovado e passei no Vestibular também e aí eu tive que chegar para ele e enfrentá-lo. Disse: olha, sinto muito mas não vou ser seu sucessor aqui porque eu... Fiz isso tudo sem falar para ele.
P/1 - Ah, foi?
R - É, eu já levei o fato consumado, eu fiz um concurso para a prefeitura, passei...
P/1 - Isso em Curitiba ainda?
R - Em Curitiba, passei... Prefeitura de Curitiba. Vou ser desenhista da Prefeitura, ganhar tanto assim assim, que era várias vezes mais do que ele me pagava na fábrica e vou fazer vestibular para Engenharia e tal. Aí ele ficou muito aborrecido mas respeitou minha vocação de engenheiro né? Então assim foi feito, eu fiquei desenhista da Prefeitura alguns anos, enquanto estudava então... A vantagem é que a prefeitura trabalhava só de tarde então estudava de manhã na escola de engenharia e trabalhava de tarde. Passei no vestibular sem fazer cursinho, praticamente fiz um cursinho de meses, passei em 14° lugar, acho que era 75 que entraram. Uma média superior, mas nada excepcional. A partir daí eu comecei a ficar bom aluno, na escola de engenharia.
P/1 - Mas a engenharia te atraía para alguma especialidade?
R - Olha, o que eu gostava da engenharia era a parte de matemática, quer dizer a física, matemática e física que eu gostava no científico. Não era pela profissão de engenheiro em si, porque acho que naquela época não tinha nem muita noção do que era ser engenheiro. Quer dizer, engenheiro era construir estradas, principalmente estradas de rodagem naquela época do governo Juscelino, construía muita estrada e ponte, estrada de ferro, Mas (?) não era construir, né, isso é outro capítulo mais tarde. E construção civil, edifícios, casas, ruas. Mas o que eu gostava era da parte mais acadêmica. Tanto que eu na própria escola de engenharia enveredei para essa parte mais acadêmica, fui professor lá. Mas no vestibular, nós passamos e em seguida começou o primeiro ano e foi uma catástrofe, né? Tinha uma cadeira de cálculo que ninguém conseguia tirar mais do que quatro, era um desastre, em dez né? O professor reprovou lá metade da turma, muito mais da metade, e eu fui um dos poucos que consegui passar mas também com notas baixas, segunda época, não sei o que... e a partir do segundo ano é que eu fui me firmando e no terceiro ano bom nas Cadeiras conceituais, gostava muito de mecânica racional, física, geometria analítica, resistência dos materiais, a Cadeira bicho papão da escola eu gostava.
(PAUSA)
R - ...a minha maior vitória, imagina só que aula que eu podia dar? Eu tinha acabado de aprender aquilo, mas o fato é que a turma gostava. Diziam que aprendiam mais comigo do que com o professor da faculdade. Então a minha engenharia era uma engenharia mais acadêmica, conceitual. Era mais física que eu gostava, olhando de hoje. Porque o restante dos materiais é física, dos materiais deformáveis. E, depois, estabilidade das construções, cálculo de concreto armado e cálculo de estruturas, pontes, viadutos. Tanto que, no decorrer do curso, eu me concentrei nessa parte de concreto armado e de projetos de estruturas. Depois que saí da Prefeitura, fui trabalhar num escritório de cálculo de concreto armado.
P/1 - Nessa época tem algum professor que tenha se destacado, você tem memória sobre isso?
R - Sem dúvida, eu tive dois professores com os quais depois eu trabalhei no quinto ano nesse escritório de concreto armado, que eram o José Freitas Neto e o Ernesto Sperandio Júnior, que eram dois professores do terceiro e quarto anos, com os quais eu trabalhei e aprendi a parte prática do cálculo de concreto armado no escritório deles. Inclusive, eu ia ficar lá, depois que eu me formasse, como sócio deles no escritório. Mas isso não aconteceu por motivos que ocorreram mais tarde, que já envolve a Vale do Rio Doce, não é? Mas então eu gostava muito do meu trabalho, essa foi uma época muito boa de faculdade. Eu era muito bom aluno, modéstia a parte, em hidráulica eu fui excelente aluno, em concreto armado, etc. Tanto que no quinto ano, o professor do quarto ano de estabilidade das construções me chamou para eu ser professor de estabilidade, eu dava a parte prática. Eram três professores: o catedrático, o assistente e eu, que não era nem formado mas que dava os exercícios práticos. A vida era puxada, você imagina, eu tinha aula de manhã no quinto ano, trabalhava no escritório de concreto armado, projetando estruturas de verdade, que eram construídas mesmo, com responsabilidade de gente grande, de tarde e, de noite, eu ia dar aula no quarto ano, eu era aluno do quinto ano e dava aula para o quarto ano. E dava aula para muitos dos meus próprios colegas, porque eles estavam repetindo a Cadeira do quarto porque não tinham passado, chamava-se independência, eu nem sei se ainda existe isso. Então, eu dava essas aulas de estabilidade de noite e eram três horas, das oito as onze, toda noite, de Segunda a Quinta, eu dividia em cinco turmas, eu dava cinco vezes a mesma aula. E Sábado e Domingo eu tinha que estudar para o curso de Engenharia, preparar meus exercícios, fazer meus projetos, e tinha que preparar as minhas aulas da semana seguinte, não é? Era uma vida que não parava um minuto, não parava nem Sábado, nem Domingo, nem nada. Eu só me permitia descansar Sábado à noite. Sábado durante o dia, Domingo o dia inteiro, trabalhando.
P/1 - Qual foi o período da Universidade? Que o ano que você entrou?
R - Ano calendário? Entrei em 54 e me formei em 58. Naquela época a Universidade do Paraná não era reputada como das melhores do Brasil, porque as melhores eram a Universidade de São Paulo e Rio, não é? Mas já ocupava talvez um honroso terceiro ou quarto lugar. E eu não tinha ido para lá porque era fácil ou porque era difícil, e sim por circunstâncias da fábrica do meu pai. Ela era razoavelmente boa, era puxada, o pessoal estudava muito e repetia muito, os professores eram exigentes. Era uma vida bem apertada na Universidade, tanto que da minha turma entraram 75 e se formaram 37, a metade. Os outros ficaram pelo caminho lá. E tinha uns repetentes históricos lá, que ficavam anos e anos em dependência, nunca conseguiam passar de ano. Tinha até um, uma pequena anedota verdadeira, um que era um baiano chamado Benedito, que me chamava de “Meu Branco” porque ele era escuro, moreno, e um dia, e ele só tirava notas péssimas, ele era meu aluno naquele cursinho que eu dava, e um dia saiu a lista das notas ele tirou a quarta melhor nota, tirou um sete e meio, uma coisa assim. Aí eu cheguei para ele e falei: “Mas, Benedito, como é que foi isso, como é que você conseguiu tirar sete e meio nessa prova?
Você costuma tirar três, quatro, não é?” Aí ele deu um riso e falou: “Pois é, Meu Branco, você sabe que até relógio parado marca hora certa duas vezes por dia!” É boa, não é?
P/1 - Essa é.
R - Nunca vou me esquecer do Benedito, viu, com o relógio parado dele. Mas era uma vida interessante lá em Curitiba, uma cidade agradável, com muitos imigrantes. Mas o clima é muito ruim, não é? Frio, coisa terrível aquilo lá. Na época de chuva, então, no inverno chuvoso, você não aguentava andar pela lama, andava de galocha para proteger os sapatos, galocha de borracha. E cheio de água por tudo quanto era lado, porque a fábrica ficava num subúrbio lá que não tinha pavimentação, não é? E automóvel eu só fui ter depois de formado. Quer dizer, nessa época toda era bonde, ônibus, bicicleta.
P/1 - E havia oferta de um mercado de trabalho, tinha oferta de emprego?
R - Nessa época tinha, viu? Para engenheiro tinha. De um modo geral tinha, não tinha muito desemprego, mas o pessoal que se formava praticamente podia escolher emprego. A Petrobras contratava os melhores alunos de todas as turmas. Eles iam antes, antes de... porque em 54 e 57, a Petrobras foi fundada em 50, por aí, não é? Então, eles estavam constituindo praticamente a Petrobras. Então tinha emprego, a Petrobras contratava a maior parte dos recém-formados. Ela mandava gente nas faculdades do Brasil todo escolher, convidar os melhores alunos e tentava recrutar os melhores. Então, a minha turma, a grande parte foi trabalhar na Petrobras. Então, mesmo se eu quisesse eu podia ter ido trabalhar na Petrobras. De modo que esse era um problema que nem preocupava as pessoas, quer dizer: Você estudava engenharia, o problema era se formar, porque você estando formado não havia hipótese de você não estar trabalhando. Um engenheiro desempregado naquela época, não existia essa hipótese, como advogado também. Todo pessoal que se formava em curso superior automaticamente tinha trabalho, não é? Principalmente essas profissões, vamos dizer, com os cursos mais pesados, sei lá, eu não sei definir, mas Engenharia, Medicina, Odontologia, Farmácia, Química, Direito. Sociologia também eu nem sei se tinha curso nessa época. Tinha um ou outro, talvez só em São Paulo. As faculdades não tinham essa abundância como hoje, não. Paraná, por exemplo, Curitiba só tinha a Universidade Federal do Paraná e era a única universidade. Ou estava naquela universidade ou não estava, não é como hoje que tem não sei quantas universidades. Ainda bem, é ótimo que democratizou. Mas, então, você sabia que a oferta de profissionais era relativamente pequena. Você sabia que os que se formavam estavam empregados. Engenharia, então, não tinha hipótese de não se formar e ficar desempregado.
P/1 - E por que que você não queria ir para a Petrobras?
R - Não, não é que eu não quisesse ir para a Petrobras, particularmente. Ela não me atraía por ser petróleo, que eu não entendia nada, nada, e era muito voltada à química, que era exatamente a Cadeira que eu menos gostei no curso de engenharia, com geologia foram as Cadeiras que eu menos gostei.
P/1 - E qual era a sua intenção?
R - Pois é, a minha intenção já estava claramente definida e era, primeiro, ficar professor da universidade, que eu já era da Cadeira de estabilidade; o professor de hidráulica também me convidou, que depois foi governador do Paraná, o professor Pedro Parigot de Souza, o de estabilidade das construções era o professor Samuel Chamecki. Eram duas grandes personalidades da Engenharia daquela época. Eu era assistente do professor Chamecki e podia ser assistente do professor de hidráulica, do Parigot, e também o professor de mecânica racional chamado De Luca, também queria que eu desse aula com ele num curso de oficiais da Aeronáutica. Então, eu ficava acadêmico, uma vida acadêmica, professor e calculando estruturas num escritório, onde os dois professores da Universidade também, que tinham sido meus professores e a essa altura iam ser meus colegas, eu ia ficar de sócio deles. Inclusive, eles me ofereceram 1/3 do escritório, o que foi uma generosidade porque eu era recém-formado, eles já eram uns dez anos mais velhos, professores, podiam me oferecer 10 ou 20%. Mas, não ofereceram dividir o escritório em três, em partes iguais. Então, eu estava com a minha vida perfeitamente clara, quando apareceu o doutor Eliezer Batista da Silva na minha vida. Não é que foi a origem da minha ligação com a Vale do Rio Doce?
P/1 - E de que forma ele apareceu?
R - Pois olha, o Eliezer Batista, primeiro eu ouvi falar dele na Universidade porque ele deixou uma história, uma fama meio pitoresca. Primeiro que ele era poliglota, numa época que pouca gente falava várias línguas. Então ele vivia estudando alemão, russo, além do inglês, francês, essas coisas mais corriqueiras, não é? Então, esse era um motivo. Segundo, que ele era um tipo extravagante, andava num carro vermelho conversível, já usava cabelo grande quando todo mundo usava curtinho, ele usava a cabeleira mais cheia. Um tipo um pouco extravagante, e ele tinha o apelido de Bacana por causa disso e ele também se dizia Barão... de brincadeira, né? Barão não sei do que. Ele tinha um outro amigo que se dizia Visconde sei lá e ele era o Barão, eles viviam brincando com isso. Então, ele era conhecido como Barão ou Bacana, e eu ouvia falar das histórias dele que... deixaram histórias lá na universidade! Ano após ano a gente ouvindo aquelas histórias. Ele tinha saído da escola acho que em 49, talvez. Quando eu cheguei em 54 ele já tinha saído e minha primeira ligação com ele foi de ouvir as histórias dele. Quando eu cheguei no quinto ano aconteceu que ele escreveu lá do Espírito Santo, lá da Vale do Rio Doce, ele escreveu para um professor da escola que tinha sido contemporâneo dele, o professor José Pitella Júnior que era assistente de estabilidade das construções. Também era o professor Chamecki, o Pitella e eu. Então, ele escreveu pedindo uns engenheiros com especialização em estruturas e eu era justamente a pessoa com especialização em estrutura e então o Pitella veio me mostrar a carta de Eliezer e se eu queria me candidatar aquele posto: “Eu não, já estou aqui, já sou professor da escola, vou ficar no escritório como os meus colegas, etc. Não quero saber do Espírito Santo.” “Não, mas vai lá conhecer o Eliezer e conhecer a Vale do Rio Doce, etc. Ele te manda uma passagem, você não tem o que perder, faz uma entrevista com ele. Se você gostar você aceita se não, não, tal.” Aí, também então eu vou lá conhecer o Espírito Santo, eu fui lá sem a menor intenção de aceitar o convite, de ficar lá e acabei ficando na Vale mais de 20 anos.
P/1 - E o quê que o senhor ouvia falar sobre a empresa Vale do Rio Doce?
R - Nada, nada. A Vale naquela época era uma empresa pequena e muito Minas e Espírito Santo. Fora de Minas, Espírito Santo e Rio, onde era a sede, não se ouvia falar em Vale do Rio Doce, exportar minério de ferro, era uma empresa pequena, irrelevante na época. De modo que eu só ouvi falar na Vale do Rio Doce por causa do Eliezer, estudava lá no Paraná e agora estava lá na Vale. Mas não era como Petrobras que, naquela época, já era inicialmente uma potência. Então, não sabia nada sobre Vale do Rio Doce e só tinha ouvido falar daquela pessoa excêntrica chamada Eliezer Batista. E aí eu fui lá para o Espírito Santo e fui lá conhecer o Eliezer Batista, já era um figuraço na época. Tem até uma fotografia boa dele aí da época. Ele devia Ter uns 35 anos naquela época, eu tinha 22, foi início de 59. Então, eu fui ao escritório dele, na estação da estrada de ferro, no andar de cima da estação Pedro Nolasco. No andar de cima da estação era o escritório da Via Permanente, onde tinha todo o pessoal da Via Permanente, ele era o chefe da Via Permanente. Então, estava ele lá, eu cheguei estava ele lá na sala dele, uma sala comprida com uma mesa enorme comprida, ele lá na cabeceira, uma mesa de reuniões. Eu entrei na sala, ele estava numa reunião falando não me lembro mais qual língua, acho que não era nem inglês, outra língua, uma porção de pessoas estrangeiras, acho que alemães, e me pediu para eu esperar um pouco e tal. O pessoal saiu e eu sentei ali, ele começou a falar sobre a Vale do Rio Doce, dos planos, das ideias, do que ele estava fazendo lá, o que que ele pretendia. Eu sei que, duas horas depois, eu não queria mais saber do Paraná, eu queria ir para a Vale do Rio Doce, para Vitória. O Eliezer é o maior vendedor que eu já vi na minha vida, não é? Vendedor de idéias, vendedor de projetos. Ele me vendeu a Vale do Rio Doce ali em duas horas, viu? Aí, eu resolvi largar tudo e eu já estava com a vida organizada, eu já estava casado do primeiro casamento, já tinha uma filha e esperando a segunda. E eu fui com mulher, filho pequeno, mulher grávida, fui lá embora para o Espírito Santo trabalhar com o Eliezer.
P/1 - E qual foi a sua primeira função lá na Vale?
R - Bom, na Vale, na organização da Vale lá você tinha o superintendente da estrada de ferro Vitória-Minas, que na época era o general Wolmar Carneiro da Cunha, reportando a ele, o Eliezer era o assistente executivo da Via Permanente e ele tinha sob ele uma divisão de engenharia e uma divisão florestal. Então, eu fui trabalhar nessa divisão de engenharia como chefe da seção técnica. Então, a minha função basicamente ali era projetar estruturas, projetar pontes, viadutos para a estrada de ferro que estava sendo toda reformada, e a parte estrutural, edifícios, casas, que a gente sempre construía alguma coisa lá, almoxarifados, era a parte de engenharia mas não de campo. Eu tinha um pouco de engenharia de campo também, de construção, construção e fiscalização de obras, a gente viajava muito na estrada de ferro, subindo e descendo a estrada, fiscalizando a execução das obras que eram empreitadas. A gente empreitava essas pontes, pontilhões, bueiros, porque a estrada de ferro estava toda sendo reconstruída para trens maiores, que ela tinha sido originalmente construída para trens de peso menor, peso mais leve. Então, para aumentar o peso dos trens, você precisava substituir a maior parte das estruturas. Ou substituir ou reforçar. Então, eu tinha comigo um grupo de desenhistas e projetistas, mas o cálculo em si era eu que fazia. E eu reportava ao chefe da Divisão de Engenharia que era o Deoclécio Rodrigues, que tinha vindo do Paraná também. Aliás, eu já tinha também notícias sobre o Eliezer e a Vale do Rio Doce por causa do Deoclécio, que tinha vindo para o Espírito Santo, do Paraná para o Espírito Santo, em circunstâncias semelhantes, indicado pelo Pitella, que veio trabalhar também com o Eliezer. Então, eu cheguei lá, e ele tinha sido o meu professor na universidade, o Deoclécio, então, eu cheguei lá, a única pessoa que eu conhecia lá era o Deoclécio Rodrigues e a Lia, mulher dele. E eu fui trabalhar com ele, ele era um engenheiro já formado há uns três, quatro anos antes de mim, eu tinha a quem apelar em dificuldades técnicas de projeto, etc. e não estava completamente sozinho porque apelava para o Deoclécio, que na época já era considerado um engenheiro muito experiente com três anos de formado, não é? Eu era zero quilômetro, tinha acabado de sair da escola, e enfrentar o projeto de uma ponte ferroviária era uma responsabilidade, não é? De repente, você erra lá, depois na hora do trem andar lá afunda aquela brincadeira.
P/1 - E era muito diferente do escritório em Curitiba, os projetos?
R - Ah, era, era. Era porque o escritório em Curitiba era basicamente edifícios urbanos, edifícios na cidade, de vários tamanhos, casas, residências, edifícios. O único projeto um pouco diferente, fora do normal, que eu fiz em Curitiba foi uma igreja, foi o teto de uma igreja e tal, uma cobertura. Mas, então, era uma espécie de repetição de cálculos, mais ou menos padronizados, não é? Eram lajes, vigas, pilares e tal. E na estrada de ferro não. Primeiro porque eram pontes ou pontilhões, bueiros e com carga móvel, não é? Com o trem passando em cima, com efeitos dinâmicos. Então, é muito mais complicado, muito maior responsabilidade, maior dificuldade.
P/1 - Mas isso te fascinava?
R - Sim, tecnicamente muito. E a vida toda em Vitória era fascinante. Naquela época foi uma experiência extraordinária porque... por inúmeros motivos. Não sei se podemos falar sobre isso agora. Mas começando pelo clima que era o oposto de Curitiba, uma cidade tropical, agradável, um clima ótimo, um clima parecido com o do Rio, mas mais fresco, não é tão quente quanto o Rio no verão. Então, é uma cidade de 27 graus, 25. Eu saindo de Curitiba com dois abaixo de zero, não é? Estava ótimo. De modo que era muito agradável trabalhar lá em Vitória. Segundo, que Vitória em ser uma cidade agradável também tinha um bairro onde eu morava que chamava-se Praia do Canto, que era um bairro muito agradável, eu não sei se por acaso vocês conhecem Vitória, muito agradável naquela época, era uma praia boa, ainda se podia tomar banho de mar alí, era muito boa. Em seguida, tinha uma outra praia muito boa também chamada Camburi, a qual seguia o porto de Tubarão, que é outra estória depois. Então, era muito agradável morar lá. Era uma cidade bem menor que Curitiba, Curitiba tinha 300 mil habitantes e lá tinha menos que 150 mil habitantes, 130 mil talvez, de modo que era uma vida agradável e lá os engenheiros da Vale do Rio Doce eram, vamos dizer, a nata da sociedade ali. Você tinha o pessoal local, lá de Vitória, e tinha o pessoal da Vale do Rio Doce vindo de fora, que se dava muito bem com o pessoal da cidade, havia um entrosamento muito bom. Então, você chegava ali, numa cidade completamente desconhecida e, de repente, você já fazia parte daquilo, porque a cidade absorvia logo o pessoal da Vale. Era o pessoal que trazia cultura nova, ideias novas, etc. e lia jornais do Rio e de São Paulo etc., que tinha um padrão cultural que agradava o pessoal capixaba da época, que era um pessoal muito aberto, aliás eu me dei muito bem lá, conheci muito bons amigos. E era um grupo pequeno. A Vale em Vitória nessa época podia ter vinte talvez, engenheiros, em ordem de grandeza. De modo que era um grupo pequeno de pessoas, não é? E outra coisa interessante, e que me atraiu muito, que aliás foi um dos motivos que me levou a ir para Vitória, é que existia lá a Universidade do Espírito Santo, que era estadual ainda. E o Eliezer me acenou então com a possibilidade de eu lecionar na escola, porque lá estavam precisando de professores. Num lugar pequeno, uma escola de engenharia tinha dificuldades para conseguir professores. Pagava pouquinho também, não é? Eu me lembro que eu ganhava mais ou menos 20% do que eu ganhava na Vale do Rio Doce, eu ganhava na escola. Então, era um complemento salarial e eu não dava aula pelo dinheiro que não era muito, mas eu gostava muito, porque eu já tinha essa vida acadêmica e essa origem acadêmica, né? De modo que era muito agradável ser professor da escola. Você imagina que eu cheguei lá com 22 anos em janeiro quando a escola estava em greve... não, ainda não estava, foi durante as férias, eu fui convidado pelo professor Dito Fontes de Faria Brito que era o diretor da Escola de Engenharia, para ser professor assistente de Mecânica Racional, que era uma das Cadeiras que eu gostava lá da Escola de engenharia lá do Paraná, no segundo ano, e eu aceitei, ele me apresentou ao professor da Cadeira que era o professor Alfeu Rosa e aí eu assumi, dei uma aula e quando eu ia dar a segunda teve uma greve lá dos alunos, não me lembro mais os motivos, eu sei que parou tudo e ficou os dois ou três meses parado e durante essa greve o professor Alfeu Rosa se afastou, se aborreceu com a greve, com os alunos e largou. Aí veio esse professor Dito Fontes, diretor da Escola perguntar então se eu aceitaria reger a Cadeira, 22 anos, imagina! E eu com aquela auto suficiência dos 22 anos disse: “Deixa comigo! É comigo mesmo!” E fiz isso. Assumi essa Cadeira com 22 anos, você imagina! Recém saído da Escola de Engenharia e fui ser professor regente da Cadeira de Mecânica Racional. Convidei um outro engenheiro para ser meu assistente depois de ter dado uma aula. E aí dei essa Cadeira alguns anos e mais tarde mudei de Cadeira para Resistência de Materiais que eu gostava mais que era um pouco mais próxima da engenharia, porque Mecânica Racional é física pura. Era a física do movimento e das forças. Aí eu fiquei lecionando essas Cadeiras lá na Escola de Engenharia e isso era uma coisa também muito agradável. Primeiro porque eu gostava de lecionar e segundo que me obrigava a estudar, que é muito bom e terceiro porque me dava um vínculo com a cidade, também porque ao ser professor você tem aqueles alunos todos que tem pais, que são vizinhos, que moram perto... cidade pequena, né? E que aí você encontra na praia: “Ah! Esse é o professor França, não sei quê.” Você fica conhecendo todo mundo, por ser professor da Escola, além de ser engenheiro da Vale. Na época lá eu podia entrar em qualquer loja da cidade e comprar o que eu quisesse e dizer: “Ó, eu pago depois aí e tal, o meu nome é fulano, sou engenheiro da Vale do Rio Doce.” “Assina aqui, pode levar a loja toda.” Crédito total, falou que era engenheiro da Vale do Rio Doce, professor da Escola de Engenharia, não é? Você era um _____________.
P/1 - Quer dizer, ser engenheiro da Vale tinha status na cidade?
R - Tinha tudo na cidade, você já começava a jogar o jogo com o status, como se você já estivesse naquela sociedade há 20 anos, não é? Então, como se você fosse do mesmo nível de um médico, de família tradicional capixaba, dos mais antigos, com a sua vida toda naquele local, etc. Eu tinha amigos médicos, por exemplo, eu não me relacionava só dentro da Vale, não é? Eu tinha amigos advogados, médicos...
(Fim da fita)
P/1 - Eu queria saber se você teve algum tipo de desafio e quais foram esses desafios quando você assumiu essa função em Vitória?
R - Na parte de engenharia em sí não havia grandes desafios, era um desafio técnico, profissional de cogitar pontes, viadutos, etc. Mas era um desafio técnico, de prancheta, de cálculo, etc. E nós tínhamos a fiscalização dos empreiteiros que estavam fazendo toda a remodelação da via permanente de estrada de ferro e alargamento de cortes, aterros, etc. para colocar a linha toda no novo padrão para poder passar trens maiores e mais pesados, né? Então, a gente viajava nas estradas de ferro até as minas e voltava em pequenos veículos chamados “alto de linha” e íamos fiscalizando os empreiteiros. Você imagina, naquela época, os empreiteiros usavam pequenos tratores para alargar os aterros, ou fazer cortes, aumentar os aterros e transportavam em carroças porque era um pouco apertado o espaço para trabalhar e não podia entrar equipamento grande, pesado. Então, era carroça puxada a burro carregando terra para lá e para cá. Você imagine só, que coisa incrível, né? E tinha basicamente três empreiteiros, dois no Espírito Santo e um em Minas. Bom, revezavam, tinham várias concorrências mas eram aqueles três habituais, que já tinham o equipamento, já tinham as carrocinhas com os burros, etc. que faziam o serviço. Agora era um serviço feito dentro dos padrões técnicos mais avançados, mas com uma engenharia ainda rudimentar nas circunstâncias da época, né? Em seguida eu saí da parte de engenharia e fiquei ligado a parte de orçamento e finanças. Eu comecei a estudar finanças por minha conta e na época tinha um livro muito conhecido, americano chamado “Engenharia Econômica” que a gente começou a estudar muito lá na Via Permanente, e fazer análise econômica de distribuição de equipamentos, etc. E eu comecei a me dedicar mais a isso, comecei a gostar da parte financeira e de análise econômica e acabou que eu passei para essa área de orçamentação e finanças e controle. Chamava-se Assistência Executiva de Economia. Nessa época o Eliezer já tinha passado a superintendência da estrada, veio para o Rio como presidente já. Foi no governo do Jânio que ele foi Superintendente das Estradas e depois no governo do João Goulart foi presidente da Companhia. E foi ministro das Minas e Energia também, acumulando as duas funções. Coisa que mais tarde para ele foi ruim porque ele foi visto em 64 pelos militares como se fosse uma pessoa do João Goulart, ligado ao João Goulart e da esquerda e que não tinha nada a ver com isso, ele era um técnico dedicado a Companhia que por um acaso o Presidente da República colocou de presidente, convidou, e ele como um engenheiro de carreira aceitou e exerceu a função e acabou. Ele é tão brilhante que acabou o João Goulart chamando para ser ministro das Minas e Energia, também. Ele aceitou, relutantemente porque não queria ser ministro. Mas enfim, o fato é que naquela época então eu fiquei mais nessa área de economia ainda em Vitória e tivemos desafios importantes porque nessa época foi feito uma reorganização da Companhia toda, aliás uma reorganização muito interessante. Foi orientado pelo professor Antonio Dias Leite Júnior que depois foi presidente da Vale e foi ministro também das Minas e Energia e que é outra cabeça excepcional, um homem muito inteligente. E ele como consultor com um outro engenheiro, Mário Cláudio da Costa Braga, fizeram dois trabalhos da maior importância: um de reorganizar a Companhia em termos estruturais e outro de implantar um sistema interno de controles, orçamento, custo, porque a Companhia fazia as coisas empiricamente, não sistematicamente. Aliás nessa época ainda estava começando o uso de computadores. A Companhia comprou um 14-01 da IBM que era um equipamento última geração na época que ocupava uma sala enorme, com ar-condicionado, cheio daqueles discos enormes e rolos de fitas magnéticas, né? Precisava ficar a temperatura baixa o tempo todo e tinha não sei quantas pessoas operando aquele animal gigantesco e a memória dele imagina que era 128k. Que hoje qualquer maquinazinha de calcular de bolso tem 216, tem o dobro dessa memória, né? Então, naquela época nós tínhamos que usar o computador com muita parcimônia porque tinha pouca memória e cada discão daquele, enorme, era um milhão de bytes. Quer dizer, hoje qualquer cd de micro de residência tem três ou quatro bilhões. Então, é outra escala. Mas nós começamos a usar o computador naquela época para fazer os controles e eu fiquei encarregado de implantar esses controles no âmbito das estradas de ferro porque na época a Companhia tinha as minas, a estrada de ferro, o porto e a administração central no Rio. Era basicamente isso. E a estrada era que tinha a maior quantidade de dificuldades e problemas, era vamos dizer, a operação mais complexa. De maneira que se a gente conseguisse implantar na estrada, copiaria nos outros sistemas. E assim foi feito, nós implantamos na estrada de ferro Vitória-Minas, foi um desafio muito grande implantar o que nós chamamos de SICOC, Sistema Integrado de Contabilidade Orçamento e Custos, usando o computador. Naquela época teve que codificar os materiais todos, plano de conta, plano de orçamento e definir as operações todas. O professor Dias Leite que concebeu o sistema todo, e eu trabalhava em parceria com ele implantando aqueles sistemas todos. De modo que foi muito interessante.
P/2 - E a utilização era feita pelo pessoal local dessas unidades?
R - A utilização dos sistemas? O sistema foi implantado, por exemplo, os almoxarifados usavam papéis, aqueles impressos para preencher, para alimentar o computador, depois tinha uma sala de digitadoras, me lembro que tinha mais de 30, 40 moças digitando oito horas por dia. Era a maneira de você dar entrada no computador, era por digitação de documento ainda nessa época. Então, você tinha que digitar, tinha que implantar nos almoxarifados, na tesouraria, contas à pagar, contas à receber, na área de orçamento, etc. De forma que era um trabalho muito grande de organização, de estruturação e de implantação de rotinas para fazer aquilo realmente funcionar, porque se não no final você recebia o relatório do computador todo cheio de erros e não podia usar aqueles dados.
P/1 - E havia um espírito de colaboração por parte de toda equipe? Ela era sensibilizada por essa modernização?
R - Essa era uma das nossas tarefas: criar esse espírito que até então não existia, que os controles eram ainda manuais, o pessoal estava acostumado a fazer cartinha, impresso, tal, mas sem código e sem números que pudessem ser processados numa máquina digital. De modo que nós constituímos uma comissão, que eu comandava, digamos, coordenava, e tinha o chefe de material, o chefe da contabilidade, o chefe da tesouraria, o chefe do centro de processamento de dados. Enfim, todas as áreas envolvidas e a gente tinha que implantar, essa comissão tinha que implantar, cada um na sua área, implantar aquelas rotinas todas e fazer o pessoal da Via Permanente, dos transportes, da engenharia, etc., utilizar aquelas rotinas e funcionar dentro daqueles prazos. Então, foi implantado na estrada de ferro, foi implantado no porto e depois, em seguida, foi implantado na mina. Mas, aí, eu já não participei porque era no departamento das minas, já era separado. O porto e a estrada de ferro funcionavam muito próximos, muito juntos, porque o porto tinha sido uma divisão da estrada de ferro. Quando eu cheguei lá no Espírito Santo, a estrada de ferro tinha uma divisão de via permanente, que o Eliezer era o comandante, era o chefe, tinha a divisão dos transportes que operava os trens, a Via Permanente, a manutenção da linha e a parte da superestrutura e infraestrutura da linha em si, e a parte da engenharia que o Eliezer também acumulava e tinha parte administrativa financeira que era o doutor João Beleza, figura importantíssima na história da Companhia. De forma que, além disso tinha o departamento do porto, acho que era divisão do porto que se chamava, que era operação dos navios, carregar os navios, etc. Inicialmente só recebia o minério, estocava, recuperava e punha dentro do navio. O minério não sofria nenhuma transformação. Depois, com a implantação do porto de Tubarão, que foi concepção do Eliezer, que levantou os financiamentos, conseguiu os contratos com o Japão, etc., principalmente com o Japão, mas com outros países também, aí foi construído o porto de Tubarão, e no porto de Tubarão então já tinha o processamento do minério, tinha o peneiramento, não é? Mais tarde foram construídas as usinas de pelotização, quatro usinas de pellets, sociedades com diferentes sócios compradores de pellets. Então Tubarão se transformou num gigantesco complexo de processamento de minério e pelotização, peneiramento, etc. Mas na época era uma operação simples, só descarregar os navios, e o porto então era dentro da estrada de ferro, era subordinado ao superintendente da estrada. Nessa época eu trabalhei também num serviço muito interessante que foi o serviços técnicos operacionais. A idéia era a utilização dos novos, vamos dizer, da nova capacidade de cálculo do computador, para otimizar as operações. Através da pesquisa operacional, que estava surgindo na época, contratamos até um especialista para isso e desenvolvemos vários modelos matemáticos para otimizar a operação, porque você imagina: Você tem produção nas minas para vários tipos de minérios, o transporte na estrada de ferro, que levava na época, não me lembro, vinte e quatro horas ou vinte horas, e depois foi reduzido e tinha o processamento do minério no porto podendo gerar novos tipos de minérios e tinha a fila de navios, ou seja, a sequência de chegada dos navios. Então, o que eu tenho que produzir na mina nesta semana? Que tipos em que granulometria, para que eu tenha o tipo adequado para por no navio adequado no dia que está previsto chegar? Sendo que os navios têm chegada variável, eles avisam com antecedência, com “estimated time of arrival”, que é que chamam, que é a estimativa do dia que vai chegar, mas atrasam dois a três dias frequentemente porque param em outro porto ou têm problemas, etc. De modo que no fim o navio previsto para um dia chega dois dias depois e o outro que ia chegar depois antecipa e outro navio já quer um outro tipo de minério diferente, não é aquele que estava previsto. Então, volta e meio chegava navio lá, precisava esperar dois dias até o minério descer da mina para poder carregar, porque o minério que já tinha descido para o outro navio não servia. Então, você tinha modelos matemáticos, que foram desenvolvidos na época, para otimizar isso tudo. Ou seja, para diminuir esses riscos todos e, à medida que vai se aproximando a data de chegada de cada navio e você fica sabendo com mais precisão a data que ele vai chegar, você reformula o programa de produção lá na mina e o programa de transporte e o programa de peneiramento no porto para ter o minério certo na hora certa, dentro da especificação correta para carregar o navio, que efetivamente aportou no cais naquele dia. Então, era um programa muito importante e como esse muitos outros de utilização ferroviária, dos trens também. Por exemplo, calcular os comprimentos dos desvios para você poder cruzar os trens perdendo o mínimo de tempo para otimizar a utilização do material rodante. Enfim, você tinha o desafio: ou você investia mais em linha para ganhar velocidade no trem e economizar material rodante ou você investia mais material rodante e economizava na linha. Então, o que otimizava isso? Qual era o melhor caminho? Então, essas técnicas na época foram implantadas, primeiramente a Vale do Rio Doce começou a fazer isso na frente. No Brasil pouca gente mexia com isso.
P/1 - E vocês tinham consciência que faziam parte desse processo de constituição de uma grande empresa?
R - Muito. Quando eu entrei na Vale do Rio Doce ela tinha terminado o programa de produção original de um milhão e meio de toneladas por ano e estava implantando o programa de três milhões que no ano que eu comecei lá, em 59, foi atingido nas vésperas do Natal. Fizemos uma comemoração para comemorar os três milhões de toneladas que correspondia ao dobro do programa inicial, né? E já tínhamos um plano de seis milhões de toneladas que era o plano da administração central. E o Eliezer não se conformava com esse plano de seis milhões de toneladas, nós tivemos que sair para um plano de vinte milhões de toneladas. Não tem lógica fazer um plano de seis milhões de toneladas, porque na cabeça dele, seis milhões que era quatro vezes a capacidade inicial concebida para a Companhia, para ele aquilo era brincadeira. Tinha que fazer um plano de vinte milhões que era para botar a Vale entre as maiores empresas na época. Só que não tinha mercado, não tinha capacidade instalada, tinha que instalar mina, ferrovia, porto, tudo para isso e não tinha dinheiro para fazer e nem crédito porque naquela época o Brasil também não tinha crédito. Mas ele queria fazer esse plano apesar dessas dificuldades, então o desafio era vencer as dificuldades e fazer o plano. E assim foi feito. Primeiro, ele teve que convencer a administração central, ele sendo o superintendente da estrada de ferro, que não tinha nada a ver com a parte comercial de vender minério ou de levantar financiamentos. A parte comercial e financeira era aqui no Rio, na Administração Central. Ele era _______ para administrar a ferrovia, mas com aquela cabeça privilegiada ele via a Companhia como um todo. E ele entendia de siderurgia, lia revistas sobre siderurgia, a mesa dele na Via Permanente cheia de revistas de tudo que é língua e nacionalidade, não só sobre ferrovia, mas sobre operações minerais, sobre minas diferentes no mundo todo e sobre a parte comercial, sobre siderurgia. Ele sabia de cor a produção, sempre soube, a produção de tudo que é usina siderúrgica no mundo, quem produz quanto, a partir de que tipo de minério, como se transforma aquilo. Enfim, ele conhecia a parte siderúrgica, a parte de inteligência do negócio, do business da Vale do Rio Doce, que era vender minério de ferro até mais do que o pessoal da área comercial que supostamente devia fazer isso. Então, ele convenceu a Administração Central no Rio, o presidente da época e os diretores, os superintendentes, que precisava fazer esse programa dos vinte milhões e acabou conseguindo convencer e saíram atrás do dinheiro. Aí, já foi a época que ele assumiu a presidência em 62, eu acho. Aí ele saiu atrás de conseguir os contratos de longo prazo, para ter a base, para obter os financiamentos, para poder fazer o porto, que era o porto de Tubarão. E efetivamente foi feito e inaugurado pelo General Castelo Branco, já em 64, depois da Revolução. Mas foi todo concebido e executado antes, foi inaugurado em 64, foi feito em 62, 63. Aliás, eu participei no porto de Tubarão com a modesta contribuição que foi convidar o Ditzel, que tinha sido meu colega lá no Paraná. E eu fui atrás dele porque o Eliezer me pediu para arranjar uma pessoa para comandar a construção do porto de Tubarão, e eu fui atrás do Clóvis Ditzel e o levei para Vitória e o apresentei ao Eliezer, etc.
P/2 - Ele tinha sido seu colega?
R - Tinha sido meu colega de turma - José Clóvis Ditzel, que foi outra pessoa que teve participação importantíssima na vida da Companhia também. Eu não sei se vocês já o entrevistaram. Ele foi o comercial da Companhia no exterior durante muitos anos. Mas, nessa época o Eliezer tinha assumido a presidência, fez não só o porto de Tubarão como o crescimento da população nas minas e o crescimento, a expansão da capacidade de transporte da ferrovia porque aí precisou... acho que não chegou a duplicar naquela época, duplicaram depois. Mas aumentar todos os desvios e reformular a via permanente toda para aguentar trens maiores e mais pesados.
P/2 - E nessa época você participa exatamente do que na Vale, você permanece em Vitória?
R - Nessa época eu ainda estou em Vitória nessa parte principalmente de economia, de sistemas de controle, de finanças, de otimização. E eu era na época também assistente do diretor de Operações que chamava-se Superintendência de Operações, era o João Carlos Linhares, que foi outra figura muito importante na vida da Companhia, que na época que o Eliezer era da Via Permanente, ele era dos Transportes, os dois subordinados ao general Omar Carneiro da Cunha. E depois o Eliezer foi superintendente e acabou vindo para o Rio na nova organização, como presidente contratou o Dias Leite, fez a reorganização e o Dias Leite na época fez uma reorganização que é interessante registrar aí que é uma organização defensiva, vamos assim dizer. Ele colocou nove superintendentes gerais reportando direto ao presidente. E uma diretoria não executiva. De maneira que os superintendentes eram nove pessoas de carreira da Companhia que reportavam ao presidente que era ele. Eram nove escolhidos por ele sem nenhuma interferência política, porque a Vale sendo uma empresa estatal tinha sempre muita interferência política na escolha de diretores e presidentes, evidente porque eram nomeados pelo Presidente da República. De forma que essa organização foi implantada e uma das Superintendências Gerais era do João Carlos Linhares, Superintendência Geral de Operações, ao qual reportava a estrada de ferro, a mina e o porto. E eu reportava direto a ele, embora estando em Vitória, nesses serviços técnicos operacionais, tentando otimizar essa ação conjunta toda. E na época nós concebemos os contratos também da (Samito e Iperterco?) que operaram durante muitos anos, todos os cálculos econômicos de como dividir os resultados da operação foi o nosso trabalho lá da época, né?
P/1 - E você fica em Vitória até quando?
R - Aí em 64, o João Carlos me pediu para ir para o Rio. Eu já passava parte do tempo no Rio, parte do tempo em Vitória. Mas em 64 eu me mudei para o Rio, com apartamento, família, tudo e fiquei até 66 quando eu voltei para Vitória, por causa desse trabalho do Sistema de Contabilidade, Orçamento e Custo, do SICOC, para terminar a implantação, e os serviços técnicos operacionais, trabalhava nas duas coisas e era assistente do Linhares que era o superintendente geral de operações, que nessa época acho que já era diretor.
P/1 - Você deixou a universidade?
R - Eu deixei mas retornei e voltei a lecionar outra vez, porque eu saí de licença. Eu só deixei definitivamente quando eu me mudei em 69. Porque aí quando chegou em 69 eu já estava mais ou menos repetindo, porque eu já estava alguns anos fazendo a mesma coisa e comecei a ficar inquieto, ainda era muito jovem, tinha 33 anos, e eu estava achando que eu estava muito tempo sem desafios novos, sem mudar de posição, de cargo, fazendo mais ou menos o mesmo trabalho. Então, nessa época o professor Dias Leite foi nomeado presidente da Companhia, com quem eu tinha trabalhado anos antes na reorganização, na implantação do tal sistema. Então, fui conversar com ele que eu queria sair da Companhia, nem tinha emprego nem nada, com aquela autoconfiança dos 30 anos. Cheguei para ele e: “Professor, vim conversar com o senhor, eu vou sair da Companhia, vou começar a procurar emprego. Não tenho emprego e antes de procurar o primeiro, de ter a primeira conversa quero que o senhor saiba, o senhor é meu amigo, presidente da Companhia...” e ele ficou muito nervoso, disse que assim não era possível, se ele fosse perder os colaboradores e tal que ele também largava a presidência, que ele não continuava com aquilo, não sei o que. Me deu uma bronca fantástica e eu falei: “ Bom professor, então se o senhor leva para esse lado então esquece, acabou, eu fico.” “Não, mas nós vamos arranjar uma maneira de você se sentir melhor aproveitado, ter um desafio, etc.” E aí efetivamente ele me chamou para ser o secretário técnico da presidência. Era um cargo, nessa reorganização do tempo que o Eliezer era presidente. Tinha nove Superintendências Gerais e duas Secretarias da presidência: secretaria geral e secretaria técnica. A secretaria técnica era um órgão de coordenação dos projetos que envolvessem várias superintendências, né? E de estudos de assuntos mais complexos da Companhia. Nós tínhamos uma equipe pequena que fazia os estudos. Então, ele me chamou para essa função que eu exerci durante um tempo, um ano talvez ou dois. Em seguida ele me pediu para assumir a superintendência de controle para implantar na Companhia toda aquele sistema que havia implantado na estrada e que estava com dificuldade para implantar no resto da Companhia. Então, a minha tarefa seguinte foi como superintendente de controle (Existemas?) se chamava. Eu tinha subordinado a mim contabilidade, custos, orçamento e sistemas de informações e informática. De modo que nós tivemos essa tarefa, eu constituí uma pequena equipe onde eu tive a sorte de contratar pessoas de fora, duas pessoas de fora que me ajudaram muitíssimo e que tiveram grande importância. Um foi Abelardo Puccini que é autor de vários livros de matemática financeira, uma pessoa muito conhecida; e o outro é o (Samir Zirac?) que depois me acompanhou, junto com o Eliezer muitos anos, até 85 nós trabalhamos juntos, aí com o intervalo que eu estive fora e que foi depois diretor financeiro da Companhia, uma figura também muito importante, não só nessa fase como numa fase posterior, também. E, essa equipe, conseguiu isso. Nós implantamos um sistema que eu conseguia dar um relatório para o presidente, para os diretores, sei lá, dentro do mês seguinte, no dia 15 ou 20 do mês seguinte relatando todas as operações da Companhia no mês anterior, com um grau de detalhe e precisão que permitia a todos acompanhar e saber o que estava acontecendo, porque até então tinha dificuldade de saber. Qual foi o custo do mês passado? Não sabe. Só sabia o custo de três meses antes. Quando sabia, né? Cheio de erros, também. Então, nós implantamos um sistema muito interessante que funcionou bastante bem e que era a concepção antiga do professor Dias Leite ainda que continua.
P/1 - E isso permitia uma previsão para os gastos? Quer dizer, que tipo de benefício trazia esse conhecimento?
R - Tá certo. Primeiro você tinha a execução das tarefas de contabilidade que uma empresa que foi se tornando uma das principais empresas brasileiras, foi crescendo. Nessa época já estava passando vinte milhões de toneladas.
P/1 - Carajás já era uma...?
R - Não, Carajás veio depois. Mas na época o próprio Tubarão já estava em expansão para cinquenta milhões de toneladas e acabou chegando a setenta milhões de toneladas. Mas permitia a você contabilizar tudo e ter as informações para prestar para a Bolsa de Valores, Companhia de Capital Aberta, etc. e para o próprio governo que era o controlador. Te permitia fazer orçamentos para o ano seguinte, fazer previsões e tudo. Você tem que saber quanto está gastando para saber quanto vai gastar no futuro, porque a base das projeções futuras é o conhecimento do que está acontecendo e o que aconteceu no passado recente e o que deve mudar em função dos novos planos, né? E te permitia fazer as projeções financeiras para poder ter caixa planejado, disponibilidade financeira para poder dar conta daquele movimento financeiro todo. Então, era fundamental para a área de material, para fazer provisionamento e compras de materiais também. Então, era fundamental para todo o funcionamento da máquina da Companhia.
P/1 - Mas isso foi um aprendizado da Companhia ou houve uma influência, por exemplo, de empresas estrangeiras?
R - Não, na época isso se chamava Mannesmann Information Systems e estava sendo lançado no Brasil muito timidamente, sendo lecionado nas faculdades, sabe? Ainda muito em termos acadêmicos e nós resolvemos implantar mesmo. O SICOC, Sistema Integrado de Orçamento e Custo era um Mannesmann Information Systems. Tanto que o (Samir Zirac?) que eu comentei a pouco, veio da Europa para o Brasil em 69 e se informou quem é que estava interessado nesse ramo, estava interessado em participar da implantação de um MIS. E ele se informou no Brasil quem é que estava trabalhando com isso e foi informado que era a Vale do Rio Doce, que era a empresa que estava na frente. Então, ele foi lá, nem me conhecia, foi lá procurar quem era a pessoa que cuida desse assunto e aí deram o meu nome. Ele foi lá, eu o recebi, se apresentou e eu: “Ah, pois não... perfeitamente...”, ouvi a história dele: “Estou chegando da Europa fiz um doutorado em informática.” E eu pensando comigo: “É exatamente o que eu estava precisando.” E na época não tinha negócio de fazer concurso, de burocracia, nada. A gente administrava a Vale do Rio Doce sendo estatal como se fosse uma empresa privada. Eu simplesmente falei: “É comigo mesmo e você está contratado! Vamos discutir salário: eu posso pagar tanto pelas tabelas, etc. e tal.” E ele falou: “Não, isso para mim está bom. Não estou muito preocupado. O que eu quero é participar de um trabalho desafiante, interessante.” E ele foi fundamental nesse sistema todo, nessa implantação, nesse trabalho... e foi o meu substituto quando eu saí da Superintendência de Controle; ele assumiu e ficou algum tempo como superintendente.
P/1 - E quanto tempo levou para a implantação desse sistema?
R - Olha, um sistema desse está sendo permanentemente implantado e renovado, mas vamos dizer, o grosso foi implantado num período de dois anos, mais ou menos.
P/1 - Que anos são esses que você está falando?
R - 70 a 72 quando eu fui superintendente do controle. Bom, nessa época então a Companhia já tinha novos presidentes. O Eliezer já tinha saído e já tinha retornado para a Europa, estava com o Ditzel na Europa. O Samir depois foi para os Estados Unidos onde estava antes o Rony Castro de Oliveira Lírio que havia sido superintendente jurídico e que era o chefe do escritório nessa época, depois passou para chefe do escritório em Nova York. Então, a área comercial da Companhia que era o básico, era o Ditzel com o Eliezer na Europa e o Rony Lírio em Nova York, nos Estados Unidos. O Tubarão já estava em expansão, já tinha sido construído, não se falava em Carajás ainda. Não era nem da Vale do Rio Doce. Carajás já existia, naturalmente, o minério sempre esteve lá mas tinha sido descoberto pela Meridional que eram os americanos. Saí da Vale e fiz um ________ para ser o diretor administrativo e financeiro de uma siderúrgica, do grupo Bozano Simonsen que na época comprou a Siderúrgica Hime. Então, me convidaram lá por indicação do Sérgio Menezes que tinha sido diretor de Furnas onde ele estava implantando o MAS. Eram as duas Companhias que estavam na frente, era a Vale e Furnas. Ele comandava lá e eu coordenava aqui. E aí ele me chamou, me convidou para essa função, nessa época ele era vice-presidente lá do Bozano. Ainda era o Mário Simonsen e o Júlio Bozano que comandavam. Aí eu saí em 72 da Companhia e fui enfrentar esse novo desafio numa função muito mais ampla, diretor administrativo e financeiro de uma empresa muito menor. Na época até, acho que ainda era o professor Dias Leite o presidente, ele ficou aborrecido com a minha saída mas me deu razão, entendeu os meus motivos. Mas eu lembro que quando eu fui falar com ele esse assunto ele me olhou sério assim e falou: “Quer dizer que você resolveu, achou melhor deixar de ser rabo de jacaré para ser cabeça de lagartixa.” Ser o primeiro numa empresa menor e realmente eu fui o vice-presidente executivo, eu que tocava aquela siderúrgica, toquei lá uns sete anos. E nessa época eu tive a coragem, a audácia de simplesmente pedir demissão da Vale do Rio Doce. Eu não saí nem licenciado. E foi até curioso que o juiz do trabalho que tinha que autorizar, ele não queria autorizar! Ele me chamou lá e disse assim: “Mas escuta você com 36 anos vai largar um cargo de carreira, você já tem 14 anos na Vale do Rio Doce, é estável.” Porque naquela época você com dez anos já era estável, não podia ser demitido mais. “Você tem um cargo desses bem remunerado numa empresa enorme, com estabilidade para o resto de sua vida. Você vai largar para ir para uma empresa privada, correr todos os riscos?” “Eu vou, tenho confiança que vai dar certo.” E ele relutou, o juíz não queria autorizar. Mas eu fiz assim mesmo e fui e fiquei então sete anos fora da Vale tocando essa operação da siderúrgica. Aliás, foi uma experiência valiosíssima para mim e aí chega 79. Nesse meio tempo, a Companhia continuou crescendo, expandindo operações etc. O Eliezer na Europa e presidentes se sucedendo aqui conforme a política, né? Presidentes da República e presidentes da Companhia, né? E aí em 79 eu recebi o telefonema do professor João Rennó, presidente da Vale que eu conheci do tempo que era assessor do ministro Shigeaki Ueki na área elétrica, não tinha nada a ver com minério. Mas nessa época, ele tinha sido nomeado pelo Ueki e pelo presidente Geisel, presidente da Vale por um período de nove meses, período de menos de um ano. Ele me chamou lá para conversar que precisava de um diretor financeiro, o que ele encontrou lá não estava satisfazendo por vários motivos e ele queria um diretor financeiro e tinha indicações do meu nome, como sendo uma pessoa capaz, etc. Eu disse a ele que não ia largar o Bozano Simonsen onde estava a sete anos para trabalhar nove meses na Vale e aí mudaria o governo e eu teria que voltar para o Bozano. “Então, vamos conversar com o Júlio Bozano e eu peço a ele para te liberar e te receber de volta depois de nove meses.” E assim foi feito. O Joel ligou para o Júlio Bozano, conversou, foi visitá-lo que aliás o Júlio comentou comigo que achou interessante que ele, presidente da Vale, que foi visitar... que ele saiu do escritório dele na Graça Aranha para ir na Avenida Rio Branco para visitar o Júlio Bozano para pedir ao Júlio, então, para me liberar. O Júlio me liberou e eu assumi esse cargo. Como eu tinha esse caso de amor com a Vale do Rio Doce porque... não é um emprego a Vale do Rio Doce, ainda mais Vitória naquela época, a gente vivia a Vale do Rio Doce. O pessoal morava nas casas da Vale do Rio Doce, usava o automóvel, o carro da Vale do Rio Doce, tinha um motorista que era empregado da Vale. Quer dizer, a gente vivia rodeado de Vale do Rio Doce 24 horas por dia, o tempo todo e era um personagem na sociedade. Tudo em função da Vale. De modo que além da empolgação do trabalho de participar daquela equipe que estava fazendo a Companhia passar de um milhão e meio de toneladas, para três, para seis, para vinte, para cinquenta, né? E posteriormente vamos crescer mais com Carajás. Mas nessa época ainda não tinha Carajás. Então, para mim ser diretor financeiro da Vale era uma coisa muito importante intelectualmente, profissionalmente um desafio e até emocionalmente, né? Poder sentar numa poltrona de diretor e dizer: “Bom, consegui fazer minha carreira e chegar a diretor financeiro!” Então, eu fui, ganhando muito menos, inclusive diga-se de passagem, com prejuízo financeiro, mas o fato é que eu fui e fiquei os nove meses com o João Rennó, como diretor financeiro. E aí terminou o governo do general Geisel e entrou o general Figueiredo, em 80, que convidou para presidente da Vale do Rio Doce ninguém menos que o doutor Eliezer Batista outra vez. Aí o Eliezer foi falar comigo porque eu e ele já trabalhamos juntos, com toda essa história que eu contei... então, a primeira coisa que ele fez foi falar: “Ô França, você fica porque eu preciso da sua ajuda e tal, né?” “Não, mas está tudo acertado com o Júlio Bozano para voltar para o Grupo Bozano!” “Não, de jeito nenhum etc.” Aí eu fiquei, conversei com o Júlio que tinha mudado os planos em função da entrada do Eliezer. Ele me liberou e eu fiquei com o Eliezer que me fez de diretor financeiro, depois me deu a área administrativa também, fiquei como diretor administrativo e financeiro. Teve uma época que eu tinha seis superintendências comigo. Eram finanças, controle, material, jurídico, administrativo, pessoal recursos humanos e mais um. Mas enfim, era uma tarefa realmente gigantesca, né?
P/1 - Mas como você se sentia participando disso?
R - Ah... pois é. Nessa época eu realmente participei que foi de 80 que o Eliezer entrou a 85. Foi o governo João Figueiredo, né? Onde a Companhia éramos nós: Quer dizer... era o Eliezer presidente; eu vice-presidente que ele colocou primeiro administrativo e financeiro e depois vice-presidente; o Schettino era o diretor de produção, que nós trouxemos das minas; o Deoclécio Rodrigues aquele meu antigo amigo lá do Paraná que tinha sido meu professor, nessa altura já era diretor de desenvolvimento e de engenharia; o João Carlos Linhares, diretor de operações que depois foi Schettino; o diretor financeiro nós pusemos o Samir (Zirac?) que é esse que eu tinha contratado, enfim, era a nossa equipe. Todos amigos pessoais e a gente tocava aquilo como se fosse uma Companhia nossa. A gente tocava aquela Companhia com todo o carinho e com toda a dedicação como se fosse nossa, como se fosse uma Companhia da nossa propriedade. Era uma Companhia de capital aberto, né?
P/1 - Carajás?
R - Pois é, nessa época então é que nós tínhamos o grande desafio, novo... o Eliezer que tinha sido antes do Tubarão para chegar até cinquenta milhões de toneladas, que já tinha expandido nessa época, acho que já estava perto de setenta. Então, a Companhia parava por aí porque não dava mais para expandir no Tubarão e na estrada Vitória-Minas, e não tinha mais minério em quantidade suficiente e para manter uma operação e justificar os investimentos no sul, porque você tem que ter uma jazida gigantesca, para suportar uma exploração de mais de setenta milhões de toneladas por ano durante trinta, quarenta anos. Você não vai fazer um investimento enorme para acabar o minério em dez anos. Então, tem que ter uma jazida muito grande. O grande desafio era fazer o Carajás ou parar a Companhia no nível que estava, não pode crescer mais. De modo que nós discutimos muito esse tema porque um investimento na época era cinco bilhões de dólares. O investimento da Amazônia Mineração, que era uma Companhia que só existia para fazer esse Projeto Carajás. Essa Companhia, nessa época, então já era 50% Vale do Rio Doce, 50% Meridional, que era U.S.Steel. E a Vale já tinha entrado com 50%, então a gente fazia o projeto ou não fazia o projeto.
P/1 - Mas isso era uma consciência do grupo, quer dizer, era como fazia ou havia pessoas, enfim, que se opunham ao projeto, como a equipe sabia da necessidade de Carajás?
R - Carajás alí era esse dilema: vamos parar a Companhia por aqui e explorar o sul mais uns trinta anos enquanto tiver minério e aí encerramos. Até lá estamos todos aposentados e deixamos uma Companhia que vai acabar para a posteridade, num prazo curto. Todas as Companhias vão acabar algum dia mas vai acabar num prazo relativamente curto ou vamos abrir uma nova operação e dar perpetuidade para essa Companhia porque aí estamos falando de quatro bilhões de toneladas de minério de alta qualidade, dá para operar duzentos anos, quer dizer, indefinidamente. De forma que a consciência da equipe era de tal conclusão óbvia que precisava fazer o Carajás. Agora aonde é que vamos buscar contratos de novo, uma repetição da mesma situação antiga do Tubarão. Onde é que nós vamos buscar contratos de minério de ferro para ter a base para conseguir os financiamentos, para poder implantar o projeto, para poder fazer a expansão. E como obter as autorizações governamentais também, né? Na época do presidente Figueiredo era o ministro Delfim Netto do planejamento, o czar da economia que estava lutando para conseguir déficit público, endividamento, essa problemática de sempre. E nós queríamos conversar com ele: “Ô ministro tem uma boa notícia, temos um projetinho de cinco bilhões de dólares para a gente fazer.” Era de longe o maior projeto brasileiro na época, não tinha nenhuma Itaipu, nem Tucuruí, então, era um projeto gigantesco na época. Além de tudo isso, na Amazônia que ninguém nunca abriu uma estrada de ferro de 900 quilômetros dentro da mata amazônica, um porto de São Luis do Maranhão e a mina lá na serra. Além disso não tem nem o contrato nem o financiamento, então era uma conversa que não tinha prosseguimento. Então, nós resolvemos algumas medidas: primeiro ir atrás dos contratos que era tarefa do Eliezer, que foi novamente visitar todos os clientes da Companhia para vender a idéia do Carajás para eles e conseguir os contratos de longo prazo, dez, quinze anos para poder ter a base para conseguir os financiamentos; segundo fomos atrás das entidades financeiras variadas começando pelo banco Mundial e o banco Alemão de Desenvolvimento, porque uma parte se destinava a indústria europeia e particularmente alemã, siderurgia alemã...
P/1 - Do grupo quem ia buscar esses investimentos, você fazia parte?
R - Pois é... a parte financeira eu com o Samir. Mas principalmente o Samir que na época já era o financeiro. Eu já era o vice-presidente e ele o financeiro. Então, o Eliezer na área comercial e o Samir na área financeira é que fizeram a base do trabalho que era os contatos e conseguir os contratos de minério e os contratos de financiamento. Eu ficava no Brasil, vamos dizer, tocando o dia-a-dia enquanto eles viajavam a maior parte do tempo. Nós dividíamos as tarefas assim e eu tinha muito contato com o BNDES aqui porque teve financiamento do BNDES também. Então, os financiamentos eram esses e teve um financiamento de duzentos milhões de dólares também, tem até as fotografias aí, coordenado pelo (Chase?) que era um sindicato de bancos que puseram no projeto. De modo que...
P/1 - Nesse momento você conhecia Carajás? Você foi a Carajás?
R - Fui inúmeras vezes, inúmeras vezes. Carajás a gente só chegava lá de avião, pousava numa pista porque não tinha estrada de ferro, uma pista mais ou menos simples, não era nem pavimentada senão para enganar e não tinha muito o que ver, era uma montanha de minério de ferro. Quer dizer, cheia de floresta por todos os lados, menos na própria porque pelo minério de ferro não nasciam grandes árvores. Mas é uma serra, que há lá ainda, não deve ter mudado muito, apesar do minério que já tiraram, você via em volta selva Amazônica trezentos e sessenta graus a perder de vista, não se via mais nada. Era selva e selva. Era como se estivesse no meio do oceano num navio, você só vê água e céu em volta do navio. Serra dos Carajás era isso. Interessante que era frio no inverno. Passei muito frio lá, engraçado né? Em plena Amazônia, por causa da altitude era frio. Mas aí o que é que nós fizemos: dividimos as tarefas, o Eliezer foi para a área comercial, o Samir na área financeira e eu fiquei encarregado basicamente de reduzir o investimento de cinco bilhões de dólares. Quer dizer, coordenar uma equipe que fez uma revisão desse projeto, nós saímos do conceito de ser o melhor projeto, o mais moderno do mundo para ser o projeto de menor custo inicial de implantação do mundo. Quer dizer, a concepção mudou completamente, então, a mesma equipe que tinha feito o projeto melhor do mundo - que realmente era - otimizando tudo, mas custava cinco bilhões. Então, agora vamos rever isso tudo aí, que estava até especificado azulejo de banheiro, estava tudo pronto para a construção, vamos rever mudando essas especificações todas, simplificando tudo. Começando pela estrada de ferro que ia ser eletrificada e resolvemos fazer diesel para economizar. Bom, depois de mais de um ano de trabalho, talvez conseguimos chegar num novo projeto de três bilhões de dólares. Economizamos 40%, dois bilhões de dólares. Um projeto de três bilhões de dólares já era possível convencer o governo, os banqueiros e de fazer um cashroll, uma projeção financeira para o projeto mostrando que ele era auto pagável, que era (project finest ____). Geraria caixa suficiente para pagar seu próprio investimento inicial e seus próprios financiamentos e dívidas. E esse então é que nós levamos ao governo, mas na época o governo relutou muito, tivemos muitas reuniões. Então, nós saímos com uma nova concepção que de novo saiu da cabeça do Eliezer, do chamado Grande Carajás, não sei se você já ouviu falar nisso? Que era a concepção de usar a mesma estrada de ferro, a mesma infraestrutura, o mesmo porto, as mesmas casas, a mesma logística para outros minerais que existiam na região, fora o minério de ferro, que basicamente era o cobre - que até hoje a Vale está lá implantando esse projeto do cobre, do Salobo, que já era conhecido na época. Era o manganês tinha uma mina de manganês lá chamada Manganês Azul e eram outros minerais: ouro que não precisaria de uma estrada de ferro para carregar porque o ouro tem grande valor e pouco peso, podia sair de helicóptero que suporta, mas enfim... Era basicamente, o cobre, o manganês e o ouro; o cobre e o ouro geralmente associados, quando você explora um você tem o outro, além do minério de ferro. E com isso a gente criaria um polo de desenvolvimento ali na região com geração de empregos para aquele pessoal da região de Marabá que é ali perto, uma grande quantidade de gente desempregada. E geraria riqueza para o país naturalmente vendendo esses produtos, né? E daria uma base econômica mais ampla para justificar os investimentos. Então, essa nova concepção foi apresentada ao governo, ao próprio general Figueiredo, tem até a fotografia dessa apresentação, com general Medeiros, general Venturini. O Eliezer fez a apresentação, eu estava junto com ele, mostrando o que é que era o conceito do Grande Carajás e o governo aprovou baseado nesse conceito do Grande Carajás e quiseram me colocar de coordenador desse Grande Carajás lá em Brasília. Mas eu consegui me esquivar dessa tarefa lá porque eu não me dou bem com Brasília. Não só o clima que é muito seco mas eu tenho horror a política e a conversa de corredor de palácio, de política, isso não faz o meu temperamento. De modo que eu sempre me esquivei de ocupar cargo público, apesar de sempre estar tangenciando órgão público na Vale do Rio Doce, mas era uma empresa de capital misto, administrada como empresa privada. Porque cargo público, direto em sí eu nunca exerci. Aí puseram lá, então, uma pessoa até do Pará para fazer esse trabalho e obtivemos a aprovação do governo, conseguimos as aprovações de todos os órgãos financeiros, as fontes de recursos. Então, já tínhamos o projeto novo, os recursos financeiros assinados cobrindo, não me lembro exatamente, mas cobrindo, acho, dois dos três bilhões de dólares nós tínhamos e o outro bilhão tinha que ser gerado pela própria Companhia. Tínhamos as demonstrações financeiras demonstrando que aquilo tudo se pagava e tínhamos os contratos de minério, aí o Eliezer chegou para mim e falou: “Agora você implanta o projeto que aí é com você, né?” na cabeça dele estava tudo resolvido. Quer dizer, Carajás estava pronto na cabeça dele, ele já começava a pensar outros assuntos. Porque só faltava a pequena tarefa de fazer um projeto de três bilhões de dólares na selva Amazônica. Mas isso aí não era o trabalho dele. Vamos agora fazer uma comissão, que aliás, era uma exigência do próprio Banco Mundial. Exigência não é bem o termo, era uma recomendação do Banco Mundial que ele queria ter um (Staren comits?) assim se chamava, uma comissão de coordenação do projeto. Mas foi feita essa comissão, que eu coordenava e de novo era o Samir no financeiro; o Dioclécio que era responsável pela construção, pela engenharia; o Schettino que era responsável pela produção e pela operação ferroviária; e dava apoio jurídico e o comercial, o Ditzel que era para entrosar a parte comercial com a parte financeira e com a parte de mercado e com a implantação da obra que foi uma tarefa bastante difícil porque o mercado piorava, os clientes reduziam as encomendas e a gente tinha que reduzir o ritmo da obra. Não só por problema financeiro mas por problema de não ficar pronto na hora errada. Você não pode fazer um projeto e lançar numa hora que o mercado esteja ruim porque para usar um termo popular, você “mica” com o projeto, fica pronto numa hora que o mercado não quer o produto. Então, era essencial você graduar a implantação do projeto para ele ficar pronto na época certa em que o mercado ficasse forte. Então, em função disso ou a gente acelerava ou desacelerava a obra. Contratava mais empreiteiro ou recomendava um ritmo mais lento aos empreiteiros, enfim teve toda uma coordenação financeira e comercial de execução da obra em função disso aí. Ao mesmo tempo você tinha que coordenar a operação com a implantação, porque Carajás foi construído do litoral para o interior. Então, a estrada de ferro foi construída do litoral para o interior e a medida que ia abrindo a estrada de ferro ia desmatando uma faixa, lógico, onde se constrói. Então, você desmatava, fazia os aterros e cortes, a terraplanagem, as pontes e vinha com a superestrutura, com a brita, com os trilhos e dormentes atrás. E os próprios trens que traziam os trilhos e a brita, retornavam vazios e voltavam já iam treinando o pessoal de operação futura que ia depois operar o transporte do minério de ferro, E você não forma uma equipe de gente para operar uma estrada de ferro de repente, no meio do nada, no meio da Amazônia. Então, assim foi feita a coordenação da parte operacional que praticamente, a área operacional - com o diretor de operações que operava aqui no sul - já começou a operar uma unidade ferroviária lá no Carajás durante a construção, que foram uns três anos de construção, que aquilo foi feito todo sincronizado. Então, esse era o meu trabalho principal no Carajás que, por todas essas pessoas envolvidas na mesa, uma vez por semana, envolta de uma mesa, discutir isso tudo e combinar tudo o que tinha que ser feito, planejar e cobrar a execução em seguida. Em resumo nós implantamos um projeto, esse projeto orçado em três bilhões de dólares e custou os três bilhões de dólares... A inauguração dele foi marcada para 1964, não se sabia que ia haver uma revolução naquela época, né? Mas era o prazo de execução, não me lembro mais o mês, mas era no ano de 64, três anos depois e foi efetivamente construído e inaugurado no dia que foi marcado com três anos de antecedência. De modo que foi uma história de sucesso, além disso foi uma construção no meio da Amazônia, quer dizer, você estava no meio do desconhecido porque por mais que você estude o traçado com antecedência na hora de você abrir uma estrada você encontra uma porção de surpresas. Entre elas você encontra índios que não se sabia que existiam, aí tem que negociar com a Funai, acertar a situação dos índios porque tem que passar a estrada de ferro dentro do território dos índios, né? Repetindo problemas ecológicos que o Eliezer era um mestre em evitar, ele sempre se preocupou muito com essa área desde o tempo de Vitória, quando ele criou uma Divisão Florestal e criou, na época, uma reserva florestal em Linhares, mais de 40 mil hectares, onde foi preservada a mata Atlântica, virgem, natural que está até hoje, essa reserva. Tem um nome indígena que eu não me lembro bem, Suruaca, qualquer coisa assim que fica lá em Linhares perto do mar e é uma reserva fantástica, eu já estive lá visitando e que a Companhia gasta um dinheirão para manter... até hoje gasta lá como empresa privada continua. Gasta um dinheirão para manter essa reserva intacta com seus animais, suas plantas e suas árvores gigantescas e tem um sistema de observação para prevenir incêndios e evitar que eventuais incêndios se alastrem. Gasta muito dinheiro com isso e sempre gastou. O Eliezer sempre defendeu isso que precisava ter verba para ecologia e para proteger a natureza como no Carajás depois ele repetiu as mesmas coisas. Criamos uma reserva em volta de Carajás gigantesca, eu não me lembro mais quantos mil hectares mas alguma coisa com 160 mil hectares, em volta do Carajás só de preservação da natureza. Porque ali ninguém pode construir nada, não pode fazer nada. E custa um dinheirão de novo para manter, para fazer a vigilância para não haver incêndios, etc. e a Companhia arca com essas despesas para ter essa proteção ecológica, em torno do projeto que aliás, tem o lado puramente ecológico e tem o lado do interesse da própria empresa também porque hoje no mundo você não consegue nem vender os produtos se você não defender a natureza. Se você chegar com minério de ferro para vender na Europa e: “Olha, só tem um detalhe que para entregar esse minério de ferro destruí a Amazônia toda!” A siderúrgica não te compra o minério, como é na celulose também, como é em toda parte. De modo que há uma consciência ecológica mundial que felizmente, apesar da recente posição dos Estados Unidos, continua se desenvolvendo cada vez mais.
(Fim da fita)
P/2 - Você podia então contar esse episódio do incêndio do prédio da companhia?
R - Pois é.
P/2 - Foi em que ano?
R - Foi, se não estou enganado, em 81 ou 80, o Eliezer estava viajando e eu estava na presidência, porque uma das minhas tarefas era substituí-lo durante as ausências. Como ele ficava mais da metade do tempo fora, eu ficava mais da metade do tempo na presidência da companhia. E numa dessas vezes, eu estou em casa às seis horas da manhã, toca o telefone: “Olha, tem um pequeno incêndio lá no prédio.” Não era nos andares da Vale do Rio Doce, era lá no alto.”
P/2 - Aonde era esse prédio?
R - Era na avenida Graça Aranha, 26, esquina da rua Santa Luzia. E a Vale ocupava até o décimo primeiro andar, do décimo primeiro para baixo. O incêndio era no décimo sétimo, ou qualquer coisa assim, o prédio tinha 22 andares. “Mas como está um incêndio grande, talvez valesse a pena a gente ir lá ver e tal.” Aí eu, imediatamente, peguei o carro e fui para lá. Quando eu chego lá, era um incêndio gigantesco, rodeado de carros de bombeiros e pegando fogo lá em cima. Acontece que o incêndio, ao invés de se alastrar para cima, como todo incêndio, ele se alastrou para cima e para baixo. Porque o prédio teria, segundo explicaram na época, uma deficiência de projeto que as lajes de cada andar não chegavam a encostar na parede lateral porque tinham esquadrias e ficava uma fresta apenas fechada por madeira e que o fogo descia por essa madeira e pegava a cortina do andar de baixo e ia descendo. E o fato é que os bombeiros não conseguiam passar do sexto andar. A escada magirus, que eles tinham na época, só chegava até o sexto andar. Então, eu cheguei ali e fiquei olhando do lado de fora o prédio pegar fogo lá em cima e o fogo descendo. Aí eu falei para o comandante, para os bombeiros que estavam ali, me identifiquei, e pedi se eu podia entrar no prédio, com um funcionário para salvar documentos e eles rigorosamente __________: “Nem pensar!” Então, eu fiquei parado na esquina, olhando o prédio pegar fogo. E veio o fogo descendo: 17, 16, 15, 14 etc., etc. Mas muito rápido, sabe? Daqui a pouco chegou no 11. Eu falei: “Bom, entrou na Vale do Rio Doce. O onze é a área comercial, vai me queimar os arquivos comerciais todos, os contatos com os clientes, tudo, toda a história comercial da companhia, os relacionamentos com clientes, pedidos, contratos, tudo. Aí desceu o décimo e o nono - Divisão de Operações, que era o meu andar. Não, nessa época, não. Nessa época o meu andar era mais para baixo, era o sétimo. Aí pegou a Divisão de Operações desceu para o oitavo, que eu não lembro o que era, e eu fiquei lá olhando esperando o fogo chegar na minha sala, no meu escritório também, além de chegar no quinto andar que era a presidência. Eu falei: “Iiih, se chegar na secretaria geral da presidência, vai pegar a documentação toda da companhia, o que está guardado na presidência é a documentação principal. E daí para baixo era a área financeira, o controle, enfim a parte que seria muito difícil depois recompor tudo, não é? Mas aí chegou no sétimo, queimou tudo, queimou a minha sala inteirinha, não sobrou nada, meus arquivos pessoais, tudo, que eu guardava no escritório grande parte. Continuou descendo e chegou no sexto, onde a escada magirus já estava molhando e os bombeiros conseguiram segurar o incêndio e salvar a presidência que era no quinto, não é? E daí para baixo. Mas, aí começou um outro fogo, que desceu pelo poço dos elevadores, e começou um fogo de baixo para cima, aí pegou contabilidade, tesouraria, sabe? Mas aí os bombeiros combateram porque aí já estava numa altura que eles podiam combater com o equipamento deles, mas molhou tudo, sujou tudo, perdeu parte da documentação. Depois de certo tempo o fogo terminou de comer tudo, os bombeiros entraram, foram apagando andar por andar, fazendo o rescaldo e nós tivemos a tarefa de instalar de novo a companhia em algum lugar e operar sem interromper porque os navios lá em Vitória continuavam chegando. Então, eu me lembro na época os jornalistas vinham para mim e diziam: “E aí doutor como é que fica? A companhia vai parar porque pegou fogo a companhia?” “Não, a companhia não pegou fogo, a companhia está em Vitória, está em Tubarão, está na mina de Itabira, lá que está saindo o minério, os navios, as operações continuam normais, e portanto a geração de caixa. Cada navio que sai a documentação se transforma em caixa. Então, o essencial está preservado isso aqui é a parte administrativa, a documentação que vai levar alguns anos, naturalmente, algum tempo para se poder recuperar. E tivemos uma tarefa inesperada e muito trabalhosa de instalar a companhia de tal maneira que, no dia seguinte, se não estou enganado era uma sexta-feira, de manhã isso, aí no Sábado e Domingo nós conseguimos espaços de edifícios, etc. e na Segunda de manhã a companhia estava operando em novas instalações. Vou te contar viu? Foi uma tarefa de leão. A presidência nós pusemos onde era a Docenave, nossa subsidiária. A Diretoria da Docenave cedeu o espaço ocupado por ela própria, foi para um espaço menor. E cedeu as instalações da diretoria da Docenave, puseram uma sala para o presidente, para os diretores, para mim, etc. e ficamos operando da Docenave algum tempo. Alugamos um espaço alí naquele edifício da Academia Brasileira de Letras, na Presidente Wilson, alugamos lá uns dois ou três andares de emergência, que estavam disponíveis por sorte, estavam vazios e instalamos a companhia lá, mas foi... Teve situações muito curiosas, os funcionários com as suas mesas, seus papéis cada um carregando seus arquivos com cuidado para não perder, todo mundo cuidando como se fosse coisa pessoal: “Olha, cuidado com isso aqui, tem as minhas pastas! Não, não pode perder!” Você via as pastas eram contratos comerciais, eram coisas da companhia que cada funcionário se comportou de maneira exemplar. Todos eles... é que é esse espírito da companhia que a Vale sempre teve, não teve um que eu tivesse notícia que tivesse ido para casa e dito: “Bom, isso aí não é problema meu. Quero o meu salário no fim do mês.” Nenhum! Todos reagiram como se a casa deles tivesse pegado fogo e eles tivessem que salvar a situação. Então, na Segunda-feira estava aqueles andares enormes sem nenhuma parede de divisória e cheio de funcionários, cada um organizando os seus papéis, organizando a sua documentação para conseguir tocar a vida para a frente.
P/1 - E depois desse episódio veio Carajás? E depois de Carajás veio o quê?
R -Bom o Carajás nós inauguramos no final do governo Figueiredo, de novo... como tinha sido feito Tubarão, foi feito dentro do orçamento, dentro do prazo. Eu falei da inauguração do Carajás em 64? Me confundi? Foi em 84! Porque 64 foi o Tubarão, com o general Castelo Branco e agora com o Figueiredo. Então, fizemos a inauguração, no final de 84, no início de 85 começaria um novo governo, que começou, que foi o presidente Sarney substituindo o Tancredo Neves que morreu, e inauguramos o Carajás e encerramos praticamente a tarefa. Porque estava terminado o Carajás, a companhia com os contratos já, trinta e cinco milhões de toneladas por ano. Foi outra grande discussão, se o Carajás seria feito para trinta e cinco ou cinquenta milhões de toneladas por ano. Aí resolvemos dentro do conceito do projeto de custo mais baixo fazer para trinta e cinco mas já com tudo previsto para a expansão para cinquenta como efetivamente foi expandido. Então, hoje está lá a companhia exportando acho cento e dez milhões de toneladas por ano, uns cinquenta do Carajás, uns setenta do sul. A __________ nós tínhamos criado aquela concepção dos contratos de transporte e embarque dividindo o resultado das vendas, entre as partes. Foi as duas, acabaram sendo incorporadas pela Vale agora recentemente, tanto a Samir como a _____ e as usinas de pellets, além das quatro, foi feita uma quinta, da própria Vale. E a companhia desenvolveu o projeto do Cobre, do Salobo, está em implantação. O manganês há muito tempo que ela explora, o ouro também está em aumento, né? Ela explora ouro há muito tempo, mas esse projeto do Salobro vai gerar muito ouro como subproduto do Cobre.
P/1 - E a privatização já era uma coisa esperada?
R - A privatização teve dois episódios interessantes: um foi uma reunião... se falava muito naquela época em privatizar, não privatizar. Mas era um assunto que não se podia falar em público abertamente porque era uma empresa estatal constituída por lei e a lei determinava - estatal não, de economia mista - que ela era uma empresa de economia mista, a União teria que ter direta ou indiretamente, no mínimo, 51% das ações. Então, qualquer coisa em contrário seria ir contra a lei que criou a Vale do Rio Doce e contra o nacionalismo das correntes que eram contra qualquer privatização, que defendia que o minério é nosso e tal. Mas algumas pessoas eram favoráveis entre as quais eu me incluía. Mas não podia falar, não podia discutir esse assunto, o vice-presidente da Companhia não podia falar em privatização que ia criar um problema político, né? Então, era uma coisa da minha pessoa, que eu achava que não se justificava ser uma empresa estatal, que deveria mesmo ser privatizada. Mas houve uma reunião com o sindicato onde se discutiu o aumento de salário, em que os presidentes de vários sindicatos com alguns diretores, entre os quais, eu, questionaram que queriam aumento de salário, porque estavam ganhando muito menos do que a iniciativa privada, mostrando com tabela, etc. Aí eu questionei: “Bom aí vocês querem o melhor dos mundos, vocês querem o salário de empresa privada e a estabilidade de empresa pública, porque aqui também ninguém perde emprego.” Porque a empresa podia operar com menos 20 ou 30% de pessoal mas não faz nada porque é estatal e não quer criar problemas sociais. Nós nos limitamos durante o nosso período a não repor pessoal na medida do possível, aqueles que iam aposentando, ou afastando ou morrendo, enfim. Mas praticamente nós não fizemos demissões. “Vocês querem o melhor dos mundos, as vantagens de estatal e as vantagens de ser privada, isso não é possível. Ou nós somos empresa estatal e portanto não paga... paga menos do que a área privada mas dá grande estabilidade, vantagens, saúde, tratamento, financiamento de casa própria, etc., muitos benefícios. Ou então, pagamos salários mais altos, mas para poder pagar, privatizar a companhia, não pode ser estatal, não é?” E quando eu usei essa palavra na reunião deu uma confusão: “Ah, então a diretoria é favorável a privatização, não sei quê!” Eu falei: “Eu não sou favorável, só estou dizendo que é uma coisa ou outra, não é?” É claro que no dia seguinte estava nos jornais, já foram fofocar. Os partidos políticos: “A diretoria quer privatizar e tal.” Então esse foi um capítulo da privatização que foi esclarecido pelo Eliezer e ficou por isso mesmo. Mas em seguida teve uma outra quase privatização que foi puramente financeira. Entre os vários instrumentos financeiros de Carajás, nós tínhamos o lançamento de debêntures conversíveis em ações no Brasil. E com isso se atingiria dois objetivos: o primeiro, aumentar a base acionária da companhia na Bolsa de Valores, passar a ser uma empresa mais transacionada, ações com maior movimento da Bolsa; e segundo, capitalizar a companhia sem o esforço do governo, porque o Governo que não tinha caixa para participar de Carajás, não queria fazer aumento de capital. Então, está bom, em vez de fazer aumento de capitais, como estava nos nosso planos originais, a gente lança debêntures conversíveis em ações e o Governo não subscreve. Ou subscreve mas não converte em ações, fica debenturista, como preferir. Aí, então, o que aconteceu? O governo não subscreveu, os grupos privados, acionistas privados subscreveram e a participação do governo foi caindo. Mas é lógico que nós estávamos monitorando a situação o tempo todo, para não deixar cair abaixo dos 51% que era o mínimo da lei, não é? E, acontece que, de repente, um grupo grande fez uma conversão de debêntures em ações, repentinamente, não esperada, e se aproximou muito dos 51%, chegou acho que aos 52, 53%.
P/1 - Qual a companhia?
R - Que subscreveu? Um grupo financeiro, um grande banco desses. Então, nós rapidamente, quando eu percebi a situação, que eu fui informado da Bolsa - que a gente acompanhava diariamente a Bolsa - então nós passamos um telegrama, sei lá, um fax para o ministro da Fazenda, que era o doutor Galvêas na época, pedindo para ele subscrever uma parcela, para não permitir chegar nos 51%. Ou já era subscrito pelo Governo e converter em ações, enfim, uma medida do Governo para proteger os 51%, não deixar haver hipótese de chegar aos 51 e, portanto, o Governo estaria descumprindo a lei que determinava que fosse 51%. Mais uma vez o Eliezer estava no exterior, e eu pedi ao doutor Triches, que na época estava respondendo pela presidência, que era um gaúcho, ex-governador do Rio Grande do Sul, militar, que passou o telegrama para o Galvêas e o ministro Galvêas reagiu imediatamente, tomou a providência que precisava ser tomada. Mas esse meu fax vazou, o fax do doutor Triches vazou para a imprensa não sei como. Eu sei que alguns dias depois, o Eliezer chegou de viagem e nós fomos a Brasília discutir esse assunto lá e dormimos em Brasília e viemos de manhã cedo. Uma das características do Eliezer foi sempre acordar muito cedo e dormir muito cedo. Então, a gente dormiu lá e saiu muito cedo. Quando entramos no avião... não, quando descemos do avião, aqui no Rio e entramos no táxi, pegamos um O Globo que estava no táxi, estava na primeira página: Vale quase foi privatizada, não sei quê... mas fizeram um movimento, nos deu um trabalho... Sabe que nós tivemos que ir ao Senado, a Câmara para prestar esclarecimentos. Eles queriam fazer uma CPI da privatização da Vale do Rio Doce, por causa desse episódio. Seria uma coisa fantástica porque, seria a privatização que não ocorreu e que era facilmente explicável. Mas explicável para quem consegue compreender também o que é uma debênture conversível, o que é a conversão de debênture em ação, como é que os percentuais caíram, etc. Então, nós fomos ao Senado e ao Congresso que aliás nessa época eu tive o prazer de contactar o atual presidente da República, que era o senador Fernando Henrique e que foi a cabeça mais clara que eu ví no Senado naquela época entender o que nós explicamos e imediatamente se prontificou a nos apoiar, nos ajudar, etc. porque estava se formando uma onda em torno do Eliezer como se ele quisesse privatizar a companhia escondido do governo. Quando não era nada disso. Era uma coisa claríssima, né? Mas foram dois episódios ligados a privatização que depois ocorreu sem maiores dificuldades e onde, aliás depois eu estive outra vez envolvido - eu já tinha saído da Vale havia muito tempo.
P/1 - Você saiu quando?
R - Eu saí em 85. E a privatização foi em 97 quando eu estava trabalhando para a Caemi, para o grupo Antunes e coordenei um grupo de avaliação da Vale do Rio Doce para a Caemi e a Mitsui sócia _______ na privatização, na época se discutia se entraria junto com Antonio Ermírio de Moraes ou contra e acabou que a Mitsui e a Caemi entrariam junto com o Antonio Ermírio e com a Anglo American. Caemi significava Antunes por um lado e Mitsui pelo outro. Então, eu coordenei esse trabalho, foi um trabalho enorme de trinta profissionais, entre economistas, geólogos, engenheiros, etc. Para fazer uma avaliação da Vale do Rio Doce para a privatização. Mas aí então chegou 85, em que terminou o governo Figueiredo, aí o Eliezer, eu e o Samir combinamos que iríamos sair, os três. Viria um novo governo, um novo ministro das minas e que a gente não continuaria, mesmo porque eu tinha voltado para a Vale com grandes prejuízos financeiros, por nove meses e já estava lá cinco anos, seis anos... quase sete anos! Então, acabei que dos três eu fui o primeiro a sair, fui para o grupo Monteiro Aranha. Depois, mais tarde o Samir saiu, as aposentou e depois o Eliezer saiu, já depois da privatização. Acho que ele ficou até a privatização.
P/1 - E você sai da Vale com uma sensação boa de ter feito, de ter realizado profissionalmente, de missão cumprida? Isso para você como é que foi?
R - Muito boa, né? Exatamente! É um pouco chavão, né? Saio com a consciência do dever cumprido. Mas na verdade foi um trabalho maravilhoso, modéstia à parte, que a gente participou. Eu naturalmente pelo que vocês viram da descrição, nunca estive liderando a operação ou liderando as vendas ou liderando a companhia, como presidente nomeado mas tive sempre colado alí. Dividindo, né? Dividindo e participando, de modo que eu tive essa experiência de vida fantástica, ao todo foram 22 anos. Os 14 da primeira vez e 7... 21 anos. E foi uma experiência profissional que não podia ter sido mais extraordinária porque nós implantamos um projeto realmente maravilhoso, teve o Carajás, antes já tínhamos participado de outros trabalhos naturalmente proporcionais a idade e a experiência profissional na época. Lá no Tubarão, na estrada de ferro, na área administrativa, finanças, controle, isso tudo eu tive que aprender sozinho! Não tinha formação financeira nenhuma, era engenheiro civil, né? Fui aprendendo economia, finanças fazendo cursos e lecionando também. Eu lecionei além do Espírito Santo lá quando eu vim para o Rio eu lecionei na PUC, também aqui Matemática Financeira e Análise de Investimentos e no Ministério das Minas e Energia no tempo do professor Dias Leite, quando ele era ministro, nós lecionamos lá uma cadeira de Análise Econômica de Jazidas Minerais, escrevemos até uma apostila. Então, foi também uma experiência acadêmica, profissional, intelectual extremamente importante e poucas pessoas tiveram oportunidade, né? Quer dizer, eu tive oportunidade e não deixei passar. Eu podia simplesmente no tempo do Rennó dizer: “Tô muito bem aqui, estou ganhando muito mais, para quê que eu vou voltar para lá, para ganhar muito menos.” E não aceitaria, continuaria lá no Bozano Simonsen, estava muito bem com o Julio Bozano, o Mário Simonsen. Mas eu aceitei o desafio e, em consequência dele veio Carajás, não é? E eu não teria participado do Carajás, se eu não estivesse lá, provavelmente. Quer dizer, às vezes você atira no que vê, mata o que não vê, você aceita um desafio que depois traz outro, não é? E eu acho que poucas pessoas, como nós nessa equipe da Vale, tiveram uma oportunidade profissional tão interessante, tão desafiadora, tão fantástica, como essas coisas todas. Quer dizer, Carajás foi o maior projeto da época no Brasil, feito em condições completamente desfavoráveis. Você ter que abrir novecentos quilômetros de estrada de ferro no meio da mata virgem, na selva amazônica e construir um porto gigantesco e uma mina gigantesca em uma cidade lá no alto da serra, num lugar sem acesso. No começo tinha que levar tudo de helicóptero, foi quase que uma construção de Brasília, não é? Em pequena escala. E tudo foi feito dentro do orçamento, dentro do prazo e com uma terceira condição essencial: é que não houve uma reclamação, não houve uma denúncia, não houve uma insinuação sequer de que tenha havido qualquer irregularidade. Porque, de certa forma, aquela equipe da época deu uma lição para o Brasil todo, não é? Porque nós fizemos um projeto onde, se nós quiséssemos ter mexido com coisas escusas e ter ficado todos ricos seria facílimo, claro. Mas nunca sequer houve uma tentativa de um empreiteiro ou fornecedor de equipamento de fazer qualquer insinuação para qualquer um de nós, porque era reconhecidamente uma equipe de gente séria, que era séria há trinta anos, não era séria há dois anos. Certo? Então, nesse Brasil de hoje, que se fala tanto de corrupção e de tanta confusão, a gente fica triste porque nós fizemos um serviço muito limpo durante muito tempo, sob a liderança do Eliezer que foi sempre um exemplo. E antes dele teve outros também. Teve um engenheiro João Paulo, que deixou o nome lá na estrada de ferro, porque uma vez o empreiteiro mandou uma caixa no natal lá, uma cesta de natal, e ele mandou devolver porque não aceitava presente de empreiteiro. Então, você vê uma simples cesta de natal. Baixou uma port... (PAUSA) ...houve por causa disso porque teve pessoas no passado que lançaram isso e os novos iam chegando e iam encontrando aquele ambiente limpo, aprendia a ser limpo também, porque o menino sai da escola, ele é muito influenciado pelo meio. Você vai trabalhar num lugar onde todo mundo está ganhando dinheiro, ficando rico, ele quer participar também. Ele não vai dizer: “Eu sou contra porque eu acho que isso está errado.” É difícil para um menino recém-formado, que ainda não tem os conceitos claros na cabeça, não é? Mas se ele entra num ambiente em que as pessoas mais velhas ou um pouco mais velhas, como era o nosso caso lá, era uma equipe toda de 30, 35 anos, nessa faixa não é? A começar pelo próprio Eliezer. E essa equipe dava essa lição, todos eles pessoas muito sérias, muito responsáveis que trabalhavam muito e todos extremamente corretos e honestos. Quer dizer, nós saímos, eu saí da Vale do Rio Doce em 1985 tinha um apartamento que ainda não estava pago. Eu pagava a prestação todo mês.
P/1 - E hoje como é que é um dia seu, seu França?
R - Hoje?
P/1 - Como é que é um dia seu hoje?
R - Bom, eu, depois que eu saí da Vale eu fui trabalhar na Caemi como vice-presidente de finanças há alguns anos e, hoje, estou trabalhando para as “holdings” dos controladores da Caemi, que são seis empresas. Essas empresas têm um escritório aqui na Voluntários da Pátria. Então, eu costumo trabalhar pela manhã em casa no computador, no micro, no telefone, no fax. Eu tenho um escritório em casa, almoço e vou trabalhar depois do almoço até oito da noite. Saio as oito da noite do escritório, eu gosto, eu não gosto de ficar à toa. Então, eu trabalho normalmente, oito horas por dia fazendo essas tarefas de administrar essas empresas “holdings”. Eu tenho empresa de consultoria que presta essas tarefas, e sou diretor de algumas dessas empresas. De modo que eu continuo perfeitamente ativo, não é? E gosto muito disso. Quando eu me aposentei, eu tentei ficar parado algum tempo, mas não me dei bem, não. Nos três, quatro primeiros meses era uma delícia, ia passear na praia, ia para lá e para cá, é maravilha.
P/1 - Mas tem tempo para lazer?
R - Hoje?
P/1 - Hoje em dia, o quê que você faz nas suas horas de lazer?
R - Não, o meu lazer é cinema, restaurante, é lazer de cidade. Eu tive lancha muito tempo, pesquei muito, muitos anos, muito, mais de dez anos. Então, o meu lazer era basicamente no fim de semana ir para o mar. Mas agora eu estou mais velho e já não acho mais tanta graça.
P/1 - E em termos familiares? Qual é a profissão dos seus filhos?
R - Pois é, eu tenho um casal de filhos. A menina mais velha tem 20 anos e está estudando na Universidade Yale, onde ela se qualificou, conseguiu ser aceita, porque é difícil ser aceito em Yale, não é? Principalmente estrangeiro, quase não tem estrangeiro em Yale. Na turma dela que entrou foi a única brasileira com certeza e talvez a única sul-americana, sabe? Pouca gente.
P/1 - E qual a carreira?
R - Ela está fazendo Ciências Políticas, termina esse ano que vem, porque é o curso básico, você sabe que o curso universitário básico __________________________ um curso de __________________. A partir daí que você faz alguma carreira profissionalmente. Então, ela vai terminar o ano que vem, esse curso universitário básico e vai fazer Direito, vai fazer School of Law, talvez em Yale, ou talvez em Harvard, porque ela tem qualificação para qualquer universidade, não é? Ela é muito boa aluna, eu chamo de tipo rei, só tira nota “A”. Então, ela é uma excelente aluna lá e vai fazer escola de direito.
P/1 - E o rapaz?
R - O rapaz tem 17 anos e está terminando escola americana. Aliás, ela estudou em escola americana também, os dois falam inglês fluente desde três anos de idade, foram educados, aprenderam a ler e escrever em inglês, junto com o português, falam e escrevem em inglês tão bem quanto em português, o que é ótimo, para eles é fundamental. Então, ele vai estudar também no exterior.
P/1 - E os outros quatro?
R - As outras quatro já são casadas, divorciadas, mães, etc., já estão na faixa dos 40 anos, por aí, moram duas em Curitiba, uma em São Paulo, que é médica e psiquiatra, e a outra em Portugal, casou-se com um rapaz português e mora lá. De modo que eu já tenho sete netos dessas quatro filhas. Eu comecei muito cedo, eu me casei a primeira vez no terceiro ano da universidade. Quando eu cheguei recém-formado lá em Vitória eu já tinha uma menina de um ano e já estava esperando a segunda, que nasceu lá no Espírito Santo, a terceira também nasceu lá e a quarta nasceu no Rio, quando eu morei aqui em 64.
P/1 - Bom, a gente está chegando ao final da nossa entrevista e a gente costuma perguntar ao nosso entrevistado o que que ele acha do Projeto Vale Memória e o que achou de deixar o seu depoimento aqui para o Projeto?
R - Eu acho muito interessante, muito importante porque essas histórias todas se perdem no tempo e a cultura vai se perdendo, não é? A cultura da empresa, e até a cultura da sociedade, a cultura do país. Se você não registra e não estuda o passado, você está sempre começando coisas novas e é como se aquele passado não existisse, com toda a sua riqueza de exemplos, de lições, de aprendizado, de evolução daquela sociedade, não é? Então, eu acho fantástico esse trabalho de historiadores, de pessoas que analisam os acontecimentos e registram para benefício das novas gerações que vão ver porque que existe hoje uma Companhia Vale do Rio Doce, essa potência, uma das maiores “blue chips” do mercado, exporta para o mundo inteiro, a número um no mundo, a maior exportadora de minério de ferro do mundo, a maior empresa de mineração de ferro do mundo. Como que isso surgiu no Brasil? Caiu do céu, foi presente, como é que foi isso? Isso aí foram 40 anos de trabalho até agora e que vão continuar e que passaram por todas essas etapas, trabalhos da maior importância profissional, da maior importância econômica, financeira e que acabou nisso, nessa companhia que hoje existe e que, de repente, chega uma pessoa nova é nomeado presidente, diretor, senta na poltrona lá e não sabe como é que aquilo apareceu. Assume e acha que aquilo só existe daquele dia para a frente. Mas não é assim, existe toda uma geração de pessoas que estão nessa faixa que eu estou, de mais de 60 anos, e que dedicaram muito trabalho para fazer isso tudo até chegar nesse ponto. Acreditando que aquilo era em benefício do país. (PAUSA) ...ia estar lá o minério e até hoje não ia ter o rendimento das exportações. Então, eu acho esse trabalho de vocês e do Museu de registro da história muito interessante, por esses fatos todos. E o fato de a gente estar aqui conversando, sendo entrevistado, é agradável, é uma coisa que a gente faz com prazer.
P/1 - Você gostaria de deixar alguma mensagem para os atuais funcionários da Vale?
R - Olha, a mensagem que eu posso deixar eu acho que é o depoimento que eu dei, não é? Quer dizer, eles estão hoje ocupando as posições na hierarquia, etc. Fazendo os trabalhos que nós fizemos no passado em condições muito diferentes, não é? Companhia pequenininha, pobre. Para conseguir um investimento de cinquenta, cem milhões de dólares eram discussões enormes. Hoje investe um bilhão de dólares por ano. Mas eles estão hoje ocupando posições, administrando, ou participando da administração e é importante eles conhecerem esse passado, o que aconteceu e manter essa mística de uma empresa séria, de gente séria, que não está lá para tirar proveito, que está lá para trabalhar. Sendo empresa privada ou economia mista, ou estatal, está trabalhando para o país do mesmo jeito, está gerando riquezas, gerando divisas, foi a maior exportadora brasileira durante algum tempo. Hoje, acho que está entre as cinco maiores. Então, é uma empresa que toda vida teve que lutar sozinha, no mercado internacional. Embora fosse estatal nunca teve ajuda de governo, reserva de mercado, nada. Para vender para a própria Siderbras, na época que a Siderbras era estatal, a gente tinha também dificuldades. Era fácil vender, só que a Siderbras não pagava, geralmente porque tinha dificuldades financeiras e a gente ficava credor da Siderbras. De modo que, o que eu posso falar para esses jovens que estão hoje trabalhando é que mantenham essa idéia, essa mística, esse amor a camisa que o pessoal da Vale sempre teve e que preservem esses valores, que não são valores econômicos, mas são valores morais, são valores de comportamento que são fundamentais para o futuro. Para o futuro e para as pessoas deles, para terem prazer de se olhar no espelho e dizer: “Eu sou uma pessoa séria!” Não é?
P/1 - Está ótimo!
P/1 e P/2 - Muito obrigada, então!Recolher