Museu da Pessoa

"A empresa, no fundo, são os homens"

autoria: Museu da Pessoa personagem: João Carlos Fragoso Linhares

Projeto Memória Vale do Rio Doce
Depoimento de João Carlos Fragoso Linhares
Entrevistado por José Carlos e Claudia Resende
Rio de Janeiro, 30/03/2000
Realização Museu da Pessoa
Entrevista CVRD_HV009
Transcrito por Paulo Esteban Viscaino Prata
Revisado por Ana Calderaro

P/1 – Primeira pergunta é nome completo, data de nascimento e local de nascimento?

R – Meu nome é João Carlos Fragoso Linhares, eu nasci no dia sete de dezembro de 1925 em Florianópolis, Santa Catarina.

P/1 – Os pais do senhor... Os nomes deles.

R – João Linhares, meu pai, engenheiro civil formado no Mackenzie em São Paulo, nascido no dia oito de julho de 1897 em Florianópolis, Santa Catarina. Minha mãe é Maria da Conceição Fragoso Linhares, nascida em doze de fevereiro de 1900, em Florianópolis também.

P/1 – Pai do senhor era engenheiro?

R – Meu pai é formado no Colégio Mackenzie.

P/1 – E nasceu em Florianópolis?

R – Nasceu em Florianópolis e formou-se em São Paulo, no Mackenzie no tempo que o Mackenzie era internato, se estudava interno em 1921. E teve dois empregos na vida. Teve o tempo que ele foi trabalhar na Leopoldina, quando ele

se formou, ele era residente aqui na serra aqui de Petrópolis-Teresópolis, aqui ainda tinha ferrovia. Oito meses depois ele pediu licença pra visitar a noiva dele em Florianópolis, aí eles não deram, ele pediu demissão e foi pra Florianópolis visitar a noiva. Depois ficou sem emprego. Era difícil emprego de engenheiro naquela época, mas meu avô era muito amigo do Lauro Müller, que era Ministro da aviação naquela época, ele mandou uma carta para o

Doutor

Lauro Müller, então ele arranjou emprego para o meu pai na construção da estrada de ferro de Vitória-Minas.

P/1 – Então o pai do senhor foi trabalhar na construção da Vitória-Minas?

R - Exatamente, em 1923. Foi pra ponta da linha na construção, a Vitória-Minas naquela época. Estava onde hoje é a Usiminas, em Ipatinga, e ele chefiou as obras de construção Vitória a Minas até Nova Era, entroncamento com a rede central do Brasil. Morou em Antônio Dias, foi pra onde ele foi, e voltou pra lá para se casar. Casou com minha mãe e voltou para Antônio Dias. Quando estava grávida de oito meses, ela ficou com medo que eu nascesse em Antônio Dias, porque tinha pouco recurso na época, então resolveram voltar para Florianópolis. Eles foram a cavalo até Dom Silvério, minha mãe e meu pai.

P/1 – Ela grávida?

R – Ela, grávida de oito meses, levou um tombo e caiu no chão, não sei como eu nasci. Depois pegou um trem da Leopoldina em Dom Silvério e veio para o Rio. Do Rio pegou um navio da Casae. Meu avô era gerente geral da Casae, era a maior casa de comércio de Santa Catarina naquela época, tinha navios na casa, era muito grande. Foi num naviozinho, navio que chamava-se Ana, é o nome da filha do seu... Foi para São Francisco do Sul, saltou lá e foi de carro para Florianópolis. Ela foi chegando lá e eu fui nascendo, nasci com fórceps, acho que por isso sou meio doido, nasci com fórceps. E fui batizado pelo Cônego Jaime de Barros Câmara, que depois foi cardeal arcebispo do Rio de Janeiro. Dom Jaime de Barros Câmara que me batizou, ele era Cônego lá na igreja de Florianópolis. Um mês e meio depois minha mãe voltou com meu pai para Antônio Dias.

P/1 – Mesmo trajeto, igualmente?

R – Ela voltou de navio até o Rio, aí foi melhor, foi de trem. Depois foi à cavalo porque não tinha outro jeito de ir.

P/1 – Tinha que ser a cavalo?

R – Não, tinha, depois foi de carro demorou três dias para chegar lá, uma doideira. Daí ficou lá. Eu nasci em Florianópolis mas eu fui gerado no lado da linha da Vitória, fui gerado exatamente a cinco metros e meio da linha da Vitória-Minas. Eu no fundo, eu sou mineiro, eu não nasci lá por acaso, eu só fui a Florianópolis depois que me aposentei na Vale.

P/1 – Aí o senhor foi lá conhecer?

R – Fui ver meus primos, meus parentes lá, então eu sou muito mais mineiro que outra coisa.

P/1 – O senhor passou a infância, então, em Antônio Dias?

R – É, Antônio Dias. Aí a construção da linha Vitória-Minas continuou e nós fomos para Calado, hoje Coronel Fabriciano, onde está a Usiminas. Meu pai começou a obra exatamente onde a Usiminas é hoje, a construção da linha. Engenheiro, naquela época, era especialista em topografia, hoje em topografia ninguém fala mais. Tirava aqueles retratos do lado do teodolito com aquela pose assim com a vara segurando. Ele foi para Coronel Fabriciano, em Ipatinga, depois nós fomos morar em Nova Era, em São José da Lagoa, é até o lugar que nasceu o Eliezer. Ficamos lá até 1932. Meu pai era o único que tinha rádio na cidade, era a Revolução de 1930, eu era muito criança ainda, então ele botava o gramofone para fora da janela e todo mundo ouvia a notícia da revolução.

P/1 – Todo mundo da cidade ouvia?

R – Ouviam as notícias, era novidade. Em 1932 ele foi para Vitória, foi trabalhar na Vitória-Minas, nesse intervalo de tempo. Como ele ficou um ano à toa... À toa, não, a obra não prosseguia. O Doutor Pedro Nolasco, que era dono da Vitória-Minas, que era particular, privada, era ele que arranjava dinheiro para construir. Figura interessante o Pedro Nolasco, o fundador da Vitória-Minas. Ele mandou meu pai fazer o projeto da ligação de Dumont à Itabira. Meu pai fez todo o projeto. Hoje é a linha onde passa Vitória-Minas, foi exatamente o projeto que meu pai fez, naquela época ele mandou construir um quilômetro de linha em direção a Itabira para dar indicação de qual era o futuro da Vitória-Minas. Interessante esse...

P/2 – O senhor conviveu com ele?

R – Não, eu era muito pequeno, muito criança. Ele era uma figura interessante, porque ele era romântico aquela época, era muito paternalista. Durante a construção da Vitória-Minas, no começo ainda, no Espírito Santo, ele bateu de olho num baita jequitibá lindo, ele disse: “Não pode derrubar, tem que mandar a estrada fazer a volta em volta do jequitibá e deixar o jequitibá lá. A gente faz uma curva.”

P/1 – Ele mandou fazer a curva?

R – Mandou, uma coisa meio romântica. Ele viajava e, quando ele viajava, ele tinha um trem especial, um carro especial. Tinha uma banheira e ficava dentro da banheira tomando banho. Parava em tudo quanto é estação e ele conhecia todo mundo pelo nome: “Como é que vai, Seu Fulano? Seu sicrano... Sua Senhora…” E dava presente para todo mundo.

P/1 – Dentro da banheira?

R – Dentro da banheira. (risos) Uma figura muito agradável. Em 1932, então, meu pai foi trabalhar na Vitória-Minas.

P/1 – Essas obras da estrada de ferro Vitória-Minas nesse momento a própria construção dela começa no início do século?

R – É construção, exatamente. Meu pai fez a construção da Vitória-Minas desde Ipatinga até Dumond, que é entrocamento.

P/1 – Desbravamento da região?

R – Desbravamento. Naquele lugar morreu muita gente de febre amarela, de impaludismo, aquela época dava muito negócio perigoso, morreu muita gente ali, principalmente em Ipatinga, perto do Rio Piracicaba. Era uma linha precária, era um projeto antigo, mas meu pai era um engenheiro interessante, era realmente engenheiro. Naquela época ele calculou sozinho, sem régua de cálculo, sem maquininha elétrica, na mão. Naquela época não tinha nada, a ponte sobre o Rio Brocotó, que era a ponte da Vitória-Minas, ele calculou a ponte com estrutura metálica, mandou o cálculo para a Inglaterra, a Inglaterra fabricou a ponte e mandaram para nós. Ele montou a ponte, essa ponte existia até a fase de variante, que baipassou essa região, variante de

Sá Carvalho como se chama.

P/1 – A ponte foi implodida?

R – Foi baipassada ficou fora da circulação. Depois nós fomos para Vitória e ele foi trabalhar na Vitória-Minas. Ele era chefe de manutenção de locomotiva de vagões lá. Eu, em 1947, vim para o

Rio de Janeiro, fiz o científico no Colégio Andes, aqui em Botafogo, e depois fiz vestibular na Escola de Engenharia Nacional aqui no Largo São Francisco, antiga Escola de Engenharia, escola federal, a famosa. Era a melhor escola do Brasil, aqui e a USP, de São Paulo.

P/1 – O senhor tem lembranças da infância da ferrovia?

R – Lembranças? Tenho, tenho lembrança de Itabira virgem. Eu tenho retrato no carro eu, meu irmão e meu pai, com o Cauê virgem. O Pico do Cauê era o início da Lavra de Minas, que é da Vale. O Cauê era um aberração biológica, era uma riqueza incrível por causa da qualidade do minério. Eu tenho retrato do Cauê virgem ainda.

P/1 – O senhor tem o retrato?

R – Tenho, não sei onde está mas tenho. E quando a Vale começou a exportar minério, o transporte vinha de caminhão de Itabira até Dumond. Ali é que embarcava na Vitória-Minas. Depois foi feita a linha até Itabira, mas eu vim aqui estudar, fiz vestibular, perdi um ano de vestibular. Meu irmão aí me pegou, nós fizemos juntos o curso de engenheiro, Engenharia Civil. Me formei em 1951 e ele foi trabalhar na Vitória-Minas. Eu não quis ir por causa do meu pai, eu fiquei preocupado de trabalhar, não quis ir. O Juracy Magalhães que era o presidente da Vale, na época. Isso já foi em 1951. Aí fui para a Acesita, onde eu comecei a trabalhar antes de eu fazer vestibular, era desenhista. Eu estudava e trabalhava. Quando me formei, o Doutor (____________), que era um dos diretores da Acesita, me convidou para ir para a Usina em Coronel Fabriciano, ali perto dele, Timóteo, hoje. E eu fui, porque eles me davam casa e eu queria casar.

P/1 – O senhor queria casar?

R – Queria casar, fiquei noivo em 1949. Ainda era estudante quando fiquei noivo da minha esposa. Eu quis casar, aí ele me deu casa. Eu fui lá trabalhar na Acesita até 1955. Em 1955 era (__________) da Cunha que era o superintendente da Vitória-Minas, homem ligado ao Juracy. Insistiu para que eu fosse trabalhar na Vitória-Minas, aí eu fui. Fui para ser chefe do movimento e cheguei lá chefe.

P/1- O senhor já foi como chefe?

R – Chefe do movimento, que era alvo importante.

P/2 – Como era esse cargo?

R – Tinha que comandar a circulação toda de trem, quem manobrava todos os trens, quem operava os trens... Era o movimento. Ele que dava, licenciava, mandava ter prioridade, embarca aqui, desembarca ali, compunha os trens, mandava na circulação. Quem manda na ferrovia é o chefe do movimento, não é nem o diretor, nem o superintendente, nem o presidente, nem o presidente da república, nem ninguém. É o chefe do movimento. Era um cargo interessante, eu relutei muito em ir para lá por causa do meu pai, porque meu pai era chefe da manutenção de veículo, mas a minha função era muito diferente da dele.

P/1 – Com o nascimento da Vale do Rio Doce, o pai do senhor continuou trabalhando?

R – Meu pai aposentou em 1975. Ele trabalhou 52 anos na Vale, ele é o mais antigo, ele e o Doutor João Beleza, que foi superintendente da estrada muitos anos. Alguém deve ter falado no Doutor Beleza, era um homem extraordinário, ele se aposentou com 56 anos, e depois meu pai, com 52. Isso é ter um emprego na vida.

P/1 – Um emprego para a vida toda!

R – Eu, praticamente, só tive um emprego. Em 1955 eu fui trabalhar na Vale, porque é interior. Eu já tinha dois filhos, eu gostava de ferrovia, acho que estava no sangue, eu nasci lá.

P/1 – A engenharia para o senhor foi uma escolha natural?

R – Foi, eu não fiz teste psicotécnico, fiz coisa nenhuma, eu cheguei à conclusão de que queria ser engenheiro, foi naturalmente. Nunca me passou na cabeça que eu fosse outra coisa, nunca tive dúvida. Hoje em dia a meninada tem dúvida, meu neto vive me perguntando: “Vô, o que eu vou ser?” Meu filho é engenheiro também.

P/2 – O senhor tinha contato com o trabalho do seu pai na ferrovia?

R – Tinha. De vez em quando eu viajava com ele. Eu ia à muitas oficinas, oficina de manutenção e reparação de locomotivas à vapor. Naquele tempo só existia locomotiva à vapor, viajei muito em locomotiva à vapor. Sempre vivi no meio ferroviário. Morava numa casa da Vitória-Minas. Rodas ferrovias brasileiras foram todas formadas pela metade a linha inglesa, tinham nome inglês: Leopoldina Railway, Great West... E o inglês era formalíssimo e tinha certas condições. Determinadas funções tinha a casa da empresa, casa mesmo, a gente fazia uma casa, não era casa alugada, era casa mesmo.

P/1 – Construía a casa?

R – Meu pai morou muito tempo em uma casa em Porto Velho, que era região onde tinha manutenção, e eu morei lá muitos anos. Depois eu vim morar lá quando eu entrei na Vitória-Minas, na mesma casa onde eu morava menino.

P/1 – Na mesma casa?

R – É, voltei.

P/1 – Mas o pai do senhor já não morava ali?

R – Não, meu pai já morava na cidade, na praia. Ele não ficou muito tempo lá porque era meio isolado. Quando eu fui trabalhar na Vale, eu tinha direito à casa pela função que eu tinha. Eu morei na casa da Vale que era a casa onde eu morei menino. A minha vida se confunde muito com a Vale, praticamente eu tive só esse emprego também.

P/1 – E esse período da Acesita, era a primeira formação da Acesita, não era?

R – Foi, eu vivi o começo da Acesita. Eu fui chefe de obras, depois chefe de serviços gerais. Tudo que não fosse parte siderúrgica, eu chefiava na Acesita. Depois, com o tempo, insistiram que eu fosse para a Vitória-Minas, e eu acabei indo.

P/1 – Era o destino mesmo.

R – Acho que sim.

P/1 – E quando o senhor chegou na Vitória-Minas, havia muita diferença daquela Vitória-Minas do seu pai?

R – Não, havia tanta, não. Quando cheguei, o Eliezer já trabalhava lá, era chefe da via permanente e eu era chefe do movimento. A função era um pouco colidente, porque ele queria interromper a linha para fazer obra e eu queria que não tivesse interrupção para os trens andarem, era coisa era meio parecida. Porque a Vale foi formada em cima da mentalidade da Vitória-Minas. Ela que deu, imprimiu caráter, uma linguagem um pouco católica, a formação mental, estrutural, disciplinar... O inglês implantou muita disciplina, porque o avião é uma estrutura muito hierarquizada, militar, então você tem o chefe, o chefe manda e acabou. E o funcionário cumpre, não discute muito. E assim era a Vitória-Minas também. Aí é interessante, toda ferrovia brasileira, todas as cartas são feitas na segunda pessoa do plural: vossa carta, vós deveis. Então você vê aquele pessoal semi-alfabetizado fazendo comunicações na segunda pessoa do plural. Comunico-vos que...

P/1 – Deveria sair coisas engraçadíssimas.

R – Sai um monte de besteira. (risos) Então essa mentalidade de respeito hierárquico e de honestidade profissional imprimiu muito na Vale, começo da Vale. E isso foi muito importante para a formação mental e profissional do pessoal da Vale.

P/1 – Isso marcou as próximas gerações?

R – Marcou, principalmente quem veio de lá. Neste caso, o Eliezer e eu, que nós viemos da estrada de ferro. O Mascarenhas e o Marcos trabalhava lá em Vitória, mas na parte de obras, nunca trabalhava na estrada de ferro, e isso marcou muito o início de formação da Vale. Formação que eu digo, no sentido do pulo que ela deu, ela deu um pulo, de repente ela aflorou.

P/1 – E o pessoal da mina, Senhor Linhares?

R – Da mina era diferente. Naquela época, quem trabalhava na estrada não conhecia mina, e quem conhecia a mina não trabalhava na estrada, era outro tipo de gente, engenheiro de mina formado em Ouro Preto, a maior parte de Ouro Preto. O Esquetini não, ele foi formado em Belo Horizonte. Ele era meio contra aquele botequim fechado naquele pessoal de Ouro Preto. E tinha outra formação de biologia, de pesquisa. Mas depois nós fomos nos entrosando. Depois, quando foi criada a estrutura da Vale, logo depois que o Eliezer veio para a presidência, por causa da estrutura muito bem feita pelo Kafuri, Jorge Kafuri, que criou as superintendências gerais da Vale, uma estrutura bem concebida e que deu forma a Vale. A Vale não tinha estrutura nenhuma aqui no Rio, também adiantando um pouco a sorte, mas a estrutura era precária, então a Vitória-Minas era uma ferrovia muito complexa, muito difícil, com condições técnicas muito ruim, pouco dinheiro, pouco transporte também. Dava muita madeira porque, na época, o Vale do Rio Doce era rico em floresta. Hoje é um deserto. Madeira... O principal transporte da Vitória-Minas nessa época era madeira, como é hoje Rondônia. Rondônia é a maior produtora de madeira porque lá ainda tá na mata amazônica, região amazônica. Daqui a pouco ela vai estar destruída também, aí eles vão para outro canto. De Rondônia saem milhões de toneladas de madeiras por ano. E a Vale do Rio Doce nessa época era madeira, não tinha minério ainda, não tinha transporte, mas a Vitória-Minas era uma ferrovia complexa, difícil de sobreviver. Em 1942 o governo teve um clique, um flash de inteligência. O governo tem clique. Ele funciona assim: dá um chilique nele de inteligente, depois ele cai no normal, porque ele não é inteligente. Então, em um desses cliques de genialidade do governo, criou-se a Vale do Rio Doce. Por isso é um clique de gênio. Porque sem sentir, sem ser de propósito, o governo criou a Vale do Rio Doce, anexou a Vitória-Minas à Vale, anexou as minas de Itabira que eram concessões que o governo tomou do Percival Farquhar, que era um americano conhecido aqui no Brasil. E o coitado do velho morreu pobre aqui, acabou com o dinheiro dele todo, daí ele foi para Madeira-Mamoré, fracassou. Agora é borracha. Foi um dos fundadores da Acesita. Ele era um homem interessante, mas acabou. Mas metia o pau nele aqui, porque era capital americano, aquelas coisas. Eu conheci ele pessoalmente, já com noventa anos, nem levantava a perna mais porque não tinha mais força. Mas ele quis fazer Itabira para exportar minério, e o Artur Bernardes, que era um nacionalista ferrenho, não deixou, acabou encampando as minas que tinha requerido a reserva, a ponta do quadrado. Então o governo, quando criou a Vale, anexou Vitória a Minas, as minas de Itabira que ele vendou simbolicamente por um dólar para Vale do Rio Doce recém criada, autorizou a Vale aqui a fazer um porto aqui em Vitória e autorizou ela a comercializar o minério de ferro no exterior. Ele criou o que eu chamo de um sistema integrado, em que você tem a produção na sua mão, a ferrovia na sua mão, o porto na sua mão, o mercado diante de você, isso que deu escala à Vale.

P/1 – Esse sistema integrado já nasce aí na própria...

R – Nasceu na criação dela, sem querer, pelo governo. Eu duvido que o governo tivesse pensado. E deu a Vale condições dela crescer, mas ela só cresceu porque tinha o Eliezer como cabeça, porque o Eliezer realmente foi o homem que deu escala a Vale. Ele criou algumas medidas de uma cabeça privilegiada que ele sempre teve, deu duas escalas à Vale. A primeira, de ter contato com os japoneses. Nessa ocasião... Eu entrei na Vale em 1955, ele entrou antes de mim, em 1949, nós tínhamos muito contato, nós dois trabalhávamos na Vitória-Minas. Ainda na Vitória-Minas, nós começamos a mandar na Vale, porque na Vale, aqui no Rio de Janeiro, tinha muito pouca gente e não tinha ninguém criativo nesse ponto. E o Eliezer criava. A questão, por exemplo, de propor à Belgo-Mineira exportar minério de ferro pelo Vale do Rio Doce em vez de sair pelo Pará como ela queria. Pelo menos eu estive conversando com o Doutor Francisco Pinto, que era diretor da Belgo. Eu fui lá para fazer essa proposta pra eles e ele não acreditou, ele achou nós éramos doidos. Então nós nos comprometemos a construir o ramal, onde era Vitória-Minas até lá, Fazenda Alegria, na região da área de mineração da Belgo-Mineira, na época. E eles fizeram um acordo assinado conosco, o Eliezer assinou pela Vale, isso foi em 1961, logo que ele assumiu a presidência. Quando o Jânio Quadros veio, o Jânio é que levou ele para presidência, eu não conhecia o Eliezer. O João Agripino foi nomeado Ministro de Minas e Energia do governo Jânio, era um homem interessante, homem sério, não entendia nada de mina mas era sério. Resolveu fazer uma visita a Vitória-Minas, à Vale, na segunda-feira de Carnaval. Aí eu recebi o aviso em Vitória. Eu me lembro que o Doutor Beleza era assistente da superintendência. Nós recebemos João Agripino, fomos mostrar pra ele a oficina, muito precária ainda. Passei um trenzinho vagabundo pra ele ver mas ele gostou. Eliezer falava bem, começou a descrever uma série de tipos de madeira de dormente, falava tudo em latim. O homem se impressionou e ficou fã do Eliezer. Voltou para Brasília e, um dia, eu estava com o Eliezer na sala dele, quando ele pintou e convidou o Eliezer para ser Presidente da Vale. Ele quase desmaiou na cadeira. Fui com ele lá, eu, ele e o Mascarenhas. Ele assumiu a Vale, então começamos a sair pra solução. Quer dizer, da cabeça do Eliezer saiu a solução da criação da SAMITRI, que foi a associação da Vale com a Belgo-Mineira.

P/1 – Que ela carregava minério...

R – Era, nós tínhamos um contrato complexo, era um contrato que você transportava minério e, em contrapartida, a cada tonelada que ela exportava, nós tínhamos uma tonelada comprada dela por um preço menor, para impedir que ela competisse no mesmo mercado conosco.

P/1 – Isso somava as vendas da Vale.

R – Somava as vendas da Vale, somava as vendas da SAMITRI. E nós ganhávamos com o transporte. Depois fizemos contato com a Ferteco. A Ferteco era um grupo alemão que tinha mina em fábrica, que ficava no Vale do (________). Então nós fomos lá pegar a mina. Foi quando nós fizemos o ramal de fábrica, que corta a serra geral toda. Obra cara, complicada, cheia de túneis, viadutos... E passamos a peteca para o Vale do Rio Doce também. Foi da cabeça do Eliezer que saiu a questão de fazer acordo com os japoneses. Os primeiros contatos de minério de ferro que deram escala à Vale. Os japoneses ajudaram a Vale em tudo que ela fez: exportação de minério, na bauxita, na exploração do alumínio, madeira, celulose. O primeiro contrato com o Japão foi maior que toda exportação que a Vale fazia na época. Discussão interessante. Em 1961 ainda, quando apareceu mais o Roni. Nessa época, o Eliezer, eu, o Mascarenhas e o Marcos, nós tomamos conta do Rio de Janeiro.

P/1 – Para assumir?

R – Não tinha ninguém. Não foi invasão, não. Não foi coisa violenta. Ele era o Presidente, eu me saí da estrada na época, fiquei chefiando a Vitória-Minas. Eu, de chefe movimento, depois fui promovido a chefe de transporte. Eu era chefe da parte toda de operação e transporte e, logo em seguida, Superintendente Adjunto, tendo o Doutor Bezerra como Superintendente. Mas quem atuava, de fato, executivamente, era eu. Ele foi para Presidência, e eu fiquei lá. O Mascarenhas veio com ele, o Marcos veio com ele. O Marcos foi nomeado Superintendente de Obras. E quando houve a estrutura do cargo, porque a diretoria aprovou, criou a Superintendências Gerais, e eu vim ser o Superintendente Geral de Operações. Aí eu vim para o Rio, morar no Rio, em 1962.

P/1 – O que significa, exatamente, essa mudança do Doutor Kafuri ?

R – Ele criou uma estrutura muito bem bolada, ao meu entender. Ele tinha áreas de Superintendências ligadas diretamente à Presidência. A Diretoria não tinha nenhuma função executiva. Tinha uma diretoria de pessoas, tinham muitas ligações com o tipo de... E mais política, não era, propriamente, “fritar bolinho”. A área executiva era toda ligada a Superintendência do Presidente, então eu fui nomeado Superintendente Geral de Operações, o primeiro fui eu. O Roni foi nomeado Superintendente Geral Jurídico; o Carlos Pereira Neto foi nomeado Superintendente Geral do Patrimônio, que era quem fazia compras; o Lauro Marinho foi Superintendente Geral de Finanças; e tinha outro Superintendente de Controle, que eu não me lembro quem era.

P/1 – Não foi o Pitella?

R – Não foi o Pitella, não. Ou foi o Pitella? Acho que foi o Pitella. E o Superintendente de Desenvolvimento foi o Marcos, que englobava o departamento de obras. E esses eram os executivos da Vale com o Eliezer presidente. E a revolução começou aí. Revolução, que eu digo, é no sentido de dar escala diferente à empresa. A criação dos acordos com o Japão foram feitos depois. O Mascarenhas e o Marcos foram ao Japão pela primeira vez. Depois os japoneses vieram aqui e nós tivemos uma reunião histórica com eles lá na Avenida Rio Branco, um monte de japonês. Inclusive, eles são especialista em navios, em operações marítimas. Estavam na reunião o Roni, eu, Mascarenhas e o Marcos. O Eliezer não comparecia nisto, não. Os japoneses queriam fazer navio grande e nós aceitamos. Eles levaram um susto. Tivemos que mudar o porto de lugar. Em vez de fazer em Capuava, que era a ideia original, que era perto do porto de Vitória, nós fomos para Tubarão.

P/1 – A ideia era construir o porto em...?

R – Em Capuava, na saída da baía de Vitória. Mas com essa escala de navio não dava, porque não existia navio desse tipo, desse tamanho. E na reunião o Roni falando e o Paulo achando que era o intérprete traduzindo. O japonês é muito bom por isto, porque você fala em português, ele ouve e passa para o japonês. O japonês ouve, responde para o intérprete e ele traduz para o português. Entre um falar e o outro é um tempo danado, dá para você raciocinar. Aí alguém falou para o Roni: “Sugere que a metade da exportação seja em termo CIF [Cost, Insurance and Freight].” Quer dizer, transporte por nossa conta.

P/2 – Mas, quem propôs isso?

R – Nós. Aí o Roni chegou nos japoneses. Eram seis milhões de toneladas, nós estamos exportando dois. Nós propusemos o seguinte: “Metade FOB e metade CIF.” Quando ele propôs isso, os japoneses levantaram e foram embora. “Nós fizemos besteira.” Mas aí tivemos que manter e mantivemos, e o japonês concordou. Foi aí a origem da Docevale, ela foi criada por causa deste contrato.




P/2 - Do CIF e do FOB.

R – Por causa da parcela CIF, se não me engano era o preço de nove dólares a tonelada do transporte. E o japonês honrou tudo, quando o frete era três, eles mantiveram os nove. Japonês é muito bacana nessa coisa, ele custa para decidir mas, quando decide, é para valer. E negociação com japonês é um teatro, o que você conversa com ele não vale no meio de todo mundo, o que vale é a conversa depois. Fica um japonês de cá e outro de lá, como intérprete. Eu peço dez, você diz que é muito. Passa para nove, eu digo que é pouco. Então fica no nove e meio, combinado! Combinado. Então vão para a mesa e fazem aquele teatro todo. Assim que é a negociação, eles evitam o choque da discussão. Porque o japonês, por formação, não aceita que você diga que ele está mentindo. Se você disser isso, ele vai na sala ao lado e faz o harakiri ali, na hora. (risos) Então ele não aceita, você tem que salvar a face. E não adianta você se meter muito a entendedor, você leva na cabeça. Uma vez eu estava lá no Japão com o Élder, era o Superintendente de pallet, durante muitos anos. Aí eu disse: “Não discuta, eles estão reclamando da qualidade do pallet. Você aceita, diz que vai estudar, não discuta.” O Élder se entusiasmou. Quer dizer, eu e o Donato, do lado dez japoneses com intérprete, tudo técnico. A qualidade do pallet está ruim porque... Aí o Elder: “Segundo Gauss, a curva Gauss…” Aquela campanha de Gauss. Pra quê ele foi dizer isso. O japonês falou: “Está interrompida a reunião.” Eles cochicharam entre eles e saíram. Aí um japonês desse tamanho assim, parecia um pintinho saído do ovo com a cabeça toda molhada, sentou na cadeirinha dele, quase subiu na mesa, virou para o Elder e disse: “Gauss é comigo.” (risos) Aí deu uma aula de curva de Gauss. “Tá vendo onde vocês foram se meter.” (risos) A vantagem que o brasileiro tem é que ele se adapta a qualquer negociação. Com o japonês é outra, com o americano é outra, com alemão é outra. O hindu, por exemplo, não entendia, como o americano. Americano odeia japonês, porque o americano é straightforward. Quer dizer, o negócio dele é direto e o japonês nunca é direto, ele sempre contorna. Os hindus também não entendiam, iam lá negociar e com qualquer besteira eles criavam caso e iam embora. Iam para o hotel, arrumavam a mala, iam para o aeroporto e ficavam escondidos lá. (risos) Depois voltavam. E os japoneses sabiam disso! (risos)

P/2 – O senhor participou de negociações com vários países?

R – De vários Países. A discussão eram completamente diferente, com americanos era direto.

P/2 – Mas o senhor participava de todas essas?

R – Participava, porque a operação, quem dava a palavra final sobre a tonelagem e do tipo de minério... Como tinha muitos tipos, a minha palavra, quando eu ia... Às vezes eu mandava o Esquetini, mas ela era definitiva em termos de concordar, e nós concordamos com muita doideira. Eu me lembro do Doutor Oscar Oliveira, ele era Presidente, esteve na Itália e telefonou pra mim. Eu ainda estava na estrada nessa época e disse: “Eu estou aqui com a Italsider, estatal italiana. Eles estão querendo comprar dois milhões de toneladas de minério que eles chamam de pebble.” Aí eu disse: “O que é pebble? Eu não sei o que é.” “É minério de zero a duas polegadas com 10% de...” Pode topar que nós vendemos, eu não sabia de nada, ele topou. Aí tivemos que armar um sistema de peneiramento, bitola secundária, botar para separar e vendemos.

P/2 – E atrás, em busca dessa tecnologia, aprendizado, execução... Quer dizer, dava um jeito de se virar e resolver?

R – Eu sempre parti do princípio que você tinha que aceitar as coisas e depois resolver. Se fosse estudar muito, você perdia muita coisa. Agora, o que de fato deu escala e segurança, porque esse sistema integrado, ele tem que ser confiável, a primeira coisa que você faz quando exporta alguma coisa é ser confiável, a confiabilidade é básica. Para você ser confiável, você precisa ter um sistema integrado na mão, tem que comandar o sistema inteiro, você não pode responder pelos outros. E como o governo deu aquele tal de chilique de genialidade e deu à Vale essa estrutura, nós podíamos responder por aquilo que nós dizíamos, porque nós tínhamos tudo nas nossas mãos. Ao contrário da Rede, por exemplo, que produzia o minério da Usina dela, tinha o porto dela, mas não tinha ferrovia, então ela não tinha a mesma confiabilidade que nós. O crescimento da Vale se deve a isso, de ela aceitar o que surgia, dela pressionar a área comercial muitas vezes para vender mais, e do fato dela ter resolvido o problema técnico de operação da ferrovia, porque a ferrovia era um elo fraco do sistema.

P/1 – A ferrovia era o fraco do sistema?

R – Era, porque era o mais sujeito a fracasso, atrasos, tempo grande de viagem, sujeito a descarrilar... então você tinha que ter uma linha boa. E o começo da evolução tecnológico também foi feito do Eliezer, quando ele era chefe da via permanente. Ele mudou toda a estrutura de via permanente da Vale. Então, quando eu entrei para análise para fazer estudo de trem longos em bitola de um metro, nós tínhamos uma linha de primeira qualidade feita por ela. Se você não tiver boa qualidade de linha permanente, você não opera, você cai, é o que está acontecendo hoje com a Fepasa, a Ferro Oeste, que está sofrendo isso na carne. Ela opera muito bem na linha dela e quando chega na linha da Fepasa, os trens tombam. Então você fica sem confiabilidade para dizer: “Eu entrego o que eu vendo.” Confiabilidade é básica nesse sistema e para isto você precisa ter o comando operativo. Isso que a Rede nunca teve, porque a ferrovia não é bom negócio, é um negócio de retorno longo e rentabilidade complexa. Então você tem que ter estrutura, você tem que participar da venda. A Vale ganha dinheiro não é propriamente transportando, mas exportando minério. Ela ganha na exportação.

P/1 – E o custo do transporte tem que ser cada vez menor?

R – É porque você tem volume, porque a ferrovia tem um custo fixo muito alto, 75% do custo total é fixo. Passe ou não passe você tem aquela despesa. Uma via de estação está lá ganhando o dinheiro dela, tanto faz passar um trem ou vinte trens, ela ganha a mesma coisa. A economia de escala é básica em ferrovia e pra isso você precisa ter volume, e a Vale tem volume porque tem o minério. Então, quando você fala em transporte de carga geral, que é o outro mundo de transporte que você tem pela frente, você tem que ter escala. Com uma maior economia de escala, ela pode fazer um frete baixo e o caminhão não compete com ela em lugar nenhum. Isso de dizer que o caminhão é competitivo acima de quinhentos quilômetros. Abaixo de quinhentos quilômetros isso é conversa fiada. Na Vale do Rio Doce não há caminhão que compita com ela nem a dez quilômetros de distância e por isso que lá não existe rodovia. Ao contrário de São Paulo, que fez aquele mundo de rodovias, fora os problemas marginais de empreiteiras que faziam coisas que... Aquelas jogadas que Dona Nicéia anda falando muito aí agora. São Paulo, fez todas as grandes rodovias, que são rodovias de primeiro mundo em São Paulo: Bandeirantes, Anhanguera, Imigrantes... Paralelas às linhas da Fepasa, que a Fepasa sempre foi um rotundo fracasso. A Fepasa, com quinze a vinte mil empregados, nunca transportou mais do que 4% da produção paulista de serviço. É sempre a marginal. E quem comprou a Fepasa, comprou um monte de sucata, uma enxada destruída, sem linha, sem vagão, sem locomotiva, sem coisa nenhuma. Aí, para você recompor isso, é uma loucura. Quem comprou isso está assustado, porque uma locomotiva nova custa um milhão e meio de dólares, no mínimo. Um vagão novo custa oitenta mil dólares, como ela faz? E o que ela tem para transportar? O governo teve o tal chilique de genialidade com a Vale e esqueceu de ter o mesmo com os outros. Eu cansei de discutir com o Staner, quando era Presidente da Rede: “Por que você não propõe ao governo que tenha um porto para você, e você se meta na exportação do minério? Porque a Vale só pode fazer isso.” Você ganhar dinheiro com transporte de ferrovia é muito difícil. No fundo, o que aconteceu com a Vale foi isso. A criatividade do Eliezer nessa grandes passadas na escala da empresa, junto com algumas pessoas de confiança com grande capacidade executiva como o Roni, o Mascarenhas, eu me incluo. Porque essa questão de falsa modéstia é besteira. Um dia estava eu, o Roni e o Mascarenhas, e o Mascarenhas disse assim: “Nós todos vamos sair, menos você.” “Por quê?” “Porque você não fala.” E eu não falo mesmo. A primeira vez que eu to falando é aqui, depois de vinte anos de ter aposentado da Vale. Mas em 1964 cometeram uma injustiça, tiraram o Eliezer da Presidência da Vale. Aquele ranço, algumas pessoas com raiva, inimigos... Inventaram uma porção de mentiras sobre ele.

P/1 – Ele tinha muitos inimigos?

R – Tinha alguns violentos, algumas pessoas que tinham inveja, tinha alguns políticos. É o tal negócio. Você nunca pára, mas perdoa os sucessos dos outros, isso é humano, e ele foi tirado injustamente da Presidência da Vale. Isso criou uma comoção grande, ele teve um choque grande também, mas nós tentamos. Eu estive um vez com o General Afonso de Albuquerque e Lima, que era um dos chefes da revolução, meu amigo. Fui com o Pagana, o Pagana era o Coronel do Exército. Pagana trabalhava com o Hélio e era muito amigo do General Afonso. Pra ver se eu podia não tirar o Eliezer. E outros tentaram, mas não houve possibilidades, diziam que a revolução era pra valer, que ele já tinha sido Ministro do Jango. Mas ele foi Ministro do por ser, porque nunca quis, nunca pediu nada. O Jango chamou e ele não teve jeito de recusar. E ele saiu injustamente, mas a Vale viveu sem ele durante muito tempo. Ela já tinha criado essa perspectiva de se estruturar, as ideias ficaram e nós tornamos essas ideias objetivas. Tanto que esse crescimento da Vale de 1964 a 1974, que foram os anos de ouro da Vale, saltou de seis milhões de toneladas de exportação para 46, em dez anos. A ferrovia cresceu em vinte milhões de toneladas de um ano para o outro. Uma vez estava na Austrália quando esse diretor de mineração me disse que só produzia dois tipos de minério. Eu disse que nós fazíamos 21. “Como é que o senhor não tem cabelo branco.” “Não tenho porque acho que é a posição política certa é essa, e é por isso que vocês não conseguem nos pegar, não tem condição, porque nós vendemos que aparecer, damos um jeito.” E demos. Eu fui almoçar com um dos diretores da Colônia Sugar, ele virou pra mim: “O senhor quer saber porque a sua empresa é imbatível?” “Eu não sabia que a minha empresa era imbatível?” “Porque o mês passado eu voltei de uma reunião de acionista em Londres, da nossa empresa. Nós ficamos quinze dias debatendo o aumento de um milhão de toneladas de produção e exportação em um ano, e enquanto nós estávamos debatendo, vocês aumentaram vinte. Num ano só.” Aí eu entendi que, no fundo, o poder de decisão que nós tínhamos era incrível. Você decidia aumentar a venda de dez milhões de toneladas, mandava comprar vagão e locomotiva. O Carlos Neto Carvalho, a atitude corajosa dele. A gente dizia: “Compra dois mil vagões.” Ele comprava. Agora, pra você fazer isto e passar em branco, é preciso ter uma

estrutura mental e pessoal muito grande para você passar em branco nessas coisas e sair com uma mão na frente e uma atrás. Isso que fez a Vale crescer.

P/1 – Porque se tivesse que mexer em toda estrutura para atender um pedido, isso era feito?

R- Não, porque a rotina, por exemplo... Hoje, essas empresas que privatizaram as ferrovias não fazem isso, porque isso é um ato de coragem. Pouca gente poderia fazer e nós fizemos. O crescimento da Vale foi estúpido nesse período, as decisões eram nossas. Por exemplo, a decisão de duplicar a ferrovia, fui eu que tomei, como se toma um chefe de operação, depois diretor. Porque duplicar? Porque a Vale ia passar de 45 milhões de toneladas por ano. O limite de capacidade da linha já era limitada a um metro, ela era de 45, então nós decidimos duplicar.

P/2 – Em que ano isso?

R – Em 1973, 1974. Investimos 250 milhões de dólares nessa duplicação, porque essa duplicação foi feita em operação, com a ferrovia operando cinquenta milhões de toneladas por ano de transporte, duplicando. E a duplicação deu escala, passou de 45 para 130 milhões de capacidade. Essa abertura, esse boqueirão aberto pela tecnologia que nós realizamos na ferrovia deu escala à Vale juntamente com a qualidade de minério de Itabira.

P/1 – Quais são as prioridades principais e soluções tecnológicas para a ferrovia operar?

R – A questão da bitola é uma questão de sobrevivência. Eu contei que o Renato fez, que foi presidente da Rede, homem conhecido no campo ferroviário. Ele me disse, quando nós começamos a trabalhar para fazer trem longo de bitola de um metro, ele me chamou de doido e me disse que aquilo era Rebouças. Rebouças é nome de túnel aqui, o primeiro estudo da locomotiva, primeiro estudo dos freios. A manutenção de freio de trem estava precaríssima, havia perda de carga, termo técnico. Mas eu falo pra vocês pra tentar ser didático. Você tinha muita perda de carga de lado, devido ao vazamento de ar. Porque o trem é a ar comprimido, você injeta ar comprimido no freio e, quando você solta, ele trava a roda e pára o vagão. Então é o vazamento, ele para o trem sem o maquinista operar. Eu tive atitudes erradas com muitos maquinistas que eu puni, supondo que ele tivesse soltado o trem. E não era ele, era vazamento de perda de carga. Então eu fui à Paulista. Naquele tempo a Paulista era um modelo de ferrovia e tinha a melhor oficina de ferrovia no Brasil. Fui lá e tirei todo mundo de lá. Os nove homens que trabalhavam na oficina eu contratei e levei para Vitória. Aí ela ficou inimiga minha até hoje. E nós fizemos um projeto enorme de recuperação dos vagões de minério, reforço dos vagões para andar com trem mais longo e recuperação total dos equipamentos de freio. Mudamos tudo. Aí os trens começaram a andar melhor e fomos adicionando vagões. Depois eu estive no Canadá, na Quebec North Shore, que tinha uma operação de exportação de minério igual a da Vale, com o perfil da linha parecido, um perfil de umas quatrocentas milhas de comprimento. Eu trouxe o padrão do vagão de bitola larga, bitola standard deles, e o Manço foi um que adaptou para bitola estreita o vagão. Quer dizer, recalculou. Ele e o Deoclécio recalcularam toda estrutura do vagão para bitola de um metro. E nós fizemos vinte vagões na Santa Matilde, o primeiro vagão com setenta toneladas de capacidade, era de cinquenta, trem novo, totalmente novo, freio diferente, sapata de freio de plástico...

P/1 – Mas eram diferente em...?

R – Esses vinte vagões, nós fizemos o primeiro teste. Saiu de Itabira, desceu na linha antiga de (_________________), que tinha uma rampa muito pesada no sentido descendente e disparou o trem. Aí você não tem mais jeito de parar. O maquinista pulou para não morrer, e a locomotiva e os vinte vagões foram (________________________________). E ficaram os vinte vagões ficaram empilhados, acabou tudo, porque a qualidade dos vagões era de tal maneira, que nós não estava acostumado a operá-la. A operação era diferente. Quando o maquinista quis aplicar o freio, ele já tinha disparado, porque ele estava acostumado com vazamento, então ele teve que ser reeducado para isso. Resolvemos o problema de vagão, aí eu comprei

as primeiras locomotivas de bitolas estreitas, as maiores que os Estados Unidos tinha. Tive lá na General Motors e ela não quis vender. O truque tinha que ser especial, porque não tem bitola de um metro, tem bitola de um e quarenta e quatro. Mas eu preciso das locomotivas de quatro mil cavalo. Enorme, né? Ele disse: “Não dá porque temos que fazer um truque especial para vocês, e não tem mercado para outro. Qual é a quantidade que vocês querem? Se vocês comprarem quinze, eu faço.” Nós falamos: “Compramos as quinze.” E mudamos a estrutura do trem, fomos mudando até ter o trem normal de operação, de 160 vagões, treze mil toneladas de carga cada um. Porque uma coisa é você botar um para rodar, outra coisa é botar quinze todo dia. Estou conversando aqui com vocês, tem quinze subindo, quinze descendo, quinze de lado, sem acidente nenhum. Eu, quando entrei na Vitória-Minas, o Eliezer já estava lá, tinha uma média de vinte, trinta acidentes por dia.

P/1 – Vinte a trinta por dia?!

R – E não tinha linha como tem hoje a Rede. Quando o Eliezer mudou a estrutura da via permanente, acabou, e quando nós mudamos os vagões novos, acabou tudo. Então a Vale pode ter escala, ela podia vender o que quisesse e nós dávamos conta. E nós começamos a pressionar a área comercial para vender, para crescer e aceitamos a diversificação de tipos. O que tinha de nego que reclamava de lá... Mas ele cooperava também, ele queria isto também, havia uma unidade nisso.

P/1 – Era da ferrovia e da mina que surgia a pressão para o comercial vender?

R – E todo do porto, área operacional. E eu me reportava ao Superintendente Geral. Então o que eu consegui fazer de bom nisso, de benéfico, foi casar a estrutura operativa da empresa numa Superintendência só. A mina, ferrovia, o porto unificados em torno do programa de exportação feitos em conjunto com a área comercial. E para isso o Kafuri criou o que ele chamou de serviços técnicos operacionais, que era um órgão que era subordinado ao Superintendente e que planejava todo o programa de exportação junto com a área comercial, tantos milhões de toneladas, qual o tipo, assim e assado... A aceitação de navio passou a ser nossa, antes era com a área comercial que aceitava o navio aqui no Rio. Não sabia nem o que era, aceitava na medida que pedia, e o Eliezer Arantes... E eu fiz no Rio uma coisa que eu também fiz lá na escola do pessoal de freio. Eu fui no ITA e levei uma turma inteira do ITA lá na Vale. Engenheiro eletrotécnico, o Penedo, o Roberto Hering que foi chefe de telecomunicações da Vale muitos anos. E um dos que não foi, foi o Eliezer que um dia me procurou, e disse que queria trabalhar na Vale, eu disse: “Olha, meu filho, não tem mais lugar para você.” “Mas eu queria trabalhar com o senhor.” Na minha profissão eu achei até interessante aquilo, mas depois dei um teste psicotécnico. Este teste pra mim não tem nenhum valor, só para saber se o sujeito tem tendências a planejador ou executor. E ele fez o melhor teste que houve na Vale até hoje. Bem, o menino é um gênio, chamei ele e disse que ia ficar comigo no Rio. Eu mandei comprar tudo que era livro de pesquisa operacional que tinha na livraria, botei ele para estudar fechado numa sala. Ficou um ano lendo, estudando. Depois mandei ele para os Estados Unidos. Mandei para Berkeley, fez um curso de quatro, cinco anos lá, e voltou especializado em pesquisa operacional. Implantou na Vale a primeira equipe especializada de pesquisa operacional.

P/2 – Em que ano?

R – Em 1972, 1973, e esse grupo... Depois veio o Bernardo Spiegel, para trabalhar comigo. Era um grande cabeça, péssimo executante. Se ele cai como presidente da Vale, era errado, porque ele nunca teve bossa para executivo. E eles criaram essa estrutura. De fato, toda programação, qual a probabilidade, como é que você faz um esquema de aceitação de navio, tipo de navio com o tipo de minério, com o tipo produção, com o tipo de transporte, com o estoque no porto… Tudo isso é feito com pesquisa operacional, Teoria das Filas, foi desenvolvido por ele... E depois de um certo tempo, porque o Eliezer saiu injustamente, veio o Paulo Vieira, que era um homem muito bom, homem sério, mineirão daqueles. E ele criou, queria que fosse executiva, ele procurou saber quem eram os homens fortes da empresa. Homem forte na empresa para ele era o Rangel, que era o superintendente comercial; o Marcos Viana, que era o superintendente de desenvolvimento; e eu, que era o superintendente de operação. Eu não aceitei ser diretor, eu não tenho... Eu sou um profissional, fiquei dois meses, empaquei tudo, então disse: “Olha, o Presidente Castelo Branco disse que tem que tomar uma decisão.” Então eu não aceitei ir para a diretoria, mas eu continuei a ser superintendente geral, eu nunca saí do cargo de executivo.

P/1 – Nesse período o senhor ficava no Rio?

R – Ficava no Rio, era no Rio. Vivia metade do meu tempo em Vitória, Itabira e no exterior. Como eu passei em torno de vinte anos da minha vida num buraco negro, não lembro praticamente nada da minha vida a não ser serviço. Coisa meio louca, uma vez Marineide, minha filha mais velha, chegou para mim e disse: “Pai, eu vou fazer vestibular de medicina.” Eu caí de costas. “Mas já, minha filha?” Que vergonha. Minha esposa Íris é que sustentava tudo lá dentro, orientava, porque eu era um estranho. Houve ano que eu passava seis meses fora do Brasil, viajando.

P/2 – Direto?

R – Não, ia e voltava. Uma vez fui a Düsseldorf. Quando tinha escritório da Vale eu saí num avião da Lufthansa de tarde, cheguei de madrugada lá, fui para a reunião, de tarde peguei outro avião de volta e vim embora. Era coisa de doido. Eu conheço muito escritório, mas o fato é que a Vale cresceu por isso, pelos homens que teve, pela cabeça do Eliezer. Essa criatividade que ele teve de dar escala à empresa, por ter alguns executivos de primeira linha. E essa turma, esses quatro, cinco homens, o Roni, Mascarenhas e o Marcos Viana, que remexeu a empresa. Mascarenhas acabou presidente, depois morreu tragicamente num acidente de automóvel.

P/1 – Vocês tiveram que mexer com uma estrutura que já existia?

R – Não, não tinha nada, a sorte nossa é que praticamente aqui no Rio não tinha nada, não tinha estrutura, e não mandamos ninguém embora, simplesmente as coisas andava numa espécie de rotina. A mina produzia alguma coisa, a estrada existia, o produto transportava. Aí depois, quando revolucionava alguma coisa, porque tinha que tomar medida, comecei a fazer um contato com a Belgo-Mineira

para exportar seis milhões de toneladas por ano. Se você não tivesse estrutura para isso... No começo eu não tinha conhecimento das coisas ainda, tanto que o Roni propôs metade do CIF, quase que nos bateram.

P/2 – Senhor Linhares, como diretor de operações aqui no Rio de Janeiro, então, o senhor cuidaria não só da estrada de ferro como também mina e porto?

R – É. A mina, porto e ferrovia eram subordinados a mim eu mandava em tudo.

P/2 – Então a familiaridade do senhor já existia com a ferrovia. E como foi, então, o que foi implantado, alterado na mina e no porto?

R – Nós fizemos uma revolução na mina, o José Geraldo Vieira foi o superintendente quando o Eliezer entrou na Vale. Houve uma certa reação em Itabira à nomeação do Mascarenhas como superintendente da mina, que o Mascarenhas não era engenheiro de minas, ele só tinha aquela mania que tudo fosse. Não tinha muito sentido isso. Houve uma reação e ele teve que demitir umas quatro, cinco pessoas de gabarito, com uma certa revolta, uma coisa ridícula, sabe? Depois acomodou. Então nós resolvemos colocar um engenheiro de minas, também porque não tinha que ficar lá uma pessoa que não fosse do ramo, embora você acabe sendo do ramo. Eu hoje entendo razoavelmente de mina, de porto, entendo de ferrovia... Entendo porque minha origem foi essa. Hoje sou especialista em generalidades, entendo de caminhão de transporte rodoviário. Depois que sai da Vale comecei a conhecer o Brasil que ainda não conhecia. Conhecia Vitória, Belo Horizonte, Itabira, exterior, mas não conhecia São Paulo. Eu só fui a Florianópolis depois que me aposentei na Vale. Conhecia nada, vida maluca. Vitória, Rio, Belo Horizonte e exterior. Aqui, nada. Eu me humanizei mais depois que saí da Vale, porque aí comecei a trabalhar com outros projetos. Eu nunca aceitei trabalhar em nada para Vale. Tem muita gente que me chamou para abrir porta da Varema, como é comum as empresas fazerem isso, e eu recusei tudo porque eu achava que não era ético, conhecendo a empresa como eu conhecia, me meter com alguma coisa ligada a ela. Me isolei completamente, só que você acaba se especializando. (pausa) Depois do Paulo Vieira como presidente, no Castelo Branco, depois da revolução, ele ficou pouco tempo lá… Veio o Oscar Oliveira, que é pai dessa menina que é artista de teatro e novela, conhecida Cristiana Oliveira, é filha dele. Oscar ficou algum tempo lá, também um homem bom, mas não demorou muito também, não, já no governo Costa e Silva...

P/1 – O que leva a colocar essas pessoas na presidência da Vale?

R – São as mais diversas, nunca ninguém de dentro da Vale se candidatou, não chegou a ser presidente da Vale e vinha normalmente. Como um dia desses colocou o Mascarenhas como presidente. Foi muito bom para nós também, porque o Mascarenhas era muito cordato, muito equilibrado, uma alma boa, um contemporizador. Eu era muito brigão com ele, e ele aparou muita briga minha. Eu tive briga com o Romeu, coitado, ele era um menino ótimo, também muito calmo, equilibrado... Aí nós tivemos uma discussão pesada. Ele era superintendente de desenvolvimento e chefe do departamento de obras, e eu tentei provar que a operação devia fazer a duplicação da ferrovia, que devia ser feita pela operação e não pela obra. Imagina uma obra daquele jeito feita pela operação. Deu a maior discussão mas eu acabei ganhando, e nós é que fizemos a duplicação, provando que como a ferrovia em operação, com transporte violentíssimo, a garantia de entrega tinha que ser feita pela operação. Porque senão algo estranho ao comando da operação ia dar uma confusão danada, realmente iria dar. Então a diretoria concordou, o pessoal de obra ficou meio machucado com isso, mas são coisas conjunturais. E o Mascarenhas, nessas coisas todas, sempre teve uma posição muito equilibrada de cordato. Muito bom, sabe? Depois veio o Fernando Roquette Reis. Fernando foi um susto dentro da empresa, ninguém conhecia direito o Fernando. Fernando foi secretário de fazenda do governo Rondon Pacheco. Como é que a Vale caiu na cabeça dele até hoje, eu não sei, mas o fato é que caiu e eu passei apertado com Fernando, porque nessa ocasião criaram o diretor executivo e eu fui contra. Então eu não quis ser diretor executivo, reagi porque eu achava que era absurdo, então ficou diretor e superintendente geral. Todo mundo ficou como diretor e superintendente geral, dois cargos. O Fernando chegou na primeira entrevista que eu tive com ele. Ele conversou com todo mundo, menos comigo, esperou eu ser o último. “João, você tem dois cargos, tem que escolher um.” “Eu já escolhi, mas se você pensa que eu estou ganhando pelos dois, o senhor está enganado, estou ganhando por um.” “Não, eu sei que é isso mesmo.” “Eu já escolhi, quero continuar sendo superintendente geral.” “Você tem certeza?” “Tenho certeza.” Saí da diretoria, aí ele quis botar o Romeu como diretor para mandar em mim, o Romeu não aceitou. Aí o vice-presidente da Vale, muito amigo meu também, me procurou lá em casa e disse: “João, você tem que aceitar.” “Não, eu não aceito. Vamos fazer o seguinte, o senhor ou o Hélio Bento como diretor, aí eu me subordino.” Ele falou com o Fernando, que concordou. “Mas eu quero me entender direto com o presidente, senão não fico.” Fernando concordou também, então eu era o único superintendente geral que me entendia com o presidente, os outros não. Eles se entendiam com o diretor da época, porque eram uns diretores muito fracos na época.

P/1 – Eram diretores mais com cargo político?

R – Nomeados por interesse de beltrano, sicrano, etc. Gente boa, simpática, mas não tinha nada a ver com empresa. Um ano depois ele me chamou e disse: “João, essa diretoria está muito chata sem você, eu quero te chamar de volta para a diretoria, você concorda?” Eu disse: “Se o ministro…” “Não, eu já falei com ministro, ele disse que bota você de volta.” Aí eu voltei para a diretoria.

P/1 – Estava muito chato?

R – Muito chato, não tinha assunto. Quem tinha assunto era eu, porque eu tinha a operação na mão, tudo que era confusão passava por mim. O Fernando era um tipo interessante, ele tinha mania de me provocar. De vez em quando ele chamava o Togatto, que era o secretário geral dele e dizia: “Eu vou fazer um bilhete aqui para o João…” E te não dou meia hora, ele batia aqui na minha mesa sacudindo o bilhete. E eu batia. E o Togatto: “Você se prepara que vem bomba do Fernando aí pra você.” Tanto que única coisa que eu guardei quando sai da Vale foram alguns bilhetes extremamente malcriados e a minha resposta mais malcriada ainda, mas acabou meu amigo o Fernando. Quando ele foi nomeado, ele procurou o Pico. O Pico é uma pessoa muito conhecida em Belo Horizonte, irmão do Paulo Vieira, Luiz Felipe Vieira. Muito amigo dele, engenheiro, meu amigo pessoal até hoje. Era dono da Convap, uma grande empresa construtora de que o Paulo Vieira é dono. Procurou o Pico e: “Eu fui nomeado presidente da Vale do Rio Doce.” E o Pico disse: “Fernando, você não precisa trabalhar. Fica quieto, deixa o João trabalhar, você fica quieto e pronto.” E o Fernando veio prevenido contra mim. Homem interessante, brigava com ele por carta. Quando as coisas esquentavam, ele fazia uma carta pessoal e mandava lá para casa.

P/1 – Que poder de decisões geravam essas brigas?

R – Uma foi difícil, ele queria tirar a autoridade dos superintendentes, com o poder que eles têm de decidir tudo. E eu me rebelei. Escreveu uma carta lá para casa, violentíssima. Tinha lá suas razões, eu não aceitei, recuou, mas depois acabaram fazendo isso e tiraram muita força do superintendente. Eu me lembro uma vez, estava chegando em Itabira, o José Geraldo era superintendente, eu saltei do carro com ele, estava entrando no escritório, chegou um funcionário, Sebastião, crioulinho baixinho, com o envelope de pagamento na mão, e disse assim: “Doutor eu queria falar com o senhor. Me descontaram aqui dois, não me lembro, está errado porque isso foi engano da contadoria.” O Zé pegou o envelope, chamou o assessor que estava passando, o assessor era do tesoureiro, e mandou dar o dinheiro para ele, se não tiver você devolve, acabou o negócio. Quando houve essa mudança, essa mesma cena se passaria da seguinte maneira: você faz um requerimento para a área administrativa que mandava para Belo Horizonte, depois para o Rio de Janeiro, e vou analisar o seu caso; então tira a autoridade do homem. Você manda naquilo que você tem poder de comando, então o empregado passou a ficar olhando o chefe como homem mole que não tinha poder de decisão nenhuma, ele só tinha o poder que nunca tiraram dele: o de punir.

P/1 – Poder de punir.

R – Nunca ninguém tirou, então quando o empregado vem falar com você, ele sabe que o único poder que você tem é o de punir, o resto você tem que fazer requerimento para saber se a coisa vai ou não vai. A empresa acabou caminhando para isto, que foi muito ruim para ela. O fato é que a consolidação da empresa de ditar ordem bem feita, ela resiste a qualquer tumulto. O que eu acho que a Vale precisa manter é o padrão técnico dela, ela não pode fugir ou facilitar de perder a qualidade tecnológica das manutenções. Por exemplo, sob pena dela cair, se começar de novo a ter tombamento, acidente, porque não manteve bem o freio, o truque, o engate, a linha não está nivelada com devia... Aí é ruim, a confiabilidade cai. Então acho que essa administração devia sempre manter isso, porque é um conjunto de tecnologia que nós acomodamos e que nós, pioneiramente, fizemos. A África do Sul tem um projeto de ferro de exportação em Saldanha Bay, no sul da África do Sul, que foi todo copiado de nós. E depois que você rotiniza as coisas, pensa que é fácil. Não é, não. É extremamente complexo, muito surpreendente sob este aspecto. Até hoje a Vitória-Minas é a ferrovia mais eficiente do mundo e a Vale é confiável porque ela entrega o que ela assume, contrata. Isso é extremamente importante. Eu não sei como a Vale olha isso agora. Eu sempre achei que a Vale tinha uma dívida com Minas Gerais, porque o problema mineral sempre tem a sombra da exaustão. Já dizia o Magalhães Pinto, com aquela sabedoria milenar, que minério não dá duas safras. Então a exaustão da mina é um fato. O Cauê, hoje, é um buraco que você vê da lua. São dois acidentes na Terra que você vê da lua: o Cauê e as muralhas da China. Você vê aquela cratera assustadora onde existia uma grande reserva de ferro, hematita compacta. Aberração geológica que deu escala à Vale. Hoje praticamente só tem Itabirito lá. O fato é que essa vitória tecnológica sobre o controle de Itabira, que foi uma vitória do pessoal da mina, do pessoal do centro de pesquisa que fez o projeto original, e que depois que grande parte foi modificado pelo pessoal subordinado ao Darci, ao Esquetini e ao Zé Geraldo. Essa foi uma outra grande vitória tecnológica da Vale, ela dominou a concentração de Itabira, tirou a sílica e enriqueceu o minério próprio para pallet, multiplicou a reserva da Vale enormemente. Porque o Carajás entrou atrasado, deveria ter entrado uns anos antes e não entrou porque o sócio da Vale que era o… Qualquer negócio fifty-fifty não funciona, é complicado. E a U.S. Steel, metade do Carajás era dela. Afinal, quem descobriu Carajás foi ela, e fomos não nós. Foi uma subsidiária da U.S. Steel que descobriu Carajás. O Breno, que era um geólogo da U.S. Steel um dia pousou lá de helicóptero e botou o pé. E até eu, que não sou engenheiro de minas, saberia que aquilo era minério. Pousou em cima de canga, no mapa geológico constava como calcário.

P/1 – Constava como calcário?

R – Reserva gigantesca... Aí a U.S. Steel requereu, mas como tinha um limite de requerimento, ela botou um montão de gente para requerer. Aí o (__________) desconfiou, falou com o Ministro de Minas e Energia, era o Costa Cavalcanti, que nos chamou, a diretoria da Vale, e disse: “Não vou deixar eles sozinhos, só concordo se vocês entrarem.” Nós entramos, entramos pela janela, no fundo, e nós associamos à U.S. Steel, que é da Amazônia Mineração. Mas ela não funcionava porque nós queríamos abrir o Carajás e eles não queriam. Porque o timing era outro, não é culpa deles, a culpa é dos negócios deles. Tinha outros projetos em outros lugares do mundo que davam preferência, e nós não, nós queríamos Carajás. Até que criou um impasse grande, foi no período de Fernando Reis presidente, mas o Fernando tinha horror a Carajás quando falava. Fernando viajava, ele viajou e me botou no lugar dele na presidência, aí eu fui para Itabira, pedi uma entrevista com o Ministro, ele convocou a U.S. Steel. Fomos lá para Brasília, o Euclides que estava como vice-presidente da Vale, eu respondendo pela presidência e o Paulo Augusto Vivacqua, que foi o homem que estava fazendo Projeto Carajás. E tivemos uma reunião com o ministro, com ele e com a diretoria da U.S. Steel, da meridional. E ele deu ultimato para ele: “Nós queremos que você decida. Começa Carajás ou sai.” “Quanto tempo temos para isso.” “Vocês têm duas horas para decidir. Eu tenho telefone aqui, vocês vão para minha sala, telefonem para quem quiserem e decidam. Se vocês não decidirem, eu tiro vocês de lá.” Eles conversaram com os Estados Unidos, voltaram e decidiram sair de Carajás. Decisão Histórica.

P/1 – O senhor estava na sala da reunião?

R – Estava eu, pessoalmente, estava respondendo pela presidência. Nós voltamos, criamos uma comissão aqui no Rio para discutir o contrato de retirada da U.S. Steel. Discutiram o Lauro Marinho, que era diretor financeiro; o Hélio Bento, que era diretor; e o Joel Randal, que era assessor dele depois foi presidente da Petrobrás. Ali no Hotel Transamérica com os americanos. Eles ficaram foram. Nós pagamos cinquenta milhões de dólares a eles por despesas que eles fizeram com a pesquisa e demos 6% de interesse, como se fosse uma aplicação financeira. E compramos a maior reserva do mundo de bens minerais. Aquilo é uma província mineral, não é só minério de ferro. Tinha manganês, cobre... A coisa mais barata que já houve. Aí a Vale pode fazer o Carajás.

P/1 – Porque o senhor acha que ele resolveu dar o ultimato?

R – Porque pressionamos ele de que nós estávamos tirando minério de Itabira mais do que deveríamos, e daí a pouco nós iríamos importar minério do Carajás para dar para Usiminas. Se vocês exaurir a reserva de Itabira, vai ter que guardar para a siderurgia que está mais situada lá no Vale do Rio Doce, para Usiminas, para Acesita, para Siderurgia Tubarão... Vocês imaginaram exaurir aqui, ter que importar minério de Carajás para levar de navio até Vitória para descarregar, em vez de descer para exportar? Subir para jogar na mina... Precisa ter uma reserva e a reserva estava indo embora. Mas foi uma decisão histórica essa.

P/1 – Essa percepção de que o minério de Itabira iria acabar existia desde quando?

R – Isso é fácil você ver. Você tem um volume de exportação enorme, uma venda enorme contratada a longo prazo e você tinha a medição da reserva. Estávamos vendo que daqui a poucos teríamos ou cancelar contrato ou ir para Carajás, e para isso tinha que resolver o problema com a U.S. Steel. Ou ela entrava ou ela saía. Mas o fato é que a Vale tinha um débito com o Estado, a exaustão da mina é um desastre. Teve um país que alemães fizeram contrato, o único bem mineral era minério de ferro e eles exauriram. Recebiam um (_________) por tonelada que retirava e depois ficou deserto, não ficou nada lá. Então eu sempre defendi a tese de que a Vale deveria ter um projeto opcional para substituir o minério de ferro na exaustão. É uma questão de pagar ao Estado aquilo que ela exauriu. Itabira está em Minas Gerais e a Vale fez Carajás com o dinheiro de Minas. Ela faturava e ganhava com dinheiro de Minas, investiu em Carajás com dinheiro de Minas. Quer dizer que o Pará está ganhando com aquilo, com o dinheiro que saiu de Minas Gerais. O mineiro tem as suas reações e tem uma certa lógica nisso. Eles já tinham o problema do ciclo do ouro, da exaustão, que acabou... E ficaram as cidades, igrejas, não ficou nada lá. E não foi mesmo o português, foi o inglês que mais usava o português para tirar ouro. E o minério de ferro está entrando no mesmo ciclo. Então eu desenvolvi, contratei uma empresa grande, a Transcon na época, para ela fazer o estudo do serrado, do desenvolvimento de agricultura no cerrado, para a Vale entregar ao Estado alguma coisa que pudesse dar resultado perene. O projeto agrícola, ao contrário do mineral, dá mais de uma safra. Eu não sei como isso anda, mas a Vale tinha que fazer isto. Ela entrou pela porta da frente, não pode sair pela basculante da cozinha, tem que sair pela porta da frente também. Porque uma região exaurida de mineral de um bem mineral é um desastre você ver. A SAMITRI tem uma mina que acabou em Morro Agudo perto de (_________) Você vê lá hotel, casa, tudo abandonado. Parece até aquelas minas de ouro americano que você vê em filmes de faroeste. Some tudo, fantasma. Isso é uma obrigação que ela tinha que ter. O fato é que a minha vida está aí. Quando a Vale existiu, eu já existia antes dela. A minha vida toda foi em torno da Vitória-Minas, principalmente por causa de meu pai. Relutei muito ir para lá por causa dele e acabei chefe dele, uma situação meio difícil.

P/1 – Como é que foi?

R – Meu pai trabalhou todo tempo na estrada. Com mais idade ele passou a ser um assessor do superintendente, não tinha mais função executiva. Mas não foi traumático, ele nunca me atrapalhou, nunca tive uma reunião com ele. Mas o fato de que eu era chefe de tudo e era chefe dele também... E ele se recolheu, nem conversava comigo assunto da Vale. Quando meu pai faleceu, já tinha se aposentado, e ele foi um dos que forjaram a mentalidade da empresa. Ele e o Doutor Beleza imprimiram caráter à Vale do Rio Doce e foi bem sucedido. É bem sucedido até hoje. No fundo pode ser um modelo de estatal que deu certo, pelo menos até o tempo que estive lá. Quando que eu saí, não sei, porque não queria contato, era de propósito. Pode ser que vinte anos depois tenha mudado todo mundo. Até hoje esbarro com gente que me conhecia e eu não sei quem é, e que me trata bem, me respeita. O importante na vida é isso. Eu passava às vezes apertado. Quando chegava na oficina de Vitória, todos os meus amigos me abraçavam: “Joãozinho, como você vai?” Até hoje são meus amigos, gente de cabelo branco, mas meus amigos, gente que eu convivi quando criança. Então a Vale é uma lembrança muito boa para mim, meus filhos e minha esposa. E eu acho muito interessante vocês fazerem isso, é uma maneira de vocês recomporem a história da empresa. Eu sou um dos poucos remanescentes da estrada. Os outros não são porque não foram dela, não viveram nela. Viver intensamente a vida da Vale como o Roni viveu, o Mascarenhas, o Marcos e uma série de outras pessoas viveram, mas não viveram a ferrovia. Eu hoje sou especialista em generalidades, para isso resolvi morrer emparedado em concreto armado. De vez em quando me chamam aí para falar algumas bobagens e eu falo. Você acaba sem saber se você é, mas eu tive, como outros tiveram, uma oportunidade de ouro na vida profissional, de ter participado diretamente da criação e do crescimento de uma empresa enorme como é a Vale do Rio Doce. Eu tenho muito orgulho disto e orgulho de todo mundo que trabalhou nela. As dificuldades, as discussões somem no tempo, nem lembra mais delas, o que vale é isto.

P/1 – No começo da estrada de ferro de Carajás, o senhor participou?

R – Não, eu já tinha saído.

P/2 – Mas desta decisão, da opção da rede ferroviária em Carajás, o senhor participou?

R – Da ferrovia de Carajás, desde o começo, estava decidido. Carajás inerentemente de mim, é um projeto que, só com ferrovia, que são novecentos quilômetros de distância, eu fui contra. E seria contra, se estivesse lá, à bitola. Eu não aceitaria a bitola larga lá, eu faria a bitola métrica como tem na Vitória-Minas. A Vale não domina a bitola larga, ela domina a bitola de um metro totalmente. Bitola larga tem problema, deve ter até hoje, problema de desgaste, de trilho, de roda... E eu não vi razão lógica para fazer bitola larga, não era o melhor para ela. Inclusive, quando você diminuir a exportação de minério aqui no Vale do Rio Doce, você poderia transferir para lá não só os contratos de minério, mas os vagões e as locomotivas daqui, que são iguais e hoje já não são. Isso é uma decisão muito técnica, o quanto a resistência de Carajás é essencial. Se a Vale não tivesse feito Carajás, é como eu disse, ela já estaria chegando atrasada.

P/1 – Com relação a diversificação, o senhor participou de alguma forma disso?

R – Participei como diretor quando a decisão ia para a diretoria, mas a minha vida toda na Vale foi só no campo de operação em minério de ferro, eu nunca saí dessa linha. Eu sempre trabalhei na matriz, objeto social básico da Vale, que era exportação, produção, transporte e embarque de minério de ferro. Eu fui, por uns tempos, colocado pelo Fernando Reis como presidente do conselho da administração da Vale Fértil, da Valepar, da Amazônia Mineração, mas nunca tive participação direta. Eu nunca saí do minério, eu tenho a impressão de que pouca gente tem mais tempo do que eu como direção de empresa estatal. Eu fui diretor da Vale dezesseis anos, chegou a um ponto e eu tomei a decisão de sair um ano antes do Eliezer reassumir a presidência. Falei com ele e o Hélio Bento: “Eu vou sair, não quero mais ser diretor.” E saí mesmo.

P/2 - Sair da diretoria ou da empresa?

R – Saí da empresa mesmo, me aposentei.

P/2 – Por que o senhor tomou essa decisão?

R - Porque eu não queria mais ficar. Eu cheguei à conclusão de que saindo da diretoria, eu sairia da empresa, a minha vida sempre foi uma ascendência, eu nunca andei para trás.

P/2 – Mas estava em vias de sair da diretoria?

R – Não, eu não quis ficar, mesmo sabendo que o Eliezer iria voltar. Não quis ficar mais, eu não tinha mais condições físicas, inclusive condição humana. Eu ficava muito apegado ao pessoal. Chega um ponto em que você não sabe mais diferenciar quem é amigo, quem não é, quem deve respeito... Você passa a ficar mole, você passa a se preocupar com fulano que tem uma filha doente, você começa entrar em muitos detalhes. Aí você afrouxa a disciplina. Você tem que ter um timing, um limite qualquer para achar que o seu tempo já chegou. E eu achei que o meu tempo já havia chegado. Pouco depois eu cheguei à conclusão de que saindo da diretoria não tinha cargo mais nenhum para mim na Vale. Não tinha sentido, era eu andar para trás. E eu pedi aposentadoria. O César Cals, que era Ministro das Minas e Energia, me chamou em Brasília e achou estranho. “O senhor vice-presidente da Vale vai pedir demissão, eu nunca vi isso.” “Então está vendo pela primeira vez.” Saí bem, saí na hora certa. Saí como o Nilton Santos saiu do Botafogo: em pleno auge. A pior coisa do mundo é você estar na empresa e se desgastar, ser retirado de um cargo ou encostado, isso te deprecia. Saí bem, me sinto respeitado, me sinto lembrado. Como dizia o Chesterton: “O mistério é a saúde do espírito.” Deve ser misterioso viver tantas coisas. Eu não falo muito, não apareço muito, mas sei que tem muita gente que me respeita até hoje. Outro dia estive na Ferronorte, lá em Campinas e de repente fui cercado por umas dez pessoas que eu não conhecia, todos me conheciam, acho bonito isso.

P/2 – É gratificante?

R – Gratificante. É importante você sair da empresa inteiro, não levar paulada na cabeça como levou o Mascarenhas, que teve que sair da presidência porque houve uma briga dele com o Fernando, houve problema interno. Como o Eliezer, que levou uma paulada sem ter motivo nenhum para isso, uma maneira grosseira de tirar um homem competente como ele. Machuca, né? Como muita gente que eu tive que tirar, amigo de infância meu, por inabilidade dele, por incompetência. Tinha um amigo meu de colégio, de primário, de Vitória, que eu tive que tirar de um cargo importante e nunca me perdoou. É duro isso. Então eu achei que se eu continuasse lá eu iria amolecer. Eu sabia coisas demais das famílias de todo mundo. Na hora de tomar uma decisão, “fulano tem esse problema assim, assado”, isso começa atrapalhar, você tem que ser justo, você não pode fazer injustiça, você tem que ser duro mas justo. Eu até acho que fiquei tempo demais lá. Um mundo de presidente passou por mim, e eu fiquei, como diz o Roni quando o Fernando assumiu... O Roni resolveu, mas é outra cabeça. O Roni é um homem frio, no sentido profissional, o Roni tinha um poder grande dentro da Vale, mas achou que podia abrir seu próprio caminho e saiu da Vale em 1974, quando o Fernando Reis entrou, foi para a Sul América e acabou Presidente da Sul América. E deve ter ganho um bom dinheiro lá, ele merece. Eu nunca pensei em sair da Vale, sempre pensei que no dia que saísse da Vale, iria me aposentar, como de fato eu fiz. Mas não parei, não. Fui fazer um projeto grande de carvão lá no Sul do Brasil para o pessoal cimenteiro. Depois entrei na Câmara Brasileira de Transportes Ferroviários, que é uma entidade que congrega operadores e fábricas de equipamentos, levei até um susto. Quem me convidou disse: “Você quer ser presidente da Câmara” “Querer eu não quero. Mas, também... Se quisesse, eles não iriam me querer.”

“Como não vão te querer?” Esse pessoal que fabrica vagão são todos sócios, bati na cabeça deles todos. Uma vez anulei uma concorrência de vagão, eles fizeram proposta com mesmo preço, cartel. Chamei Paulo Vieira para fazer o vagão, ele era construtor, nunca tinha feito vagão na vida. “Eu te dou galpão em Itabira, te dou o projeto e você vai fazer.” Fez três mil vagões para a Vale pela metade do preço. Essas fábricas, se podiam me matar, matavam. Não me davam nem folhinha no fim do ano. (risos) Depois que saí da Vale, me convidaram para ser o presidente da Câmara, surpresa minha. Todos me aceitaram. É o tal negócio: se você não tem rabo, você acaba sendo respeitado até por gente que não gosta de você. E eu fui para a Câmara, fiquei quatro anos como Presidente da Câmara. Depois saí porque não podia continuar por causa do Estatuto. Fiz esse projeto de carvão para os cimenteiros, o José Ermírio de Moraes era o Presidente do Conselho da empresa que eu criei para ele, mas o carvão era tão ruim, uma desgraça o carvão, uma praga, só tinha cinza. Tinha 51% de cinza, não resistia dez quilômetros de transporte que ele ficava mais caro, uma mina horrorosa. Eu ainda aguentei dez anos na empresa. Um dia, na reunião do conselho, que todo o pessoal do cimento fazia parte, José Ermírio fez uma experiência. “Fulano, serrano, você compra carvão da cambada do João?” Ninguém comprava, era obra do governo que comprava nosso carvão e não os cimenteiros. Só que ela comprava nosso carvão e não conseguia vender, e ia ficando lá o estoque. Ela tinha que me pagar, o problema era dela de vender. Quando eu propus extinguir a empresa, ela tinha 120 mil toneladas de carvão lá em Candiota no Rio Grande do Sul, que fizeram daquilo eu não sei, e vou vivendo desse jeito.

P/2 – E hoje em dia, qual é a sua atividade?

R – Eu sou consultor, tenho uma série de serviços para fazer. Tem muita gente que me procura para dar parecer, para olhar, e tenho mais tempo para as coisas, para ler... Não tenho nenhuma frustração de coisa nenhuma na vida, o que eu não posso é parar, se parar eu vou ficar atropelando barata no meu apartamento até morrer. E morre rápido, né? Eu vi gente morrer em seis meses. Tem outros que não. E como eu disse, eu optei por morrer emparedado, engravatado, a criar porco em Itabira. Vocês devem chamar mais gente. Conversa com o Munsell, com o José Carlos, com o Elder, o José Geraldo Vieira, Hélio Bento, que é homem importante. O Hélio é uma figura interessantíssima, homem sério, e viva todos eles e viva todos que morreram já. Muitos amigos que já morreram, já foram embora, principalmente da estrada. De vez em quando eu recebo visita, maquinista... Tem um lá de Vitória que todo mês vem trazer uma paca, paca já cozida, pronta para comer, toda embaladinha. Me leva lá para casa. O melhor maquinista que a Vale já teve. Acho emocionante não pela paca, mas pelo ato dele. Um dos homens mais inteligente que eu conheci na vida, o Asenor Bento Correia, era inspetor de locomotiva, inspetor e chefe de maquinista, um cearense. Ele era analfabeto, mas ele conhecia freio, que era a coisa mais difícil, pouco engenheiro conhece. O freio tem seções diferenciadas, as válvulas passam por um canto, é muito complicado, e o Asenor entendia disso, era um maquinista de mão cheia, mas era analfabeto. Uma vez eu estava subindo de Valadares para Itabira com o Oscar Oliveira, presidente, comigo num trem especial, desses de banheira, como tinha o Pedro Nolasco. Tem banheiro, tem quarto para dormir, tem sala... E o Asenor chegou para mim e: “Doutor, que horas o senhor quer chegar em Itabira?” “Sete horas da manhã em ponto.” “Então o senhor quer fazer uma viagem amorosa ou celerada?” “De qualquer forma, contanto que você faça.” Um dia eu disse: “Eu vou te mandar para os Estados Unidos, precisa estudar inglês, se não estudar eu não mando.” Começou estudar. Um dia estava viajando com ele numa locomotiva e perguntei: “Como está o seu inglês?” Ele disse: “Doutor João, não bom.” Tá rifado, não vai mais, nunca mais foi. (risos) Eu tinha uma equipe grande, de primeira qualidade. O Moraes Brandão que era chefe dos serviços técnicos operacionais, que era o alvo técnico de operação, que planejava todo o programa de exportação junto com a área comercial, ouvindo a mim, ouvindo a ferrovia, o porto. O Eliezer que trabalhava com ele, o Bernardo Espiga que trabalhava com ele, o Geraldo Carrareto, o Chequer, tudo gente qualificada, esse pessoal sempre me ajudou muito. Eu tinha um suporte técnico muito grande, eu podia pensar a besteira que quisesse que eles faziam, e tinha razoável autoridade por causa disso. A unificação do setor operacional deu escala à empresa e à coragem de meia dúzia de pessoas que estavam lá. Inclusive nós, que invadimos aqui o Rio de Janeiro, tomamos conta da empresa fazendo doideira que deu certo. Agradeço a vocês esta oportunidade. Vou procurar umas fotografias lá em casa, se tiver eu te mando.

P/1 – O que o senhor achou de ter dado esse depoimento?

R – Achei muito bom. Eu, de fato, tenho muitas coisas que conheço da empresa que tentei transmitir a vocês. Eu sempre achei que a Vale devia guardar a história dela, tem uma história bonita e, com o tempo, ela vai se perdendo se você não conseguir arregimentar isso num arquivo vivo, ouvindo gente e depois tirando suas conclusões. É muito importante guardar isto inclusive porque os arquivos da Vale incendiaram no prédio dela. Todas as besteiras que eu escrevi sumiram ali no incêndio. É uma maneira inteligente de fazer isso, um depoimento ao vivo, você ouve opinião diferente, pessoa diferente, você pode checar depois, checar inclusive os currículos das pessoas, se ela realmente fez aquilo que está escrito lá ou ocupou o cargo que está escrito lá. Eu tenho pouca gente hoje para falar da ferrovia mais do que eu. Tem eu e o Eliezer, nós dois acho que somos os únicos remanescentes das estradas de ferro, os outros ficaram para trás ou já morreram. Alguns estão lá que precisam ser ouvidos também. Realmente a metade da empresa foi muito baseada nela e no respeito que eu tenho pelo meu pai, um homem discreto mas que foi um pioneiro naquilo. Ele trouxe para a Vale o Mário Carvalho. Alguém falou nele? Mário Carvalho era um rapaz novo, bebia, vivia bêbado. O meu pai estava precisando de um baliza, pessoa que segura aquele negócio para se medir, e levou o Mário Carvalho para Vitória-Minas, para trabalhar lá. Eu estava subindo com uns americanos na linha, e ele estava lá. Eu disse: ”Mário, deixa eu te apresentar uns americanos?” “João, eu já conheço gente demais, eu não quero dar muito prazer para mais ninguém na vida.” Quando houve um pedido do governo de botar um funcionário da Vale como diretor, o Eliezer era presidente lá. Nós botamos o Mário como diretor da Vale, o Mário tinha adoração pelo meu pai, parou de beber, e veio para diretor. A primeira vez na vida que ele botou paletó, ficou dois meses aqui, depois não aguentou mais. Eu disse: “Mário, porque você quer sair, é por causa do paletó e da gravata?” “Não, é o seguinte: essa diretoria, eu vou te contar. A gente engole guarda-chuva aberto e se engasga com um quiabo.” Ele era muito autêntico, todo mundo contava mentira. Desistiu, renunciou e voltou lá para a terra dele.

P/1 – As coisas mais ricas da Vale são as pessoas que fizeram ela?

R – Sim, a empresa, no fundo, são os homens. Os homens é que fazem a empresa ou desfazem. Você vê a Rede, até que ponto que chegou. A Rede tinha gente tão boa quanto nós tínhamos, ela não teve a oportunidade que nós tivemos porque ela nunca teve escala, ela não tinha injunções políticas, pressões políticas, não tinha recursos para deslanchar. Uma ferrovia sem algo grande para sustentá-la não sobrevive. E a Rede foi caindo até virar só sucata. O que o governo privatizou foi sucata, a começar pela Fepasa que foi um desastre, um fracasso. Tá lá o Presidente da Ferroban tomando na cabeça porque precisa de dinheiro para se recuperar, 450 mil vagões sucateados. E a ferrovia é indispensável hoje porque o caminhão está perdendo força. O caminhão cansou e está com frete baixíssimo, por isso que esses caminhões fazem essa greve reclamando de pedágio. Não é, é porque o frete deles é absolutamente

escorchante, eles não ganham para comer, porque está muito baixo, eles pressionam o frete ele está a metade do custo, e eles vivem transportando, porque se não fizer é pior para eles, o caminhão fica parado. Eles compram óleo diesel à prestação, compram comida à prestação. Isso vai um dia explodir porque não há condições. Você não pode botar 90% do transporte de carga geral em caminhão e a ferrovia não transportar nada. O que a ferrovia transporta? Os 90% do transporte ferroviário no Brasil são cinco produtos: minério de ferro, granel agrícola, derivado de petróleo, carvão e produtos siderúrgicos. Desse total, 50% é minério de ferro, a Vale transporta tanto quanto a Rede toda inteira transporta. Então um país desse tamanho não pode viver sem ferrovia. Não pode ser o caminhão que vai levar a soja, por exemplo, de Mato Grosso à Santos. E não tem ferrovia, custa os olhos da cara ou então escorcha o caminhoneiro para ele ter o frete baixo até ele explodir. E tem o pedágio. O pedágio, no fundo, é o que a ferrovia faz. A ferrovia arca com o ônus da infra-estrutura, da subestrutura. É ônus dela, ela que deve manter a linha, o caminhão não. O governo faz a estrada, mantém a estrada e o caminhão só passa. Quando o governo quer cobrar o pedágio, o pedágio nada mais é do que o custo e manutenção da subestrutura rodoviária. Por que eles reclamam? Reclamam porque não tem ganho, é maior o déficit deles, porque o frete está errado. O caminhão não pode competir com a ferrovia como compete lá no Mato Grosso, a três mil quilômetros de distância. Compete com a ferrovia, não é possível. Então essa estrutura de transporte no Brasil é um desastre absoluto que um dia vai explodir. Se você não entrar na intermodalidade... Quer dizer, o futuro é isto. Onde acho que a Vale devia entrar também, e deve estar entrando também, é na logística, os métodos modernos de transporte, uso intensivo de contêineres, como é o americano. Porque a nossa escola sempre foi americana em tudo, nos equipamentos de minas, equipamentos de ferroviária, equipamentos portuários...

P/1 – Desde quando a Vale aproveita a Vitória-Minas para transportar?

R – Eu não sei dizer nada sobre o que a Vale está fazendo, mas certamente está fazendo.

P/1 – Mas no tempo que o senhor estava ali, isso houve?

R – A minha fase foi mais de consolidar a empresa como exportadora de minério de ferro e resolver os problemas técnicos que permitisse ela crescer como cresceu. A fase do transporte de carga geral deve ter começado logo depois que eu saí, eu não sei. Deve ter começado. Ela devia entrar nisso pra valer, logística. Ela tem estrutura para isso, inclusive, porque ela tem um curso marginal, porque ela tem um transporte pesadíssimo. Então ela devia ser um modelo para o Brasil nisso porque você não pode continuar com esse modelo de transporte que está aí. O Brasil é grande demais, não é como Luxemburgo. Em Luxemburgo, se você não tiver um freio bom, você sai do outro lado. O Brasil é grande demais, não tem condição de fugir da ferrovia ou do que ele chamou de transporte intermodal, caminhão e ferrovia, isso aí é essencial, básico e voltar a capotagem. Eu fiz uma pesquisa na Dutra, há uns quatro anos atrás, descobri coisas espantosas. Descobri que passa um caminhão de toneladas de arroz de caminhão pela Dutra,vindo de Pelotas para Salvador, para o Recife, Ceará... De caminhão. E Pelotas de porto de mar, Recife é porto de mar. A COSIPA [Companhia Siderúrgica Paulista] transporta a produção dela, siderurgia, em caminhão, e está na beira do mar, no Porto de Piaçaguera. A Sadia tem produção de frango, embutidos e congelados que leva de caminhão de Concórdia para Fortaleza, 4500 quilômetros de caminhão. Isso é um absurdo, alguém está pagando isso. Não há racionalidade nisso. Então é um problema sério de governo, porque o governo não pode ficar de braços cruzados. Só porque privatizei as ferrovias, é problema da iniciativa privada e acabou. Não pode. Bom, Zé, terminei. Agradeço vocês pela paciência.

P/2 – Nós que agradecemos o aprendizado.

R – Qualquer coisa que vocês quiserem, estou às ordens. Você tem meu telefone, né? Quando vocês terminam isso aí? Vocês tem jeito de me dar uma cópia disso?

P/1 – Claro, todos vão receber uma cópia.

R – Eu prometi à minha filha. (risos)