Projeto Vale Memória
Entrevista de Guilherme César Sarcinelli
Entrevistado por Paula Ribeiro e Eliane Barroso
Rio de Janeiro, 03/08/2001 (Parte 1) 28/09/2001 (Parte 2)
Realização Museu da Pessoa
Código: CVRD_HV094
Transcrito por Gabriel Siqueira e Jurema de Carvalho
Revisado por Joice Yumi Mats...Continuar leitura
Projeto Vale Memória
Entrevista de Guilherme César Sarcinelli
Entrevistado por Paula Ribeiro e Eliane Barroso
Rio de Janeiro, 03/08/2001 (Parte 1) 28/09/2001 (Parte 2)
Realização Museu da Pessoa
Código: CVRD_HV094
Transcrito por Gabriel Siqueira e Jurema de Carvalho
Revisado por Joice Yumi Matsunaga
P/1 – Paula Ribeiro
P/2 – Eliane Barroso
P/1 –
Eu gostaria, então, de começar o depoimento pedindo que você me dê o seu nome completo, o local e a data de nascimento, por favor.
R – Bom, meu nome completo é Guilherme César Sarcinelli. Eu nasci, eu falei, na cidade de João Leiva, na verdade João Leiva é apenas a referência, porque eu nasci no interior, uns três quilômetros distante. Eu nasci na roça, fui menino criado na roça e eu acho que isso para mim teve uma importância fundamental na minha personalidade depois, na minha formação de caráter, essa coisa toda. Porque lá na roça a gente aprende muita coisa que eu acho que valoriza mais as pessoas, tá? Tem oportunidade de melhorar muito sendo criado na roça em vez da cidade. Por quê: porque lá na roça as pessoas são todas iguais. Uns têm um pouquinho mais, outros um pouquinho menos, mas as pessoas convivem ali juntas, vivem juntas, crianças brincam juntas. A nossa vida era caçar de seta, caçar de estilingue. Hoje é proibido, é crime, né? Mas era assim que a gente vivia, tomando banho de rio e colhendo fruta à vontade, onde tinha, no quintal de cada vizinho. Ninguém tinha cerimônia com nada, nada era proibido e também a gente conhecia os limites da gente. Então eu acho muito importante, eu aprendi muito na roça a questão do respeito pelas pessoas. Por exemplo, um negócio muito simples que é você cumprimentar as pessoas. Você se habitua desde menino a
cumprimentar as pessoas. Na roça até os inimigos se cumprimentam. Não efusivamente, mas um bom dia, boa tarde, meio de canto de boca, mas cumprimenta. Então é uma coisa muito séria, é dada uma importância muito grande a esse tipo de respeito, essa cordialidade, né? E para mim eu considero que isso foi muito importante porque eu aprendi que ninguém é melhor do que ninguém, todo mundo é igual e que todo mundo, tendo oportunidade, terá chance de crescer, de melhorar. A vida depois você cresce. Daqueles amigos todos, uns cresceram um pouco mais, uns um pouco menos, mas quando a gente se encontra nós somos as mesmas pessoas, somos iguais, somos os nossos companheiros. Os mesmos companheiros de sempre. Então essa origem eu acho importante, ali era uma colonização italiana, os meus pais descendem de italianos. Aliás, toda a minha árvore acima de mim é constituída de italianos, né? E, enfim, esse aprendizado para mim foi muito importante. Estudava lá mesmo, para ir para a escola tinha que andar três quilômetros a pé para lá e os três de volta. Naquela época também não tinha perigo de nada, porque tinha a estrada que podia passar carro, só que não tinha carro. Naquela região um carro era uma raridade. Tinha sim carro de boi, às vezes a gente pegava uma carona e ia de carro de boi. Isso acontecia raramente. Então, a gente ia para lá e para cá desde os seis anos de idade, sete anos de idade que eu fazia isso, às vezes sozinho. A única recomendação que as nossas mães nos davam era a seguinte: cuidado com vaca com bezerro novo. Não chega perto porque ela não gosta, né? E na época certa, que seria agora no mês de agosto, cuidado com o cachorro doido. O menino da roça sabe come é um cachorro doido. Cachorro doido tem um jeito de andar, então se afaste, deixe ele passar, vai embora. Era os dois perigos que existiam, mais nada. O resto a gente tirava de letra.
P/1 – Como era o nome desse vilarejo que você nasceu?
R – Rio Clotário. Mas isso só, para achar isso no mapa do município tem que ser… Na época era município de Ibiraçu, hoje João Neiva é a cidade, é só olhar no mapa de João Neiva, sei lá. Rio Clotário é o nome do córregozinho que passa naquele vale, é um valezinho apertado que fica entre João Neiva e Demétrio Ribeiro, que é uma outra vilazinha bem pequena que foi um núcleo de italianos. A cidadezinha aliás até hoje mantém esse núcleo. Você vê lá, parece que está vendo uma vila de italianos mesmo. Aqueles tipos de casa que foram construídas ali, poucas né?
P/2 – Tanto seu pai como sua mãe eram desse mesmo município?
R – É. Meu pai nasceu ali no mesmo vale onde eu nasci, né? E minha mãe nasceu próximo dali, uns quinze quilômetros de distância dali. Chamava Barra do Triunfo, mas o lugar mais perto era Acioli, que é hoje distrito de João Neiva. Na época era distrito de Ibiraçu como João Neiva também era distrito de Ibiraçu. João Neiva não era cidade, era vila, como Acioli também é. Hoje João Neiva se emancipou. Hoje que eu digo é de quinze anos para cá. Então, João Neiva hoje é município, é a cidade. Bom, eu fiz até o quarto ano primário em João Neiva, lá onde eu nasci, daí eu já tive que me mudar porque não tinha mais como continuar estudando lá. Fui para Vitória, fiz o primeiro ano do ginásio em Vitória. Ficava hospedado na casa de um parente, minha tia. Ela já era viúva e hospedava os parentes de um modo geral que se mudavam para Vitória e tinham que trabalhar lá e tudo, então já tinha seis, oito pessoas, todos parentes que se hospedavam lá com ela. Mas depois, os filhos dela também começaram a trabalhar e ela também acho que estava cansada e resolveu mudar de casa, para uma casa menor, os filhos já estavam ajudando a ela, né? Eu aí fui parar no internato lá em Muqui, no Sul do Estado. Então concluí o ginásio, o segundo, terceiro e quarto ano lá em Muqui. Também uma experiência interessante, porque você viver interno é outra experiência de vida muito importante. Porque ali não tem o negócio de paparicozinho da mamãe, da titia. Você não quer isso, não gosta disso, quer comer... Lá você come o que tem e come mesmo, porque você não tem como fugir daquela alimentação. Era uma comida barra-pesada. Era arroz, feijão, carne e pronto. Uma canjiquinha ou angú. Só que era mal feito, quer dizer, a carne não tinha tempero, o feijão era duro, o arroz cheio de pedra, aquele negócio. Mas olha, eu não estava nem aí, comia assim mesmo. Nos primeiros dias quando chegou lá ficou todo mundo, eu e qualquer outro: “Deus me livre, não vou conseguir comer esse negócio”. Ainda estava com um restinho daqui de dentro de casa. O docinho que comeu, o dinheirinho que o pai deu, depois não tinha mais dinheiro, não tinha coisa para comprar, então tinha que comer era aquilo mesmo. E comia, comia com a maior tranquilidade. Então você aprende a se virar com o que tem, né? E você faz muitas amizades, fica lá conhecendo muita gente. Nós éramos mais de duzentas pessoas lá no internato.
P/2 – Você ia visitar a família nos finais de semana?
R – Só nas férias. E a família também não ia lá não, entendeu? (riso). Só nas férias. Férias de julho e final de ano.
P/1 – Seus pais, eles tinham região agrícola? Eles plantavam, eles produziam...
R – Agrícola. A família do, vamos dizer, meu pai ele estudou contabilidade porque na família do avô dele, que é meu bisavô e que eu conheci, eles tinham comércio de café, compravam café. A região era produtora de café, tá? E eles tinham uma venda, um comércio. Porque o pessoal da roça, eles não tinham onde comprar. Então eles contratavam a venda do café e iam pegando tudo que eles precisavam lá na venda. E o acerto era só quando o café entrava, aí falava: “Está aí o café, você entregou tanto de café, o valor é tanto, você gastou isso e isso, está aí a diferença”. Acertava, pronto. No fim do ano só, uma vez por ano. Então dinheiro não existia, tá? Agora como eles tinham esse movimento, meu pai foi mandado aqui para o Rio para estudar, eu falo contabilidade, naquela época se chamava propedêutica, que era o chamado guarda-livro. Ele era um propedeuta, meio diferente… Mas veio ser o contador, algo parecido com isso. Por isso ele era a pessoa que tinha mais instrução ali no interior. Mas ele tinha lá, vamos dizer, a casa onde eu nasci ficava no meio de um pomar que meu pai fazia e plantava aquelas fruteiras. Tinha mais de trezentas laranjeiras e mangueiras, tudo quanto é fruto. Ele gostava muito de lidar com a terra, assim, gostava de plantar. Não era muito chegado...Porque todos lá tinham também umas vaquinhas para ter um leitezinho e tal, então ele tinha também. Só que ele não se interessava muito não. Tinha alguém lá para cuidar, sempre tinha um empregado pelo menos lá. Eles tiravam leite, ______... Para curar bezerro, não sei o quê, isso era a gente, isso era tarefa dos meninos. Prender bezerro, curar, não sei o quê, rachar lenha, essas coisas todas a gente fazia normalmente em casa. Meu pai saía de manhã, voltava de noite, porque ele trabalhava. E ia a cavalo, né? Ele tinha não sei quantas pequenas escritas lá da região que ele fazia. Então ele não parava em casa. Muitas vezes ficava dois, três dias fora de casa, porque ele ia para o mais afastado, demorava, tinha que ir de trem. Então, assim, a gente que se virava. Em casa era a mãe e os meninos, à medida em que iam crescendo, iam ajudando naquilo que podiam.
P/1 – Quantos irmãos vocês eram?
R – Nós somos seis irmãos. Somos seis ao todo. Éramos seis, agora somos só cinco. Mas então, quer dizer, essa coisa, esse tipo de vida que a gente teve, eu acho que foi muito saudável. Muito saudável porque a gente aprende a ter responsabilidade, todo mundo tem que fazer alguma coisa. Ah, um vai cuidar da horta, tem que molhar a horta, tem que limpar, outro vai rachar lenha, se estourasse o cano... Porque tinha água encanada lá em casa, tinha um negóciozinho bem feito. Mas estourava aquele cano e
“se vira, vai consertar”, vai lá, amarra, emenda, dá seu jeito, né? A gente tinha que se virar. E se não desse jeito? Vai carregar água, vai buscar lá no córrego e vai trazer porque a água, não vai ficar sem água, sabe? Então essas coisas da roça… Mas tudo isso você faz, é uma coisa normal, natural. Se precisasse pegar, limpar com a enxada, cansei de fazer também, todo menino fazia isso lá. Então você aprende a encarar qualquer tipo de trabalho com naturalidade. Eu acho que isso é muito importante, né?
P/1 – E em relação ao seu bisavô? Você conheceu?
R – Eu conheci o meu bisavô, se chamava Antônio Sarcinelli, aliás, é Sarcinelli Antônio, né? Quando ele morreu eu já tinha sete anos de idade. E a minha bisavó, mulher dele que eu também conheci, (Sabília?). Ela morreu eu já tinha onze anos de idade, dez para onze anos. É, onze anos. Então eu os conhecia muito bem. E eles eram italianos mesmo. Todos os meus os meus bisavós eram italianos. Vieram para o Brasil, vamos dizer, mais ou menos 1870, por aí. Alguns um pouco antes, outros um pouco depois, mas todos vieram da Itália.
P/1 – Que tipo de tradições italianas e hábitos eles mantiveram?
R – Bom, esse meu bisavô, por exemplo, ele...Todos eles vieram da Itália, todos eles mexiam com área agrícola de um modo geral. Mas uns faziam e tinham um pouco mais de habilidade também para mexer com... Por exemplo, saber montar um moinho de fubá, tá, uma instalação de água para gerar energia elétrica. O meu avô, esse meu bisavô era um homem muito progressista. Ele construiu uma represa num pequeno desnível que o córrego lá em casa tinha. Ele fez essa represa, fez um canal que ia quase de nível e construiu uma roda d’água, ele mesmo construiu uma roda grande, que tinha um desnível de água que dava pouco mais de um metro. E ele forçava aquilo ali para aquela água ir com força naquelas paletas da roda girando e com isso ele tinha um moinho de fubá, com isso ele tinha uma pila de arroz,____ de pilar arroz. Tinha um outro molinete, bo-li-ne-te aliás, para moer mandioca para fazer farinha. Tinha torno mecânico que ele fazia bocha, bola de pau, que é o jogo tradicional dos italianos. Ele fazia isso tudo lá. E fazia com perfeição. Então ele era uma pessoa com uma habilidade que você chega lá na casa que ainda, meus pais já morreram, infelizmente, meus avós, meus bisavós… Hoje a casa, o sobrado que foi desse meu bisavô e que depois ficou com meu avô, aí depois meu pai que ficou com aquilo, porque comprou dos herdeiros, que todo mundo deve ter ido embora, e hoje meu irmão está lá tomando conta. Mas se você chega lá todas as portas, as ferragens tipo dobradiça, essa história, tudo forjado lá, ele tinha ferraria, tinha carpintaria, tinha esse negócio todo para fazer quase tudo lá na roça, tá? E para fazer o beneficiamento de café aí aquela roda d’água não dava, não tinha força suficiente, né, que era pouco desnível de água, aí ele comprou uma caldeira. Então tinha uma parte que era mecânica, então essa caldeira... Sabe como é uma caldeira né? Que gera vapor e toca num sistema lá, chama-se locomóvel, né, toca esse sistema e aí aciona a máquina de beneficiar o café. E foi essa caldeira que matou esse meu bisavô. Porque ele, estava chovendo muito e aquilo ali era dele, ele ficava tomando conta daquela parte, que é perigosa, tinha que estar olhando os __________, como está a pressão, está isso, tem que botar água, tem que botar mais lenha. Ele que tomava conta daquilo ali, lubrificando etc. Era a paixão dele. E estava chovendo muito, tinha uma canaleta pelo lado de fora, essa canaleta entupiu, começou a entrar água ali, por baixo da porta vinha ali onde ele estava trabalhando. Em vez de ele pedir a alguém que estava lá fora, né, que não estava quente como ele estava ali perto da caldeira. Ele pedir “Olha, vai lá, limpa este troço aqui”, tal, não, ele mesmo foi lá, pegou a enxadinha, foi lá fora e tomou aquela chuva toda. Pegou uma pneumonia, pronto, em poucos dias ele estava morto. Mas eu lembro dele muito bem, era uma pessoa assim superquerida, calma, autocontrole, completamente diferente da minha bisavó, mulher dele que era brava que era danada! Então fazia o equilíbrio (risos). Mas enfim, essas coisas lá... Não sei mais o que você gostaria de saber, mas...
P/1 – Em termos de educação religiosa, era uma família muito religiosa?
R – É, não era assim tão, tão. Meu pai, por exemplo, nos primeiros anos, quando era menino, eu ia, também não tinha muito o que fazer, não tinha padre lá. Padre aparecia de vez em quando. Tinha as famosas ladainhas lá em Demétrio, aquela italianada toda era muito religiosa, né? Saía de lá xingando, dizendo palavrão e não sei o quê, e tal, mas no dia da ladainha estava todo mundo lá na missa (riso).
Então o meu avô, por exemplo... O Meu bisavô nem sei se ele era muito chegado a isso, eu acho que não. Não sei, porque ele era mais velho também e não dava mais para ele ir lá. Meu avô não gostava. Porque os caras ficavam naquelas cantoria toda e ele falava “Aqueles bando de barbado cantando lá, essa bobagem!”, não sei o quê. Ele não era muito chegado. Mas papai, ele ia menos, mas a partir de um certo momento ele, aí não, ele passou a ir mais e virou congregado mariano. Porque aí já tinha padre. Quando passou a ter padre, isso foi de, sei lá... Não vamos falar época não porque nessa época eu já era rapazinho, estava velho, tinha saído de lá, tal. Já estava estudando fora. No meu tempo de menino não tinha. Padre passava lá uma vez cada três meses, cada quatro meses, sei lá. Ia lá de vez em quando para fazer comunhão ou ir numa festa lá importante. Aparecia o padre, aí batizava, comungava todo mundo, fazia aquele negócio todo.
Não sei se excomungava também, mas eu acho que não. Se precisasse… (riso)
P/2 – Vocês falavam italiano ou português?
R – Olha, até a geração do meu pai eles falavam italiano tranquilamente. Eu poderia ter aprendido italiano facilmente se eles quisessem manter a tradição. Mas meu pai e minha mãe cometeram o erro de usar o italiano só para cochichar. Para falar coisas que a gente não tinha que saber. Aí eles falavam italiano, eu sabia: “Esse aí não é para eu saber”. Já ia caindo fora. Mas mesmo assim, quer dizer, eu quase que falo normalmente italiano só porque o ouvido estava habituado com tudo... Eles falavam, encontrava aquele pessoal todo ali, da idade do meu pai para cima, só conversavam em italiano. Normalmente. Quando meu pai foi para a escola no primário era em italiano. Não tinha aula em português. Depois é que foi, o governo forçou que houvesse aula em português e tal. Aí ainda pegou depois no resto. Mas no começo era em italiano, tá? Então era uma coisa muito arraigada mesmo porque era quase que só em italiano que tinha lá, naquela rocinha.
P/1 – E em relação à educação, seus pais eram exigentes neste sentido, queriam que todos os filhos estudassem?
R – Com certeza. Muito. Meu pai era ali e controlava e ia conferir, ia olhar o que a gente estava estudando, procurava ajudar e era bravo. Se tirasse nota baixa entrava no cascudo. Enfim, era bravo. Tinha que estudar mesmo. Minha mãe também. Mamãe era muito exigente. Então, quanto a isso, eu acho que se não fosse assim eu não teria estudado não, porque numa vidinha boa igual aquela lá da roça… (risos) Eu queria era ser chofer de caminhão, qualquer coisa dessa. Não tinha noção ainda da importância de estudar. Mas ele fazia questão e nesse ponto meu pai, ele tinha essa receita de contador lá da roça e que era pouquinho porque tinha muitas firmazinhas para ele trabalhar, que todas muito pequenininhas, não podiam pagar muito também. E tinha uma lá na roça, sempre tinha um leite. A gente tinha, plantava alguma coisinha e fruta a gente tinha demais. Então...Tinha muita fartura, não precisava de muito dinheiro. Mas o dinheiro que tinha era para a educação. Teve uma época que estávamos eu, o meu irmão e mais duas irmãs no internato. As irmãs num internato e nós em outro. E apenas a quinta, a outra, que era a quinta da turma, que ficava em Vitória na casa de uma tia, que era madrinha dela e tal. Mas isso a gente vê, depois é que eu fui compreender que aquilo era um sacrifício muito grande para a gente. Mas ele fazia questão, para estudar aí era linha dura. Não tinha desse negócio não. Não tinha discussão. Então, todo mundo estudou. Uns foram um pouco mais além, outros menos. Quer dizer, dos homens eu sou o mais velho, depois estudei Engenharia, o meu irmão fez Contabilidade. Seguiu o curso lá de papai. Porque o irmão mais novo meu, ele é bem mais novo do que a turma. Depois da minha irmã caçula, ele nasceu ainda seis anos depois. Quando ele nasceu eu já estava no primeiro ano ginasial. Ele também é engenheiro, trabalha na Albrás, então trabalha no grupo Vale também, né? Então todo mundo formou. As meninas formaram como professoras, né, e...
P/1 – Sua mãe era alfabetizada?
R – Ah, sim. Ela tinha o curso primário. Isso aí do lado da minha mãe, aí tinha o meu avô paterno era em tudo parecido com esse meu bisavô, tá? Eles morreram quase juntos, morreram quase na mesma época. No mesmo ano eles morreram.
Mas ele, assim, também muito evoluído, muito avançado, fazia tudo isso que o meu bisavô paterno fez aqui onde eu nasci ele também fazia lá na Barra do Triunfo. E lá mais ainda porque escola era tudo longe, muito longe. Para chegar em Acioli são seis quilômetros, então não dá para a meninada estudar lá. Ele construiu a escola, ele levava a professora para lá, mantinha a professora lá morando na Barra do Triunfo para estudar, para a turma toda ter escola. Então ele, inclusive, montou uma alfaiataria lá, montou tudo o que era necessário para o pessoal viver ali independentemente, ele montou. Ele fazia. É claro, não é para fazer... As coisas básicas ele fazia. Levava médico para lá periodicamente, dentista, isso tudo ele fazia.
Ele botava lá dentro da casa dele. Tinha lá uma cadeira, ele comprou um equipamento daquele e ficava lá. O cara chegava lá e ia atender o pessoal. Então era um pessoal que tinha uma mentalidade bastante evoluída, bastante avançada. Eram os dois que mais, do meu modo de ver, se destacavam. Do lado do meu pai, né, o meu bisavô...
P/1 – Como era o nome?
R – Sarcinelli Antônio. E o do meu avô materno era Guilherme, meu xará. Quer dizer, eu herdei o nome dele, né?
Eu sou Guilherme César em homenagem a ele e ao meu avô que era César. Avô paterno. O meu bisavô é que era Antônio. Então eles dois eram muito, assim, muito evoluídos. Eram pessoas extremamente respeitadas e admiradas porque realmente eles estavam na frente. Eles tinham uma noção, talvez tenham tido uma tintura melhor lá onde eles viveram na Itália. Eles vieram de regiões diferentes. Esse meu bisavô era da região lá do Treviso, por ali. Mais especificamente Veneto, Vittorio Veneto, essa região ali na Itália. E o meu
avô materno era mais na divisa com a Áustria, na região do Tirol, região que foi contestada. Uma época pertencia à Áustria, outra hora pertencia à Itália, hoje está Itália. Tanto que eu vi o passaporte dele, era escrito em alemão e em italiano. Tinha as duas línguas. Então eles tiveram talvez uma chance melhor lá na terra deles, vamos dizer, de progredir mais, conhecer um pouco mais, assim, de alguns equipamentos da época. Mas eles vieram, repetindo, de uma região muito interiorana lá da Itália. É a região agrícola. Uma curiosidade: na época se você fosse, a não ser lá na casa do meu avô materno, esse que eu disse que era também um cara evoluído, um sobrado grande e tal, tinha um banheirinho dentro de casa. E nenhuma outra casa tem. Nem no nosso sobradão _________ não tem. Não tinha. O banheirinho foi feito lá... Banho era dentro de casa na bacia, não sei o quê, as mulheres dos homens iam tomar banho no rio. Se alguém estivesse doente ia tomar banho de bacia também. Depois é que essa coisa foi evoluindo e construindo banheiro. Hoje tem dois, três banheiros na casa, não sei o quê. Mas não tinha. Era uma coisa de lá da Itália, não existia esse hábito. Só para você ter uma ideia. Isso faz cento e trinta anos mais ou menos. (riso)
P/2 – Quais eram as brincadeiras dos meninos?
R – Jogar bola, tomar banho de rio e caçar inseto. Dos meninos. As meninas gostavam de brincar de roda, às vezes a gente brincava, os meninos às vezes entravam também na brincadeira. Jogar queimada, essas coisas.
P/1 – Caçava o quê?
R – Passarinho pequeno...
P/1 – Quais?
R – Sanhaço, sabiá, rolinha, o que tivesse. Saíra, coleira, o que tivesse na frente. Não tinha perdão.
P/2 – E a bocha? Jogava?
R – Jogava também. Jogava não muito. Gostava mais era de jogar futebol. Mas os adultos sempre jogavam bocha. Jogava sempre. Todo domingo tinha um jogo de bocha, isso era sagrado. Todo domingo a turma juntava lá, jogava até umas tantas horas e depois ia embora para casa.
P/1 – Como é que era um domingo nessa região? Além do jogo de bocha tinha algum almoço tradicional, tinha alguma outra atividade?
R – Não. Não. Nada mesmo. O encontro era no jogo de bocha e às vezes baralho. Ih, se você visse italiano jogando baralho, aquelas mesas grandes, aquela mesa grandona, a gente têm lá até hoje. Juntava lá quatro, cinco de cada lado e ficava jogando, parceiro, então jogava. Tudo você tem que... Três-sete, escopa, béstia, são os jogos que eles praticavam lá na época. Eu não me lembro direito como é cada um, mas tinha uma ideia. Então tinha uma coisa de você ter que prestar muita atenção nas cartas que já saíam para ver o que você podia. Tinha o sinal que o parceiro fazia. O que ele tinha na mão, o que ele precisava que você jogasse. E aquele silêncio, absoluto silêncio. Quando acabava aquela rodada mas era uma gritaria, uma pancadaria, murro na mesa. “Mas você tinha que ter jogado...” “Você não presta atenção...” O cara grita e eu falei: “Vai sair morte aí”. Daqui a pouco começa, silêncio outra vez. Continuava o jogo na maior mansidão. Então isso aí realmente era um negócio curioso. Mas eles não jogavam muito baralho. Baralho era menos frequente. Bocha não, bocha era sagrada. Todo domingo.
P/1 – Só os homens?
R – Só os homens. É tudo bolinha, não tem desse negócio não. Mulher ia fazer café, fazer umas broazinhas lá para o pessoal comer depois, coisa e tal. Bocha só homem. Agora, isso eu estou falando, mas daqui onde eu nasci, próximo de João Neiva. Na Barra do Triunfo o pessoal da minha mãe era um pessoal mais alegre. Na Barra do Triunfo tinha banda de música que o meu avô implantou, ele criou a banda, ele tocava. Tinham uns quatro ou cinco filhos que tocavam, que eram do lado do meu avô, da irmandade. O meu pai tinha oito irmãos, a família nove. E do lado da minha mãe eram onze.
Do lado do meu bisavô paterno, dezesseis. Então, depois vai diminuindo, e tal. Dos dezesseis dois morreram muito crianças ainda. Treze ficaram adultos mesmo. Então lá na... Eu já falei todo esse negócio do jogo de bocha, de baralho, tudo aqui do lado do lugar onde eu nasci. Esse é o lado do meu pai que eu falei. Pelo lado da minha mãe o pessoal era mais expansivo, mais alegre. Tinha um campo de futebol... Que aliás teve mas eu não conheci, do lado do meu pai meu bisavô gostava, mas eu não cheguei a conhecer o tal campo de futebol. Que também tem um detalhe: quando eu era menino, eu nasci em 1934, e no final da década de 1930 teve a derrocada aí da bolsa de valores e não sei o quê. E a família do meu bisavô simplesmente quebrou. Porque ele tinha aquele compromisso, comprou o café segundo um determinado preço, assumiu aquele valor e a bolsa quebrou, ele teve que pagar o preço que ele comprometeu e teve que vender por muito menos. Tomou um prejuízo, não tinha nem como pagar o pessoal. Que ele vendia, pegava o dinheiro e pagava, então ficou devendo. Quando eu era menino ainda vi ele acabando de pagar, meu pai ainda ia com meu avô, lá junto acabar de pagar as dívidas dele. Então, com isso caiu muito o movimento, por isso eu não conheci essa fase áurea, vamos dizer do local ali onde eu nasci porque houve essa débâcle, vamos dizer assim. Mas teve também essas coisas. Lá na Barra do Triunfo não. Lá eu conheci, até hoje tem o campo de futebol e eles adoram jogar futebol. (PAUSA) Tá lá na Barra do Triunfo. As priminhas lá, aquele negócio, sanfona lá pegando fogo. Então, eles eram muito alegres. Mamãe era uma pessoa superalegre, cantava o dia inteiro, assobiava o dia inteiro, trabalhava para danar, mas sempre com a carinha boa, sempre cantando, assobiando. Quer dizer, esse lado materno, eu acho assim, esse pessoal mais dado à música, mais a cantar, mais a brincar, mais alegre, né? O lado de Sarcinelli é um pouco mais fechado.
P/1 – E em relação à escola, quer dizer, o senhor fica no internato e depois...
R – Eu acabei o curso ginasial no colégio de Muqui aí voltei à Vitória. Primeiro ano fiquei na casa de um amigo de meu pai. Me hospedei lá durante um ano. Aí depois eu fui para as pensões, aí fiquei morando em pensão, um dia aqui, um dia lá. Então eu voltei, fiz o primeiro científico, segundo científico em Vitória. O terceiro científico eu já fui para a Bahia, para Salvador. Por quê, já estava abrindo a escola de Engenharia em Vitória e o curso nosso era muito fraco, ainda lá no curso científico, não tinha nada assim de básico, de forte, para você encarar um vestibular. Aí eu tive que procurar um lugar para fazer um cursinho em paralelo com o curso científico. Fazer um cursinho e tal para poder encarar um vestibular. Eu vinha para o Rio. Mas aí um amigo de papai que tinha estudado em Salvador, conhecia um pessoal lá que dava pensão, era a sogra do irmão dele sei lá de quê. Aí acabei indo para Salvador. Mas fiz só um semestre lá. Isso foi em 1952, foi outro dia, né? Fiquei o primeiro semestre lá em Salvador, aí abriram um cursinho em Vitória. Aí eu voltei para Vitória, outra vez para o Salesiano.
P/2 – E Salvador, era a primeira vez que você saía de Vitória?
R – Saí de Vitória. Meu pai me levou de João Neiva até Vitória, chovia para danar, saí em lama, não tinha asfalto não tinha nada, me deixou no aeroporto, a chuva danada, chegou aquele avião DC-3. Famoso DC-3 aquela época. E eu lá com a mala. “Bom, você vai, o endereço é esse aqui, se vira.” Entrei no avião e fui embora para Salvador sozinho. Fui lá procurei... Mas essa coisa da pessoa... Naquela época ninguém maliciava, não tinha perigo de nada. Sei lá, eu acho que a pessoa lá da roça também acaba... Aí não é questão de roça, tanto faz ser da roça ou da cidade. Eu acho que os meninos da cidade são mais despachados, são mais espertos, né? Mas talvez aquela coisa, não tem perigo. A gente não conhecia esse tipo de coisa. Hoje duvido que alguém deixasse fazer isso. Seria muito arriscado. Mas não existia perigo. Simplesmente peguei o avião, chegou em Salvador, desci, chamei um táxi lá, “Eu quero ir para esse endereço aqui”. Pronto, cheguei lá. Daí para procurar onde era o colégio, tinha que tirar carteira de identidade, que eu nem imaginava que tivesse que fazer isso. E aí eu fui ver que o pessoal da Bahia é extremamente simpático, mas extremamente afável com as pessoas. Você chega lá num lugar: “Por favor, onde que é esse endereço aqui?”.
A pessoa diz “assim, assim, vai aqui...” Aí ele percebe, eu falo: “Mas eu não conheço nada, não sei qual é a rua”. Ele: “Não? Então vem cá”. Pega e vai com você lá, leva. Isso aconteceu comigo umas três vezes pelo menos. Até aprender lá direitinho. Eles têm assim, ou pelo menos tinham, né? Repito, estou falando de 1952. Mas um pessoal extremamente simpático. Eu cheguei lá com a cara e a coragem. Fui lá, eu tinha o quê? Eu tinha… Eu não tinha feito ainda... dezesseis anos. Não, dezoito anos. Eu estava com dezessete anos.
P/1 – Mas, nesse momento, o senhor já tinha uma noção em relação à profissão?
R – Não, eu queria estudar Engenharia. Eu queria estudar Engenharia.
P/1 – Era um cursinho direcionado...
R – Direcionado para Engenharia, tá? É Isso o que eu estava querendo. Então em Vitória não tinha ainda. E eu já estava no terceiro ano científico. Então eu já sabia. A partir do segundo ano eu, pensar em Medicina, Odontologia, nem de longe. Queria nem saber. Direito... Então era quase que uma coisa imediata, porque eu gostava de Matemática, gostava destas matérias assim mais técnicas. Então não foi difícil não. Então, eu tinha que arranjar um lugar onde eu pudesse me preparar para fazer o vestibular. Seria o Rio e acabou sendo Salvador por uma interferência aí de amigos e tal, mas tudo bem. Eu achei que foi bom. Voltando para Vitória, outra vez voltei para o Salesiano, fiz vestibular a primeira vez, perdi. Que Não estava ainda no ponto. Não estava bem preparado. Aí um tio meu que é engenheiro, mora aqui no Rio, ele na época estava trabalhando em Paulo Afonso, na construção da usina hidroelétrica de Paulo Afonso. A primeira, porque hoje tem várias usinas no Rio São Francisco. Aquela foi a primeira. 1953. Então ele convidou a mim e um primo meu que também ia fazer vestibular de Engenharia se
agente queria ir para lá, ficar na casa dele e ele levava o material para a gente estudar. E ele orientava, ele ajudava no que fosse possível. Poxa, aí foi uma beleza. Ficamos lá uns seis meses... Estudava muito. Estudava, metia a cara. Mas também se divertia muito, andava por lá, pegava aquele jipe dele e saía rodando pelo interior afora. Enfim, ficamos conhecendo aquele interior lá bastante bem.
P/1 – Quais são suas lembranças da construção dessa hidrelétrica?
R – Só um parênteses. Quando eu estava em Salvador em 1952, que eu disse que fui estudar lá, o primeiro semestre. Na Semana Santa eu fui passear em Paulo Afonso. Esse meu tio já trabalhava lá e tal e eu fui lá. E ele falou: “Você procure tal lugar, assim, assim, vai lá no escritório da empresa. Você pega uma carona num carro de transporte da empresa e vem para cá”. Aí eu fui. Cheguei lá, nossa senhora, uma carreta imensa carregando equipamento lá para a usina. O carro pesadíssimo que viajava a dez por hora. E eu fiquei sentado ali entre o motorista e o ajudante, ele no meio e o cara fazendo marcha aqui batendo no meu joelho, um calor, com aquele sertão afora até Paulo Afonso. E aí que eu vi o que que é o problema de água lá no interior do país, lá na caatinga. A gente em vários lugares, você ia comer, parava para comer, aquela comidinha que tinha lá. A água era barrenta, amarela. Gelo amarelo. Ou de terra. Onde tinha gelo, né?
Lá em Vaza-Barris, divisa, limita Bahia com Sergipe. Então, e o rio seca. Tem uma poça aqui, uma poça ali. Tem um lugar que a gente parou lá que era uma poça d’água, assim num quintal, um negócio que devia ser um córregozinho que secou. Aquela água barrenta, os animais ficavam andando ali, porco e galinha. E aquela água era para tudo. Você imagina, e é assim que é. Enfim, essa viagem, ida e volta de carreta. Mas volta era melhor que o carro vinha vazio. Ia carregado para lá para Paulo Afonso e voltava vazio para buscar mercadoria. Bom, então isso aí era só para fazer esse comentário de como que o negócio lá no interior, lá na caatinga é dureza. Esse pessoal vive de uma maneira incrível. E lá em Paulo Afonso eu tive a curiosidade de conhecer um camarada lá que ele chamava de coiteiro. Sabe o que é um coiteiro? É um cara que ele acoita, ele dá informações e ele protege. Ele era coiteiro de Lampião. Então ele conheceu muito Lampião, ele era um bicho do mato. Vivia pelos matos caçando aqueles mocozinho, aqueles bichinho que é um tipo de coelhinho que tem lá no interior e essas aves tipo “Asa Branca” do Luiz Gonzaga. E bebendo água de cacto. Banho nem pensar. Não se cogitava. Ele ia de vez em quando a Paulo Afonso, eu o vi lá umas duas vezes. Que era um dinheirinho que ele arranjava, que vendia a pele dos bichos que ele matava, essa coisa toda. Bebia tudo de cachaça e voltava para o mato outra vez. Mas era um bicho do mato. E ele contava as coisas, onde o Lampião passava, tudo, ele ficava sabendo e ele tinha as informações. “Olha, a polícia está em tal lugar.” Porque ficava andando dali para cá e tal e ele então dava as informações. Era o telefone da época. (riso) Então são curiosidades, né? Agora, você perguntou, eu vi e me lembro bem porque eu já tinha terminado o curso científico. Estava me preparando para entrar na faculdade. Eu pude observar, pude ver a parte mais importante da obra de Paulo Afonso. Que lá em Paulo Afonso não se fez o desvio do rio. Toda a construção de usina hidrelétrica a primeira coisa que você faz, quando é possível, quase sempre é, é você desviar um rio. Faz um túnel, faz uma barragenzinha, põe um aterrozinho simples, faz primeiro aquele túnel e desvia o rio para lá e você constrói a barragem aqui no seco. Lá isso não foi assim. O rio, antes de cair na cachoeira, antes dele mergulhar na cachoeira de Paulo Afonso, ele vem mais ou menos plano. Então, ali foi construído uma série de ensecadeiras no leito do rio. No leito principal do rio. Primeiro foram construídos dois espécies de submarinos. Dois flutuantes grandes, né, que eles emergiram aquele negócio para diminuir a correnteza do rio. Para então construir as ensecadeiras, que são estacas-pranchas colocadas assim cheio de pele e coisa para deixar, vamos dizer... Um anel. Construído assim no meio... E um anel comunicando com outro, ligado um no outro para fechar uma certa parte, barrar aquela parte para você poder trabalhar no leito do rio. Limpar o leito do rio, levantar a barragem. Coloca as comportas ali e aí você joga o rio passando dentro das comportas e vai fazer o outro lado, a outra metade. O resto dos troncos era mais fácil porque o rio, na época de baixa do rio, você ia trabalhando bem. São quilômetros de barragem, tudo de concreto. Mas essa parte do rio eu presenciei até a inauguração, lamentavelmente houve acidente fatal. Eles estavam preparando, ajustando aquela comporta e o pessoal trabalhando ali debaixo, a comporta escapuliu dos ganchos e matou umas três ou quatro pessoas. Foi um drama, foi um negócio... A obra pronta, praticamente pronta. Não tinha acontecido nada, na hora do acabamentozinho, não sei o que aconteceu, algum cochilo e pronto. Lá se foi umas três pessoas. Mas essa parte é fantástica. O resto é uma coisa mais ou menos comum em obra de engenharia. Onde fica a casa de máquina, o leito do rio é barrado aqui em cima, então passa por aquelas barragens. As comportas você regula, fecha, a água não vai, enche o reservatório, o rio vem aqui, mergulha na cachoeira, oitenta metros de desnível, aí sai correndo lá para baixo. A captação de água é cá em cima, faz aquela chaminé, lá embaixo constrói dentro da rocha uma verdadeira catedral. Um imenso buraco dentro da rocha, a oitenta metros de profundidade, dessa catedral tem o sangrador que vai saindo no leito do rio embaixo. E aqui ficam as turbinas, uma, duas, três, ‘n’ turbinas que são alimentadas por essas chaminés que vêm daqui de cima. Isso eu vi sendo montado lá, quer dizer, eu tive a sorte de estar presente lá num momento muito interessante da obra.
P/2 – A prova de seleção para universidade, para o curso de Engenharia, era uma prova específica?
R – Ah sim. Sim, claro. Era vestibular de Engenharia e naquela época era diferente de hoje. Não sei se hoje é mais fácil ou mais difícil, mas naquela época você tinha a prova escrita e prova oral. Você recebia as questões e tal, e você tinha que demonstrar o que conhecia ali. É claro, sempre tinha algum espertinho ou outro que ia colar alguma coisa, mas depois tinha prova oral. Na oral você não tem jeito. Então a prova era muito apertada, muito dura mesmo.
P/1 – Nessa época você conhecia de nome a Companhia Vale do Rio Doce e já desejava trabalhar nessa empresa?
R – Olha, eu conhecia a Companhia Vale do Rio Doce desde menino, porque na época da tração a vapor... A tração diesel, essas máquinas, isso aí é coisa de 1950 para frente. Antes disso eram aquelas locomotivas a vapor, a famosa Maria Fumaça. A maior oficina da Vale do Rio Doce é em tração a vapor, era em João Neiva. Muitos parentes meus trabalhavam lá. Mas a Vale era uma coisinha de nada, não atraía ninguém para trabalhar naquela época não. Era uma empresa pobre ainda. Pagava mal o pessoal. Mas ali em João Neiva tinha uma oficina que era onde se recuperava as locomotivas que tinham problema. E então eu pude conhecer dentro da Vale. Entrei muitas vezes nas oficinas ainda quando menino. Parentes meus, vizinhos meus, quando o café foi para o brejo... eu falei que no fim da década de 1930 meu bisavô foi à garra, como se diz. E o café passou a não valer nada. Então o pessoal ficou numa pobreza muito grande, muita gente passou a trabalhar na Vale do Rio Doce. Nas oficinas. O pessoal descendente de italiano tem muita facilidade para aprender mecânica, que é uma coisa que está mais ou menos no sangue, e eles se desenvolveram, cresceram. Muita gente cresceu dentro da oficina da Vale. Eu via isso. E uma curiosidade: eu disse que a gente andava três quilômetros para ir para a escola e voltar. E tinha uns meninos lá que eram mais pobrezinhos lá, que moravam pertinho da gente e eram meus amigos do peito. Eu ajudava eles a levar as marmitas às vezes. O pessoal comia lá, tinha parente meu e dos outros ali. Umas cinco ou seis marmitas. E na volta, dependendo do horário que a gente voltasse para casa, ia levando as marmitas de volta, a gente parava no meio do caminho: “Vamos ver o que é que sobrou aqui”. (riso) Se tivesse alguma coisa interessante a gente comia por ali mesmo. Então a gente comia aqueles restinhos tranquilos, numa boa. Nunca deu problema nenhum, nunca fez mal. Eu acho que fez é bem.
P/1 – Você lembra de ter alguém na sua família que trabalhasse na Vale, qual era a atividade?
R – Vários.
P/1 – Por exemplo...
R – Olha, lá em João Neiva: meu tio Antônio Sarcinelli, que é filho. Antônio é o nome do meu bisavô que era pai dele. Ele é meu tio-avô, esse Antônio Sarcinelli. Ele trabalhava na parte acho que era da ferraria. O Amélio Sarcinelli era o torneiro, o Arlindo Sarcinelli era o torneiro mecânico. Aristides Sarcinelli era torneiro, mas de um outro tipo, torno vertical chamava. O Humberto Sarcinelli eu não... Acho que era ajustador. E Mário Sarcinelli... Ah, tem uma infinidade deles. Tinha de modo geral era torneiros, ferreiros, como é que se diz... Trabalha com corte… Cortar chapa de ____... Caldeireiros, serviço de caldeiraria. Aqueles que tinha lá. Trabalhar no martelete para fazer o cravamento de rebite para você soldar, pregar aquela chapa. Não era solda, não trabalhava quase com solda. Era rebite, então tinha que furar aquilo ali direitinho na posição. E botar aquele rebite quente ao _______. Um segurando de um lado e outro martelando um no outro para ficar com duas cabeças no final, uma na parte de dentro, outra na de fora. Então tem muita gente lá da família, uns mais próximos, outros mais afastados, mas tinha seguramente umas trinta pessoas lá com o sobrenome de Sarcinelli trabalhando lá dentro.
P/1 – O senhor almejava trabalhar na empresa?
R – Não. Ainda não. Agora, isso tudo quando eu era criança. Depois eu fui estudar, fiz o ginásio, fiz o científico, entrei na escola de Engenharia... No segundo ano da escola aí eu me interessei em fazer um estágio na Vale. Procurei, arranjei, aí eu fui percorrer a Vale. Fui lá nas minas, lá em Itabira, conhecer a instalação das minas, ver como é que era todo o processo de extração de minério, o manuseio desse minério, o beneficiamento, o carregamento nos vagões, como é que era.
P/2 – Mas isso no estágio ou por...
R – Isso no estágio. No estágio. Eu estava no segundo para o terceiro ano da escola. E uma parte foi em Vitória. Aí já tinha oficina de locomotiva a diesel. Alí a Vale já estava num outro estágio. Fiquei uma semana lá, vendo como é que fazia a manutenção naqueles motores de diesel enorme. E tinha parentes meu que trabalhavam lá também. Aí já tinha uma quantidade grande de engenheiros novos, recém admitidos na Vale. Porque aí a Vale já estava num processo de crescimento grande. Estou falando da década de 1950. Foi quando a Vale começou a dar o salto que deu. Aí eu comecei a me interessar. E fui na oficina de João Neiva também e fiz questão de ficar uma semana lá estagiando com o pessoal de todos os setores ali. Foi uma delícia porque eu já conhecia aquilo ali tudo. Todo mundo, o pessoal me tratava com o maior carinho ali, né? Aí sim eu comecei a ver com bons olhos essa perspectiva. Mas não era ainda um interesse assim não. Aí eu vi em que a Vale estava se tornando. Agora, quando eu terminei o curso, na verdade, o que eu queria mesmo fazer era concreto armado. Queria mesmo ser engenheiro estrutural. Eu desde o terceiro ano da escola eu fui convidado para trabalhar com um professor meu, fiquei o terceiro e o quarto ano...Olha, eu não tinha ainda a matéria toda, né? Mas ele já foi me ajudando, algumas coisas eu já tinha, outras eu não tinha ainda. Ele me ajudava, me ensinava e eu ia produzindo com ele. No quarto ano eu já podia render bastante. Aí no quinto ano eu já fui trabalhar com um outro professor que tinha um escritório também de cálculo. E aí ele falou comigo: “Olha, depois que você formar, se você quiser ficar trabalhando comigo. Agora, para ficar só no escritório não vai dar porque eu não tenho tanto serviço assim. A gente vai ter que arranjar um emprego para você, vou arranjar um emprego no DER” – que ele trabalhava no Departamento de Estrada de Rodagem –, “que lá é só meio expediente, trabalha a parte da manhã lá e de tarde a gente vem para o escritório”. Eu falei: “É o que eu mais quero”. Nesse intervalo, que nisso eu já estava no quinto ano, aí apareceu lá na escola uma equipe da Petrobrás. E a Petrobras ficava louca procurando gente, que a Petrobras também estava num crescimento, né, expandindo e tinha novas áreas sendo pesquisadas em Alagoas, Rio Grande do Norte e Amazonas. E eles estavam loucos procurando gente. Foram lá. Chegaram lá na escola, a nossa turma, quando eu comecei o ano, era trinta e dois alunos. Nós nos formamos em quatro alunos, assim mesmo, destes quatro só dois eram da primeira turma. Os outros dois já foram do meio caminho para a frente. Eles tinham entrado antes e entraram na nossa turma. Só éramos quatro. Aí apareceram lá três pessoas da Petrobrás querendo conversar com a gente, aplicar o curso para ver quem era que tinha interesse de trabalhar na Petrobras. Ninguém quis. Porque todo mundo já estava mais ou menos, era fácil, naquela época você saía da escola estava empregado. Ninguém queria: “Puxa vida, mas por que não, vamos fazer o teste, não custa nada. Aí dos quatro sentamos: “Quem é que vai fazer o teste? Quem é? Você vai?”. Aí desse fomos eu e o outro. “Foi metade doutor, cinquenta por cento. Já está bom demais!” Aplicaram o teste e tudo mais, aí foram embora, daqui a pouco começa a vir telegrama: “Olha, a sua vaga está garantida lá”. “Mas eu não quero. Falei para vocês que eu não queria.” Falei claramente para a coordenadora lá da equipe: “Mas eu não tenho interesse”. “Não, mas faz assim mesmo.” E aí ficou insistindo e telefonando, eu estava na casa de uma tia minha e tinha telefone lá. Bom, resultado: “Não, eu quero aquele negócio que o meu professor falou, o ________. Ele vai me arranjar esse negócio lá no DER e eu vou trabalhar em qualquer trabalho”. Não queria mais nem pensar em outra coisa. Mas só que aí terminou o ano e teve mudança de governo, passou dezembro e o emprego no DER não saiu. Olha só, já tinha um mês que eu estava formado e não… E Janeiro, não. Eu falei: “Nossa o que está acontecendo?”. “Ah, porque sabe como é, está fazendo essas mudanças. Mas isso calma. Daqui a pouquinho a gente ajeita lá.” “Ah, eu não vou ficar esperando esse negócio não!” E o pessoal da Petrobras em cima, toda hora. Aí, resultado: Falei “Sabe de uma coisa? Eu vou lá para a Petrobras”. E fui. Cheguei lá o curso já tinha começado já tinha um mês. O curso começou no início de Janeiro, eu só cheguei lá em fevereiro, no início de fevereiro.
P/2 – E onde era o curso?
R – Em Salvador. Era em Salvador e eu tinha estado um pouquinho lá, né? E olha, eu não teria saído da Petrobras se não fosse por uma burrice que eu acho que eles tinham e mantêm talvez até hoje. Eles não permitiam de forma alguma que a pessoa morasse com a família junto do local do trabalho. Veja bem, até então eu não estava entendendo bem o que seria isso, mas as pessoas que trabalhavam que eu conhecia ali, trabalhavam no Recôncavo Baiano, ali em torno de Salvador. As famílias ficavam aqui em Salvador e eles, puxa, era perto, né? Mas a expectativa que eu tinha quando estava lá era que, uma vez terminado o curso, que durava um ano e três meses, a gente ia para Nova Olinda lá no Amazonas. Porque lá que as coisas estavam, assim, prometendo acontecer. Uma perfuração muito profunda, muito difícil, mas em plena selva amazônica. Quatrocentos quilômetros distante de Manaus. Até que um dia, vamos dizer, a turma que estava na nossa frente, que nós convivemos três meses com eles, eles acabaram o curso
e um deles casou e foi morar... Ele era geólogo, o trabalho dele era de Geologia, pesquisa geológica. Ele trabalhava numa cidadezinha perto de Salvador. Em Alagoinhas. E ele levou a mulher para morar em Alagoinhas e ele trabalhava encostadinho. A Petrobrás forçou ele a trazer a mulher de volta para Salvador. Não era permitido. Aí pronto. Eu já era noivo e pretendia casar o mais rápido possível e falei: “Vou levar minha mulher para o Amazonas, vou deixar ela em Manaus, vou ficar três meses no campo”. Porque lá a regra era essa, tem que ficar três meses lá. Que era quatrocentos quilômetros de distância. No final de três meses eu viria para Manaus para gozar os feriados, domingo, feriado que tivesse naquele período. Eu falei: “Ah, não”. Aí eu desisti. Aí já estava no mês de julho e quando eu vi este negócio acontecer com esse rapaz para mim foi a gota d’água. E eu adorava o trabalho lá da Petrobrás. Aquele trabalho é uma lindeza, um negócio espetacular. Eu vibrava com aquilo. É lindo, um trabalho maravilhoso. Agora, essa cabeça não consegui entender. Aí eu cheguei, eles deram no São João, 24 de junho, né, era um feriadão lá. Tinha uns quatro dias. Aí eu vim a Vitória, vim passear, vim ver a família, vim ver a noiva, aquele negócio todo. Aí conversei com um tio meu que era médico, que trabalhava na Vale, doutor (Hildo?) Garcia e contei como é que estava a situação. Ele falou: “Ah, vou conversar com o Eliezer Batista que era o superintendente lá, superintendente da estrada. Eliezer tinha sido meu professor também. Não demorou uma semana, eu voltei para Bahia, uns dez dias depois chegou um telegrama falando: “Pode vir”. Eu falei: “Está bom, estou indo, estou voltando”.
P/1 – Para ocupar que função?
R – Para ocupar a função de engenheiro de projetos e obras na seção técnica da via permanente. O que é isso?
[Parte 2]
P/1 – Bom dia, enfim, estamos continuando nossa entrevista. Quando o senhor ingressa na Vale do Rio Doce?
R – Eu entrei na Vale do Rio Doce no dia 21 de julho de 1959, eu fui trabalhar na seção técnica de Via Permanente. A minha função lá era simplesmente de engenheiro de projetos e obras, ou seja, a função mais humilde no cargo de Engenharia. O meu chefe, que era o chefe da seção chamava-se Deoclécio Rodrigues, uma pessoa fantástica que chegou a Diretor da Vale do Rio Doce, muito, muito inteligente, excelente pessoa, se tornou meu compadre depois, nós nos tornamos compadres. Uma pessoa fantástica. Eu tive muita sorte em toda essa trajetória, exatamente por conviver com pessoas como Deoclécio, e outros que eu vou citar depois. Acima do cargo do Deoclécio vinha o Gerente da Via Permanente, o chefe que era o Doutor José Imério de Oliveira e acima do Imério era o assistente da Via Permanente que era o Doutor Vidal, Adelmar Ribeiro Vidal. Finalmente o superintendente da estrada de ferro,o Doutor Eliezer Batista. O Doutor Eliezer foi meu professor na escola, aliás foi através dele que eu entrei na Vale, como eu disse inicialmente eu estava na Petrobras, achei que não estava muito legal lá por alguns detalhes e acabei fazendo chegar até o Doutor Eliezer que eu gostaria de vir para a Vale, e imediatamente ele me chamou e no dia 21 de julho eu entrei na empresa. Foi um período muito interessante porque quando eu cheguei na Vale, já estavam acontecendo algumas coisas no sentido de aumentar a produção da empresa, o nível de exportação. Tudo tinha que ser rearrumado, tudo tinha que ser melhorado. Por exemplo, a empresa tinha acabado, estava concluindo, ainda não estava totalmente concluído, mas estava concluindo o processo de substituição das locomotivas a vapor por locomotivas a diesel. Todo um processo de mudança da superestrutura da Via Permanente. Mudar todos os trilhos que eram muito pequenos, muito frágeis, trilhos chamados TR 35, trilhos de trinta e cinco quilos por metro. Esses trilhos foram substituídos por trilhos tamanho 45, mais robustos e posteriormente, quando eu entrei, já estava todo o esquema feito para o trilho 57 que é um trilho bem mais robusto. A empresa inteira estava se preparando – o que eu chamo de empresa inteira naquela época? Era um tripé: minas, ferrovia, porto. Tudo tinha que ser melhorado porque a empresa estava num nível tal de produção que estava tendo problema. Ela não conseguia aumentar, não conseguia vencer novos desafios se não se modernizasse, se não corrigisse uma série de encarregados (?) que existiam em todos os três pontos da empresa. Como eu mencionei: minas, ferrovia e porto. A nossa função na seção técnica de Via Permanente, era cuidar de obras, pequenas obras, concertos de passagens de nível, algum reforço de pontes, porção de algum armazém, estação ferroviária... Enfim, era tudo que fosse necessário ao longo da linha, nós
cuidávamos de projetar e construir. Em toda a extensão da ferrovia, desde Vitória até Itabira. São quinhentos e setenta quilômetros aproximadamente. Eu fiquei mais ou menos dois anos em Vitória, nessa situação. Com isso, eu tinha que viajar muito. Nós tínhamos que viajar muito ao longo da linha, porque já se faziam também pequenas correções no traçado da estrada. Naqueles trechos piores, muito apertadinhos, cortes muito encostados na ferrovia, quando chovia corria muita terra e atrapalhava o tráfego. Tudo o que fosse gargalo, tudo o que fosse obstáculo, a gente ia procurando resolver aos pouquinhos. Mas era uma coisa muito incipiente, muito inicial. Mas, o que acontecia? Já em 1960, a empresa chegou – eu acho que foi em 1960 – ela chegou no nível de seis milhões de toneladas por ano, para exportar. Seis milhões, vejam só. Mas, já estava batendo com a cabeça no teto. Tinha que pensar rapidamente em fazer coisas. Melhorias mais aprofundadas na própria ferrovia, que era onde eu trabalhava. Aí já foi o meu primeiro trabalho de maior monta dentro da empresa, foi participar da construção da Variante Sá Carvalho. O que era a Variante Sá Carvalho? Era um trecho de quarenta quilômetros, mais ou menos, de ferrovia, onde existia um desnível muito forte do rio – o rio Piracicaba, e a ferrovia se desenvolve ao lado do rio Piracicaba. Então, a gente refez a ferrovia num nível bastante baixo, e encontrava ali dois saltos importantes no rio Piracicaba. Ela subia aquele negócio de uma forma muito rápida, muito abrupta. Tinha rampas de mais de 2%, 2,2 % por exemplo, e curvas permanente apertadas, curvas com cem metros de raio. Qual o resultado disso? Toda hora acidente na ferrovia. Quando chovia muito e os trens mais pesados passavam, tombava trem. Era uma coisa complicada. A Variante Sá Carvalho já foi o primeiro passo importante na correção da ferrovia. Era o principal gargalo que existia na ferrovia. Esses quarenta quilômetros resultaram, depois de corrigidos. A gente começou lá embaixo, subindo mais lentamente, com curva bem mais suaves para vencer aquele degrau, aqueles dois degraus no mínimo, de uma
forma mais suave. E acabou que, o que era rampa de 2,2% em alguns trechos, nós transformamos em rampas de 1% só. No máximo. E é rampa de descida. Com trem carregado. O trem carregado desce em 1%. Se fosse subida seria impraticável. Mas, mesmo descendo, com uma rampa tão forte, você tinha problemas seríssimos. Problema de freio, problemas de toda ordem. Se a linha estivesse um pouquinho desajustada, um calozinho, como a a gente chamava, era a conta para causar um acidente. Então, esse traçado que era de quarenta quilômetros, com rampa de até 2% ou um pouco mais e curvas de até cem metros, passou a ter trinta e sete quilômetros só em vez de quarenta, com rampas de 1% no máximo e curva com quase trezentos metros de raio. Então, resolvido esse problema. Então, antes disso, ao tempo que a gente estava ali trabalhando ao longo da ferrovia toda, em pequenos alargamentos de corte, aterro, construçõeszinhas pequenas, a gente foi conhecendo pessoas fantásticas. Além do que ficava conhecendo a ferrovia quase que palmo a palmo, porque a gente andava de auto de linha para cima e para baixo, sempre.
P/1 – O senhor acompanhava
a...
R – Claro. A gente fazia, acompanhava, fiscalizava, contratava os ____ para fazer. A gente fiscalizava. No caso de terraplenagem a gente ia lá para fazer classificação, para poder dizer quanto ia pagar para o pessoal. A gente acompanhava o dia a dia. Não era todo dia, mas com certeza uma vez por semana a gente estava andando ao longo da linha para alguma coisa.
P/1 – E a mão de obra utilizada, era local?
R – Era local. A gente contratava firmas para fazer o serviço. Não eram obras feitas diretamente pela Vale. A gente fazia os contratos com empresas que terceirizavam o serviço. Eram contratadas. Empreiteiras. Até esses empreiteiros eram velhas pessoas conhecidas nessa região. Ainda cheguei a ver empreiteiros trabalhando com carrocinha, puxando carrocinha para fazer aterros. Uma empresa de Belo Horizonte do senhor Homero Lima. Dizem até que era muito rico. Conheci durante pouco tempo. Era uma pessoa supercuriosa. Não tinha instrução praticamente nenhuma, mas muito vivo, muito esperto. Até teve um lance uma vez. Nós fomos fazer a classificação de um serviço dele lá em Pedra Bonita (?). Classificação é o seguinte, você dizia: “Aqui tem, pelo que eu estou vendo, tem tantos por cento. Aquela época era material de terra, moledo(?) pedra solta, rocha branda, rocha dura. Eram cinco categorias diferentes. Hoje mudou isso tudo. É primeira, segunda e terceira categorias. Primeira categoria é um material mais fácil de tirar. Segunda é aquele que exige algum tipo de esforço mecânico_____. Terceira categoria é rocha. Nós estávamos fazendo a classificação, eu o Deoclécio e mais um engenheiro residente lá na época _____ chamado Bipe(?) e fizemos a classificação. O Seu Homero veio chegando: “Vocês estão malucos? Vocês estão achando terra. Onde já se viu. Aqui não existe terra”. Todo lugar que ele acampava, que ele montava, o escritoriozinho de obras dele, ele tinha cheio de caixas de dinamite vazia. Você via aquelas caixas velhas que acompanhavam ele. Em tudo quanto é lugar que ele ia, ele carregava aquelas caixas, botava na frente para impressionar a fiscalização. Como ele trabalhava com carrocinha, naquela época, ele dizia: “Vocês estão vendo terra onde, meu Deus. Outro dia morreu um burro aqui e eu para enterrar esse burro gastei dez caixas de dinamite, que tinha que enterrar ele na rocha”. (risos). Essas coisas. E a gente conheceu pessoas. Conheci, tive oportunidade de conhecer uma pessoa que é uma lástima que não pudesse estar aqui prestando o depoimento dele. Era o senhor Mário Carvalho. Mário Carvalho de Azevedo Barros era o nome dele, mas só se conhecia por Seu Mário Carvalho. Esse homem, eu fiquei conhecendo a história dele, me aproximei muito dele, admirava. Era um engenheiro nato. Acho que ele não tinha o curso primário completo, mas ele tinha um bom senso, tinha uma capacidade de observação das coisas, aprendia as coisas com tamanha rapidez, e era de uma seriedade, uma força de vontade impressionante. Esse homem entrou na Vale do Rio Doce como foiceiro de turma de topografia. Sabe o que é isso? É o camarada que vai...O sujeito mais rudimentar possível, e alguém fala: “Você vai aqui, vai abrindo uma picada por aqui, vai nessa direção. Vai seguindo essa linha”. E ele vai, de vez em quando olha para trás para ver se está certo. Vai e alguém vai orientando. É o serviço mais pesado, mais grosseiro. Mas foi assim que ele começou, trabalhando com o Doutor João Linhares, que foi meu professor de Estradas, que era pai do Doutor João Carlos Linhares, que deve ter sido entrevistado por ser diretor da Vale e que também foi meu professor. O Doutor João Linhares ficou prestando atenção no Mário. Uma pessoa que era esforçada, inteligente, rude, completamente rude.
Mas esse homem foi ser topografia e já foi assumindo funções dentro da mesma turma de topografia, funções mais nobres, vamos dizer. Passou a ser porta-mira, passou a ser auxiliar de topógrafo, o cara que carrega o instrumento, monta o instrumento, monta o tripé para colocar o aparelho em cima. Passou a ser medidor, que já é de uma função bem mais importante. Passou a ser seccionista, levantar secções transversais no terreno, que já usa régua com nível, medindo aquelas coisas. Enfim, em seguida a ser nivelador, trabalhar com nível que precisa trabalhar com muita precisão, ter muita perícia para fazer leitura na mira e finalmente chegou a topógrafo. Dentro da turma de topografia ele percorreu todas as funções. Mais do que isso: ele continuou trabalhando na ferrovia, já na manutenção da ferrovia. Não sei se ele chegou a ser mestre de obras ou não, mas ele foi durante muitos anos “engenheiro”. Ele não era engenheiro. Ele ocupava o cargo de engenheiro da terceira residência. Ou seja, lá em coronel Fabriciano que era a terceira residência, ele era o chefe. Existiam três residências no Estado. Uma ficava em Vitória e cobria os primeiros duzentos quilômetros da ferrovia, que ia até Itueta, logo depois da divisa de Espírito Santos e Minas. A segunda residência tinha sede em Valadares. Pegava de Itueta até
Naqui ou qualquer coisa assim, que é o quilômetro 400. E a terceira residência que pegava de Naqui até Itabira e a sede de Coronel Fabriciano. Esse homem, não só ocupou o cargo de engenheiro, como, em seguida, quando foi eleito o Senhor Jânio Quadros presidente da República, ele instituiu uma norma que toda empresa do governo teria que ter na diretoria um representante dos empregados. E o critério era o quê? Fazia-se uma eleição dentro da empresa, e os cinco nomes mais votados eram submetidos à diretoria, e a diretoria, a seu critério, escolhia aquele que ela achava que se enquadrava melhor dentro da função que ele deveria ter exercido. O Mário Carvalho foi um dos cinco mais votados e foi escolhido pela diretoria para ser diretor. Eu o conheci quando ele era ocupante do cargo de engenheiro residente e até o final, quando ele era diretor e durante a construção da Variante Sá Carvalho, que eu estava lá como engenheiro residente lá na Sá Carvalho, mesmo _____interior,
e ele ia sempre lá porque o primeiro estudo daquela variante quem fez foi ele. Como topógrafo, como engenheiro, como chefe de residência, ele fez o primeiro estudo. Chegou a locar uma linha. Esse estudo foi depois melhorado um pouco, mas ele era o pai daquilo. Eu não posso ficar falando muito tempo sobre isso. Eu apenas lamento que pessoas como Mário Carvalho, que dariam um depoimento fantástico da verdadeira origem ____ Eu vou falar do ponto que eu entrei para frente, que é justamente onde a empresa estava se explodindo para crescer. Para mim foi uma sorte, um privilégio realmente ter entrado naquela oportunidade e ladeado por pessoas fantásticas como ____ que eu já citei, o próprio Vidal da turma da ________ O Eliezer, como superintendente. O presidente na época era o Doutor Salé(?)
_____. França Pereira, Clóvis Ditzel (?), Morris Brown(?) Martins, Romeu, Fausto Vivas(?)... Meu Deus. Uma quantidade enorme de pessoas, que todo mundo trabalhava com muito ardor, com muita vontade de ver a Vale crescer. O sentimento de carinho pela Vale é uma coisa tão grande...Tem um lance que eu gostaria de contar, que eu achei fantástico. Quando a gente estava terminando o primeiro trecho da Variante Sá Carvalho, nós já tínhamos os primeiros vinte quilômetros, nós mudamos a ferrovia, já passamos a usar, com uma estaçãozinha que se chama Ana Matos, no quilômetro 400_____. Eu estava ali, a gente estava fazendo algumas coisas ali no pátio, estava lá olhando o serviço, e aí passou um trem. E o guarda-chave estava ali. Naquela época a linha não era sinalizada, tinha que ter o guarda-chave, a bandeirinha, o agente que dava a licença na mão do maquinista, tinha aquela argolinha para colocar a licença_____. Quando passou esse trem de minério, o guarda chave ali, eu cheguei perto dele: “Tá vendo Doutor Cristinano? Nós vamos bater outro recorde. O senhor vai ver só. Nós vamos fazer este ano mais do que no ano passado”. Um simples guarda-chave, lá naquele interior, ele vibrava quando passava mais um trem de minério que vinha.
P/1 – Mas a que se atribui esse sentimento?
R – As pessoas viviam a empresa. Viviam o espírito do que estava acontecendo. A gente podia conversar mais com as pessoas também. Estava mais próximo delas. A empresa não era tão grande como é hoje. E como muita coisa tinha que ser feita a cada momento, toda hora você estava mudando alguma coisa, estava melhorando, você tinha a oportunidade de conversar mais com as pessoas e elas participavam mais das coisas. Elas vibravam. Isso é uma coisa fundamental. A empresa, enfim, ela vibrava com tudo o que estava sendo feito. Bom, então, o que aconteceu? Rapidamente – eu disse que em 1960 a empresa atingiu o nível de seis milhões de toneladas – mas eles já estavam começando a fazer outras coisas: melhorar lá no porto. O porto, que era em Vitória, em Atalaia, alguma coisa foi feita para minério fino, para transportar o minério fino, para exportar o minério fino. Eu não participei diretamente da ___do projeto, mas a gente trabalhava encostadinho. A gente estava vendo. O Mascarenhas trabalhava naquilo. Era o chefe daquele grupo. O Ditzel ficou trabalhando ali. O Deoclécio acabou indo para lá também. O Deoclécio foi substituído na _____ pelo Duterlein(?)_____ experiente, e essas coisas foram melhorando. O primeiro virador de vagões foi instalado ali, no cais de _____. Um virador pequeno. A área muito acanhada, muito apertadinha, mas foi feito. Virava o vagão um de cada vez, só podia subir seis vagões de cada vez. Não tinha espaço. Tudo muito rudimentar, mas era algo mais, alguma melhoria a mais, para poder aumentar a capacidade de limpar esse… Como? Até esse ponto… Aí eu já mudei de Vitória para Sá Carvalho e eu fiquei lá dois anos na construção dessa Variante Sá Carvalho.
P/1 – E qual era a sua função?
R – A minha função era gerente. Gerente de obras. Gerente de implantação. Nem sei o cargo. Na verdade, nós éramos três pessoas, três engenheiros. O Deoclécio era o chefe. Ficava em Nova Era. Ele era o assistente. O superintendente do Departamento de Obras ficava em Belo Horizonte. Era o Marcos Pereira Viana, outra pessoa maravilhosa, superinteligente que participou ativamente desse processo de crescimento da Vale. Marcos Pereira Viana. Nem sei se vocês tiveram a oportunidade de conversar com ele. É um camarada com uma cabeça fantástica. Marcos foi inclusive presidente do Bndes. Uma pessoa muito interessante para vocês ouvirem. Então, a coisa era essa. Em Sá Carvalho mesmo, eu cuidava pessoalmente da parte de terraplenagem, pequenos consertos no projeto, porque o projeto foi feito muito rapidamente, e muitos trechos ali teve que ir melhorando. Para mim foi um aprendizado fantástico. O Fernando Leal, que cuidava de obras de arte e ainda foi depois o José Paulo Ribeiro Campos, que também é falecido, que também foi auxiliar, o que nós fazíamos. Tinha túneis, tinha pontes de bom tamanho, muita obra de arte ____ galerias, essas coisas, e a parte de drenagem ______. Bem, mas o fato é que, tudo que eu estou falando, a Variante Sá Carvalho acho que foi um tópico importantíssimo na melhoria das condições gerais da ferrovia. Agora, não foi só a questão da correção de traçado –
porque a Variante Sá Carvalho é uma correção de traçado em planta e em perfil. Em planta que eu digo é as curvas.... e perfil quer dizer as rampas. Em toda a ferrovia, ao longo de todo o trecho, outras pequenas melhorias foram feitas e mais melhoria do sistema de drenagem. Já falei que os trilhos foram trocados, já com trilhos bem mais robustos, que era o trilho 57 na época. Hoje já é maior que o 57. Na época era o trilho 57. Também a taxa de dormentação foi aumentada, fazer mais quantidade de dormentes para cada quilômetro. Ou seja, diminuiu a distância entre um dormente e outro para dar mais rigidez à linha, ao trilho. Também a parte de lastro, porque tudo isso é importante no que diz respeito à drenagem e à segurança da linha. O lastro foi aumentado, a altura do lastro – a parte de brita que fica protegendo o dormente, até encontrar o solo – e também as ombreiras do dormente para fora, mais uma certa distância do trilho que é para linha ficar firme. Por que isso tudo? Porque também o processo de assentamento da linha foi mudando. Hoje, e já naquela época, em vez de você ligar cada trilho, que tem doze metros de comprimento com aquelas talas de junção para permitir a dilatação – isso é tudo história antiga já – esses trilhos passaram a ser soldados. E por que não acontecia a dilatação? Justamente porque o lastro era muito mais forte, muito mais potente. Então, todo esforço proveniente da dilatação, o próprio trilho absorve. Hoje os trilhos são soldados a cada mil metros e até mais. A solda é feita no local. A coisa foi evoluindo de modo que, a superestrutura e a infraestrutura
da ferrovia foi completamente modificada, num período aí de uns quatro anos. Enquanto isso, lá nas minas, outras coisas estavam acontecendo. Existia uma instalação mecanizada na mina, chamávamos mecanizada velha. Foi construída uma nova instalação paralela àquela, com britadores muito mais potentes, britadores do tipo giratório. O outro era de mandíbula, aquele sistema inicial, que dava um trabalho danado e a manutenção caríssima. O giratório, além de uma capacidade muito maior
de produção, ele tinha uma manutenção muito mais fácil.
Foi construído esse segundo sistema de produção de minério, vamos dizer assim, nas minas. Equipamentos muito mais possantes, mais potentes.
P/1 – O senhor acompanhava essa...
R – Não. Eu apenas presenciava. Nessa época em que tudo estava acontecendo, eu estava em Sá Carvalho. Depois de Sá Carvalho, já em 1963 eu mudei para essa ______ . Entrei em 1959 em Vitória, em meados de 1961 eu fui para Sá Carvalho, fiquei até 1963, até maio de 1963. Fui pra Belo Horizonte, porque nessa época outras coisas estavam acontecendo. Por exemplo: eu disse que a nossa ferrovia chegava em Drummond e ali tinha uma conexão com a Central do Brasil, que ia para Belo Horizonte. O trajeto dela era: Drumond, Nova Era, Santa Bárbara, Barão de Cocais, subia a Serra Geral, atravessava Porto Lázaro (?) para chegar em Caetés, Sabará, Belo Horizonte. Então, nesse trecho ainda surgia uma outra empresa que era a Samitri_______Belgo Mineira, com quem a Vale estava mantendo negociações. E a Samitri negociou para Vale chegar à concessão, a Vale trazer o minério dela para Vitória. Fazer a exportação através de Vitória. Porque a outra alternativa que ela tinha era levar o minério para o outro lado da serra para chegar em Itabirito, por exemplo, que era a linha mais próxima e botar na linha da Central do Brasil para vir para o Rio de Janeiro. Só que essa ferrovia e as condições gerais, tanto na ferrovia quanto aqui no porto do Rio, não davam para atender os anseios da Samitri, que já era de uma capacidade muito grande. Então, houve essa negociação e a Vale arrendou esse trecho da Central do Brasil, que ia desde Dumont até Santa Bárbara. Inicialmente arrendou para depois de alguns anos, com muita briga, muito esperneio da Central do Brasil, acabou esse trecho ficando definitivamente com a Vale. Aí, o que foi feito? Nós fizemos também a correção dessa ferrovia que era da Central do Brasil, sob os cuidados da Vale do Rio Doce, principalmente até Costa Lacerda, que ali era o ponto de onde a gente ia sair para as instalações da Samitri, Fazenda Alegria, que é na encosta da Serra Geral, mas do lado da bacia do Rio Doce. E ainda, nesse mesmo tempo e com essa visão de crescimento que já tinha a Vale, foi feita também a negociação com a Ferteco (?), aquele grupo alemão que já fica no Vale do Paraopeba, do outro lado da Serra Geral, portanto na bacia do rio São Francisco.
P/1 – Nesse momento, o senhor estava baseado onde?
R – Eu continuava em Vitória, Sá Carvalho e Belo Horizonte em seguida, porque quando se decidiu essa construção, essa chegada da ferrovia até
Fábrica(?), aí eu já fui para Belo Horizonte para acompanhar o projeto que tinha sido contratado por uma companhia internacional de Engenharia.
P/1 – E o senhor fica em Belo Horizonte até quando?
R – Eu fico em Belo Horizonte até 1968, final de 68. eu fui para lá com a incumbência de continuar dando cobertura à Sá Carvalho e retificação da Central do Brasil que estava em andamento, mas principalmente acompanhar o projeto que se pretendia fazer de Fábrica até Fazenda Alegria, porque de Fazenda Alegria para baixo já tinha o projeto pronto. Enfim, eu fui para lá...Vieram inclusive dois estrangeiros, um americano e um canadense, que a internacional, entenda-se ________. Mas só que esse pessoal estava com a _____muito fora das nossas condições. Eles chegaram pensando em fazer amarrações, amarrar todos os chamados pontos notáveis do projeto. Compraram equipamentos, na época os mais sofisticados que existiam aqui para fazer triangulações lá de cima, do pico de Itabirito, pico de ______ para fazer uma triangulação e colocar no papel onde seriam os chamados ______ os pontos de _______e os pontos notáveis da ferrovia. E a linha não saía porque um dia estava muito nublado, outro dia tinha sol demais, outro dia chovia. Eles não conseguiam fazer esse negócio. Essa hora eu já estava em Belo Horizonte, o Deoclécio já era o superintendente do Departamento de Obras e o Marcos Viana já tinha mudado de lá de Belo Horizonte para o Rio, como superintendente geral de Desenvolvimento. Já tinha havido uma reestruturação da empresa que foi comandada por uma equipe do professor Antonio Dias Leite, que é outra figura extremamente importante em todo esse processo de crescimento da Vale. Ele foi presidente da Vale também, foi Ministro de Minas e Energia. Primeiro foi presidente da Vale. Depois foi Ministro de Minas e Energia. Como o Eliezer também. Saiu da presidência da Vale para ser
Ministro de Minas e Energia. Só que depois voltou, mais adiante, a ser presidente da Vale novamente.
P/1 – E foi aí que o senhor recebeu o convite para vir para o Rio?
R – Mais adiante um pouco.
(Interferência)
R –...os caras estão demorando demais. Eu não sei se até hoje a nossa ferrovia, que está transportando minério, eu não sei se alguém sabe as coordenadas dos PIs, PTs, para que isso – PT não é partido não – Ponto de Tangência, chamava. Não existe isso não, vamos por a linha no chão depois no futuro faz amarração que quiser, tiramos a Internacional. Aí foi um projeto que eu tive uma participação muito grande desde o início, que aí nós assumimos a responsabilidade de que íamos fazer o projeto, íamos construir e aí eu tinha que ir para o campo, mas nós tínhamos toda a restituição aerofotogramétrica da região do quadrilátero ferrífero. Lá dentro do escritório de Belo Horizonte fizemos o lançamento de qual seria o melhor caminho para a ferrovia. Íamos para o campo, contratamos uma firma de topografia local, firmas locais, enfim, graças a Deus deu tudo certo, foram cento e pouco quilômetros, enfim, conseguimos dentro das condições difíceis, que você atravessa a Serra Geral. Nós conseguimos uma ferrovia muito bonita, de condições bastante boas. Lá você tem viadutos com mais de noventa metros de altura, temos dois lá com noventa e quatro metros de altura, tem túneis de vários tamanhos, de mil e duzentos metros ou maior que atravessam a Serra Geral, outros menores, enfim, com graus de dificuldade variados. Eu estava em Belo Horizonte, eu era assistente de projetos, e o Deoclécio era Superintendente. Outras mudanças foram acontecendo na Vale, Marcos Viana saiu da Vale para ir para o Bndes, acabou que o Deoclécio veio para o Rio, ficou ocupando uma certa função no Bndes também, mas ainda na Vale. Acabou que surgiu uma oportunidade aqui, com a saída do Emanuel Magalhães, ele saiu do cargo dele que era superintendente do Desenvolvimento, pesquisa de desenvolvimento... não me lembro o nome agora, fizeram uma modificação lá, o Romeu Teixeira ficou sendo o superintendente geral, o Deoclécio já foi assumir uma outra posição na secretaria técnica, quase de diretor. Aí me convidaram para ser o superintendente de departamento aqui no Rio, continuando a dar assistência às obras em Minas e agora também no Espírito Santo, porque no porto também coisas estavam acontecendo. Além da ferrovia. Bem, quando eu fui para Belo Horizonte já como Assistente de Projetos, acabei dando assistência também à parte de projetos das obras das minas. Mas já estavam bem adiantadas e tudo.
P/1 – Mas aí você veio como superintendente de projetos de obras?
R – Eu vim para cá como Superintendente de Projetos e Obras no Rio. Qual era a missão dessa superintendência? Era supervisionar toda as obras da Cvrd (Companhia Vale do Rio Doce) na região de Minas e do Espírito Santo, que eram as obras de fábrica, ramal de fábrica, todas as obras da ferrovia, mais as obras das minas. Aí já surgiu mais uma minazinha nova que era a Mina de Piçarrão, que a gente teve que construir um ramalzinho até lá também. Isso eu ainda estava em Belo Horizonte quando fez esse projeto também, já tinha iniciado a obra para lá também. Acesso às minas de Conceição, que antigamente era feito por cabo aéreo, a mineração era uma coisa muito rudimentar lá, em Dois Córregos, em Conceição e o transporte feito com cabo aéreo, aquelas cachambinhas penduradas num cabo para chegar lá embaixo num ponto de carregamento da ferrovia. Então nós construímos essa ferrovia também, um trechozinho, até chegar nas minas, fizemos um terminal lá em cima, uma ______ ferroviária. E mais, aí é um passo que veio a seguir, eu já estava no Rio, e nós tínhamos a Empresa que montou um Centro de Estudos, um Laboratório de Pesquisas de Belo Horizonte. Era Márcio Paixão, Fábio Teixeira, e outros mais que vinham desenvolvendo estudos para o aproveitamento do minério fino que existia abundantemente em Itabira e que era um verdadeiro entulho, porque você não conseguia vender aquele minério para quase ninguém. Você tinha problema de como estocar aquilo. Já começava a atrapalhar a mineração e tudo. Pior, o itabirito que é um minério de baixo teor... o itabirito é como se fosse o minério normal, que é a hematita, só que ele vem em camadinha: uma camadinha de minério, outra de areia, uma camadinha de minério, outra de areia, faz aquele pacote. O teor dele cai para 40% de minério de ferro, o resto é areia. O teor mínimo que a Vale exporta é de 66%. Na verdade, aquelas minas, que tinha jazidas espetaculares, chegavam a dar 69%, é um minério quimicamente puro praticamente. O minério de ferro, a hematita é ferro e oxigênio, dois de ferro três de oxigênio. Então, se você separar esse negócio aí, a participação do ferro é de mais ou menos 69% de pureza absoluta. Essas coisas já vinham sendo estudadas nesse laboratório do quilômetro 14, fazendo testes e mais testes, equipamento de tudo quanto é coisa, e aí, imediatamente depois que eu vim... aí eu fui acompanhando o Márcio e o Fábio Teixeira numa viagem à Alemanha para já discutir com a Humboldt que era a empresa alemã que tinha desenvolvido alguns projetos semelhantes lá para a África, e nos estava dando uma certa assistência, estava mudando o sistema de peneiramento de itabirito. Os engenheiros de lá falaram que tinham experiência, já tinha havido alguns contatos e nós fomos lá para ver algumas coisas que a Humboldt estava fazendo: testes, alguns desenhos, e a gente já pensando na obra. Nós já tínhamos comprado um concentrador eletromagnético do tipo Jones. Um concentrador de alta intensidade magnética. O que significa isso? É um equipamento que gira, tem várias placas de um aço especial e aquilo tudo é imantado. Você vai girando, o minério já moído, aí é o itabirito, aquele minério de hematita junto com areia. Ele é muito friável, fácil de moer. Joga com água, forma aquela lama para ir abastecendo esse disco, tem um ponto de abastecimento. Então, esse minério cai ali, o campo magnético atua, o minério fica aderido às placas. A areia não tem magnetismo e passa direto, vai embora junto com a água. Durante a metade da volta, o campo magnético está funcionando, aí segura o minério e a areia vai embora. No campo seguinte, no outro lado da curva, libera o campo magnético e joga água, aquele minério desce, lava aquelas placas até chegar ao ponto de carregamento. Mas isso levou anos e anos para ser desenvolvido, para você ter um equipamento para você trabalhar em escala industrial, que era o que interessava. Tivemos lá na Alemanha e lá mesmo trabalhamos no layout, no arranjo geral da instalação da concentração de minério de Itabira. Isso é um item fundamental no crescimento da Empresa, na capacidade de produção, principalmente da capacidade das minas porque a cada ano você está aumentando a exploração, aumentando a retirada de minério, aquilo vai acabando. Se fosse só hematita, já tinha acabado há muito tempo.
P/1 – Como era a relação com os alemães?
R – Excelente. ______ o serviço também, nós éramos os clientes e eles eram os fornecedores, tinham que tratar a gente bem.
P/1 – Mas, nesse momento, a Vale do Rio Doce investia nesse tipo de pesquisa?
R – Tudo. Está lá ainda, o quilômetro 14.
P/2 – Mas qual era exatamente a parceria do setor que o senhor trabalhava com esse centro de pesquisa?
R – Esse Centro de Pesquisa também pertencia à Superintendência de Desenvolvimento, à qual eu também pertencia, Departamento de Projetos e Obras, mas com muita intimidade com o pessoal das minas, porque os técnicos de mineração também estavam lá. Eles tinham muita ligação. O laboratório, quer dizer, esse Centro de Pesquisa, ele trabalhava com tecnologia mesmo, eles tinham contato com o mundo inteiro, técnicos de várias especialidades no mundo inteiro, eles tinham que estar em contato com essa gente. Enfim, o fato que já em abril de 1969 nós fomos para a Alemanha e em 1970 já começamos a fazer a obra. Fizemos dois conjuntos de concentração e lavagem de minério, um conjunto onde você pega o minério fino, purifica ele, concentra, separa o que não presta e separa em granulometria que hoje é a Pelet fide (?) que é o minério mais fininho que se usa para fazer a pelota de minério, o sinterfide (?) que é ligeiramente acima, um milímetro, coisa assim, para fazer sinter para a siderurgia e outro maiorzinho que chama pellet ore, um pedacinho de minério mais ou menos parecido com a pelota, mais ou menos do mesmo tamanho. Isso tudo foi feito, eu já misturei um pouco das coisas da ferrovia, porque, ao mesmo tempo, estava sendo feito nas minas a segunda mecanizada que eu mencionei antes, com instalações muito mais modernas do que a velha mecanizada e agora todo o complexo de concentração de minério, com instalações de carregamento de trem muito mais modernas. Você carrega o trem em movimento, você bota a carga já certinha, tudo controlado com célula fotoelétrica, enfim, um negócio de primeiro mundo. A ferrovia então se preparou, a mina se preparou. Agora, o porto. O que tinha que ser feito no porto? Tudo que podia ser feito no velho Porto de Pau e Atalaia vinha sendo feito. Até um cardã (?) que foi instalado, na verdade instalamos até um segundo. Mas era tão ruim, tão difícil. O Cardã (?) também não aprovou logo, demorou a funcionar, que já não servia mais, já estava pensando em Tubarão. Porque de seis milhões de toneladas por ano que a Vale atingia em 1960, mais ou menos. Ela chegou a dez milhões de toneladas ainda nas velhas instalações do Porto de Vitória. Isso aí é um negócio inacreditável, mas também em função daquelas pequenas melhorias que puderam ser feitas ali, inclusive a parte de carregamento de minério fino, que era um item especial. Mas aí então com toda essa potencialidade que existia, o Eliezer foi para o Japão e, quando voltou, falou: “Nós assinamos um contrato lá e nós temos que mandar quinze milhões de toneladas por ano para o Japão. Tem que chegar a isso a partir de 1966. Estamos falando de alguma coisa de 1963 quando o Eliezer esteve lá, 62, 63 quando chegou com esse troço, aí sai, vai buscar gente no exterior para estudar qual a melhor localização para um porto em Vitória, estudou, Capuava, Santa Cruz, várias localizações e acabou sendo eleita a posição para instalar o Porto de Tubarão, por ter águas mais profundas ali perto, enfim, tinha condições mais favoráveis. Aí veio aquelas histórias que a gente estava ouvindo, estávamos lá para o interior, trabalhando em _______, essa _______ já estava no rio, mas desde o início: “Vamos fazer o porto de Tubarão”. Começou a obra em 1964, eu estava em Belo Horizonte ainda. “Estão falando em receber navio de cem mil toneladas, nem existe esse navio.” Não existia não, ainda não. “Estão pensando em chegar a vinte milhões de toneladas por ano! Através de Tubarão? O pessoal está maluco.” Mas não estavam malucos não. Acontece que em 1966, conforme o previsto, foi inaugurado o Porto de Tubarão e começou uma história diferente na Vale do Rio Doce.Recolher