Memória Vale do Rio Doce
Depoimento de Hélcio Pires Guerra
Entrevistado por José Carlos e Rosana Miziara
Rio de Janeiro, 19/04/2000
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº CVRD_HV027
Transcrito por Paulo Esteban Viscaino Prata
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/2 – Para começa...Continuar leitura
Memória Vale do Rio Doce
Depoimento de Hélcio Pires Guerra
Entrevistado por José Carlos e Rosana Miziara
Rio de Janeiro, 19/04/2000
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº CVRD_HV027
Transcrito por Paulo Esteban Viscaino Prata
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/2 – Para começar pediria ao senhor para falar seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Meu nome é Hélcio Pires Guerra. Nasci em Santa Maria de Itabira - ou melhor, numa fazenda chamada Fazenda São Pedro, que pertence até hoje a Santa Maria de Itabira - em 22 de março de 1932. Fiquei morando nessa fazenda até quase sete anos de idade, quando fui para a cidade de Santa Maria de Itabira para fazer o curso primário. Nessa fazenda cheguei até a frequentar um escola rural, nessas escolas de multisseriado, onde uma professora dá aulas para quatro séries. Eu cheguei lá como ouvinte participante da aula, mas quando a professora levou uma vara de marmelo para contar uma letra lá, eu não voltei mais. (risos)
P/1 – Essa fazenda de quem era? Da família?
R – A fazenda era do meu pai - na realidade era do avô dele, porque o meu avô, para a época, era até que um homem bem rico, tinha diversas fazendas.
P/2 – Ele nasceu onde?
R – Em Santa Maria de Itabira. Ele tinha uma fazenda lá, era a sede das propriedades dele, Fazenda do Oriente. Naquela época, 1930, meu pai conta que eu já tinha até cabra, então ele era um homem de posses - do lado paterno, do lado materno era uma pessoa de menos posses.
P/1 – O senhor conhece a origem da família do senhor, de onde ela veio, como ela chegou a Minas, um pouco dessa história?
R – Minha família é originária de Amador Bueno, bandeirante. Foi para aqueles lados de Nova Era e dessa chegada, desses bandeirantes, surgiu a família Guerra, de Martinho da Costa e é tudo originada do mesmo ramo. Tem até um livro sobre a família feito por um padre que foi deputado estadual, Padre Pedrinho Vital, onde ele tem todas as ascendências, descendências, a árvore genealógica da família toda.
P/2 – Como era a vida na fazenda?
R – Eu saí de lá com sete anos, lembro muito pouco disso, mas uma infância que deve ter sido muito melhor do que as dos meninos morando na cidade, com muito mais liberdade de você poder fazer aquilo que quer. Não tinha limite, tudo era permitido, meus pais não eram muito rígidos.
P/2 – Quem exercia mais autoridade na sua casa?
R – Minha mãe era mais… Meu pai era mais ‘convivente’. Minha também era ‘convivente’, mas meu pai era menos durão. Tá certo, mas nunca apanhei na vida, nem eu nem meus irmãos.
P/2 – Quantos irmãos vocês são?
R – Nós somos sete irmãos. Na realidade, lá em casa, nós somos duas levas, duas fases. Primeiro nós somos quatro, depois ficou um período sem filhos, depois nasceram mais três. Somos quatro homens e três mulheres, eu sou o segundo da família. Hoje eu tenho um irmão nascido em 1951; tem 49 anos, bem mais novo do que eu.
P/1 – Como era a casa do senhor? Primeiro com quatro crianças, depois vem mais três; como era esse ritmo doméstico, dentro de casa?
R – O ritmo doméstico era… Dizem que os irmãos, aqueles que combinam bem e aqueles que brigam muito… Nós éramos três praticamente na mesma faixa de idade - três homens e uma mulher, todos com diferença de um ano -, então eu fui colega do meu irmão mais velho no grupo primário porque ele perdeu um ano e ficou junto comigo. Ele era até mais compenetrado do que eu, mas na turma eu ficava mais com a turma do meu irmão mais novo, não com a turma dele, porque ele era mais sério.
P/2 – E vocês depois dos sete anos a família saiu da fazenda para Santa Maria?
R – Então nós mudamos para Santa Maria. Fiz o curso primário em quatro anos, somente com uma professora; professora, naquela época, pegava o aluno no primeiro ano e levava até o quarto ano. Depois fui para Itabira, fazer o curso de admissão para o ginasial; meu pai tinha se mudado para Itabira, ele foi ser comerciante em Itabira.
Naquela época, a Vale do Rio Doce tinha chegado, em 1942. Foi quando começou, então Itabira começou a ter um movimento maior. Ele resolveu então fazer um comércio lá e quando terminou a guerra, em 1939, ele teve muitos problemas financeiros e a loja dele quebrou.
P/2 – Era loja de quê?
R – Loja de armarinhos e tecidos. Quando quebrou ele voltou para Itabira. Nesse período, com a dificuldade financeira, eu parei de estudar, estava na terceira série ginasial. Ele voltou para Santa Maria e nós, os filhos, tivemos que [nos] preocupar com nossas vidas, apesar de estar com quinze, dezesseis anos.
P/2 – Tiveram que trabalhar?
R – Começamos a trabalhar. Eu saí com dezesseis anos, fui para Belo Horizonte trabalhar. Eu tinha um tio que era dono de um restaurante, até um restaurante muito bom na época, tinha até orquestra. Fui trabalhar nesse restaurante e comecei lá como copeiro. E como sobrinho do dono, [se] faltava ajudante de cozinha eu era ajudante de cozinheiro, [se] faltava faxineiro eu era faxineiro, [se] faltava caixa eu era caixa. Trabalhei lá uns nove, dez meses, [fui] até garçom. Não podia trabalhar à noite porque era menor de idade, trabalhava só de dia.
Retornei, tive um período pequeno em Santa Maria de Itabira e arrumei um emprego em João Monlevade, na Companhia Siderúrgica Belgomineira; era menor ainda. Trabalhava como calculista de frete e ganhava um salário até bom na época, mas não dava para manter. Tinha que pagar pensão, não dava muito para viver. Fiquei lá um ano e retornei para Santa Maria.
P/2 – O senhor dava dinheiro para os seus pais?
R – Não, meus pais já conseguiram sobreviver porque ao retornar para Santa Maria, minha mãe abriu uma pensão lá. Meu pai funcionava lá, ele fazia a contabilidade para um, para outro, ia se mantendo. E nós, três irmãos mais velhos, estavámos na luta, sem ter de dar dinheiro em casa, mas pelo menos nos mantendo. Depois de Monlevade, retornei e voltei depois... Eu tinha um tio - tenho até hoje esse tio, mora em Coronel Fabriciano -, ele era empreiteiro da Belgomineira, fazia carvão vegetal. Eu fui trabalhar com ele. Nunca tinha morado na roça, só na infância. Nem sabia montar cavalo.
P/2 – Mas na época da fazenda você não...?
R – Não, era menino, né?
Eu fui para esse lugar onde o Rio Doce encontra com o Rio Piracicaba, em Ipatinga. Tem até um hotel lá, [um] hotel grande, do outro lado do rio, então eu sou um dos desbravadores daquela região de mata virgem que nós derrubamos. Fazia carvão, produzia, tinha muito serviço mesmo.
Meu tio morava em [Coronel] Fabriciano e eu trabalhava lá. Era um tipo de capataz: tomava conta, recebia lenha, entregava para o carvoeiro, recebia o carvão, pagava, recebia, fornecia... Tinha um armazém também no serviço, então eu, lá com os meus dezoito anos, comecei a ter uma responsabilidade muito grande. Acho até que foi uma grande experiência que eu tive na minha vida: com dezoito anos, agir sozinho num lugar completamente estranho. Aquilo ali era uma região muito inóspita.
P/2 – Quantos anos o senhor tinha?
R – Eu tinha dezoito anos nessa época. Na região [tinha] muito paludismo e naquela época havia muitas pessoas criminosas. Começavam, fugiam para esses locais, então era uma região meio brava.
Consegui, graças a Deus. Estive lá dois anos e pouco, consegui me manter ali muito bem. Você fica numa região dessas [e] fica até meio selvagem, meio índio. [Quando] chegava na cidade ficava até com vergonha de andar na rua. Minha mãe, vendo aquilo, [disse]: “Hélcio, você precisa vir.” Nessa fase, meu pai tinha mudado para Itabira. Meu pai arrumou um serviço chefiando um escritório, aí eles começaram a fazer a cabeça para eu vir para Itabira.
P/1 – Que tipo de atitude o senhor tomava, meio índio por quê?
R – Meio índio porque você não tinha paciência para muitas coisas. Embora Itabira fosse uma cidade pequena, você não tinha aquela paciência de ficar, sei lá, de conversa, daqueles papos que não rendiam e não saíam do lugar. Não tinha muita paciência, não. Tanto que eu tinha até uma namorada, quando da volta terminei com ela, briguei com ela sem motivo nenhum; achava que não podia ter compromisso porque não tinha idade para isso e a larguei.
Bom, quando retornei para Itabira não tinha nada para fazer, então comprei um caminhão e fui puxar minério para a empreiteira da Vale do Rio Doce. Era transportador de minério, coloquei um motorista enquanto aprendia a dirigir, andava do lado do motorista. Um dia, o motorista chegou, não quis trabalhar; eu peguei o caminhão sem saber direito, comecei a trabalhar com caminhão a partir desse dia.
P/2 – O senhor começou a fazer essa atividade. Tinha alguém da sua família?
R – Não. Nós tínhamos muitos amigos porque o pessoal da minha cidade, Santa Maria, é um pessoal muito batalhador. Os rapazes lá não tinham muito o que fazer, então o que os sujeitos começaram a pensar? Foi aberta a mina, compraram o caminhão. [Com] os meus primos entrando nisso, fui junto e fiquei nisso uns dois, três anos.
Depois fui trabalhar… Meu pai fazia contabilidade num posto de gasolina, casa de peças. Fui trabalhar nesse posto de gasolina fazendo a contabilidade. Não entendia nada de contabilidade, mas comecei a trabalhar. Meu pai me ensinava.
Fiquei trabalhando neste posto uns dois a três anos quando meu primo que trabalhava na Vale do Rio Doce chegou e me disse: “Vou ver se converso lá e te arrumo um emprego.” Nesse período eu casei e precisava.
P/2 – Como foi que você conheceu sua esposa?
R – Eu conheci minha esposa num baile desses de grito de carnaval. Eu estava trabalhando nesse posto de gasolina e ela ficava na casa do dono desse posto de gasolina. Estava lá na época de fazer faturamento, trabalhando até mais tarde, depois passei num clube e estava tendo um grito de carnaval. Entrei e ela estava lá, nem sabia direito quem era; depois é que fiquei sabendo que ela estava alguns dias na casa do meu patrão. Foi aí que o meu primo - ele foi até o meu padrinho de casamento -, arrumou um emprego na Vale do Rio Doce e eu fui trabalhar em maio de 1956.
P/2 – Mas ele já trabalhava lá?
R – Ele já trabalhava, era mais antigo do que eu.
Eu fui trabalhar lá na área de contabilidade como arquivista. Hoje eles falam que arquivista tem uma função mais nobre, a pessoa que armazena os dados, tem um nome mais pomposo. Já conhecia contabilidade - não contabilidade industrial, que é o caso da Vale. Ao arquivar, eu começava a olhar os documentos, os registros como eram feitos, como não eram feitos, e isso me deu um conhecimento bem razoável das coisas que passavam dentro da área contábil da Vale em Itabira. A gente chega e vai pegando os pontos, aquilo que é sempre manuseado, e eu tinha a minha maneira, de anotar num pedaço de papel o que o chefe sempre gostava de ver. Guardava aquilo na minha gaveta, deixava aberto. Quando ele vinha eu punha a mão na cabeça assim, olhava e falava: “É o número tal.” (risos) E conseguia ir enganando nesse período.
Eu tinha parado de estudar na terceira série ginasial e na Vale eu sentia necessidade que teria que estudar, porque começou até a ter pressão dentro da Vale. Tinha pessoas que estavam formadas e com essa minha cabeça, que eles achavam que era boa, com uma memória muito pródiga, eles me colocaram para conferir lançamentos contábeis, conferir pagamentos. Já estava com uma função bem nobre dentro da contabilidade e aquilo ali começou a fazer uma pressão com o chefe. Continuei fazendo os lançamentos, mas senti que precisava voltar a estudar.
Foi colocada a primeira turma de curso noturno ginasial e eu entrei na terceira série do curso, já com quatro filhos. Fiz a terceira e quarta séries [do] ginasial, aí fui fazer curso técnico de contabilidade. [Quando] cheguei lá, tinha um professor que eu tinha tido um probleminha com ele dentro da Vale e falou que tinha aluno lá que só queria reconhecer título. Achei que não tinha muito jeito para ser o meu professor de contabilidade e larguei.
Logo após eu fui chamado para trabalhar em Vitória. Eles estavam precisando e um amigo meu me indicou, dizendo que era muito bom. Eles me perguntaram no que eu era formado, eu disse que não era, aí me perguntaram como é que eu estava querendo ir. Eu disse que não estava querendo ir, eles que estavam querendo me trazer. “Aqui tem até advogado para você chefiar e você não tem curso nenhum.” Eu saí dali e [pensei]: “Eu preciso me formar.”
Voltei para Itabira. No ano seguinte fiz minha matrícula no curso técnico de contabilidade e consegui fazer o curso técnico. Esse rapaz que tentou me levar para Vitória veio para o Rio, ele era contador geral adjunto. Ele mandou passagem para mim, fui conversar com ele.
Quando cheguei lá fui falar com o chefe dele. O chefe se virou para mim e disse: “Outra vez?” - era o mesmo de Vitória que estava no Rio, ele era Superintendente de Controle. O Melo, que me trouxe, falou: “Ele está querendo, ele falou que vai estudar”, então ele virou para mim e: “Você vai estudar mesmo.” “Vou.” “Você [se] compromete?” “[Eu me] comprometo.” “Então tá bom.”
Eu me comprometi e vim para o Rio de Janeiro. Comecei a fazer cursinho, entrei para a faculdade. Quatro anos após tirei o diploma e um convite que eu mandei para a minha formatura foi para ele, mandei escrito assim: “Fatura liquidada.” (risos) Aí ele me passou um telegrama dizendo que sempre acreditou naquilo e não tinha receios de eu não cumprir aquela promessa. Ele foi vice-presidente da Vale [por] muito tempo, Luiz Amaral de França Pereira.
Essa foi a minha trajetória até chegar no Rio.
P/2 – Como é que foi essa mudança para o Rio?
R – É uma coisa que assusta. A pessoa sair do interior e vir para o Rio com quatro filhos - a minha filha mais velha já estava na segunda série ginasial. O segundo, que é o Hélcio, já ia para a primeira série.
É uma vida muito diferente. Os meus filhos estudavam numa escola pública, e você chega no Rio de Janeiro - na época, hoje deve estar igual ou para pior, as escolas públicas não eram boas. A adaptação dos meninos, apesar deles serem bons alunos, na parte colegial foi boa; na parte de vida [era] um pouco diferente, apesar que quem sofria mais era a mulher porque eu trabalhava o dia inteiro, à noite ia fazer cursinho, depois ia pra escola. Aí ia [no] final-de-semana, uma praia, um futebol. Mas acho que valeu a pena, deveria ter vindo mais cedo, né?
(PAUSA)
P/1 – Queria voltar um pouquinho com o senhor para a história do caminhão. Como era transportado o minério, porque era necessário esses caminhões privados, as pessoas para carregar?
R – A Vale retirava minério do Cauê e estavam em operação as minas de Conceição e Dois Córregos. Essas minas eram operadas, os minérios eram extraídos por empreiteiros e esse minério era transportado da mina de Conceição e da mina de Dois Córregos para a estação ferroviária lá. Eram em torno de uns oito a nove quilômetros de distância entre a mina e a estação, o pátio; era necessário transportar por caminhão e os caminhões eram de pequeno porte. Os caminhões maiores eram de dez toneladas, meu caminhão puxava sete toneladas - quer dizer, hoje isso é um brinquedo. Eu puxava minério, o dia que a gente mais conseguia fazer eram sete viagens, davam 49 toneladas; hoje, um caminhão transporta cento e tantas toneladas. Hoje é outra coisa.
P/1 – E esse acordo com os empreiteiros, a Vale não era ela, enquanto empresa, que extraía?
R – Não era ela. Os empreiteiros trabalhavam para a Vale. Agora no Cauê, o nível de produção era outro, a Vale operava por conta própria, naquela época já devia ter uma instalação mecanizada que fazia o transporte de lá de cima cá para baixo. Essa instalação começou em cinquenta e poucos, enquanto que em Conceição e Dois Córregos num sistema bem rudimentar, os caminhões eram enchidos com garfo; você pegava a pedra, o minério, quebrava, pegava aquela ferramenta com quatro dentes, pegava aquilo e jogava na carroceria. Não tinha nem os caminhões basculantes, naquela época os caminhões eram caminhões tabuleiros, também eram retirados com garfo da carroceria e jogando no chão ou jogando dentro do vagão. Se você olhar para trás, era um negócio bem primitivo.
P/1 – E não arriava o caminhão?
R – Porque eram sete toneladas? Não. Primeiro que era descida, estragava muito o freio, dava para transportar bem. (PAUSA)
P/1 - O senhor recebia como por esse serviço? Como era o contrato?
R – Era calculado por tonelada, preço por tonelada transportada. Tinha uma balança; antes de você descarregar, você passava na balança e recebia um tíquete. E todo caminhão já tinha seu peso líquido, reduzia o peso do caminhão, então você recebia o peso transportado.
P/1 – Todo dia?
R – Não, era todo início do mês seguinte.
P/1 – Eram vários caminhões?
R – Eram vários, devia ter mais de cem caminhões.
P/1 – E todo esse sistema, cada um com seu caminhão?
R – Cada um com seu caminhão. Logo depois, a Vale começou a operar essa mina, não sei se são dois córregos, e começou a fazer com o sistema de cabo aéreo, [em] que você tem um cabo de aço com as caçambas e as roldanas e vinha até a estação com aquele cabo aéreo.
P/1 – Aí não precisava mais dos caminhões?
R – Não precisava mais dos caminhões, aí eles passaram a fazer outro tipo de atividade.
P/2 – Para a Vale mesmo?
R – Empreiteiras, né?
P/2 – Em geral.
P/2 – O que significa a Vale do Rio Doce naquela época? Trabalhar para a Vale? Prestar serviço?
R – Trabalhar para Vale como empregado… A Vale sempre teve dentro do itabirano um sonho de um dia trabalhar na Vale - uma empresa grande, principalmente para Itabira. Aquilo num local que não [tem] outras oportunidades, então só pensavam em trabalhar para a Vale. O itabirano pensava: “No que dia que eu estiver na Vale, estou tranquilo.” Naquele tempo não mandavam ninguém embora, estava com o futuro garantido. Empresa estatal não mandava ninguém embora, só quando tinha um problema sério com empregado.
Teve uma época também de política. No início, a Vale… Em função dos dirigentes, começou a mexer com política. Aqueles que tivessem uma política contrária tendiam a sofrer. Andou tendo umas demissões, cortavam transporte. Depois parou com isso, entrou nos eixos.
P/1 – Quando o senhor chegou lá, o Cauê estava lá ainda? O morro, o pico do Cauê?
R – Em 1942, estava. Quando era menino fui lá, subi no pico.
P/1 – O senhor foi vendo ele diminuindo? O pico, com o passar do tempo?
R - Vai, vai diminuindo.
P/1 – E a relação da Vale com Itabira? O itabirano com a Vale é uma coisa. E da Vale com Itabira?
P/2 – Alguma atuação junto à comunidade?
R – A gente não participava muito. De longe, o que você via… E também não tinha uma formação política pra ficar olhando essas coisas.
Mas o que a Vale fazia, muitas vezes, é quando era procurada… E a população cobrava da Vale, mas não procurava a Vale, e muitas vezes, quando procurava, não apresentava projeto, nada.
Acho que o outro problema que teve foi o seguinte: se você for olhar hoje a época passada, Itabira funcionou como uma cobaia dentro da Vale.
Você vê hoje como é o sistema Carajás e compara com Itabira. A própria Vale fez aquilo porque na época ninguém tinha experiência do que podia e não podia fazer. O bairro do Pará que foi feito pela Vale é agarrado à mina, o bairro do Campestre é agarrado a mina. Se você tivesse um planejamento a cidade de Itabira iria preservar a cidade antiga, onde ela estava, e ter feito a cidade bem distante daquela, e você foi colocar a cidade junto à mina.
Atividade de mineração é atividade poluente, você pode ter o cuidado do jeito que for, mas é poluente. Quem chega em Itabira até assusta com aquela mina agarrada com a cidade. Assusta, é um negócio feio, precisava na época ter um melhor planejamento. A Vale não é culpada disso, você não tinha cultura, a própria Vale não tinha cultura de mineração. E você aprende as coisas com a história, o que eu fiz errado eu não vou repetir mais.
O itabirano não era muito de cobrar as coisas, hoje Itabira sofre com isso. A atividade de mineração uma hora acaba e não demora muito, e a cidade não está preparada para outra coisa. Culpa dos antigos administradores da cidade, junto com a Vale do Rio Doce, tentaram prever uma coisa para o futuro e não foi feito. Eu fui a Carajás, que é completamente diferente; a mina é bem longe do bairro chamado cidade, a vila residencial.
P/2 – Voltando agora um pouco para a sua trajetória, você ficou quanto tempo aqui no Rio?
R – Eu vim para o Rio no final de 1969.
P/2 – Liquidou a fatura?
R - Liquidei a fatura em 1974, me formei em Ciências Contábeis. Em 1976, tinha aqui dentro da Vale, já tinha galgado, melhorado profissionalmente. Tinha chegado a ser contador em 1973, fui contador geral da Vale; consegui assinar o primeiro balanço com o curso de técnico ainda - me formei e em 1974 já assinei como contador.
Depois de 1974 continuei na Vale como contador geral; em 1976 mudou a administração da Vale e veio ser presidente da Vale Fernando Antônio Roquete Reis, era mineiro. Vieram também outros dirigentes, resolveram fazer uma
modificação na área contábil; voltei para Belo Horizonte e fiquei dando apoio às empresas subsidiárias e coligadas da Vale. Fiquei um período lá, mas nesse período eu viajava muito para o Rio, para Vitória.
Em 1979, se não me engano, novamente o França Pereira voltou para a Vale e meu outro amigo também voltou, aí voltei para o Rio, fiquei no Rio. Em 1979 fiquei um período, era assessor da superintendência de controle; Em 1982 eu fui designado para ser diretor superintendente da Fundação Vale do Rio Doce; em 1984 eu me aposentei, estou com dezesseis anos de aposentado.
P/1 – O que aconteceu exatamente com Roquete Reis? Foi uma mudança na diretoria toda?
R – Foi mudança na diretoria toda e o Roquete Reis… Nessa época, tinha o presidente e diversos vice-presidentes. Um dos vice-presidentes era da área contábil, era Hans Werner von Uslar e achou que aquilo…
Quando as pessoas vêm, sempre tem a impressão que aquilo lá é uma patotinha e querem mudar. Deve ser ter sido isso que surgiu na cabeça dele. O Hans não era da turma do Roquete, então não sei qual foi a composição da época. Ele era um técnico da GE, General Electric.
Essa mudanças de empresa grande a gente tem que aceitar e uma das coisas que a pessoa tem de ter em empresa grande estatal e que eu sempre tive é o seguinte: você está nesse cargo hoje, amanhã pode não estar. Isso é igual a técnico de futebol, não achar que você é dono do cargo. Se a pessoa leva isso muito a sério, dá um baixo astral violento na hora que você perde o cargo, tanto que a pessoa deve chegar e sair quando está por cima, nunca deixar para sair quando está por baixo. Você está no topo da sua profissão; se está na hora de você ir embora, cai fora e pronto.
P/2 – Pensando um pouco na sua família, tem bastante parentes do senhor que trabalharam na Vale?
R – Bastante, não. Eu tenho uns primos que trabalharam na Vale em Itabira, em Itabira Pires Guerra tem muito. Depois que eu entrei na Vale, muito tempo depois entrou meu cunhado. Na época não era cunhado, era conterrâneo; depois foi namorar minha irmã e casou com minha irmã. É o Domingo Drummond. E eu tenho um filho que entrou para a Vale depois que eu aposentei.
P/2 – E tem um genro também?
R – Tenho um genro também, que entrou na Vale depois que eu aposentei, então eu não tenho influência nenhuma com as carreiras deles.
P/1 – Quando o senhor trabalhou na contabilidade houve alguma transformação,
informatização, por exemplo? Seu trabalho no dia a dia mudou alguma coisa nesse período?
R – Eu participei da grande modificação da informatização da contabilidade, em 1964. Trabalhei na implantação da folha de pagamento do departamento das minas, trabalhei na implantação de custos nas minas em 1966. Em mil novecentos e sessenta e poucos houve uma grande transformação na Vale nessa área de sistemas, foi implantado um sistema integrado de contabilidade, orçamento e custos, implantado por Antônio Dias Leite, que depois veio a ser presidente da Vale. Passou toda a contabilidade da Vale a ser feita por computador.
Eu participei desse movimento todo. Nessa parte hoje deve estar bem melhor. Depois, com a implantação de micros, isso hoje deve simplificar bem mais, mas foi uma revolução bem grande pra aqueles que trabalharam no passado.
P/1 – Essa folha de pagamento, antes não tinha?
R – O sistema de folha de pagamento em Itabira era feito a mão. Você pegava um a um, quantas horas eram, multiplicava naquela máquina Facit. Você saía com a mão assim todo dia. Depois você batia o envelope. Um sistema muito rudimentar. Dois mil e tantos homens, pra fazer isso era uma loucura. Precisava ter muita dedicação e muita concentração. Apesar de ser tudo repetitivo era muito cansativo.
P/1 – Fazia aquela fila na porta do escritório?
R – Não, fila era no dia do pagamento porque você fazia aquilo com antecedência.
P/2 – Aconteceu algum caso envolvendo pagamento?
R – Não, não conheço caso nenhum. Quando os pagamentos são feitos [de forma] manual, os casos gritantes você detecta na hora. O pior quando é feito por equipamento, você checa o número quando chega para você, ainda mais mandando para o banco. Tem mais possibilidades disso, mas sempre tem alguns testes de inconsistência pra verificar, o sistema tem isso pra fazer.
P/2 – Quando o senhor estava lá, havia um consenso do que representava a Vale para o Brasil? O potencial da Vale como um todo, de todas as operações que ela estava fazendo?
R – A Vale começou mesmo a ter uma repercussão nacional quando ela começou a ter maior nível de produção, na hora que ela começou a expandir, criar a Docenave [Vale do Rio Doce Navegação S.A] para transportar o minério para o exterior, duplicar a ferrovia, concentrar o minério fazer o porto, criar as empresas de pelotização. Foi a partir desse momento que a Vale começou a surgir como uma potência.
P/1 – Este tipo de crescimento da empresa influía no seu trabalho, aumentava a demanda?
R – Aumentava a demanda, porque você tinha na área contábil operações de empréstimos. Você manda fazer relatórios, esses relatórios eram feitos pela área contábil. Compras de equipamentos… O volume de serviço aumenta muito e nós passamos por isso.
P/1 – A Vale emprestava muito, pedia empréstimos?
R – Com recurso do exterior ela fez bastante coisa, o BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento] , o Banco Mundial, Exibank, uns bancos alemães.
P/1 – No período que o senhor estava em Belo Horizonte trabalhou com as coligadas. Quais eram?
R – As coligadas eram Cenibra, Valep, Valefértil - hoje essas duas empresas passaram e pertencem... Não sei se a Vale tem parte nelas. Hoje tem complexo em Uberaba. Floresta Rio Doce, Minas Serra Geral - um monte de empresinhas pequenas.
P/1 – E o senhor cuidava de todas elas?
R – Não, eu dava apoio, implantando sistemas.
P/1 – Uniformizar um pouco?
R – É, e viajava muito. Como eu tinha uma vivência nessa área de implantação de sistema, então: “Vamos fazer uma revisão no sistema integrado da Vale.” Quem era o coordenador era eu. “Vamos fazer um manual de custo.” “Vamos.” Era eu, e não tinha aquela obrigação direta de ter um prazo certo para fazer isto. Não tinha ninguém subordinado, eu estava disponível, então eu era lembrado e precisava preencher meu tempo.
P/2 – Como era o convívio entre os empregados? Eram amigos? Existia uma relação?
R –
[Tanto] em Itabira quanto em Belo Horizonte os empregados dormiam no setor, são amigos fora, um é padrinho do filho do outro. Eu tenho grandes amigos dessa época. Aqui no Rio a mesma coisa, você estava numa cidade grande e você precisava de ter amizade e nós tínhamos. Aqui no Rio nós costumávamos ir ao Arraial do Cabo em grupos de colegas e somos amigos até hoje, [no] final de semana um vai tomar uísque na casa do outro.
P/1 – E a fundação? Por que o senhor foi convidado para a fundação?
R – Tinha duas fundações, a Fundação Vale do Rio Doce e a Vale e eram administradas pela mesma pessoa. As duas funcionavam juntas, a Fundação Vale do Rio Doce cuidando da parte habitacional e a outra na parte de seguridade. E a Vale começou a ter problemas: uns imóveis da Vale não conseguiam vender, não conseguiam regularizar imóveis dela, então surgiu a ideia de colocar essa atividade junto com a Fundação Vale do Rio Doce. A fundação passou a regularizar os imóveis da Vale, administrar os imóveis da Vale.
Nessa ocasião, eles lembraram do meu nome. Eu fui para a Fundação Vale do Rio Doce e fizemos um trabalho muito bom nessa parte de regularização de imóvel. Outra atuação que nós tivemos na fundação: naquela época de inflação, a Vale depositava os fundos de garantia dos empregados e esse dinheiro dos fundos de garantia ficava no banco um grande período, ficava até 45 dias para depois o banco passar isso para o fundo de garantia, então nós começamos a discutir isso internamente lá na fundação, eu e o diretor financeiro. Como nossa atividade era habitacional, se nós conseguíssemos arrumar um bom recurso disso, nós poderíamos financiar imóveis com juros mais baratos e fizemos uma pesquisa já nisso. O Wilson Bruner era o homem do departamento de finanças, conseguimos que a remuneração ficaria para a Fundação Vale do Rio Doce; nós fizemos um apanhado nos bancos e conseguimos ficar com noventa por cento do rendimento que isso dava nesse período que ele ficava. Com isso, pegamos um recurso muito bom para a fundação. Nós sabíamos que tínhamos que aproveitar porque qualquer hora isso acaba.
P/1 – Com ele conseguia financiar?
R – Conseguia financiar e a Vale não precisava colocar recurso na Fundação.
P/1 – Que tipo de critério vocês usavam para financiar casa, como isso era feito?
R – Era feito através de pontuação, critério de tempo de empresa, família, principalmente se pagava aluguel. Numerava esses dados todos e tinha
um...
Tem bastante gente na Vale que hoje tem casa própria, a Vale sempre se preocupou com isso.
P/1 – Sempre foi uma preocupação da Vale?
R – Sempre foi, tanto que que a primeira carteira habitacional da Vale surgiu em 1967.
P/1 – O senhor chegou a comprar alguma casa?
R – Não, cheguei mais a construir do que comprar. (risos)
P/1 – Tinha mais algum benefício da Vale junto aos seus funcionários?
R – Em Itabira você tinha armazém de abastecimento, açougue, tecidos, gêneros e descontavam em tudo. Aquele início da Vale sempre foi de paternalismo, a pessoa não sabia comprar, então tinha esse espírito paternalista.
P/1 – Isso foi diminuindo com o tempo?
R – Foi. A tendência é [a] cada dia ir reduzindo. As pessoas têm que viver com os próprios meios, ninguém precisa dar a mão para o outro nesse ponto, né?
(PAUSA)
P/1 – O senhor ficou na Fundação até...?
R – Eu saí da Fundação em 1984 e aposentei.
P/1 – Por que o senhor aposentou?
R – Achei que estava na hora de sair. Em empresa, chega a hora que você tem que saber quando sair. Depois que você tem que dar a oportunidade para os outros, você fica uma figurinha marcada e então sempre é bom ir tendo essa renovação.
Eu aposentei em 1984, trabalhei na área de mercados capitais como corretor de bolsa um período, fiz uns trabalhos também de consultoria para a Albrasa. Andei fazendo uns trabalhos lá em cima no Norte, depois fiquei um período que eu fui diretor superintendente da… Após Vale, sempre procurando alguma coisa para fazer, não preocupado muitas vezes com remuneração. Depois que a pessoa aposenta precisa preencher o tempo, ter uma atividade.
Depois que fiz esse trabalho para a Albrasa, fiquei um período meio parado, então meu irmão… Tinha um irmão em Itabira, empresário. Ele resolveu se candidatar a prefeito lá e eu me propus a ajudá-lo na campanha, fui ser o coordenador financeiro da campanha dele. Até a gente, que estava num outro ramo… Você chegar num ramo de política, [se] envolver com aquilo é um negócio bem diferente.
Foi uma eleição muito disputada, para você ver que ele ganhou a eleição com 193 votos de frente, então foi muito dura. Ele nunca tinha mexido com política, ele era empresário e chegaram os amigos e convidaram. Eu até falo que política você entra por causa dos amigos e não sai por causa dos inimigos. Nisso ele me chamou para ser o secretário da fazenda, eu voltei para Itabira e fui ser secretário da fazenda.
Nesse espaço que fui para lá, senti que não tinha nada com o Rio de Janeiro. Vendi meu apartamento aqui, comprei outro apartamento em Belo Horizonte, mudei toda a minha vida com essa volta para a origem. Fiquei em Itabira, mas comprei um apartamento em Belo Horizonte, morando em Itabira num apartamento alugado.
Fiz um trabalho até razoável porque temos que organizar a casa, implantar contabilidade, impostos, IPTU. Tudo no computador colocamos, porque a maior dificuldade que tivemos na prefeitura era o seguinte: a prefeitura tinha uma receita boa, mas a coisa mais difícil era pagar em dia, porque era uma burocracia desgraçada então tentamos ajeitar aquilo ali. No final conseguimos pagar em dia, até com desconto. Foi uma coisa diferente, mas valeu a pena.
Nesse período que eu estava no Rio surgiu em Minas a oportunidade. O leiloeiro público é feito através de concurso público com provas de título, e surgiu uma vaga de leiloeiro em Itabira, então me submeti lá. Apresentei meu curriculum, fiz as provas todas de títulos e isso vai para o governador. Para cada vaga é apresentada à Junta Comercial Três, uma lista tríplice e o governador é que escolhe um. Eu me candidatei, por sorte fui o único, então não dei opção para o governador escolher.
Fiquei como leiloeiro público, [atividade] que exerci por algum tempo. Fiz muitos leilões lá em Itabira, principalmente para a Vale do Rio Doce e agora estou desativado na profissão, mas estou ajudando. Nós criamos uma Associação dos Leiloeiros Públicos de Minas Gerais [em] que eu ajudo na diretoria e também estou ajudando para regularizar a profissão de leiloeiro. Tem um projeto que está saindo, um projeto de lei no senado que está regulamentando a profissão, criando conselho federal, conselho regional. Isso está em tramitação no senado, meu irmão está tentando ajudar lá [para] ver se conseguimos regularizar a nossa profissão. Talvez depois disso é capaz de eu voltar, eu não sei.
P/2 – Esses leilões que o senhor fez para a Vale: como eram seus leilões, o que era leiloado?
R – Os leilões da Vale geralmente eram de materiais inservíveis para a Vale: carros, caminhões, tratores, escavadeiras, então equipamentos, sucata em geral. Tudo que era material, móveis, telefone, tudo, a bagulhada. Geralmente eram feitos dois ou três leilões por ano e eram até bem movimentados esses leilões, bastante gente de Belo Horizonte, das cidades vizinhas. Hoje a Vale passou a fazer esses leilões em Belo Horizonte e um número muito pequeno de leilões. A Vale fez uma licitação lá, a última licitação eu perdi porque o concorrente garantia todos os cheques dos compradores e eu não quis garantir.
P/2 – E ele fez bem em garantir, deu certo?
R – Eu não sei. Eu tinha experiência nos leilões, sempre tinha os problemas de receber e o sistema que eu adotava com a Vale era que eu recebia, só tirava minha comissão e o outro cheque a Vale recebia. Como era uma atividade que iria correr riscos, e eu estou numa idade de não mais correr riscos...
P/1 – Como é feito isso no leilão?
R – O leilão é feito o seguinte: primeiro você pega todo material, lista e avalia o valor mínimo. Você faz um catálogo com o material a ser leiloado, distribuído em número de lotes, e cada lote você vai fazer o pregão. “Material assim, em bom estado.” Às vezes você tem uma simulação, porque não aparece ninguém,”Já tenho tanto”, e não tem nada.
P/1 – Quer dizer, tem que ser artista?
R – Não bem artista, senão não dava pra eu fazer (risos), mas é uma atividade que primeiro você tem que preparar mala direta dos cadastros de compradores. Toda vez que vai você faz o cadastro da pessoa e com isso vai acumulando e também através de catálogos telefônicos você vai completando. Por ocasião do leilão, além de você publicar nos jornais de grande circulação, você faz uma mala direta, agora você até já coloca na internet.
P/2 – Voltando um pouquinho. Na época que o senhor voltou para Itabira, que participou da prefeitura, o senhor já estava num órgão executivo se relacionando com a maior companhia atuante em Itabira? Como era essa relação?
R – A relação foi boa porque o meu irmão, o prefeito, ele tinha um relacionamento
muito boa com o superintendente da Vale, que era o Ricardo Ekeshi, e muitas coisas nós conseguimos com a Vale.
P/2 – O que, por exemplo?
R – Com o Ricardo, nós conseguimos… O Distrito Industrial Dois de Itabira foi a Vale que arrumou o dinheiro. Nós tivemos uma diferença nos recolhimentos da Vale para o imposto [de] compensação financeira sobre exploração de minerais, tinha divergência nos números lá. Nós conseguimos entrar em acordo com a Vale. Uma maneira que nós encontramos de resolver isso era entrar na justiça, aí nós fizemos um acordo e recebemos cerca de um milhão de reais, um viaduto indo para o caminho novo debaixo de uma ferrovia, então teve muitas facilidades.
Já estava em negociação e não concretizou, não sei por que… A Câmara não aprovou um empréstimo na época de seis milhões de dólares para fazer uma estação de tratamento de esgoto, com recurso do Banco Mundial e que a Vale iria repassar para a prefeitura com os mesmos juros que ela pagasse, mas acabou que a Câmara não aprovou isso e não foi feito.
P/2 – Durante sua trajetória na Vale, qual foi o acontecimento dentro da companhia que mais marcou o senhor?
R – Você fala sobre o crescimento da Vale?
P/2 – De crescimento e do cotidiano de trabalho.
R – De crescimento, para mim, as coisas mais importantes da Vale foi a criação da Docenave, duplicação da ferrovia, porto e as companhias de pelotização. A Vale, como empresa mineradora, ela se firmou como uma grande empresa, para através disso gerar recursos para implantar em outros projetos. Esse foi um dos passos mais importantes da Vale. Esqueci de falar também da concentração de minério produzido nos anos de 1970 a 1972, em Itabira.
P/2 – E o seu cotidiano de trabalho na empresa?
R – O mais importante para mim foi a minha vinda para o Rio de Janeiro para minha vida profissional. Você sai do interior e vem para uma cidade grande onde você tem que enfrentar os problemas, todos eles sozinhos; problemas familiares, você está mais distante da família. O que marcou mesmo para mim e que eu acho que me amadureceu muito foi essa vinda para Rio.
P/1 – Na prefeitura a Vale dava algum dinheiro para Itabira, como isso funcionava? A prefeitura recebia parte daquela verba RD, RI?
R – RDZRD, Renda de Desenvolvimento da Zona do Rio Doce. Aquela verba era distribuída em função, primeiro em função de Estado. Setenta por cento era o estado de Minas, trinta por cento era para o Estado de Espírito Santo. Da parte que ficava para cada estado, oitenta por cento era pra você aplicar em valores que retornariam, quase como se fosse empréstimo, você emprestava e depois aquilo voltava, e vinte por cento era a fundo perdido, quer dizer, você dava o dinheiro e não recebia. Itabira sempre conseguia alguma coisa para hospital, mas não foi muito dinheiro que conseguiu.
P/1 – Em termos de arrecadação de Itabira, como é que os principais...?
R – A arrecadação de Itabira, grande parcela de arrecadação era do ICMS, distribuição do bolo que o estado recebe e vai para os municípios. Esse bolo é distribuído em função dos valores agregados em cada município.
Itabira tinha uma arrecadação muito boa, era a sexta arrecadação do estado de Minas, tinha compensação financeira sobre a exploração de minerais, o royalty que também… No final, a receita própria, quer dizer de impostos municipais e taxas era muito pequena. A grande parcela eram essas duas, o ICMS, que era maior, era mais de sessenta por cento da arrecadação. Tinha uma arrecadação boa, tem até hoje; era na ordem de cinquenta, sessenta milhões.
P/1 – Quais as principais carências que Itabira tinha e tem, em termos de infraestrutura?
R – A carência é que a parte de saneamento já vai melhorando; [tem] muito córrego, precisa canalizar. Essas canalizações já estão sendo previstas. Aquilo que chamam de emissários, o próprio esgoto já é colocado ali, não joga dentro d’água, então isso já vai sendo encaminhado.
Outra parte é a parte de desemprego que está muito grande, porque em Itabira a população jovem é muito grande. Itabira deve ter mais de trinta mil estudantes, a população deve estar em torno de noventa mil habitantes, praticamente um terço de estudantes. O aposentado ali continua criando família, aposenta novo e na Vale, que era o principal colocador da mão de obra, a Vale vem reduzindo os quadros e vai surgindo mais gente apta no mercado a disputar emprego, então há um problema sério de desemprego em Itabira. Em pesquisas sempre aparece o desemprego, segurança ainda aparece alguma coisa, mas em Itabira ainda é boa. E saúde, você sabe que os números… Pelo que eu conheci, a mortalidade infantil no período que nós estivemos na prefeitura caiu assustadoramente.
P/2 – E tem bastante clínica lá, não tem?
R – Tem.
P/2 – Chega ser até um centro médico?
R – Um pólo da região.
P/2 – A cidade pensa em termos administrativos, a população, em soluções para esse desemprego ou para outras vocações para a cidade, uma vez que a Vale do Rio Doce não está mais dando conta de absorver essa mão de obra?
R – Ocorre o seguinte: na época que estava na prefeitura começou a surgir a implantação de indústrias, a prefeitura financiava indústrias para colocar no distrito industrial.
P/2 – Que era o Distrito Dois?
R – [Distrito] Um, o Distrito Dois não tem nada ainda, é um elefante branco lá ainda. Mas a própria recessão, dificuldades de empresas… Essas empresas não foram para frente. Na época chegou-se a fazer o cálculo, mais de mil empregos que foram dados nesse distrito industrial e hoje tem muita empresa lá praticamente parada, não conseguiram sobreviver, então tem que surgir alguma coisa. A cidade tem que repensar. Um polo educacional para você criar essa parte de educação, sempre isso acaba dando emprego; muita gente circula dentro da cidade, isso pode ser uns dos caminhos. O município nunca pode ficar dependendo de uma coisa só, você tem que ficar pensando em várias coisas ao mesmo tempo, não só na parte industrial, de forma que se amanhã uma entrar na decadência a outra vai suprir.
P/1 – O senhor saiu da prefeitura quando?
R – Eu saí em 1996.
P/1 – O senhor voltou para Belo Horizonte, ficou em Itabira mesmo?
R – Eu voltei para Belo Horizonte e depois meu irmão me chamou para ajudá-lo em uma situação da firma dele, estava com um problema sério financeiro.
P/1 – Outro irmão?
R – O mesmo, esse que era prefeito. Tive lá um período muito duro, a firma estava ruim e não consegui resolver o problema. A situação da firma é precária e ruim mesmo .
P/1 – Firma de quê?
R – De venda de automóveis, concessionária.
P/2 – Falando um pouquinho mais de Itabira, tem uma definição, como é esse povo itabirano? Tem alguns traços que os tornam diferentes, características?
R – O povo itabirano, hoje, você nem sabe se é itabirano mais, porque aquilo foi mesclado. Depois da Vale, pessoas de diversas cidades foram todas para lá a procura de emprego. Um vai porque o outro foi, precisa de um, manda buscar e hoje é uma população originária mesmo de Itabira. Que tem raízes de Itabira não é uma grande parte, você vê que o interior não é empreendedor, o interior nato; os comércios que tem em Itabira são de gente originária praticamente lá da minha terra, Santa Maria, e Itabira precisa de pessoas mais empreendedoras. O itabirano nato mesmo não é empreendedor.
P/1 – Por que isso?
R – Eu não sei, parece que tem alguma coisa até de cultura isso, é uma pessoa mais acomodada. O caso do [Carlos] Drummond de Andrade: você contesta tudo aquilo, não volta mais em Itabira; tinha que voltar, defender o município, fazer isso ou aquilo. Quer dizer, um sujeito acomodado. É o meu pensamento, não adianta você ficar criticando e não fazer nada; acho que você para conseguir as coisas você tem que criticar, apontar soluções e batalhar por aquilo. “A Vale não faz nada, fazer o quê?” Então apresenta um projeto. “Eu apresentei um projeto assim e a Vale não fez” - aí é outra coisa do que não fazer nada.
P/2 – E tem alguma festa, algumas datas comemorativas de Itabira que reúna a cidade?
R – Tem, no mês de outubro é o aniversário da cidade. Sempre tem grandes festividades, semana da comunidade.
P/2 – Tem alguma festa de santo?
R – Tem exposição de agropecuária no mês de agosto, já é tradição ali. Não estou lembrando mais nada.
P/2 – E o fato do Carlos Drummond ter nascido lá, a população é orgulhosa? Comenta-se muito?
R – É orgulhosa, se comenta muito, não deixa de ser um cartão postal para a cidade. “A terra de Drummond”, né? Tanto que tem lá agora na Câmara um projeto de autoria do meu irmão, o Ano Internacional do Drummond, dos cem anos de Drummond. Vamos ver se passa.
P/2 – E os caminhos drumondianos?
R – Os caminhos drumondianos foram feitos pela atual administração. Foi um negócio interessante. Eu não conheço aquele monumento lá em cima, nunca fui lá, porque a ideia no passado era reconstruir a casa, a fazenda do Drummond, a Fazenda Pontal e ainda não saiu essa reconstrução. Ela está toda desmontada, toda marcada, está guardada para ser colocada nos mesmos moldes.
P/2 – O senhor conhece, leu o trabalho de Drummond?
R - Li alguma coisa.
P/2 – Tem algum que te chama mais atenção, que o senhor goste mais?
R – Eu gosto aquele das pedras, eu gosto.
P/2 – Como e que é, fala para gente?
R – Não, eu não sou um artista para declamar isso não. (risos)
P/1 – Se o senhor tivesse que leiloar Itabira, como o senhor faria isto? Anunciar Itabira num pregão, como o senhor faria?
R – Tá difícil.
P/1 – O senhor não faria, não está lembrando?
R – Não estou lembrando.
P/2 – Pensando um pouco na sua trajetória de vida, se o senhor pudesse mudar alguma coisa, o que o senhor mudaria?
R – Acho que não mudaria nada. Acho que aquilo que você faz tem que ser muito consciente e marcou, fez, e esse negócio não tem arrependimento, tá certo? Acho que continuaria do mesmo jeito. Estou satisfeito com a minha vida, trajetória, em tudo. Teria tido vontade de passar dois anos no exterior trabalhando, mas não consegui, a única coisa que eu queria.
P/1 – O senhor tentou?
R – Não, nunca tentei também, eu tô igual a itabirano. (risos)
P/2 – O senhor tem algum grande sonho?
R – Não.
P/2 – E pequeno?
R – Pequeno a gente sempre tem, porque a partir do momento que você não tem sonho… Hoje eu tenho um sonho: eu tive um sítio que agora eu não tenho mais, mas que agora eu vou ter outro sítio, um sonho meu, um local de reunir com a família no final de semana. É o meu sonho. É pequeno, não quero ter sonho grande.
P/1 – Qual é o seu cotidiano hoje?
R – Meu dia a dia é bom, consigo até arrumar atividade. Eu ajudo o meu irmão nessa parte, sempre tenho alguma coisa para fazer em Belo Horizonte, tramitação de um processo que o prefeito pediu, essa coisas que sempre tem. Fazer um lobby aqui, outro ali - eu vou falar para você, herança ainda da prefeitura, problemas ainda de Tribunal de Contas que eu fico olhando, porque você sai da prefeitura mas ainda continua com alguns processos lá.
Tenho um loteamento em Itabira. Vou uma vez por semana em Itabira ver como andam as coisas lá, ver se estão recebendo as prestações direito, se vendeu mais algum lote - ainda falta alguns lotes para vender lá. Estou querendo acabar com isto, porque já é uma coisa de trinta e tantos anos que eu tenho e agora estou querendo finalizar.
P/2 – Do que o senhor sentiu mais falta quando o senhor se aposentou da Vale?
R – Primeiro, da atividade. A pessoa tem que se preparar para a aposentadoria, porque você se sente privado de muitas coisas. Precisava ir ao banco, você manda o contínuo; você não tem mais contínuo, tem que ir lá enfrentar uma fila. Você precisa bater uma cartinha, manda a secretária bater, mas o sujeito… Eu não sou desse tipo, mas o sujeito que tem um determinado status deve sentir a perda do status. Eu não sinto porque eu não parei, sempre estou me movimentando em alguma coisa e acho que a pessoa que parar cai na depressão.
Aposentadoria tem que ser preparada, mas uma das coisas que o sujeito sente é que na aposentadoria… Enquanto você está trabalhando você convive mais com pessoas; na hora que você está aposentado, primeiro que você se afasta, porque você um aposentado o outro teve que fazer. A tendência
é essa, eu nunca voltei na Vale do Rio Doce, porque… Não é porque eu tenho raiva da Vale. Eu sinto saudades de ir lá? Não, eu não vou porque eu acho que ali é lugar de trabalho, mas você sente um pouco a falta das conversas com os colegas, almoço sempre junto com um, com outro. [A] convivência diária [é] que você sente mais, o resto é resto.
P/2 – O senhor acompanhou o processo de privatização da companhia?
R – Se eu acompanhei?
P/2 – Pelos jornais.
R – Acompanhei pelos jornais e só, não fui muito participativo nisso de se integrar. O meu filho… Nunca conversei com ele sobre a privatização.
P/2 – E como o senhor vê esse processo?
R – Privatização, se você for olhar pelo lado social… Você tem que olhar de diversos aspectos. No lado social a privatização foi muito ruim, porque o sócio privado que botou dinheiro lá quer tirar o dele, e como estatal todo dinheiro que praticamente entrava ele era aplicado em novos investimentos e mais empresas iriam surgindo.
O sócio privado quer o dele e está certo, do lado de vantagem, de se tornar um empresa mais ágil, menos burocrática, menos empregados, uma empresa mais competitiva. Mas em compensação, menos emprego.
Se o dinheiro está aí, você vai reinvestindo o dinheiro. Acho que foi muito bom para quem investiu.
P/1 – O que o senhor achou de ter participado desse projeto memória, de ter dado esse depoimento?
R – Acho muito importante essa participação porque você traz aqui uma pessoa que viveu outra época de Vale do Rio Doce. Hoje, o sujeito chega aqui e porque no passado não viram isto ou aquilo o mundo é diferente. Acho que os depoimentos das pessoas são bons para as pessoas saberem das dificuldades que houve no passado, serve como história.
P/2 – Eu queria agradecer, foi ótima a entrevista.Recolher