Projeto Memória Vale do Rio Doce
Realização Museu da Pessoa
Depoimento de Danilo Gadê Negócio
Entrevistado por José Carlos Vilardaga e Manuel Manrique
Rio de Janeiro, 31/08/2000
Entrevista CVRD_HV059
Revisado por Ana Calderaro
P/1 - A primeira pergunta que a gente faz é pedir para o senhor s...Continuar leitura
Projeto Memória Vale do Rio Doce
Realização Museu da Pessoa
Depoimento de Danilo Gadê Negócio
Entrevistado por José Carlos Vilardaga e Manuel Manrique
Rio de Janeiro, 31/08/2000
Entrevista CVRD_HV059
Revisado por Ana Calderaro
P/1 - A primeira pergunta que a gente faz é pedir para o senhor se apresentar. O nome completo, data de nascimento e o local de nascimento.
R - Bom, Danilo Gadê Negócio, nascido em Mossoró, Rio Grande do Norte, em 25 de março de 1938.
P/1 - O senhor conhece um pouco a história da sua família, a origem dela?
R - Bom, até onde eu pude encontrar, eu tenho uma memória, sim. Primeiro, esse nome parece um tanto estranho. Negócio, de onde vem isso? A versão da minha família é de que um dos antepassados, possivelmente um tataravô cearense, de Aracati, era comerciante. Então, você tem a profissão que se associou ao nome. Então, Seu José de qualquer coisa, que passou a ser José Negócio. E isso ficou. Eu sempre acreditei nessa versão, embora exista uma outra, da possibilidade de nós termos, quem sabe, um calcanhar na sinagoga. Eu não tenho muitos dados nesta vida pelo menos, com a criação judaica. Mas o Negócio pode ser tipo _______ português. O Gadê é o nome da minha mãe desde a família do meu avô, pernambucano, da região do grande Recife, ______. É muito provável que nós tenhamos uma vinculação com o período holandês em Pernambuco no século XVII. O nome Gadê, G-A-D-Ê, eu encontrei na Holanda, encontrei um pouco na Alemanha também, embora possa ser também de origem espanhola, de Cádiz. Como de resto, a grande parte do povo brasileiro, e eu não sei se é só ______, tem uma origem europeia. E eu tenho também, do lado da minha família, origem negra. Minha bisavó, que era filha de escravos, e por acaso dessa é que veio a origem desse nome Negócio. Essa é a ligação que eu tenho e o conhecimento que eu tenho da minha família. Pernambuco, do lado da minha mãe, e Ceará, do lado do meu pai. Meu pai mesmo nasceu em Fortaleza e minha mãe nasceu no Rio Grande do Norte, numa cidadezinha perto de Areia Branca, na região costeira, uma cidade chamada Grossos. A minha família materna é de toda aquela zona oeste do Rio Grande do Norte, Fernandes, Pimenta e Freitas. Meu avô nasceu em Pernambuco. Os avós paternos nasceram em Aracati, no Ceará. E o meu pai nasceu em Fortaleza.
P/1 - Como que a família... Como seu pai encontrou a sua mãe, como foi esse encontro familiar?
R - Olha, eu nasci em Mossoró, lá no Rio Grande do Norte, que nas primeiras décadas do século era um centro polarizador de toda aquela região do Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. Mossoró fica exatamente na fronteira, fica ao lado do Ceará. Até a relação que existia naquela ocasião era maior com Fortaleza do que com Natal. Os estudantes saíam de Mossoró, quando terminavam o ginasial, para ir fazer o clássico, o científico, o segundo grau em Fortaleza. Mais do que em Natal. E a Universidade também. O que aconteceu com o meu pai foi mais ou menos o contrário: os pais dele eram de Aracati, migraram para Fortaleza, se conheceram lá, casaram em Fortaleza e meu pai nasceu em Fortaleza. Ainda muito pequeno, ele veio com a família para Mossoró e se educou. Meu avô era alfaiate, pai do papai e teve muita dificuldade para manter a família. Meu pai era o mais velho, conseguiu sair daquele ramerrão da cidade do interior e terminou o curso ginasial em Mossoró e foi para Fortaleza. Fez a faculdade de Direito, se formou lá na Universidade Federal, na Universidade de Fortaleza, faculdade de Direito e, ao se formar, retornou para Mossoró. Minha mãe, que tinha nascido no município de Areia Branca - uma cidadezinha de Grossos que, hoje, é uma cidade, mas antigamente era Distrito de Areia Branca -, também saiu da sua cidade, onde só tinha escola primária, e foi fazer o curso normal de professora em Mossoró. Meu avô então mudou de Grossos, ele era responsável por uma salina, o avô materno, e foi com a família para Mossoró porque era mais fácil de educar os filhos. A minha mãe, então, estudava na escola normal, onde o meu pai recém formado era professor. Ele foi professor da minha mãe, então veio o namoro e, depois, pro casamento foi um passo. E eles casaram em 1937 e continuaram morando em Mossoró. E ali eu nasci e nasceram todos os nove filhos deles.
P/1 - Nove filhos?
R - Nove filhos. Eu era o mais velho, depois três moças, das quais uma faleceu jovem aqui no Rio, ela era assistente social. E mais cinco garotos, hoje já adultos. Todos, graças a Deus, bem de saúde e bem profissionalmente também. A minha mãe... Meu pai morreu muito cedo, com 39 anos de idade, ele era advogado e era político, deputado estadual lá no Rio Grande do Norte, e foi secretário geral do Estado do Rio Grande. Naquela época não havia Secretaria de Estado, havia apenas uma Secretaria e Departamentos simbolizando a Secretaria, então o secretário era quase um primeiro ministro. E meu pai, então, em 1951, aceitou a Secretaria Geral do Estado em janeiro de 1951 e faleceu em março daquele mesmo ano, em um acidente de automóvel. Ele teve 39 anos. E se há de convir que minha mãe, com oito filhos e um na barriga, ou seja, o nono filho nasceu quatro meses depois, nós tivemos uma infância bastante atribulada e apertada. E eu tive, claro, como filho mais velho, que assumir uma postura quase que paternal com relação aos outros irmãos. Eu tinha recém completado treze anos naquela ocasião, já estava estudando em Natal, fazendo o ginasial lá no colégio _______, na terceira série, e continuei em Natal estudando. Quando terminei o ginásio, fui para Recife, dois anos depois. Fiz o primeiro e o segundo ano do segundo grau em Recife e no terceiro ano eu fui para João Pessoa, onde morava o meu avô, pai de mamãe. Ele tinha mudado de Mossoró para João Pessoa e tinha um sítio. Aí eu fui morar com ele até por uma questão de economia, divisão de gastos. Terminei o clássico, que seguia na época quem pretendia fazer Direito - e eu pretendia fazer Direito -, lá no Colégio Estadual de João Pessoa. Fiz vestibular e todo o curso de Direito eu fiz em João Pessoa.
P/1 - Como é que foi um pouquinho essa primeira infância? Quer dizer, em Mossoró ainda. Como é que era a casa, as brincadeiras, seu dia a dia familiar?
R - Mossoró é uma cidade que eu acho diferente do usual. Há um certo despeito entre Mossoró e Natal. Uma disputa, claro, é difícil, porque Mossoró é uma cidade relativamente pequena, apesar de ser a segunda cidade do Estado. Deve ter, hoje, em torno de 250 mil habitantes. Natal, não, Natal é uma cidade mais cosmopolita, uma metrópole. Mas Mossoró sempre foi uma cidade um pouco diferente no seu comportamento como cidade. Em primeiro lugar, o local onde foi instalada a cidade, há cento e poucos anos atrás, segundo os sociólogos, é um lugar inviável para existir uma cidade. É muito quente. Fica como se fosse o fundo de uma bacia, uma várzea imensa, produção de sal, um calor insuportável. E só o fato de ter sido criada uma cidade e os seus habitantes sobreviverem já devia ter algum mérito. Então, Mossoró tem, na sua história, algumas coisas importantes. Uma delas é que ela foi esse centro polarizador no início do século. Vinham estudantes da Paraíba. Ali em Mossoró estudou o antigo governador, João Agripino, da Paraíba, o governador Tarcísio Maia. Vinham estudantes do interior do Ceará e de todas as cidades da microrregião para estudar no famoso ginásio Diocesano Santa Luzia, hoje um colégio já centenário. Então, era um local realmente que tinha muita força econômica: produção de algodão, produção de cera de carnaúba, produção de sal, gesso, calcário em abundância, tudo produzido lá. E era o centro dos comboios de carga de burro, de cavalo, etc, que faziam o transporte de todos esses bens _____. Então, Mossoró realmente tinha aquela vocação de polarizar. Por outro lado, a história de Mossoró também tem alguns feitos heróicos com que o natalense costuma brincar, mas, de fato, são importantes. Um deles é que foi a segunda cidade do Brasil que libertou os escravos, em 1883, ou seja, cinco anos antes da abolição da escravatura no Brasil já não existiam mais escravo em Mossoró. E todo aquele que passasse por Mossoró e tivesse escravo, ou libertava o escravo ou então teria que passar fora do município. Então, gente que ia em direção a Fortaleza ou em direção a outra cidade tinha que engobiar toda a cidade de Mossoró porque não podia entrar escravo ali. Então, isso foi muito interessante, teve um papel fundamental na época da maçonaria e de algumas pessoas com uma ideia libertária. E outra coisa: foi a primeira cidade que derrotou o lampião e seus cangaceiros, em 1927. Então isso deu um _______ um pouco mossoroense. E eu também fui criado mais ou menos com essa ideia de que Mossoró era a capital do mundo. Nós tivemos, além disso, no Estado, uma vanguarda da libertação feminina, talvez as primeiras mulheres piloto de teco-teco, de avião, apareceram por ali, os primeiros _______. A primeira eleitora feminina do Brasil ou, se não me engano, da América Latina, foi do Rio Grande do Norte. Então, Mossoró tem essa história. E a gente sempre teve muito orgulho de ser mossoroense. Embora, muitas vezes, eu diga brincando que Mossoró é um lugar muito bom para a gente nascer e ter saudade. Eu tenho saudade de Mossoró, realmente. O destino me afastou de lá. Eu queria estudar, eu tinha, naturalmente, um pouco de ambição na minha vida e ali, talvez, eu tivesse terminado a vida... Ou tivesse terminado a minha carreira como vereador, como prefeito, sei lá, marido de uma fazendeira ilustre lá da região. (riso)
P/1 - Essa trajetória política do seu pai. Ele começou como professor, voltou e se tornou professor da escola, é isso?
R - É, ele se tornou professor e advogado militante. E, diga-se de passagem, teve uma excelente reputação lá como advogado. Era considerado um dos melhores advogados na advocacia civil e na advocacia criminal também. Ele participou de júris memoráveis lá em Mossoró. E ainda jovem ele teve um sarantinho de juventude, que foi participar do movimento integralista, que era, naquela ocasião, uma ideia fascista no Brasil. Mas você não tinha muita alternativa, ou você bandeava para o lado da extrema direita ou bandeava para o lado da extrema esquerda. Ou era integralista ou era comunista. Ele optou, na época de estudante, pelo movimento integralista. E quando voltou para Mossoró, depois da faculdade, ele foi filiado ao Movimento Integralista Brasileiro, etc. Mas, de fato, claro, ele tinha as suas convicções. Eu não vou dizer que eu estaria inteiramente de acordo com elas, mas ele tinha as suas convicções e era um defensor intransigente dessas convicções. Mas, ao mesmo tempo, ele respeitava o oposto, haja visto que grandes amigos dele, na ocasião, eram do Partido Comunista. E ele, como advogado, na época da perseguição ao Partido Comunista, quando o Partido foi colocado na ilegalidade, ele foi advogado de um dos chefes do Partido lá em Mossoró. E, se não me engano, obteve a libertação dele. Ou seja, eu não concordo com isso, mas acho que ele tem o direito de defender essa ideia. Então isso, para mim, me marcou muito, essa postura ética dele. E ele realmente teve na sua vida um comportamento ético e aprovado para mim. Então era um político muito sério. E os adversários... Naquele tempo, adversário era inimigo de fato, você não tinha meio termo. Ou era Partido A ou B, ______ etc, você não tinha aproximação nenhuma. Até os irmãos se tornavam inimigos, desde que tivessem a opção política diferente. Então, ele manteve, naturalmente, seus pontos de vista, mas tinha esse sentido democrático muito forte de admitir a existência do outro e que o outro pudesse expor e defender as suas próprias ideias. E isso foi o que ele levou. Na redemocratização, em 1946, ele se candidatou a deputado e se elegeu a deputado pela UDN, que era a antiga União Democrática Nacional. E durante o seu mandato ele liderou a oposição. Nessa ocasião, o governador era do PSD, o Partido Social Democrata, e ele foi líder da oposição na Assembleia. E teve uma posição marcante na Assembleia, tanto é que, na campanha seguinte para governador, foi lançado um candidato a governador de Mossoró, que foi eleito, que era o Gessé Rosado, da família Rosado, __________. O Gessé era um jovem contemporâneo de papai e que foi praticamente o chefe da família depois da morte do pai. Ele próprio sacrificou a sua carreira pessoal, não se formou, teve, simplesmente, acho que o primeiro grau. Mas era um grande administrador nato, era um líder também. Tomou conta dos negócios da família, bancou o estudo dos irmãos todos e assumiu uma liderança política em Mossoró. Foi eleito prefeito, fez uma excelente administração. E a partir dessa excelente administração, ele foi cogitado e lançado candidato a governador. Se elegeu. E meu pai, claro, era amigo dele, correligionário, e foi um dos mentores intelectuais da campanha do Gessé Rosário. Gessé se elegeu e convidou meu pai. Meu pai não queria, porque, não sei, talvez tivesse alguma intuição e preferia ficar em Mossoró. Mas aceitou e foi secretário geral do Estado. Mas só dois meses, porque ele assumiu em janeiro e em março meu pai morreu. E o próprio governador Gessé, quatro meses depois, em julho, morreu também em um acidente, junto com três secretários de Estado. Foi realmente uma tragédia para o Rio Grande do Norte. E uma tragédia maior para a minha família. E eu fiquei, como eu já disse, assumi quase que espontaneamente - entre aspas, coagido pela própria família - uma posição de mentor dos meus irmãos menores e, de certo modo, de apoio a minha mãe, que ficou totalmente fragilizada durante muitos anos. É mais ou menos isso que eu enfrentei.
P/1 - E o senhor estudou em Mossoró, nessa escola Santa Luzia?
R - Estudei, exatamente. Essa escola, como eu disse, é muito tradicional. Já completou, no ano passado, cem anos de existência. Quando meu pai estudou, ela estava acho que com vinte anos ou trinta anos de fundada. Por ali passaram vários governadores de Estado, vários profissionais liberais, empresários, etc. Até hoje continua funcionando esse colégio, tem cem anos agora. E na época que eu estudei, ali terminando o curso primário, ela estava completando cinquenta anos, ou seja, cinquenta anos atrás, já é algum tempo. E terminei o primário, fiz a primeira e segunda série ali. Quando o meu pai foi para Natal ser secretário de Estado, ficava para ele muito difícil ficar indo de Natal para Mossoró. Naquela época não havia essa facilidade de avião, então, muitas vezes a gente levava de oito a dez horas de ônibus, ou seis horas de carro, para ir de Mossoró para Natal. Então, claro que meu pai, tendo que trabalhar constantemente em Natal, um pouco diferente da situação como deputado, podia ir e voltar, então a minha família estava já se preparando para a mudança para Natal. Minha mãe já estava com tudo empacotado para viajar na semana seguinte à morte do meu pai. Então, isso veio naturalmente a abortar e nós tivemos que continuar em Mossoró. E como eu já tinha ido antes do ano letivo para Natal, porque não podia ser transferido no meio do ano, comecei a estudar então, a partir da terceira série, no Colégio Santo Antônio, que era dos irmãos Marista naquela ocasião. E aí foi praticamente a separação minha da família naquele ano, eu com treze anos, em 1951. Fiquei, então, terminei o ginásio lá em Natal. Como eu queria fazer direito e em Natal não tinha o curso clássico, que era o mais apropriado, eu fui transferido, então, para Recife.
P/1 - E enquanto o senhor ficou em Natal, como é que era o contato com a família?
R - Eu estudei interno lá no Marista e o contato era mais através de carta, porque telefone não existia, praticamente. E, claro, durante as férias. Eu sonhava o ano inteiro para voltar para as férias a Mossoró, que para mim era o local melhor do mundo para se viver. E fiz isso durante muitos anos, até a época de faculdade eu ainda ia passar as férias em Mossoró. Ou, então, até o instante em que a minha mãe se mudou de Mossoró para João Pessoa, onde moravam o seu pai, a sua mãe, irmã, etc. Então, eu já estava no penúltimo ano do clássico. No ano seguinte eu fiz o vestibular. Quando eu passei no vestibular e me matriculei na faculdade de Direito, em João Pessoa, mamãe então mudou, com aquela anturrais toda para João Pessoa. E a época de Natal realmente, para mim, foi muito gratificante. Eu tive excelente amigos que cultivo até hoje. Tanto é que, quando eu voltei, numa outra fase da minha vida, em que eu fui presidente do Banco de Desenvolvimento, secretário de justiça lá em Natal, eu reencontrei aqueles antigos colegas do colégio Marista e foi uma festa. Muitos deles ainda são meus diletos amigos daquela ocasião.
P/1 - Como é que é uma educação Marista? Como é que funcionava isso?
R - Bom, é interessante isso. Eu saí de Mossoró estudando em um colégio que era um colégio leigo, mas que era dirigido por padres naquela ocasião. Me lembro de diretores, o Padre Sales, depois padres do Sagrado Coração, Padre Cornélio, Padre Miguel Dantas e tal. Geralmente holandeses que vinham com essa missão de educar aqui no Brasil. Então, eu mais ou menos estava familiarizado com uma educação com um certo cunho religioso. Eu sempre gostei um pouco desse lado espiritual, embora nunca tenha sido carola. E quando fui para Natal, eu continuei nessa relação que eu tinha com a igreja, de certo modo. Eu ajudava na missa em latim naquela ocasião. Conhecia razoavelmente bem os textos da missa em latim, alguma coisa decorada que depois eu fui paulatinamente entendendo. E isso dava algumas regalias dentro do colégio. Primeiro, muitas vezes você não precisava participar de estudo. De madrugada, cedinho, você ia para a igreja, antes. Tinha direito a tomar o vinhozinho depois da missa e saía antes dos alunos para pegar o café com a mantegueira maior, etc. Então isso, realmente, eu comecei... Eu tinha treze, catorze anos quando eu estudei lá em Natal. Então, a educação Marista era muito rigorosa. Eles eram normalmente irmãos que usavam aquela batina preta, que a gente chamava... Era uma coisa branca aqui do lado do pescoço, e a gente, brincando, chamava de urubu do papo branco, (riso) que era uma coisinha com um crucifixo aqui, tal. Alguns bons, outros carrascos demais. Então, isso realmente existe e existiu no Brasil inteiro. Era uma educação boa, eles davam uma formação boa, em termos didáticos, vamos dizer assim, embora tivesse, naturalmente, aquele ranço europeu ainda de autoritarismo, de castigo, de você ficar de pé contra a parede ou não sair por qualquer coisa. Você, que era interno não podia sair no fim de semana, no domingo, etc. Então isso realmente era uma coisa difícil. E era difícil para mim, que tinha sido criado naquela liberdade de Mossoró, tomando banho de rio, mesmo desobedecendo às ordens paternas e jogando com atiradeira, essa vida de interior, que é saudável. Então, chegar ali e pegar aquela coisa de você ter que acordar cedo e arrumar sua cama. E tinha estudo de manhã, estudo depois do café, estudo depois da aula, e não sei o quê. Então era um negócio tudo limitado, quase que um regime ________, um regime militar. Mas, de certo modo, isso serviu. Eu não me arrependo daquele tempo. Eu tive bons momentos ali também, aprendi muita coisa a respeito de disciplina, da ordem, da responsabilidade também. Isso me serviu, tranquilamente. Eu não digo que hoje eu colocaria um filho meu, como não coloquei, como interno, porque ali há muitos desvios de conduta também que passam desapercebidos ou falsamente desapercebidos. Eu tive que me defender em muitas ocasiões e não gostaria que meu filho passasse por algumas coisas, porque eu passei alguns constrangimentos. Mas isso, de fato, não diminui o mérito do tipo de ensino da ocasião. Se você comparar com o ensino na Suíça, com o ensino na Inglaterra e outros países na Europa, havia muito maior rigorismo. Aqui há sempre... O trópico sempre abranda um pouco esse rigorismo. Mas, mesmo assim, eu tenho boas lembranças do colégio Marista, daquela época de Natal, naquele início dos anos 1950.
P/1 - O senhor se divertia como ali? _______________ Como eram os momentos de diversão?
R - A gente diz, normalmente, que muitas vezes a gente tem que tirar sangue de tapioca por minhoca de asfalto. Então, onde não havia motivo de diversão você se desestimula. Você fazia molecagem com seus colegas querendo sempre derrubar o outro. Você tem que descobrir fórmulas de lazer onde não há a menor possibilidade de lazer. O grande sonho realmente eram as férias, de fim de ano e de meio de ano. E também a saída do domingo. Você podia ir para o cinema, você podia ir para a praia, você podia ir namorar... Os primeiros namoros, treze anos, catorze anos... E assistir filme impróprio, que era o sonho de cada um também. Conversar o porteiro do cinema, quando ele distraía você entrava para assistir. Então pintava o bigode aqui para dizer que tinha dezoito anos, para poder assitir o filme, etc. O que você pode fazer? Naquele tempo ainda, Natal era uma cidade pequena, embora fosse a capital. E ele tem uma particularidade, um povo diferente também, porque Natal quase que assumiu uma postura cosmopolita no Brasil. Então é uma cidade única. Na época da guerra, por exemplo, em 1942, quando ali era o ponto de parada, o último ponto de parada das tropas americanas que iam para o palco da guerra lá na África. Então, Natal foi apelidada de “Trampolim da Vitória”. E teve um período, durante uns dois anos, no final da guerra, em que a metade da população de Natal era de gente de fora. Um grande número de americanos chegavam diariamente aquele revoar de DB25, DB29 transportando tropas para Natal. E daí eles embarcavam para Dacar, já para entrar em combate. E era quase a última chance que eles tinham, que podia ser a última chance de vida realmente. Então, ali, Natal passou a ser um centro de efervescência de brincadeira, de farra, sei lá. Então, uma boa parte de americanos, o governo brasileiro, até por uma questão de sabedoria, na época do Getúlio Vargas, fez de Natal uma grande base militar. Marinha, exército, aeronáutica, ______ foram se sediando ali. E onde... Realmente era um período em que metade da população era de Juiz de Fora. E muita gente que tem os olhos azuis nasceu naquela época, fruto de amores fugazes de conterrâneos, mistos com os americanos. Muitas palavras e gírias americanas foram incorporadas ao vocabulário da cidade. Então, essa é uma coisa que fez com que Natal passasse a enxergar o mundo de maneira diferente de outras capitais ou de outras cidades. Teve um governador no início do século que teve a acuidade de urbanizar Natal, diferentemente daquela cultura portuguesa de fazer os arruamentos estreitos, casas coladas umas nas outras, etc. O centro da cidade ainda é assim. Mas o governador, acho que na década de 1910, contratou um paisagista italiano, Palumbo, que fez um projeto da cidade de Natal com ruas e avenidas, todas elas arborizadas, a rua com uma fila de árvores fruteiras no centro e as avenidas com duas aos lados. Então, Natal praticamente ficou plantada, foi uma cidade plantada em parte. E as pessoas quase que não se acostumaram à construção de edifícios ali. Então, com poucos edifícios naquela ocasião, hoje já tem mais evidentemente. Aí você subia e via praticamente só o verde. Então isso deu a Natal uma peculiaridade agradável de morar, uma cidade bem projetada, bem urbanizada, bem arejada, porque ela fica numa península. Dos dois lados você tem o oceano e no terceiro você tem o rio _______. Então é uma cidade agradável, de clima ameno e bem arborizada, espalhada. E isso dava a Natal, também, uma qualidade de vida um pouco diferente das outras. Como grande número das pessoas era de funcionário público, militares ou civis, federais que iam para lá, isso fazia com que a mentalidade um pouco presa e tacanha de algumas cidades do nordeste se expandisse um pouco. Então eu fui também, de certo modo, criado nesse ambiente um pouco mais amplo, mais aberto. Natal ainda é hoje uma cidade muito bonita de viver e muito boa de morar. Eu gosto de retornar sempre que posso lá. E isso, claro, influiu também na minha vida, essa educação lá no Marista. Essa vida também de busca de liberdade em Natal, em que a gente procurava praias para ir e não tinha possibilidade de carro. Então nós íamos simplesmente a pé, ou pegando carona. E são momentos bastante agradáveis, eu me lembro com saudade desse período.
P/2 - E como que o senhor decidiu pelo Direito?
R - Olha, eu não sei se eu decidi ou se eu fui levado a isso. Meu pai era advogado, como eu falei. E quando ele morreu eu achei que, de certo modo, eu tinha que levar adiante o que ele fazia. E isso, claro, me levou... Ele tinha uma biblioteca muito boa, era muito estudioso, então eu já tive mais ou menos um encaminhamento, que seria o dele, como filho mais velho. Então eu fui quase que naturalmente aos livros de Direito. E eu tenho algumas restrições a fazer, tanto é que eu, praticamente, não fui um advogado militante, embora eu tivesse um escritório durante um certo período. Mas acho que a formação que eu recebi na faculdade de Direito e no curso de humanidades naquela época, que era diferente de hoje... Eu tive, por exemplo, eu sempre gostei de língua estrangeira, eu tinha um conhecimento de inglês, nós estudávamos inglês no curso regular, estudávamos francês no curso regular, estudávamos espanhol no curso regular e latim também. Eu, como fui fazer Direito e fiz o curso clássico, eu estudei latim durante sete anos. Isso, por mais fracos que sejam os professores ou por mais relapso que eu seja como aluno, a gente tem que aprender alguma coisa. Então isso realmente me facilitou. E havia o curso de humanidades naquela ocasião, a formação geral em História, Geografia, Português, Biologia, etc, que dava um embasamento grande para a gente. E a faculdade de Direito, para mim, serviu muito para me preparar para a própria vida. Direito à liberdade, à democracia, esses conceitos que eu comecei a cultivar primeiro com meu pai, depois na minha vida, na vida estudantil, política-estudantil, diretório acadêmico, presidente do diretório. Então, isso me deu uma base da qual parece, felizmente, que eu não me afastei muito. Essa base ideológica de cultuar esses preceitos de ter direito à liberdade, democracia, respeito ao outro, etc, mas sem, claro, abrir mão dos meus próprios princípios. Então essa foi, talvez, a razão maior que me levou à faculdade de Direito.
P/1 - O senhor comentou que o senhor se envolveu com a política estudantil, como é que foi essa participação do senhor?
R - Bom, claro que a política sempre esteve no meu sangue, até pelo antepassado próximo, que era o meu pai. Eu sempre gostei de política desde menino. Acompanhava aqueles comícios e tal. Eu me lembro. Eu, ainda de calça curta, fui ver o Brigadeiro Eduardo Gomes quando ele esteve lá em Mossoró pela primeira vez. Quando Getúlio esteve lá na campanha dele também, eu era garoto e fui lá assistir. Quer dizer, eu tinha já isso como uma distração, quem sabe. E depois, quando entrei na faculdade, realmente eu já pensava um pouco em termos de país. Eu, lá em João Pessoa, nós participamos muito daquela luta bonita, romântica, da defesa do petróleo. Isso me levou talvez até a participar de campanha de diretório acadêmico, eu fiz parte do diretório da faculdade de Direito e no penúltimo ano eu fui presidente do diretório. Também, é claro, com aquele idealismo do estudante. Lamentavelmente, eu estou vendo hoje isso desaparecer um pouco. Mas, naquele tempo, era muito pulsante, isso era muito palpável. E, claro, quando terminei a faculdade, ainda muito jovem, porque eu terminei com 22 anos, me formei em Direito. E isso eu procurei conservar. Esse frescor da juventude, em termos ideológicos. Claro, a gente leva muita porrada, muita pancada durante a vida, mas eu acho que, de certo modo, eu não me afastei muito daquela minha postura original, não. É mais ou menos isso. E a política continuou depois. Claro que houve um período muito difícil de interrupção na época da ditadura, no regime militar. E que, de fato, eu procurei, quem sabe, até me encolher um pouco durante esse período. Fui para a Europa, morei na Alemanha lá um ano e meio, fiz o meu curso exatamente quando a situação estava mais efervescente aqui no Brasil, em 1969, 1970, até princípio de 1971, que foi o período que eu fiquei fora do Brasil.
P/2 - E a relação com os seus oito irmãos?
R - Olha, fica redundante eu dizer que é uma relação fraterna. É muito boa, muito boa. Claro, a gente sempre tem diferença. Se você tem na sua mão cinco dedos que fazem parte do mesmo corpo, cada um deles aponta para um lado. Então, se você tem oito irmãos, você tem diversos tipos de personalidade, diversos signos do zodíaco, etc. Então, cada um, de certo modo, é diferente do outro. Mas todos tiveram praticamente a mesma formação. Eu tive um pouco mais de sorte, porque ainda alcancei o meu pai durante um período. Eles não. Os mais jovens quase não conheceram o pai e o mais novo não chegou a conhecer, que ele nasceu quatro meses depois da morte do meu pai. Então, todos eles ficaram ligados a minha mãe quando eu saí para estudar fora. Depois de mim eram três moças. E foram morar em João Pessoa. Nessa ocasião, eu estava lá. Passamos alguns anos juntos e eu quase que assumi uma atitude, como eu falei, paternal em relação a eles. Os menores tomavam a benção ali na hora de dormir: "A benção, mãe. A benção, Danilo." Então era mais ou menos assim. Eu sou padrinho desse caçula, meu irmão. Mas eu sempre tive uma relação muito carinhosa, muito afetuosa com eles. Tivemos algumas desavenças, algumas brigas, uns com o nariz mais arrebitado me peitavam também: "Você não é meu pai, você não pode me castigar." Mas eu continuo encontrando com todos eles. A minha irmã, como eu falei no início, faleceu aqui, ela trabalhava aqui no Rio, morreu muito jovem, com 35 anos. E eu tinha também uma ligação muito afetuosa, até porque ela morava aqui. E nasceu no mesmo dia em que eu nasci, três anos depois, 25 de março. Eu nasci em 1938, ela nasceu em 1941. Então isso também nos aproximava. Ela se chamava Denise. E essa menina também tinha uma cabeça boa, uma cabeça política muito boa. E ela também, por motivos até da formação profissional, deixou o nordeste e veio embora para o Rio de Janeiro. Morou aqui até o final da vida dela. E eu continuo frequentando a minha família. Minha mãe já está mais idosa, está com 81, ela faz 82 anos. Mora em João Pessoa. Tem três irmãos que moram lá também. Todos eles, felizmente, tiveram sucesso na carreira profissional. Três foram funcionários do Banco do Brasil, um ainda é, e dois se aposentaram. Todos eles são realmente pessoas, não digo vitoriosas, porque a pessoa, para ser vitoriosa, não quer dizer que seja bem sucedida financeiramente. São pessoas de bem. E isso é o que eu acho que se deve esperar das pessoas, dos filhos, irmãos e de todos. Se ser homem de bem e financeiramente vitorioso coincidirem, tudo bem. Senão eu fico mais com homem de bem. E acho que meus irmãos são todos assim, irmãos, sobrinhos. Graças a Deus, felizmente, a família não se dispersou com a morte do chefe que foi meu pai.
P/1 - Quando o senhor acabou a faculdade, o que lhe pareceu em termos de perspectiva, o que o senhor tinha de perspectiva naquele momento?
R - Eu sempre pensei na minha vida que a independência significa a não dependência. Eu sempre gostei de tomar as minhas próprias decisões e ficava difícil tomar a decisão se eu dependia de alguém, mesmo que fosse a minha mãe. Eu sabia e acompanhava, é claro, a dificuldade que ela passou depois da morte do meu pai, porque com 39 anos de idade, que foi quando ele faleceu, ninguém está preparado ainda para morrer. Então isso, eu que praticamente era o príncipe herdeiro, já que era o filho mais velho e meu pai era um político, eu tinha quase que uma carreira já preparada à sombra do boi. Quer dizer, eu ia para onde ele fosse. Mas, com a morte, a coisa mudou. Então a minha mãe passou um período muito difícil, de ter, inclusive, momentos de ter os nove filhos estudando. E isso com a pequena pensão, o pequeno seguro que meu pai tinha feito. Então foi realmente um momento muito complicado. Depois é que os deputados, colegas do meu pai, resolveram votar uma pensão especial para a minha mãe. Até porque meu pai era secretário de Estado e tinha morrido a serviço. Ele teve uma viagem oficial, ia representar o governador em uma reunião em Recife e morreu em um desastre de automóvel. Então ele foi a serviço. E, como secretário de Estado, eles votaram uma lei que dava a minha mãe uma pensão equivalente a 70%, 80% do investimento fixo do secretário de Estado. Mas isso dez anos quase depois que meu pai morreu. Então o momento crucial já tinha passado. Aí minha mãe, felizmente, a partir daí, teve uma vida tranquila e está tendo, está sobrevivendo até hoje. E aí eu, claro, na faculdade, eu ainda tinha muito aperto, como muitos jovens naquela época. Gostava de cinema, gostava de namorar, gostava de baile, gostava de farra. "Meu filho, quem vai controlar o dinheiro?" E a forma de me tornar independente, ou seja, não dependente, era trabalhar. Aí, ainda na época da faculdade, jovem, uns vinte anos talvez, eu saí procurando aí, com as minhas ligações. Eu na faculdade já tinha alguns contatos. E trabalhei pela primeira vez na secretaria de aviação e obras públicas da Paraíba, em João Pessoa. O governador era Flávio Ribeiro, o secretário chamava Zé Targino, que era um político lá do interior. Fiquei, eu me lembro, que durante um mês eu ia todo dia, ficava lá sentado, esperando, lendo o Diário Oficial para ver se tinha portaria de designação, fazendo um trabalhozinho ali. De repente, eu fui me insinuando e tal. Quando vi já estava trabalhando realmente. E acho que uns quatro ou cinco meses depois é que saiu a minha portaria de designação. Aí fiquei. Depois mudou o governo, mudou o secretário, eu fiz uma camaradagem com esse secretário e ele foi me aproveitando, fazendo uma espécie de carreira lá dentro da Secretaria. Assistente, oficial do Gabinete, depois até assessor do Gabinete, eu ainda era garoto, com cara de menino, no penúltimo ano da faculdade, terceiro ano, que eram cinco anos na faculdade de Direito. Hoje as coisas estão um pouco diferentes. Aí, no terceiro ano, eu já estava mais ou menos ganhando meu dinheirinho, podendo usar minha gravata, meu terninho de linho branco, etc. E isso me deu uma certa folga. Em 1959 eu estava já no penúltimo ano da faculdade e era já presidente do diretório. Aí realmente eu já tinha ampliado meu nível de relacionamento. Mas continuava ainda muito ligado ao Rio Grande do Norte e a Mossoró. Tinha participado de campanha política lá na minha cidade e tal. E na campanha de 1959, que era o candidato de Jânio Quadros, o Lote, na Paraíba era candidato pelo Gondim, o Jean Luis Carneiro, da tradicional família Carneiro, do Rui Carneiro, etc. E no Rio Grande do Norte os candidatos eram Djalma Marinho, Ivan Rosado, do lado do governador Dimar Marinho e o Aluízio Alves do lado oposto. E aí a campanha começou. Sabe que lá é muito radical. Falta de respeito total à pessoa humana. Então eu estava vinculado ao Antônio José Rosado, ao Tarcísio Maia, que era deputado, que era político lá em Mossoró também, embora tivesse nascido na Paraíba, irmão do ex-ministro João Agripino. E aí eu, durante as minhas folgas lá na faculdade, eu ia para Mossoró para fazer campanha. E, nessa ocasião, eu fui nomeado promotor, adjunto de promotor numa cidadezinha chamada ______, e depois transferido para Mossoró. Em 1959 e 1960 eu fui promotor em exercício lá em Mossoró. E aí participava daquela campanha, um negócio acirrado mesmo. Vivia lá com o senador junto ao deputado, que ele gostava, porque eu era movimentado em comício e fazer discurso, essa coisa toda. Então eu fiquei ali fazendo a campanha. E, claro, sem tentar me descurar das minhas obrigações lá em João Pessoa, junto à faculdade, no diretório, etc. Terminado o mandato do diretório, eu continuei como promotor em Mossoró e, a duras penas, frequentava a faculdade em João Pessoa. Estava adquirindo experiência jurídica de um lado, mas, de outro lado, eu estava de certo modo relaxando um pouco com as minhas obrigações de estudante lá na faculdade. E isso tinha que realmente me prejudicar de alguma forma. De modo que, no fim deste ano, no último ano da faculdade, eu estava para colar grau, e ia haver um concurso de promotor no Rio Grande do Norte, no começo do ano, em 1961. E eu naturalmente ia ser candidato. Pelo que eu conhecia, eu ia ser aprovado. E pelo fato de já estar no exercício da promotoria, eu imediatamente seria promovido para uma instância superior. Então eu estava com a minha carreira delineada. Ia voltar para a minha origem, para o Rio Grande do Norte e ia continuar minha carreira política, que é o que eu queria, de fato, naquela ocasião. Mas aí o destino trabalha às vezes a nosso favor quando nós pensamos que ele está trabalhando contra nós. Por alguma razão, a secretaria da faculdade e o diretor da faculdade descobriram que em duas das matérias do meu currículo eu tinha excesso de faltas. Em uma eu tive cinco faltas a mais e em outra eu tinha duas faltas a mais. Eu não sabia disso. Prestei os exames de fim de ano, passei por média em todas as matérias, realmente eu tinha um certo conhecimento daquilo. Passei. Aí o diretor, que por razões políticas também não gostava muito de mim, anulou duas das provas que eu fiz. Isso me pegou de surpresa. Isso foi no começo de dezembro, a nossa formatura estava programada para o dia dezessete de dezembro de 1960. "Estou ferrado, o que eu vou fazer?" Aí fiz um requerimento, ele indeferiu, fiz um recurso para o conselho técnico, foi indeferido, congregação, reitoria, em tudo, até ao ministro da educação chegou o meu pedido. Isso durante um mês, um negócio louco. Todo dia eu fazia um recurso. E lembro que o ministro da educação, quando o senador lá do Rio Grande do Norte foi levar o ____feito em mãos a ele, ele leu aquele negócio e disse: "Senador, eu não posso fazer nada. Mas posso dizer que esse menino vai ser um excelente advogado." (riso) Mas isso não era a vaidade de ter que me formar. Eu não consegui colar grau no dia dezessete de dezembro e isso me prejudicou porque eu não tinha o título para apresentar e fazer o concurso de promotor no Rio Grande do Norte. Não fiz o concurso. Deixei para colar grau em segunda época, em fevereiro, quando o concurso já tinha passado. Aí o que é que aconteceu? Eleito Aluízio Alves como governador do Rio Grande do Norte, eu tinha feito a campanha para o Djalma Marinho e Ivan Rosado, que era o vice-governador. Pensei: "Lá, adversário é inimigo." Então, na hora da minha posse, quem estava, está fora. Aí quatro, cinco dias depois da posse, soube que tinha sido demitido. E eu já estava esperando por isso. E não condeno o governador. Mas como eu tinha feito também campanha na Paraíba, tinha feito campanha no interior para o Pedro Gondim, etc, Pedro Gondim se elegeu para governador. Então eu perdi lá e ganhei cá. E aí, o que aconteceu? Pedro Gondim me nomeia para procuradoria do ______ do Estado, que era a presidência estadual. E eu fui ser subprocurador do ________ lá. Mudei a minha vida. Acho que não tive nenhum prejuízo financeiro. Fiquei profundamente magoado, porque eu perdi a chance da minha carreira como promotor e possivelmente político lá no meu Estado. Mas, ao mesmo tempo, estava lá junto com a minha família, minha namorada morava lá, então eu tinha coisas, assim, que me prendiam também à Paraíba. E fiquei. Aí, é como eu disse: o destino muitas vezes trabalha a nosso favor quando nós pensamos que ele está trabalhando contra. Eu fiquei muito chocado com aquilo e realmente achei que o diretor da faculdade não devia ter feito o que ele fez. Ele simplesmente podia ter mantido a minha prova, eu era um bom aluno. Mas eu tinha feito greve contra ele como presidente do diretório. Tinha feito enterro do diretor, me lembro do caixão dele no pátio interno da faculdade. Então, isso... Claro, ele estava trabalhando para mim achando que estava trabalhando contra. Então, o que aconteceu? Eu fiquei em João Pessoa. Três meses depois, Jânio Quadros era presidente da República. João Agripino era ministro de Minas Gerais, o primeiro ministro de Minas e Energia. Era uma pessoa extraordinária, tenho muita admiração. Já faleceu. E irmão do Tarcísio Maia, que era político no Rio Grande do Norte, médico. João Agripino era advogado, Tarcísio era médico. E Tarcísio ali, compadre do meu pai, amigo do meu pai e que conservou comigo uma camaradagem. Claro, ele era bem mais velho. Mas João Agripino foi um grande brasileiro, um grande patriota, conhecido e lembrado até hoje. Ele, ministro de Minas e Energia. O Jânio Quadros inventou uma história que eu acho muito boa em termos de administração e descentralização administrativa. Ele fazia, de três em três meses... Ele passou só oito meses ou sete meses no governo. Ele transferia a administração da República para determinado Estado. E naquele Estado ele reuniu os Estados vizinhos, levava os ministros, assessores, etc, e despachava ali, atingia todos os reclames daquela região. Em junho de 1961, eu estava lá prestando o meu serviço modesto na procuradoria, na subprocuradoria do _____ do Estado. Ia haver essa reunião do governo em João Pessoa. E foram convidados o governo do Rio Grande do Norte, Alagoas, Pernambuco e Sergipe. Quatro governadores centrados na capital, João Pessoa. Aí, o presidente da República foi para lá com vários ministros, diretor do DNER, Departamento de Obras contra a Seca, não sei mais o quê. Então a administração se transferiu para lá, a administração federal. E aí, claro, o governador Pedro Gondim mobilizou algumas pessoas para servirem de auxiliar ali naquela história. E eu, como ele gostava de mim e um dos oficiais _____ era meu colega de faculdade e muito amigo meu, me convidou para trabalhar nesse negócio, e fiquei como oficial de ligação junto ao governador do Estado de Pernambuco, que era o Alcides Sampaio. Então, durante aquela semana gloriosa para mim, eu fiquei como uma espécie de oficial de gabinete do Alcides Sampaio. Para onde ele ia, eu ia junto. As audiências eu marcava, jantares, solenidades, etc, eu ia lá. Ele ia conversar com o ministro, eu estava lá junto, abrindo porta, coisa de oficial de gabinete mesmo. Só não participava do encontro dele com o presidente da República, mas eu ficava na boca, conversando com o chefe do gabinete militar, com o chefe do gabinete civil, com essa turma circulando. E eu gostava disso. Aí _____ encontrei várias vezes com o ministro João Agripino, que era ministro de Minas e Energia, paraibano. E ele já tinha me observado algumas vezes em alguns movimentos estudantis, etc, ele já tinha me conhecido. Sabia de quem eu era filho, sabia que eu era amigo do irmão do Tarcísio Maia e tal. Terminada essa conferência, esse encontro, foi todo mundo para o aeroporto para a despedida do presidente. E eu fiquei lá _____ também para comprimentar as autoridades, essa coisa toda. Na hora do embarque, o João Agripino chegou para mim: "Seu Negócio! Você não quer ir trabalhar em Brasília, não?" Eu falei: "Como assim?" "Você não quer ir trabalhar no Ministério?" Eu disse: "Eu vou. O que eu preciso fazer?" Ele disse: "Eu só não tenho como lhe pagar. Mas quer ir?" Eu disse: "Vou." "Então eu vou mandar lhe buscar." Aí eu fiquei na minha, achei que era brincadeira ou então conversa de político, e continuei com o meu trabalho. Quinze dias depois, chegou um telegrama dele: "Favor apresentar-se no meu gabinete, etc. João Agripino." Aí tomei um susto: "O que está acontecendo?" Aí, o que é que eu fiz? Pedi uma licença lá no Monte Pio, ajeitei minhas coisinhas, fiz um empréstimo no banco da lavoura, sei lá, para pagar minha passagem. Porque nem a passagem ele mandou, eu fui por minha conta. Então, eu consegui um dinheirinho, a passagem de ida e volta, que eu não sou besta. Tem que segurar igual papagaio, só largo o galho de cá depois que segurou o outro. Então eu fui embora. E aí, o que eu disse... Muitos anos depois foi que eu realizei aquela coisa da volta do destino. O que o diretor da faculdade fez quando não permitiu que eu colasse grau em dezembro? De fato, ele não me prejudicou. Prejudicou o meu interesse da época. Mas, depois, a gente viu que isso possibilitou e permitiu o descortínio de uma vida nova, que foi isso que aconteceu. Então, eu saí com 22 anos de idade, completando 23, jovem, com a passagem de volta e, sei lá, uns vinte contos no bolso, uma coisa assim, para me garantir durante uns dias. E fui para Brasília. Cheguei em Brasília em julho de 1961. Comecei a trabalhar, já me dando função, tarefa lá, ______ estava esgotado, com medo de trabalho. A ponto de um dia eu estar assim, meio cansado, e o Tarcísio Maia, que era deputado, falar para o ministro: "Ô, João, você quer matar esse menino?" "É isso mesmo, eu quero ver até onde ele vai." Desse jeito! Mas isso durou um mês, porque no dia 24 de agosto o Jânio Quadros renunciou. Aí: "Poxa, o que eu faço agora?" Ele tinha me levado, de certo modo se responsabilizou por mim. E aí foi que começou, de fato, a nova vida minha. Quando ele chegou, disse: "Olha, o ministério ainda não está estruturado, não tem quadro de pessoal. Mas a legislação me permite que eu contrate pessoas ou que requisite pessoas das empresas e órgãos vinculados ao ministério." Aí colocou na minha mão um leque de possibilidades: Petrobrás, a Eletrobrás não existia ainda, DNPM, Conselho Nacional de Petróleo, o tal Departamento de Águas e Energia e a Companhia Vale do Rio Doce. "O que você acha?" Eu respondi: "Vale do Rio Doce." A gente não tinha muito conhecimento, mas a gente tinha respeito pela história da Vale. Naquele tempo, já conhecia, claro, eu era estudante, atuante. Sabia dessa coisa do minério, da defesa do minério, da riqueza do subsolo, etc. A Petrobrás eu achava que era politiqueira demais, embora estivesse dentro daquela linha nossa de defesa do subsolo, do "petróleo é nosso" etc, coisa de política de estudante, que tinha muito fundamento, aquela _____ ingênua, mas fundamentada em termos de economia nacional. E aí: "Vale do Rio Doce." Ele disse: "Está bom, então você vai para a Vale." Só que ele fez uma correspondência para a Vale do Rio Doce pedindo a minha contratação, mas não chegou a haver resultado nenhum por conta da renúncia do presidente. Fiquei num mato sem cachorro, fiquei assim, meio abandonado. Houve a reviravolta política do país, a volta do João Goulart, aquela história do retorno, a atuação do Rio Grande do Sul, Brizola, etc, para garantir a posse do Jango. E o acordo fez com que fosse estabelecido o sistema parlamentarista. O ministro novo, o ministro já no novo regime foi o Gabriel Passos, quando o presidente era Tancredo Neves. E o Gabriel Passos era o ministro de Energia. O Gabriel Passos era uma pessoa admirável em todos os aspectos. Um homem sério, mineiro, um cara honesto, um patriota, _________. Tinha sido procurador geral da República e participou de lutas memoráveis na defesa do petróleo. O grande parlamentar, concunhado do Juscelino, embora adversário político, _________. Juscelino era o grande líder do PSD e o Gabriel Passos foi o grande líder da UDN. Embora, sendo da UDN, que era um partido mais conservador, mais reacionário, o Gabriel Passos fosse da Frente Parlamentar Nacionalista, que era um movimento de vanguarda ultra, supra partidário. E o Gabriel Passos, então, foi escolhido ministro de Minas e Energia. E ele tinha pedigree para isso, ele tinha realmente um embasamento muito forte. E aí, como ele era amigo correligionário do João Agripino, que também era parlamentar da UDN, João Agripino voltou para o Congresso como deputado, e aí ele despertou, realmente, para a defesa do interesse nacional. Ele passou a conhecer bem o funcionamento desses órgãos vitais, tipo Petrobrás, Vale do Rio Doce e, logo em seguida, a Eletrobrás. E João Agripino passou a ter uma atuação que já era brilhante como parlamentar e passou a ser uma atuação brilhante como defensor do interesse do país, nacionalista, etc. Então eles eram amigos. E o Gabriel Passos disse: "Não. O pessoal _________________ entrar aqui." Aí me convidou. Eu fiquei ali prestando a minha tarefa, nesse tempo, como assistente da assessoria jurídica do Ministério. E ele conseguiu. Formalizou a minha contratação pela Vale do Rio Doce, como advogado da Vale, e a ser posto à discussão do gabinete. E praticamente isso me vinculou à Vale do Rio Doce definitivamente. Eu passei a me interessar e a gostar da empresa. E continuei, naquele período inicial, trabalhando no Ministério. Durante a solução de um problema lá, que eu tive muita sorte também, numa greve de transportadores de combustível. Que fui indicado pelo ministro como observador numa disputa violenta, que houve ameaça de dinamitar ponte, deslocamento de tropa de exército, etc. Eu fui para lá como observador e, depois de muita discussão, ainda estava com aquela coisa de diretório na cabeça, falando com líder sindical, etc. O fato é que eles decidiram dando um crédito de confiança à pessoa do ministro, não foi nem ao governo, foi à pessoa do ministro, eles interromperam a greve. E deslocaram um comboio de transportadores, de trezentos ou quatrocentos caminhões, sei lá, tanques, que abasteciam Brasília. Brasília estava na iminência de ter um colapso de abastecimento de petróleo. Então, essa sorte que eu tive de dialogar com esse pessoal, até extrapolando a delegação que me foi dada, que era de simplesmente observar e fazer um relatório. Eu resolvi desembarcar lá e ficar participando de plenária, de assembleia, essa coisa. O fato é que, quando eu voltei para Brasília atrás de comboios, de caminhões, etc, ele ficou muito feliz com essa história. Aí me convidou e me nomeou assessor parlamentar, que era praticamente o cargo mais cobiçado no Ministério naquela ocasião, porque o regime era parlamentarista. No Congresso é que se decidia tudo. E ele era, como ministro de Minas e Energia num regime parlamentar, um delegado do Congresso. Como o primeiro ministro era também e os demais ministros. Eu, naquela ocasião... Quando foi? Em 1962. Eu, com 24 anos de idade, de repente assumi uma tarefa - eu acho que eu não estava nem preparado para isso - de assessor parlamentar de um ministro importante num regime parlamentarista. De repente eu tive, naquele momento de dificuldade entre a chegada em Brasília e a minha contratação, depois de uns quatro ou seis meses sem receber um tostão, vivendo da caridade pública quase, jantando na casa de João Agripino, porque eu não tinha almoçado... De repente, um ano depois, eu estava lá como assessor parlamentar e com carro oficial, com chapa verde e amarela, que naquele tempo entrava em todo canto. E, claro, isso pode ter sido um refresco na dificuldade da vida toda, mas, de qualquer maneira, foi um tempo muito bom, porque eu servi realmente ao grande patriota que foi o Gabriel Passos e me dediquei. Quando eu entro, eu me dedico também. Simplesmente eu não vou ficar devendo favor, porque o cara me nomeou. Acho que no final há uma troca muito grande, tanto ele por haver tido confiança em mim e eu por ter procurado merecer essa confiança. Depois dele, então, com a saída veio o velho João Mangabeira, que foi também um grande patriota, mas ficou pouco tempo, era já um senhor de muita idade. E em seguida veio o Eliezer Batista, com quem eu já tinha tido, de certo modo, uma relação antiga, desde que eu comecei na Vale. E lá no gabinete, eu estava sempre. As pessoas, como eu era quase que o único representante da empresa lá, eu ficava encaminhando as postulações da Vale junto ao gabinete do Ministério de Minas e Energia. O fato é que, quando o Eliezer chegou para ser ministro, depois da morte do Gabriel Passos... Ele faleceu também, quando era ministro _______, morreu, inclusive, de câncer. E o Eliezer, então, chegou lá como ministro de Minas e Energia e ele era amigo do João Agripino. O próprio João Agripino foi que, praticamente, descobriu o Eliezer. Não descobriu, porque ele já tinha sido descoberto por seu próprio talento aqui na Vale do Rio Doce. Mas o Eliezer foi nomeado presidente da Vale do Rio Doce quando o João Agripino foi ministro. E os dois fizeram uma boa camaradagem naquela ocasião. Quando o Eliezer foi ministro, ele, que já me conhecia também e em respeito ao João Agripino, me convidou para continuar no ______ dele do Ministério, como assessor parlamentar, e depois me colocou como chefe do gabinete em Brasília. O chefe do gabinete era sediado aqui no Rio, o Mário Costa Braga, que também foi do corpo da Vale do Rio Doce e era subchefe do gabinete lá em Brasília. Então, continuei durante o período do Eliezer, ainda servindo ao Ministério de Minas e Energia e, de certo modo, também ligado à Vale. Até o dia em que o Eliezer resolveu deixar o Ministério. E eu, talvez até em solidariedade a ele, também saí do Ministério junto com ele. Ele ficou, sei lá... De certo modo ficou chocado com isso, tanto é que, logo que chegou aqui, me convidou para chefiar um escritório da Vale, uma representação da Vale do Rio Doce em Brasília.
P/2 - Danilo, como é que o senhor imaginava Brasília antes de conhecê-la?
R -
Bom, Brasília era um sonho de toda a juventude daquela época. Não quero entrar aqui no mérito de vir ou não ser construída e mudada a capital naquele ritmo imposto pelo Juscelino. Não, ele acho que teve uma missão. Certo ou errado, tinha que ser feito assim, porque se fosse deixar para a administração seguinte, ainda estaríamos esperando até hoje a mudança da capital. Como era um sonho do legislador ou do constituinte na primeira constituição republicana, transferir a capital, ele fez isso. Então, no momento em que ele transferiu a capital... Claro, o Rio de Janeiro era mais bonito, mais simpático você vir para cá, etc, mas Brasília centralizou, de fato, o poder naquela ocasião. E todo jovem sonhava com aquilo. Eu sonhava, mas era um sonho remoto, porque eu estava ainda vinculado a minha região, ou Paraíba ou Rio Grande do Norte. Quem sabe um dia, se eu chegasse a ser político ou deputado, ia para lá, naturalmente. Mas aquela vida me pegou, de certo modo, de surpresa. E eu já conhecia Brasília porque, no último ano da faculdade, na nossa excursão, nós fomos à Argentina e passamos uns três ou quatro dias em Brasília. Realmente, era uma coisa admirável aquele vazio, aquela coisa meio desértica, meio lunar, aquela atmosfera. E eu lembro que, quando cheguei lá, nós ficamos, eu e mais dois jovens, também amigos do João Agripino, morando em um apartamento da Asa Norte, pelo lado norte de Brasília, que naquele tempo não tinha quase nada. Você tinha algumas quadras prontas na Asa Sul, uma meia dúzia de mansões ali perto do lago e o resto era vazio, o resto era deserto. E aí nós ficamos nesse apartamento, um apartamento até de três quartos. Apartamento tal, no bloco tal, etc. Nós ficamos lá. Deram a chave e nós fomos. E chegamos lá no apartamento, encontramos um telefone no chão do apartamento. Não tinha nada, só tinha um telefone. Falei: "Ué, deixaram um aparelho aqui?" Levantei o aparelho, estava funcionando. "E por que isso?" O telefone estava ligado lá e ficamos usando o apartamento sem saber nem o número daquele telefone. Pela aproximação, o cara ligava dizendo: "É 225-926?" Eu digo: "Não, não é aquilo não." Aí já sabia que era próximo daquilo, até que a gente descobriu que número era aquele. Também, a gente não estava interessado em denunciar, porque a gente ia perder. Ninguém tinha telefone, só tinha um telefone público não sei onde, lá na Superquadra. E aquilo era uma dádiva. Aí gente ficou usando aquele negócio. Nunca chegava conta para pagar nada. Durante uns seis meses nós ficamos usando aquele telefone. Então descobrimos, muito tempo depois, que aquele telefone era da segurança da Presidência da República, que foi instalado ali para a posse do Jânio Quadros. Então, a turma da segurança ia lá e deixou aquele telefone e não desligaram depois. Quando começou-se a fazer instalação de telefone, eu disse: "Olha, tem um número assim..." Tanto é que eles transferiram aquele número para a gente e não teve pagamento atrasado nenhum, porque aquilo era... Sei lá. Aí, a gente... Claro que era uma vida muito romântica naquela época. Eu era solteiro ainda e todo mundo que estava em Brasília praticamente era livre. Tinha uma certa independência social, pessoal e sexual também. Muito funcionário que tinha vindo do Rio, funcionário do Congresso, funcionário dos Ministérios, dos órgãos do governo, de empresas particulares também. Então muita gente foi transferida, uns prazeirosamente e outros que foram forçados a deixar o Rio de Janeiro. Mas muita gente foi para lá. Homens e mulheres solteiros. A grande maioria eram homens, mas tinha também do sexo oposto. E algumas bastante atraentes até. Então a gente tinha, embora tivesse uma disputa grande, uma certa disponibilidade afetiva, vamos dizer assim. A gente saía para aquelas festas, que se chamavam "assustados", em que você saía com uma garrafa debaixo do braço e, onde ouvia um barulho tocando no apartamento, você subia, batia na porta, chegava lá com uma bebida e entrava. Então, homem andava com bebida e mulher andava com comida. Então era assim: você chegava, tinha uma luz acesa, uma música tocando e você ia lá. Era mais ou menos isso. A gente procurava clubes, granjas e cachoeiras próximas, que tem um entorno muito bonito lá em Brasília. E eu fiquei então ali, naquela. Vivi. Depois que eu fui me assenhoreando dos costumes lá e me enturmando no Ministério, comecei a ter meu círculo de amizade também. Foi aí que eu conheci a minha esposa. Ela morava com um tio que era senador. Nós nos encontramos, ele era amigo também do João Agripino, e nós nos encontramos. E a irmã dela namorava com o filho do João Agripino. Então, isso me aproximou dela. E nós, realmente, nos apaixonamos e casamos em Brasília, em 1964, três anos depois que eu cheguei lá. Casamos e os três filhos meus nasceram também em Brasília. Nós fomos casados durante 31 anos, até 1995, quando ela faleceu. E ficamos ali em Brasília até 1969. Saindo de lá ________, mas aí é uma outra história. Há coisas nesse intermédio que vale a pena talvez até a gente abordar aqui, a luta política na Vale na época do início da revolução, o regime ditatorial, etc.
P/1 - Como é que _______... O senhor comentou, antes da chegada do Eliezer como ministro, algumas questões da Vale passaram pelo senhor como representante da Vale ali. Que tipo de questão que se gerava, que tipo de questão que aparecia?
R - Olha, a grande formulação da política do minério do país vem daquela ocasião. Claro, a Vale do Rio Doce era uma empresa estatal, vinculada ao Ministério de Minas e Energia. Então, em última instância, quaisquer grandes mudanças na política da Vale do Rio Doce tinham que passar pelo ministro. Eu, simplesmente, era um meio de campo, um carregador, não tinha influência na decisão, claro. A decisão era fundamentada nos argumentos da própria empresa. E, nesse tempo, o Eliezer e o grupo dele já eram realmente os grandes mentores do desenvolvimento da Vale. Todos eles são muito conhecidos na história da empresa. E acredito que as primeiras ideias de, por exemplo, ampliação da capacidade de produção da mina, de automação da estrada, de duplicação da linha, de construção de um grande terminal marítimo na região de Vitória... Aí, nós tínhamos o porto de Vitória, que dava vazão, mas não daria mais conta da possibilidade de crescimento da empresa. Então, as primeiras conversas e os primeiros trabalhos sobre o Tubarão surgiram nessa época. Então, nessa época, eu estava prestando serviço ao Ministério, sendo funcionário da Vale. Então eu era, quase oficiosamente, uma ponta de lança ali. E isso eu fiz com muito prazer, porque eu acreditava naquilo. Era uma empresa nacional, era uma empresa, de certo modo, do governo e do povo brasileiro. E tinha a direção de gente da maior competência. Um quadro diretivo, um quadro técnico, que era exponencial no país. Então, isso a gente fazia. E todos esses grandes projetos, às vezes até considerados como sonho, eram digeridos na Vale do Rio Doce, criados, digeridos e vinham, então, quase que em última instância, já para uma decisão política do Governo Federal, Ministério de Minas e Energia, Ministério como um todo no regime parlamentarista, etc. Então, o Doutor Eliezer capitaneava esses projetos. E quase todos eles terminavam em Brasília, que era realmente o foco da decisão da política nacional. E foi mais ou menos assim que eu comecei a me relacionar com a Vale do Rio Doce, com os problemas da Vale e com as pessoas da Vale também.
P/1 - Isso, inclusive, vazava no Ministério de Minas e Energia? Quer dizer, era levado pelo senhor até o Ministério?
R - Sim, porque a Vale do Rio Doce é um complexo, vocês conhecem, ela está integrada. Não é simplesmente a produção de minério, não é simplesmente o transporte de minério, não é simplesmente o beneficiamento de minério, não é simplesmente o embarque e a exportação de minério. É tudo isso. É um concerto, é um grupo consolidado. Além de que ela tinha outras atividades fora da área de mineração propriamente dita. Então envolve o quê aí? Envolve o Ministério do Transporte, envolve o Ministério do Transporte, ferrovia. Naquele tempo era DNEF, Departamento Nacional de Estrada de Ferro, Departamento Portuário, não sei mais o quê. Então, eram vários Ministérios, Ministério até do Planejamento, Economia, Fazenda, etc. Implicava em financiamentos internacionais, implicava numa série de coisas, relações exteriores, comércio exterior, Ministério de Indústria e Comércio. Então, realmente quase que era um bolo completo. Quase todos os órgãos da administração, de certo modo, se envolviam na decisão final desses grandes problemas ou desses grandes projetos da Vale do Rio Doce. Então não era simplesmente: "Encerrou o assunto do gabinete do ministro." Não. Ele prossegue. E a Vale acompanhava isso em todas as instâncias, até, quem sabe, a decisão final do presidente da República. Era mais ou menos assim que a coisa funcionava naqueles anos de Brasília. Naquela época do regime parlamentarista, ou até a instalação do regime autoritário de 1964.
P/2 - Danilo, você sentiu diferença entre o tipo de pressão política, interesses na gestão parlamentarista e depois, quando os militares geriram?
R - Olha, o regime em si, ele depende muito das pessoas que estão à frente dele. Eu falo do regime parlamentarista e do regime presidencialista. Não adianta você ter um regime parlamentarista, que pode ter sido com um ideal democrático, se a qualidade dos congressistas é baixa. Então, naquela ocasião, havia classe baixa e classe alta dentro do Congresso. Mas, talvez, as lideranças fossem mais confiáveis na época. Eu já falei alguns, eu falei no Gabriel Passos, já falei no João Agripino. Mas, em outros partidos, mesmo os mais conservadores, tinha gente de muito bom nível. Muito bom, a bancada era boa, a bancada do Rio de Janeiro tem excelentes representantes. Roberto Cardoso... Você tinha Pedalejo, Milton Campos... Você tinha um nível elevado dentro do Congresso. E esse Congresso que elegeu Tancredo como primeiro ministro, ele realmente se portou dignamente dentro do regime parlamentarista, com a volta do presidente João Goulart, que nunca foi comunista na vida dele. Ele é um empresário e teve realmente boas intenções de preservação da riqueza nacional. Mas isso foi diluído, com alguma demagogia, com algum peleguismo, e parece que ele perdeu o controle. E o controle passou a ser assumido fora do país. Isso a história já mostrou. O que se falava como heresia naquele tempo, hoje está provado. Os interesse internacionais, o governo americano, a CIA ,etc. A gente vê isso, não tem por que negar. Mas isso, de fato, a gente sentiu quando o João Goulart foi deposto. Que o Eliezer tinha sido ministro em tempo quando João Goulart saiu antes. Mas, mesmo assim, ele quase nunca foi perdoado pelo sarampo de ter sido ministro do regime do João Goulart. Quando começou, a partir de 1964, o governo Castelo Branco, o ministro de Minas e Energia era o Maltibau, chefe do gabinete do Benedito Dutra, que era uma pessoa visceralmente ligada à Light. Então, esse pessoal pretendeu e agiu com veemência. Eu respeito as razões dele, tentando antecipar ou fazer acontecer isso que quase nós estamos vendo hoje, esse neoliberalismo exacerbado, de simplesmente desnacionalizar a riqueza do país. E é claro que a Vale do Rio Doce era um alvo prioritário nessa política, que foi implementada e oficializada naquela época. A abertura ao capital estrangeiro na mineração, que praticamente era vedado, legalmente vedado naquela ocasião, era só para nacional. Então o que é que fez? Esse projeto viabilizava outros grandes empreendimentos nessa área. Um deles era o da Hanna Mayerling, que depois foi transformado em projeto da NBR, em Sepetiba, etc. Então, no projeto que o governo desposou, ______ do Ministério de Minas e Energia, você abria um paralelo perigoso e, no meu entender na ocasião, danoso para a Vale do Rio Doce. Este segundo braço minerador, quando a Vale do Rio Doce era vocacionada para exercer isso, o governo estava abrindo para empresas multinacionais vantagens e benefícios que não davam sequer para a Vale do Rio Doce. Uma ferrovia __________ , facilidades no porto de Sepetiba, etc. E ele que já tinha um comércio cativo no exterior. Então, praticamente isso iria a pouco e pouco sacrificando e estrangulando a Vale. O que é que competia se fazer no mundo de representantes da empresa lá em Brasília? Eu estava sozinho lá. A Vale do Rio Doce, mais ou menos acintosamente, reagiu a essa postura, a essa política oficial. Ela não podia tomar uma posição aberta, porque ela era, de fato, uma empresa do governo, era como se fosse uma subordinação. Mas o quadro técnico, muita gente do corpo técnico da Vale do Rio Doce, quase que sorrateiramente ou sub-repticiamente, lutava para que isso não acontecesse. E eu acreditava nisso. Eu não estava ali simplesmente porque era funcionário, não. Eu estava porque era funcionário e representante da Vale e, ao mesmo tempo, eu acreditava nessa história de interesse nacional, da defesa. Ainda estava muito imbuído daquela minha ideia de estudante. E aí, o que eu fiz? Eu passei, então, a ser uma espécie de porta-voz dessa turma. Várias pessoas que depois chegaram ao quadro de diretor da Vale do Rio Doce participaram dessa luta daquele momento. E aí, o que acontecia? As informações que eram de interesse da empresa e, ao meu ver, também interesse do país precisavam chegar ao Congresso. Aqueles deputados, ________, da Frente Parlamentar Nacionalista, da Comissão de Minas e Energia, etc. Então, eu simplesmente era uma espécie de transmissor ou de elemento de ligação entre esse corpo intérprete da Vale e esse representante do Congresso. Quando se instituiu a Comissão Parlamentar interna da Hanna, _________, eu praticamente tinha acesso a todos os deputados da Comissão, especialmente aqueles que eu sabia que combinavam com a nossa - não era minha -, com a nossa ideia. E a Comissão realmente chegou a incomodar muito. O governo ditatorial forte do Castelo Branco, o ministro Maltibau, que achava que era todo poderoso... E o ministro, então, pressionou muito. E, pessoalmente, eu sofri muito essa pressão dele. Que eu não era ninguém, eu era um garoto saído, quase, da faculdade, tinha dois anos no Ministério, três anos que eu estava ali. E, então, ele chegou a determinar ao chefe do gabinete que tomasse o meu apartamento e que arranjasse a minha demissão da Vale do Rio Doce ou, no mínimo, a minha transferência do Brasil. E, pô, a revolução... Quem é que tinha feito o golpe militar? E o que aconteceu? Então, eu fiquei ali praticamente ao relento. E foi, de fato, uma luta muito difícil, eu tive momentos de depressão profunda. Mas consegui a duras penas, com a solidariedade do presidente que estava saindo na ocasião, o Paulo Lima Vieira, da Vale do Rio Doce, uma carta para o representante do negócio dos apartamentos, que assegurou que eu continuasse com aquele apartamento porque eu ainda estava como representante da Vale. E o Ministério queria tomar, porque o apartamento era da cota do Ministério. Eu sei que, quando o ministro e o chefe do gabinete souberam disso, me chamaram e me deram praticamente com a faca nos peitos: "Ou você entrega esse apartamento, ou você vai ser transferido daqui, ou vai sair." Eu disse: "Pô, enquanto eu não sair, eu não entrego. Se você pode me demitir, demita, mas eu não vou fazer isso." E isso realmente chegou a me incomodar muito. E quando assumiu o Oscar de Oliveira, ele próprio, eu não queria passar pelo que ele passou, de pressões para me tirar de Brasília. E chegou em um momento em que eu, pô, desci e pirei quase. Eu estava recém casado, minha mulher estava para ter filho, ameaça de perder o apartamento, aí fui internado _____. Pirei mesmo. Chegou a um ponto de que o ex-ministro João Agripino, que era deputado e era uma pessoa bem respeitada nos quadros da revolução, amigo pessoal do Castelo Branco... O Castelo Branco, quando estava muito preocupado, ia lá ao apartamento do João Agripino bater papo com ele. Então, todo mundo sabia. O João Agripino, claro, nunca mudou a postura nacionalista dele, ele sempre esteve ao lado da Vale do Rio Doce em qualquer momento. Nessa ocasião também. Ele soube que estava havendo aquela pressão e gostava de mim. De certo modo, ele se sentia um pouco responsável pela minha ida para Brasília. Então, ele veio um dia aqui ao Rio de Janeiro, pediu uma audiência ao presidente da Vale do Rio Doce e disse que sabia que ________ aquele rapaz: "Aquele rapaz foi levado por mim, eu conheço. Se ele está sendo pressionado ou vai ser demitido por irresponsabilidade, por incapacidade, por desonestidade, eu vou ter a maior solidariedade nisso. Agora, se for puramente perseguição política, como eu estou vendo que é, aí eu me sinto pessoalmente responsabilizado por isso." A direção da Vale do Rio Doce, que tinha, claro, compromisso e responsabilidade com o governo, ficou premida. Por um lado, a assessoria daquilo, o pessoal, Roni Liro, e outros, ________, uma turma grande, Marcos Viana, que defendiam os interesses da Vale do Rio Doce até ________ aqui, ficavam segurando. O Roni era o meu chefe, que ele era superintendente jurídico e eu era chefe do jurídico lá em Brasília, que era o nome que eles deram à representação. E aí ele dizia: "Você não pode demitir esse menino. Ele está fazendo o que deve ser feito." E o ministro falava: "Esse cara está me criando caso. Tira esse sujeito aqui." Então, houve um negócio, eu fiquei como o pobre do caramujo: entre o rochedo e o oceano. Na instalação da CPI foi outra guerra. Porque o presidente da Vale foi depor também e eu não fui recebê-lo, mesmo sendo ele o presidente da Vale. Quer dizer, foi um negócio muito difícil para mim. Me lembro que, num determinado momento, o João Carlos Linhares, que era superintendente geral de operações da Vale do Rio Doce, foi também assessorando o presidente da Vale no depoimento à CPI. E o João Carlos, então, me chamou, disse: "Danilo, eu estou sabendo de tudo que está passando com você aqui. Eu queria lhe fazer um convite: vamos comigo para Vitória." Ele era realmente o todo poderoso da área operacional. "Vamos para Vitória. Você fica lá comigo. Se alguém mexer com você lá, eu saio junto." Aí eu dei um abraço, eu gosto dele. E aí disse: "Olha, até iria em outras circunstâncias, eu gosto muito de Vitória. Mas é que eu tenho uma posição que eu tenho que preservar. Deixe que me demitam. Se o pessoal quiser, faça. Eu não vou morrer de fome. Eu conheço meu veneno, eu sei do que que eu sou capaz. Eu não pedi para vir para aqui, nem vou pedir para ficar." Então, ele aceitou aquilo e continuou, e eu fiquei até o último dia do governo de Castelo Branco lá. Foi reestruturada a divisão jurídica da Vale do Rio Doce, o Roni e depois o Valdemar, que substituiu o Roni, propuseram o meu nome para chefiar o setor jurídico. E eu fiquei dois anos exercendo a chefia do setor sem ser designado. Eu tinha procuração semestral, que o presidente da Vale do Rio Doce passava para mim. Todas as causas em última instância, eu acompanhava lá. Supremo Tribunal _________. Então eu era... E era mole de eu reclamar na Justiça do Trabalho que eu tinha uma procuração do __________ para exercer aqui. Aí passou. Praticamente, no último dia do governo Castelo Branco, o Oscar de Oliveira mandou um recado para mim, queria falar comigo. Ele ia para Brasília, para a posse do presidente da República, e queria me comunicar que tinha assinado a portaria minha de designação. Eu era amigo do chefe de gabinete dele, o Souza Brasil, e fui recebê-lo, que eu nunca tinha ido. Durante um período, tinha sempre uma outra pessoa que ia buscá-lo. Eu não queria destratar o presidente, ele era meu chefe, pô! E aí admiti e fui recebê-lo na posse do Costa e Silva. Eu sabia que o presidente da Vale ia ser o Dias Leite. Já tinha sido convidado, inclusive. Eu sei que, quando o Dias Leite foi a Brasília, mandou me avisar também e eu fui recebê-lo. Aí ele me disse que estava sabendo da história e que o Oscar mandou me avisar que tinha assinado a minha portaria. Aí, o Dias Leite disse para mim... E eu nunca esqueci isso, eu quase que não conhecia ele. Eu tinha relações com outras pessoas amigas dele, etc. Ele chegou e disse: "Olha, Danilo, quando eu assumir, você faz um requerimento para mim que eu vou simplesmente fazer retroagir a sua portaria desde o dia em que foi criado a chefia." Isso tinha quase dois anos. Eu disse: "Pelo amor de Deus, eu não mereço isso!" Aí fui e recebi o Oscar de Oliveira cordialmente. Tenho o maior respeito por ele, hoje ele é meu amigo, eu já o encontrei algumas vezes depois disso. Não guardo ressentimento porque em tudo o que acontece conosco, como o exemplo daquele caso do diretor lá da faculdade, existe alguma coisa que eu precisava aprender. E acho que o Oscar também me deu uma coisa assim, a coisa do denodo, um pouco de você desapegar daquilo que não é seu. Eu não era dono do cargo, eu não era dono do apartamento, eu não era dono do carro que eu usava, entendeu? Quer dizer, essas coisas a gente vai... Na hora, não. Quando você está numa crise, tudo é essa crise, você está envolvido por ela. Quando você consegue sair - se você consegue sair -, pode prestar atenção que você vai tomar e aprender alguma lição daquilo. Então eu, de certo modo, devo também ao Oscar de Oliveira. Ele teve suas razões para agir como agiu. Também teve suas razões para deixar de me demitir, ou de me transferir compulsoriamente, lá de Brasília. E foi realmente um período muito difícil. Muito difícil. O Dias Leite, quando assumiu a Vale do Rio Doce e o governo Costa e Silva já havia mudado, com aquela coisa do entreguismo exacerbado do tempo do Castelo Branco, embora tivesse continuado também. Mas, mesmo assim, a Vale do Rio Doce conseguiu trabalhar em paz, conseguiu terminar os seus grandes projetos, conseguiu concluir o porto de Tubarão, conseguiu automatizar ali, conseguiu duplicar ali, conseguiu começar a pensar em Carajás. Mas esse foi o período difícil e romântico de Brasília daquela época.
P/1 - Essa batalha da Hanna, a CPI... Quer dizer, esse contra-entreguismo, foi uma batalha duríssima pelo visto, foi uma briga de foice?
R - É, foi uma guerra, porque praticamente só existia força de um lado. Claro. O governo podia tudo! Tudo era na base do ato pessoal. Então bastava uma decisão do governo. Era incontestável. Ninguém tinha disposição nem coragem mesmo de contraditar. O que havia? No caso da Vale do Rio Doce, havia muito idealismo. A política, que hoje praticamente é desposada no governo atual, naquele tempo era uma excrescência. Você tinha o interesse nacional e tinha o interesse entreguista. Não tinha meio termo. Da mesma forma que o meu pai, entre ser integralista e ser comunista, optou por ser integralista. Ou você era entreguista naquela época ou era um nacionalista. Vocês não alcançaram, eu ainda alcancei esse período. E quando se instalou o regime ditatorial, de 1964, não havia quem contraditasse. Se havia alguma disputa, era interna corporis, era uma coisa entre os corpos militares ou entre aqueles próprios que fizeram o regime. E muitos daqueles que discordavam internamente também foram queimados, é o exemplo do Carlos Lacerda e de outros que apoiaram coagidos, como Juscelino, e que foram, depois, banidos pela própria revolução. Então, quando era uma decisão, não havia quem pudesse contraditar. Então, houve, dentro daquela época do Congresso, muita coisa quixotesca e romântica. Esses parlamentares da Frente Nacionalista, por exemplo, esses deputados que constituíram a CPI e que eram supridos de informações dos diversos órgãos, especialmente do Ministério de Minas e Energia, no caso da Hanna, dado pela Vale do Rio Doce... Essas informações eram utilizadas nos argumentos e nos discursos dos deputados. Então, era simples o ministro, que tinha também a sua assessoria parlamentar, constatar de onde vinham essas informações. Então, se você tinha um corpo aí de quarenta ou cinquenta técnicos aqui da Vale de alto nível, que estavam coligindo esses dados e essas informações, mas se existia apenas uma pessoa lá para entregar e para ter contato com esses deputados... Então, chegava aquele cara até para ganhar bônus ____ Ministério: "Pô, aquele cara está criando caso. Aquele rapaz..." Então, ele pegava o telefone e ligava para o presidente da Vale do Rio Doce: "Demita esse moleque! Eu não quero esse cara aqui em Brasília!" Então, ele começava a preparar o ato da minha demissão e o pessoal chega: "Você não pode fazer isso! Ele está lá porque está agindo no interesse da empresa." Foi realmente essa grande dificuldade que nós tivemos. E a CPI teve um grande papel de conscientização mesmo. Com a mídia, coitada, muito amordaçada naquela época, mas sempre eles encontravam um jeito de deixar vazar alguma informação e alguma notícia para fora. E era tabu essa coisa de Petrobras e de riqueza nacional. Ninguém teve peito, nem a própria revolução, de acabar com o monopólio estatal do petróleo. E respeitaram a Vale do Rio Doce. Se eles a abriram alguma porta para a Hanna, a NBR, tiveram que correr atrás. Ela tem méritos pelo trabalho que executou. Mas a Vale do Rio Doce já estava muitos corpos de luz à frente. E o pessoal da Vale era mais preparado, já tinha mais experiência, já tinha mais know how na matéria e uma respeitabilidade internacional muito grande. Então, isso valeu. E ao comprador internacional não interessava saber se era uma multinacional ou não. Ele tinha os contratos, que foram até bolação da época também do Eliezer, esses contratos plurianuais, de até dez anos, quando você fazia ano a ano a renovação dos contratos de fornecimento do minério. Quando se começou a falar em cinco anos, dez anos, então, o camarada já sabia que o investimento, se der lucro, não leva menos de dez anos para se executar. Então, se ele tinha certeza daquele fornecimento, ele que tinha que respeitar, claro. Então, isso deu à Vale do Rio Doce quase que o conceito e a respeitabilidade internacional que ela mantém até hoje.
(pausa)
P/2 - Quando é que se dá a saída, como é que é a saída do ______?
R - A saída?
P/1 - Eu queria só fazer uma perguntinha. Quer dizer, uma curiosidade: como é que vocês na Vale, no meio desse processo todo, viam, por exemplo, a ida do Eliezer para a NBR, trabalhando ali?
R - Bom, eu sou vascaíno, eu gosto de futebol. Romário jogou no Vasco. Eu sempre achei o Romário um craque. Romário foi para o Flamengo, que é o inimigo fiel do vascaíno. Mas ele continuou sendo um craque para mim. Eu talvez não tivesse ido jogar no Flamengo se fosse o Romário. Mas ele é um profissional. O Eliezer é um profissional. E, como eu disse aqui no começo, durante muitos anos ele não foi perdoado pelo sistema por ter sido ministro do João Goulart. Ele foi ministro do João Goulart, de Minas e Energia. Então ele teve praticamente, durante um período, fechadas todas as portas na administração pública do país, inclusive na Vale do Rio Doce. Ele ficou em momentos de constrangimento ali. E a respeitabilidade, a honorabilidade e a capacidade do Eliezer não mereciam isso. Ele foi convidado pelo Antunes, na ocasião, e foi prestar serviço para a NBR. Eu não acho que tenha sido impatriótica a atitude dele, ou que ele tenha sido profissionalmente ou eticamente desonesto. Não. Ele fez o que competia fazer a ele. Eu inclusive cheguei a ir visitá-lo lá na NBR, bater um papo com ele. Sempre tive um relacionamento pessoal e familiar muito bom com ele, com a esposa falecida e com os filhos dele. Naquela ocasião, nós moramos, de certo modo, na Alemanha quase vizinhos e ele foi muito solidário comigo naquele momento, quando eu saí de Brasília. Então, ele foi como um profissional e como um homem intencionado de bem. E garanto que ele, em momento algum, foi para lá para entregar possíveis ou fictícios, quem sabe, segredos empresariais da Vale do Rio Doce. Ele foi levar a sua capacidade enorme. Romário é que deixou o Vasco e foi para o Flamengo. Eu sou vascaíno, continuo vascaíno, nunca precisei jogar no Flamengo. Então, eu não posso nunca julgá-los. Não. Pelo que eu sei, na aparência, ele fez o que poderia fazer naquele momento. E prestou um grande serviço também na NBR, sem dúvida nenhuma. A NBR, que era a imagem e semelhança de Antunes, durante um certo tempo foi a imagem e semelhança do Eliezer. Está certo? Ele não podia deixar de jogar. Ele era um profissional e tinha que jogar. Qual foi o time que o aceitou? Ele foi expulso de um. O que ele ia fazer? Eu me lembro que, numa outra ocasião, já muito tempo depois, eu era secretário de Estado lá no Rio Grande do Norte. Terminou o governo e, em 1979, o Eliezer estava sendo cogitado para voltar à presidência da Vale do Rio Doce. Me lembro muito bem, foi no princípio de janeiro, fevereiro de 1979. Eu estava para deixar o governo no final do governo, não queria continuar, porque eu já estava quatro anos afastado da Vale. Eu tinha prestado serviço lá, presidente do banco, secretário de justiça, chefe do gabinete civil do governador, queria voltar para a Vale do Rio Doce. Então, vim para fazer os contatos preliminares um mês antes de terminar o governo lá. E eu estava sabendo dessa história do Doutor Eliezer, que estava sendo cogitado para voltar para a Vale depois da administração do Roquete Reis aqui. Então, eu fui à casa dele, eu tinha acesso, a gente se dava muito bem, e conversei com ele, dizendo que estava terminando o meu trabalho lá em Natal e que eu estava pretendendo voltar. Aí eu falei: "Bom, Doutor Eliezer, o senhor realmente está pensando em ir para Brasília ou voltar para a Vale do Rio Doce? O que o senhor acha?" Ele disse: "Não sei, eu estou pensando. Esse negócio para mim, eu não quero, não. Mas o Golbery está querendo conversar comigo e eu estou indo a Brasília." Aí eu disse: "Bom, o Golbery não dá prego sem estopa de jeito nenhum, ele não dá murro em ponta de faca. De fato ele deve estar pensando nisso. E aí eu queria ver uma coisa. Eu tenho a impressão de que não há ninguém melhor capacitado para tomar conta da Vale do Rio Doce do que você nesse momento. Depois dessa administração do Roquete Reis, que modificou praticamente tudo que tinha acontecido lá antes, está na hora de alguém que tenha condição de reaglutinar a empresa. E esse alguém só pode ser o Doutor Eliezer. E eu estou sendo sincero quando eu digo isso, que eu estou pretendendo retornar para a Vale do Rio Doce agora, quando terminar o mandato do governador Tarcísio Maia, e venho trabalhar com você pelo pão nosso de cada dia. Não pretendo nada, eu só quero ser útil no meu trabalho." Realmente, é claro, a decisão foi dele, amadurecida por ele. Ele foi a Brasília, aceitou o convite formulado para ser novamente o presidente da Vale do Rio Doce e reassumiu, então, terminei a minha missão lá em Natal e voltei. Então, é essa questão que eu gostaria de lembrar mais ou menos, como também a colocação feita de como é que foi minha saída de Brasília. Foi isso. Eu, em 1960 e... Quando Eliezer ainda era ministro, nós recebemos lá uma grande autoridade que foi visitar. Era o Tissen, o Barão Thyssen. O testa, a cabeça da August San Vito, que é a maior siderúrgica alemã. Ele esteve aqui no Brasil e foi lá ao gabinete, ele conhecia bem o Eliezer. E foi fazer uma visita oficial ao ministro. Eu era chefe do gabinete lá em Brasília nessa ocasião. Acompanhei o Thyssen na visita ao Doutor Eliezer, fazendo aquela sala. Quando o doutor Eliezer foi receber, claro que a conversa... Em briga de cachorro grande eu não me meto. Então, eles dois foram conversar. E na conversa surgiu um assunto. Eu estava presente ainda, nessa ocasião, quando o Thyssen ofereceu ao doutor Eliezer bolsas para dez engenheiros da Vale do Rio Doce na Alemanha. Então, era cortesia. Claro que o Eliezer pegava na palavra esse tipo de oferta. Ele aceitou o oferecimento de especialização desses engenheiros lá na Alemanha, que era, realmente, o país europeu mais desenvolvido tecnologicamente, industrialmente. Aí, o Doutor Eliezer, não sei se brincando ou de improviso, disse: "Não, você me dá nove de engenheiro e uma para um advogado." Aí, o Thyssen falou: "Como assim?" Ele não entendeu bem. "Não, é que eu queria mandar o Danilo para lá." Assim! Aí ele disse: "Pois não. O que você quer fazer?" Aí, pô, quando ele perguntou diretamente a mim, eu digo: "Bom, eu não sou técnico." Ele disse: "Então você vai escolher o país e a universidade onde você quer fazer seu curso." Ele disse. Aí eu disse: "______ Escola Nacional de Administração em Paris." Minha vontade era realmente me especializar em Administração. Aí ele disse: "Pode ir preparando o seu francês." Assim, rapaz! Não foi de brincadeira, não. Aí passou. Eu comecei a estudar francês, entrei na Aliança Francesa fazer o meu intensivo e continuei a estudar. Pouco tempo depois, o Eliezer deixou o Ministério. Aí, em seguida, veio a revolução, tal, aquele assunto gelou. Para mim gelou. Eu continuei estudando francês, mas morreu o assunto de França e de curso de Administração. Muito tempo depois, já o Eliezer de volta à Vale do Rio Doce, quando deixou o Ministério, Mário Costa Braga, que tinha sido chefe do gabinete aqui no Ministério, era meu amigo e superintendente de administração da Vale do Rio Doce, isso em 1969 já... Eu estava de férias ou aqui, fazendo algum estágio no Rio, porque eu morava ainda em Brasília. Houve uma conversa com o Costa Braga, ele disse: "Danilo, você não quer ir para a Alemanha, não?" "Que história é essa?" "Eu me lembro daquela história do Thyssen, que você ia para uma bolsa de estudo e de repente melou aquela história, você não foi." Eu falei: "Mas espera aí, rapaz, naquele tempo eu era solteiro. Hoje eu sou casado, tenho três filhos, meu filho caçula está com sete meses, seis meses, sei lá. E o que eu tenho que fazer?" Ele disse: "Não. Eu tenho um convite do Ministério do Comércio Exterior Alemão, através do Itamaraty, pedindo à Vale do Rio Doce para indicar uma pessoa." Aí eu digo: "Que curso é esse?" "Administração de empresa industrial." Eu: "Pô, é o que eu tinha vontade de fazer. Só que a situação é diferente. Quantos meses eu tenho para me preparar para isso?" Aí o Costa Braga falou: "Você tem 48 horas para levar a documentação ao Itamaraty." "Pô, é assim?" Peguei o telefone, liguei para a minha mulher, ela estava também aqui de férias, eu estava com ela. Aí falei: "Olha, Solange, eu estou recebendo um convite assim: quer ir para a Alemanha?" "Você está ficando maluco?" "O que você acha?" Aí ela disse: Bom, eu vou ligar para a minha tia. Se ela topar ir junto, eu vou." Aí ligou para a tia, a tia topou, ela disse: "Eu vou." Aí peguei, fui fazer exame médico, não sei o quê, e em 48 horas eu estava levando a documentação ao Itamaraty. Necessariamente eu tinha que deixar Brasília, que isso foi em julho, julho... Em setembro, dia primeiro de setembro, eu estava embarcando para a Alemanha. E, por coincidência, foi o dia da decretação da capacidade do Costa e Silva em assumir aquele triunvirato militar que depois trouxe o Médici para ser presidente da República. Dessa eu escapei, pelo menos durante um ano e meio, porque eu fiquei fora lá na Alemanha. Então, foi aí que eu deixei Brasília em, vamos dizer, oito anos, porque eu cheguei lá com uma esposa e três filhos. muita dor de cabeça e muito trabalho também naquela época eu passei.
P/2 - A família toda foi?
R - Foi. Aí nós fomos para a Alemanha. Eu fui primeiro, três meses, depois a família foi, ficamos morando lá em Dusseldorf, onde a Vale tinha um escritório. A representação europEia da Vale do Rio Doce se processava lá em Dusseldorf. E o doutor Eliezer estava lá, como chefe da Itabira Internacional, que era a subsidiária de comercialização no exterior da Vale. Então, ele estava morando lá com a família toda. A minha mulher foi e a gente se tornou amigo de família também. Eu ficava circulando, que era um mês de teoria e dois meses de prática, em várias indústrias lá da Alemanha durante um ano e meio. Voltei em princípio de 1971, aí já não mais para Brasília, e fiquei aqui no Rio.
P/1 - Voltou para assumir que cargo, trabalhar com quê exatamente?
R - Bom, eu voltei para a Vale do Rio Doce então, me apresentei aqui nos primeiros meses de 1971. Eu estava bastante atualizado nesta parte administrativa e fiquei ligado à presidência de certo modo. Assumi, fui convidado para chefiar a área, o setor de relações públicas da Vale do Rio Doce, comunicação social, informação, relacionamento com clientes, programação e tudo. Então, fiquei realmente fazendo uma coisa que eu gostava de fazer, coisa de se relacionar com pessoas e tal. E isso, de fato, aconteceu após o meu retorno da Alemanha. Claro que a experiência sempre vale, mas o que, de fato, eu aprendi lá, não sei se teve muita valia imediata ou direta para a tarefa que eu estava exercendo. Mas como administração é administração em tudo, na sua vida pessoal, na sua família, na profissão, isso serve à organização, à metodização, à consecução de objetivos, à busca de objetivos. Então isso, de fato, serviu sim. E aí eu fiquei durante um período. Depois eu fiz uma proposta para a Vale do Rio Doce, que foi aceita pela diretoria, de estruturação da área de relações públicas da Vale. E pela primeira vez a gente falou em públicos e falou em imagem, falou em comportamento interno, comportamento externo, relações com diversos públicos, com o Governo, com o Congresso, com a Justiça, com o Sindicato, com cliente, com fornecedor. Então, quer dizer, praticamente houve a primeira historinha da identificação desses públicos e do relacionamento com esse pessoal. E com muita ênfase também, eu ainda tenho, eu tive relendo antes de vir para cá o trabalho que eu fiz encaminhando para a diretoria da Vale, em que eu dava um cuidado especial para o relacionamento interno. Quer dizer, em que a satisfação pessoal ia além do salário, da boa remuneração. A respeitabilidade, a aceitação do empregado não como um mitigante ou como um adversário da administração, em que você senta para discutir o assunto face a face, como se fossem duas potências estrangeiras que estão discutindo o limite. Quando não é assim, quando, pelo que a gente pensava e continua acho que pensando até hoje, todo mundo tinha que sentar ao mesmo lado da mesa olhando para um objetivo que tinha que ser comum, não é? Não é você sentar, por exemplo, como eu vi e muitas vezes. Eu participei nas minhas tarefas na Vale, em reunião dos Sindicatos com a Administração. Houve um momento em que eu fui presidente da Associação dos Empregados, em que sempre de um lado e do outro, como se fossem duas potências inimigas. A discussão de salário é uma coisa constrangedora, dolorosa. Fica o Sindicato de um lado, pressionando, e do outro lado a empresa, a direção, achando que está defendendo, quando não é isso. Todos os dois têm que pressionar, os dois têm que defender, mas do mesmo lado. Quando a gente, depois, com a criação da Associação dos Empregados da Vale do Rio Doce, a AVAL, eu fui um dos fundadores, eu não participei da eleição primeira, etc, mas fui um dos fundadores. O objetivo da AVAL, dessa Associação, que tinha basicamente nos seus quadros pessoal de nível técnico superior da Vale. Tinha qualidade, acredito, com respeito, mais preparo técnico e profissional do que o pessoal do Sindicato. E o que nós pretendíamos na AVAL, na Associação, não era ser um super sindicato ou um sindicato de elite. Não era bem isso, não. É que nós lutávamos, e a Vale lutava, com algumas dificuldades de postura até com relação ao Governo Federal. Então havia contradições no posicionamento da Vale do Rio Doce com a posição do Governo Federal. Então a AVAL surgiu com a ideia de ajudar a empresa e não ser uma linha auxiliar da administração da empresa. Na sua relação com o Governo, na sua relação com a mídia, na sua relação com a própria classe de trabalhadores da Vale. Então, era como se fosse, quem sabe, um espírito santo que dizia e que podia fazer o que a administração teria vontade mas não podia fazer. Então essa foi a ideia da Vale, que não foi bem aceita, quem sabe, pela própria administração da empresa, que considerava a AVAL como co-gestora em potencial da Vale e que estava ali para dividir poder, quando não era bem isso. A gente tinha acesso ao Sindicato, podia burilar e formalizar melhor as questões do Sindicato, dos empregados, dos trabalhadores, etc. A minha postura, até desde essa primeira proposta de estruturação de relações públicas, com público interno, era da respeitabilidade do empregado. Vai ser muito difícil você conseguir colocar o empregado em uma posição de destaque com relação ao capital, por exemplo. Hoje isso é heresia, hoje nem se pensa. Mas que pelo menos ele pudesse pleitear uma posição de igualdade, em que você tivesse a mão de obra da Vale, que era especializada, era profissional, tecnicamente preparada, que tivesse um tratamento de igual. E a administração não considerasse essa mão-de-obra como adversária, que estava ali só para ter aumento de salário, de vantagem, de benefício. Quando não era isso. Claro que tinha muita gente que precisava e tinha muita gente que queria e ambicionava a melhoria salarial, o benefício, vantagem, mordomia, tudo. Isso sempre tem. Mas você não pode simplesmente generalizar isso. E eu achava que a Associação podia trabalhar com esse objetivo também. Já se falava naquela ocasião na privatização da Vale de uma forma _______, no governo Collor, etc. Então a nossa postura era de que isso era uma crise de lesa pátria, você simplesmente doar a Vale do Rio Doce, que não sei se foi muito diferente do que fizeram depois. Mas, de qualquer maneira, naquele tempo a gente ainda acreditava que isso podia ser evitado. E aí a AVAL tinha também uma postura de defender a integridade da Vale do Rio Doce sem comprometer a administração da empresa, que não podia nunca se rebelar contra uma decisão governamental. A AVAL era isso. Então, o que aconteceu? De fato, depois dessa minha volta para aqui, que eu participei desse período de construção da Vale, como todos nós participamos, não tive nenhum mérito especial nisso, não. Simplesmente dedicação, disponibilidade para trabalhar, etc. Eu cheguei, por exemplo, a nunca ter tido uma falta nos meus trinta anos de Vale do Rio Doce. O período que eu estive doente, eu tirei férias para não precisar entrar de licença. Então, isso realmente fazia com que a gente gostasse da empresa. A gente achasse que a empresa de fato não era só a nossa supridora, ela era alguma coisa nossa também, uma cria! Cria! Ela era mãe e cria ao mesmo tempo. A gente se sentia assim. E esse espírito da Vale do Rio Doce sempre houve, sempre houve. E eu, acho que por observar atentamente isso, me engajei nesse espírito. As tarefas que depois eu ocupei lá, primeiro nessa área de comunicação social, de relações públicas... E quando eu voltei do governo do Rio Grande do Norte, eu praticamente retornei para essa área. Eu saí durante um tempo com o diretor da Companhia Nacional de Álcalis e voltei para a Vale para ser assistente na área onde eu tinha sido gerente seis anos antes. E aceitei isso. Foi difícil, eu trabalhei muito. Mas como não tinha chance de aproveitamento, eu aceitei aquilo como o que eu estava merecendo naquele momento. E a sequência foi que eu fui gerenciar a reserva do desenvolvimento regional, que é a área que examinava os projetos e os pleitos dos cento e tantos municípios, 150, 160 de Minas e do Espírito Santo, que faziam parte da zona de influência da Vale. Pela própria lei...
(pausa)
P/1 - O senhor estava contando que o senhor voltou...
R - É, exatamente. Então quando, depois daquele período que eu tive afastado, servindo lá o governo do Rio Grande do Norte, e que era quase como um resgate daquele velho tempo de infância, o Tarcísio Maia foi escolhido governador. Naquele tempo eram eleições diretas. E ele esteve na Vale do Rio Doce me convidando para ir trabalhar com ele. E quando eu perguntei: "O que que eu vou fazer lá?" Ele disse: "Não, a cadeira em que você vai sentar, você é que vai escolher." Então foi um negócio muito, muito forte para mim, emocional. E eu realmente fui e vi que não podia negar aquele convite. E também pensei no meu pai, naquela coisa de que ele teve interrompida a sua carreira muito cedo, quando ele estava iniciando um trabalho também assim. Então eu achava que tinha que ir mesmo e que era uma missão minha. E fui. E foi muito bom porque eu aprendi muito ali. Eu fiquei dois anos como presidente do Banco de Desenvolvimento. Depois que o Banco estava mais ou menos estruturado, o governador me convidou para Secretário de Justiça e, no último ano do governo, eu acumulei a Secretaria de Justiça com o Gabinete Civil. Então, foi realmente muito importante para mim, em termos até de formação profissional, de lidar com o poder, lidar com o governo, lidar com a administração. Lidar com as tentações de tudo isso, analisar essas tentações e, quem sabe, fugir delas, até não aceitando a possibilidade tentadora de ingressar na política, porque, realmente, eu passei dessa fase de ter interesse pessoal político. E isso me incomodou muito, porque até a minha família lá queria que eu ficasse. A minha mulher tinha um pavor e terminou voltando para o Rio, eu entendi por que ela voltou para o Rio. Então esse período terminou, eu retornei à Vale do Rio Doce e fiquei um tempo meio no limbo, sem ter função. Aí, o presidente era o Eliezer, os diretores eram meus amigos também. Mas ficaram sem me aproveitar, ou sei lá. E eu precisava, realmente, mais uma vez daquela história da análise da crise. Fiquei num momento de muita depressão, porque eu achava que estava muito capacitado, eu tinha tido muita experiência lá no governo. E podia ser um elemento importante de contato, mas fiquei assim, meio isolado. Quando surgiu uma oportunidade, eu aceitei ser superintendente do diretor administrativo da Companhia Nacional de Álcalis. E fui, realmente fiquei dois anos como diretor da Álcalis, que era vinculada ao Ministério de Indústria e Comércio. Mas aí eu analisei, em primeiro lugar. Por que eu reagi tão mal a esse, entre aspas, desprestígio da minha volta para a Vale do Rio Doce? Então, durante aquele período que eu fiquei lá na Álcalis, eu também procurei me analisar e dizer: "Não, a Vale, de fato, é a minha casa. Eu, quanto mais tempo ficar fora, mesmo servindo ao governo, mesmo servindo a alguma função importante ou não, quanto mais tempo eu ficar, mais eu me afasto da realidade da empresa. Se amanhã eu retornar, eu vou disputar eventualmente o meu espaço com a garotada que está saindo da faculdade cheia de disposição, cheia de ânimo." Então renunciei à direção da Álcalis. O pessoal acreditava que eu estava ficando maluco novamente e voltei para a Vale do Rio Doce, me apresentei lá. "O que houve? Saiu? Largou aquela mordomia..." Não sei o quê. "Não, eu quero aqui. O que eu vou ficar? O que eu vou fazer?" Aí me puseram lá na área de relações públicas, de comunicação social, onde eu já tinha sido gerente seis anos antes. E fiquei e trabalhei. E não me incomodei mais. Tanto que depois o próprio Eliezer me convidou para gerenciar o Desenvolvimento Regional, que era realmente o que eu gostava de fazer. E para mim foi um coroamento de carreira na Vale, porque eu analisava os projetos, me relacionava com os prefeitos, com vereador, com deputado, com o governador, com todo mundo dos estados e dos municípios da zona de influência. Ia lá, discutia, visitava as associações beneficentes de velho, de criança, de aleijado, de cego, de tal. Então, isso, para mim, era como se eu estivesse me realizando como administrador. Nós analisávamos centenas de pedidos que chegavam, procurávamos fazer uma seleção daqueles projetos e encaminhávamos para a diretoria analisar, porque isso era decisão sempre de diretoria. Aí, eu passei a ser convidado e passei a frequentar as reuniões de diretoria em que tinham assuntos de interesse da reserva de desenvolvimento. Como era quase toda semana, praticamente eu participava dessas reuniões. Claro, no momento em que deixava de discutir aquele assunto, eu caía fora, porque eu era peixe pequeno. Então durante praticamente... Durante os últimos anos de atuação minha na Vale do Rio Doce, eu fiquei na reserva do desenvolvimento. E aí foi bom, porque eu conheci muita gente no interior, desde Belo Horizonte, descendo pela estrada, Itabira, Ipatinga, Baixo Guandu, em todos os dois Estados, Ouro Preto, Santa Bárbara, Colatina?). Então eu saí, me tornei mineiro, capixaba, durante esses anos. Todo mês eu viajava e o pessoal vinha aqui. Então eu gostei desse período. É como se diz: "Nós ganha pouco, mas nós se diverte." Então, eu realmente não cheguei ao topo da administração, claro, pelos meus próprios deméritos. Fui gerente geral, quer dizer, como se fosse o equivalente a coronel dentro da estrutura da Vale do Rio Doce. E isso vale uma ressalvazinha no final. Como eu disse, eu sempre gostei dessa coisa da comunicação, da ligação, etc. Durante um período, eu aceitei o convite, tal, e fui o presidente da Associação Esportiva da Vale do Rio Doce aqui. E foi bom, porque realmente era uma coisa que eu gostava também. E nós obtivemos, então, naquele ano de 1986, o único título de campeão geral dos jogos do SESI aqui do Rio de Janeiro. Então, realmente, naquele tempo era uma disputa bonita, todas as grandes empresas mandavam aquele voleibol, basquete, futebol de salão, xadrez e tal. Era um negócio... Um campeonato, uma olimpíada mesmo. E a mídia acompanhava aquilo. Então, aquilo era um negócio muito disputado e, nesse ano que eu fui presidente, a Vale foi... Quer dizer, a AERD, a Associação Esportiva, fui presidente desses jogos olímpicos aí do ______. Então, isso realmente, mais uma vez, me familiarizava, eu estava ficando muito conhecido pela galera, pelos funcionários, o pessoal do Sindicato gostava muito de mim também. E a administração também, pelo fato de que eu, na gerência do Desenvolvimento, tinha acesso político à direção da empresa, às administrações, ao governador Camata, Aureliano Chaves, não sei quem, Zé Aparecido. Então, chegava essa turma e gritava: "Danilo!" Essa coisa, assim, de uma certa intimidade, até no interesse deles! Não que eu buscasse, ou qualquer coisa. Mas isso, de fato, dava a mim uma posição fácil dentro da Vale. E isso aconteceu. Até quase praticamente o início dos anos 1990, em que fortaleceu-se muito essa ideia do Collor de privatizar, modernizar aquela coisa, o Brasil, não sei o quê e tal. Então, isso se tornou uma realidade. E a Vale, claro, por ser uma empresa que tinha que ser obediente aos ditames do Governo, não importa qual seja, começou a se preparar para isso e contratou uma empresa internacional para reformular o comportamento da Vale, a distribuição dos negócios, das operações, etc. E aí, a gente sentia alguma coisa no ar diferente, além dos aviões de carreira. E o que aconteceu para esse modesto empregado? Eu estava, de fato, numa postura relativamente boa dentro do quadro da Vale, eu era gerente geral numa área importante, de Desenvolvimento Regional. Mas aí surgiu um convite para eu disputar a eleição para presidência da AVAL, que era a Associação dos Empregados, aquela famosa AVAL, que a gente tinha aquela ideia e tal. Eu pensei muito. Pensei, porque eu sabia que se eu aceitasse aquilo eu não ia, claro, admitir ser uma linha auxiliar de pelego. E, ao mesmo tempo em que eu estava ali para tocar fogo, eu ia buscar, de certo modo, respeitabilidade para aquela função, que já vinha também sendo exercida por outro companheiro. Tem gente que hoje está a nível de diretor que foi presidente da AVAL também, da própria Vale ou de empresas da Vale, etc. Então, tendo em vista aquela situação que se esboçava, que se desenhava, a privatização amalucada do Collor, eu aceitei. E isso tinha um preço. Eu sabia que tinha um preço, que praticamente inviabilizava a minha carreira profissional dentro da empresa. Porque, de uma maneira equivocada, o presidente da AVAL era visto como um líder da oposição, porque era teoricamente mais capaz do que o pessoal do Sindicato, que sabia reivindicar mas não sabia expor. Então, quando eu aceitei ser presidente da AVAL, eu não fiz isso contra administração nenhuma, eu me dei muito bem e me dou bem até hoje com o Wilson Brumer, que era presidente, então, da Vale. E, de certo modo, eu tinha certeza de que, mesmo eu sendo respeitado e respeitando a administração da Vale, eles não iam pegar o presidente da AVAL e botar como superintendente de alguma coisa, que é o último cargo, antes da diretoria, já que a diretoria é um cargo político. Aceitei e paguei para ver. Paguei o preço. E, realmente, quando me aposentei, eu era gerente geral. Não tive nenhum problema de relacionamento com as pessoas. O que eu tive de fazer na presidência da AVAL, eu fiz. Foi expor a nossa preocupação, publicar essa exposição, carta para a direção da empresa, para o diretor administrativo, carta para a presidência. Fizemos o que a gente pensava, era uma coisa sincera. A gente sentia que não estava lá para tentar desmerecer ninguém. E isso, claro, eu continuei sendo respeitado até o último dia, não fui demitido da minha função de gerente do Desenvolvimento Regional. Pelo contrário, continuei participando das reuniões de diretoria, consegui não misturar os assuntos, a minha tarefa como funcionário da empresa, com deveres. E nem tampouco as minhas obrigações como presidente da Associação dos Empregados. Até o momento em que eu saí. E a saída foi naquele plano também amalucado, do governo Collor, de pagar preço de ouro para o cara sair, para ele dar uma estatística, dizendo que tinha diminuído o número de funcionários. Então, se ele me pagava, por exemplo, um salário inteiro por cada ano de serviço e eu era estável, não optante, para mim tinha que ser dobrado. Então, o cara, para conversar comigo, tinha que me pagar um salário para cada ano de serviço ao dobro, mais isso, mais não sei o quê. No final de contas, eu sendo estável, o meu extrato tinha que ser isento de imposto de renda. Então eles iam me dar 80 salários para eu não trabalhar um ano. O que você faria? Entreguei, saí. Mas mantive a dignidade e mantive o respeito que eu tenho pela Vale do Rio Doce. Hoje a posição dela mudou juridicamente. Foi privatizada. Não me compete, até porque eu já estava afastado, julgar o mérito dessa privatização. Eu tenho a minha posição, que me reservo o direito de manter, de achar que a Vale do Rio Doce seria a última empresa que eu teria privatizado ________. Ela nunca foi dependente do governo. Ela sempre foi autossuficiente. De certo modo, isso merece uma consideração e um respeito que, a meu ver, o governo não teve. Mas continuo ligado a ela, ela faz parte muito importante da minha vida. Eu fui casado 31 anos com a minha esposa, faleceu há cinco anos, mas continuo ainda muito saudoso, lembrando dela, embora eu esteja hoje já recompondo a minha vida. Mas foi um momento muito importante, que eu não vou deixar de reconhecer nunca. Posso estar casado, posso estar quinhentas vezes, mas eu vou lembrar. Eu fui casado com a Vale do Rio Doce por trinta anos. Hoje eu estou casado com uma outra coisa, uma coisa espiritual, uma tradição, eu estudo cabala, dou aula, dou transferência, eu dou conferências e traduzo livros, participo de encontros, etc. Mas aquele casamento da Vale do Rio Doce vai ser sempre importante, vai ser vital na minha existência toda. Eu, sempre falo da Vale do Rio Doc, falo como de Mossoró, como de meus colegas de infância, como em tudo isso. Quer dizer, é parte da minha vida. Eu posso durar mais dez anos, vinte anos, trinta anos, mas esses trinta que eu passei na Vale do Rio Doce foram os momentos decisivos da minha vida. Em que eu saí da adolescência, em que eu saí da faculdade, garoto ainda, com 22 anos e me entreguei para esse casamento, de onde só saí para me aposentar. E, se passei algum tempo afastado dela... Primeiro, não esqueci em momento nenhum; segundo, eu fui beber em outras fontes aquela água que eu ia utilizar quando voltasse para a Vale. E a intenção sempre foi essa: manter isso. E não sei bem, eu não consigo entender até agora, ainda não foi explicado por que eu vim aqui hoje, a razão de eu estar aqui. Eu não fui cúpula da Vale, eu não participei da administração central, superior da empresa. Eu fui um funcionário da Vale do Rio Doce, entre talvez cem mil, duzentos mil que percorreram a empresa desde a sua fundação até hoje. Esse quadro de funcionários, acho ninguém nunca analisou, avaliou esse número. Por que lembraram de mim? Eu não sei. Quem sabe? Se for alguém que gostou da Vale do Rio Doce, acho que a escolha foi certa. Eu fico muito agradecido da orientação de vocês, se tiverem mais alguma questão a formular, eu estou disposto. Muito obrigado pela oportunidade que vocês estão me dando aqui.
P/2 - Danilo, ______ cabala? Explica para a gente ______? Qual a função _____?
R - Quantas fitas dessa você tem aí? Acho que eu preciso de muito mais tempo. Mas, de qualquer forma, eu vou tentar resumir. Quando eu começo a fazer essas palestras, o pessoal pergunta: "Como é que você se relacionou com a cabala?" Bom, eu acho o nome interessante. O nome em si já é meio carismático: cabala, cabalística, essa coisa misteriosa e tal. Eu me lembro bem mesmo de coisa de Mandrake, tipo um gesto cabalístico que hipnotizava os adversários, então eu pensei: "Essa cabala deve ser coisa boa." O Mandrake conseguia aquilo. Mas realmente foi... São essas ciladas do destino em que a gente cai como uma criança. Muitas vezes, a gente pensa que é ator principal nesse drama da vida. Aí vê que, de fato, a gente é um coadjuvantezinho de terceira ou quinta categoria. Por que isso aqui está funcionando hoje? Porque alguém teve a ideia, porque encontraram uma empresa especializada e capacitada para realizar isso, tem vocês que estão me entrevistando. Mas, se não tivesse o operador, se não tivesse o iluminador, isso aqui não ia sair, ia ser um papo informal de esquina. Ou, então, a gente sentado num bar tomando uma cervejinha. Então, a gente, de fato, muitas vezes é levado, pensando que está levando. Deixei de ir para Mossoró, ser promotor e político, para ir para Brasília. Mudou a vida. O fato de eu ter levado aquela cacetada na época da formulação da política de minério lá de Brasília também me apresentou. O fato de eu ter voltado do Rio Grande do Norte achando que ia ser o rei da cocada preta na Vale e fiquei ali sem ter um lugar para ficar, sem ter uma mesa para trabalhar, sem ter nada, fazendo um trabalho de análise de relatório que qualquer estagiário poderia fazer. Eu precisava trabalhar um pouco a minha humildade, porque eu não era aquela coisa que eu achava que era. Então, o tempo que eu passei como diretor da Álcalis, quando voltei para a Vale do Rio Doce, aceitei, como eu disse, uma posição inferior numa área em que eu tinha sido chefe. Então, isso, realmente... Tudo na vida é aprendizado. Eu estava desgastado com a minha saída da Vale do Rio Doce, embora bem aquinhoado naquela coisa do acordo que nós fizemos, em 1991. Eu tinha trinta anos de Vale, mais uns três anos e meio fora, que eu tinha pago o negócio que eu tinha sido promotor e tinha sido funcionário lá do Estado, etc. Então, eu fiquei mais um ano e pouco pagando o INSS até completar os 35 da minha aposentadoria integral. Por coincidência, entre aspas... E a gente diz, até na cabala a gente fala que coincidência existe quando Deus quer ficar longe, quando não quer aparecer. Uma amiga que trabalhava comigo me apresentou a uma outra amiga que estudava esse negócio, perguntou se eu conhecia e eu disse que não, ela me emprestou o livro. Eu levei para a minha casa, eu tinha uma casa em Petrópolis, não essa que eu moro hoje, naquela ocasião. Comecei aquele livro, a ler o livro, achei muito hermético, não entendi coisa nenhuma. "Pô, espera aí! Eu nunca fui um sujeito tapado em livro, que não pudesse entender. Então, eu vou aceitar o convite dela e vou assistir uma reunião onde esse pessoal discute esse assunto. Só deve ter gênio ali. Eu vou ver esses gênios e vou me embora." Aí vim, cheguei lá, vi que eram pessoas normais e que tinham as mesmas dificuldades. Em síntese, eu comecei em 1991, já tem quase dez anos agora, e me integrei nisso. Eu estava saindo da Vale do Rio Doce, como se eu estivesse sendo preparado o tempo todo para começar a fazer um trabalho, de fato, importante hoje. E aí comecei a estudar isso, cabala. Tive a tradição mística do judaísmo, muito antiga mesmo, mais antiga do que o próprio judaísmo ou do que o cristianismo. Então, é como se fosse uma filosofia, uma tradição espiritual não diretamente religiosa. Você pode estudar a cabala sendo cristão, sendo judeu, sendo muçulmano, ou não sendo nada disso, mas que procura de certo modo, através da ação, da adoração, da contemplação, encontrar um caminho que leve até a fonte original de tudo, Deus, ou como queira se chamar isso. É como se você nobremente procurasse ajudar aquela contemplação que existe de Deus querendo se ver a si mesmo. Então, é mais ou menos isso. É um processo demorado, longo de a gente começar. Eu, como eu disse, me integrei nisso a partir dessa ocasião. No ano seguinte eu estava, por contingências especiais, já tomando conta do grupo, desse grupo em que eu comecei. Depois, participei de um seminário na Inglaterra e comecei a traduzir de brincadeira um livro. Depois, esse livro foi publicado pela Siciliano, que se chama O trabalho do cabalista. No ano seguinte, a própria Siciliano me pediu para traduzir um outro, que era Árvore da vida, e depois um terceiro, chamado Cabala e _____. Então, esse grupo depois foi se ampliando, eu comecei a ter grupo aqui, comecei a ter grupo em Niterói, comecei a ter grupo em Petrópolis. Depois, fiz palestra nesses lugares em vários locais, fiz palestra em Natal, fiz palestra em João Pessoa, me convidaram para fazer palestra em Brasília, lá na Câmara, no espaço cultural, eu fiz palestra lá, depois me convidaram e eu fui novamente. Participei de Seminário lá UNIPAZ, lá em Brasília, na Universidade Holística. E estou nessa estrada. Quer dizer, tenho saudade da Vale, como sempre tenho, lembro dela, mas eu estou em outra. Claro que, é como se diz, eu procurei na vida inteira, por esse resuminho que eu passei para vocês aí, eu preenchi bem todas aquelas fases. Mas eu procuro estar bem onde eu estou. Eu estou hoje aqui, eu sou hoje o que eu sou, fruto do que eu fui ou do que eu me preparei para ser, entende? E se você me perguntar: "Pô, Danilo, que época da sua vida você gostaria de retornar? Você foi um cara que teve um sucesso profissional lá no seu Estado, na Vale, no Ministério, no seu casamento, com seus filhos. Qual é a época a que você gostaria de retornar?" Eu digo: "A época a que eu gostaria de retornar é essa que eu estou vivendo hoje, como fruto de tudo aquilo que eu já passei, da experiência adquirida." Porque, como eu acredito que isso não acaba, a energia continua, você chame isso de alma, de espírito, de qualquer coisa, então, o que eu aprendi até hoje é que isso não vai ser perdido. O que eu experimentei até hoje, as gratificações, as tristezas, as decepções. Porque decepção mesmo você só tem quando você está desatento. Você nunca é traído se você estiver atento. Ou então você nunca é sacaneado se você estiver preparado para isso, se você considerar sempre as possibilidades. O diretor da sua escola, ele está querendo lhe ferrar, ou uma namorada sua está querendo lhe deixar, qualquer coisa assim. Se você estiver atento, você não vai ser traído nunca. Então, a experiência que você adquiriu, essa não morre, mesmo quando você morre. Eu acredito que essa energia continua. E o que eu puder preparar agora, isso me vai ser útil no futuro. Se eu quero voltar? Eu não quero. Eu quero passar por novas experiências com a experiência que eu já tenho, entende? Quer dizer, eu estou com 62 anos e o meu filho 38. Pô, vinte anos, trinta anos, quarenta anos? E aí? Eu teria o que eu tenho hoje? Eu estou procurando uma sabedoria e não é fácil. A sabedoria está além do conhecimento intelectual, está além da compreensão das coisas, está além da intelectualidade que você adquire no livro. A sabedoria é uma coisa além, que vai depois disso. Então é essa sabedoria que a gente busca. E é difícil você adquirir a sabedoria com vinte anos, com trinta anos. Até pode, mas é muito mais difícil. Então, eu estou tentando ser feliz hoje, mesmo eu tendo ficado viúvo, mesmo meus filhos tendo saído de casa para casar. Não, mas eu estou procurando aprender tudo isso. Será que, de fato, eu perdi saindo da Vale? Não sei Eu saí no momento em que achava que devia sair. Eu não sei se eu teria hoje a mesma devoção que eu tive na situação jurídica que nós estamos vivendo hoje. Mas quem sabe a gente pode ser útil em qualquer circunstância. E eu estou procurando isso, passar essa lembrança, essa memória, e fico muito agradecido pela oportunidade que eu estou tendo aí com vocês. Alguma coisa mais aí? É, então se a gente puder encerrar eu agradeço e fica a discussão, qualquer coisa que vocês acharem que vale a pena, eu estou sempre aqui. Está bom? Obrigado.
Continuação do depoimento de Danilo Gadê Negócio
Rio de Janeiro, 11/09/2000
P/1 - Então, Senhor Danilo, eu vou pedir para, nessa continuação, o senhor contar um pouquinho da trajetória do senhor no fundo de reserva. Como o senhor chegou ali, como é que o senhor encontrou...?
R - Eu comecei efetivamente a participar desse trabalho direto na reserva de desenvolvimento da Zona do Rio Doce nos últimos anos da minha permanência na Vale. Mas eu já tinha um conhecimento um pouco detalhado dessa área, ela sempre me atraiu. Pelo que digo praticamente da minha vida toda, eu sempre tive uma vocação política grande, na época de estudante, ou mesmo antes, através do meu pai, e cheguei a participar de alguns eventos políticos lá na região nordeste, na minha região. Isso me atraiu muito. E a reserva sempre exerceu um fascínio muito grande comigo. Primeiro, era um sonho de política verdadeira, de política positiva de uma empresa. Claro, a Vale do Rio Doce era uma empresa estatal, era uma sociedade de economia mista e, como eu referi no outro depoimento, a própria lei que criou a Vale do Rio Doce, a legislação da época do Getúlio Vargas, em 1940, 1941, até a instalação da Vale, ela estabelecia como uma compensação aos mineiros pela construção da usina de Volta Redonda aqui no Estado do Rio de Janeiro. Que a criação da Companhia Vale do Rio Doce, fruto dos acordos de Washington, desse a Minas Gerais uma compensação pela extração do minério de ferro da região de Itabira. Então, sabiamente estabeleceu a legislação que uma parte do lucro da empresa deveria ser aplicado na região de influência dessa mesma empresa. A Vale tirava o minério e, para não deixar o Carlos Drummond de Andrade totalmente cheio de razão de que Itabira era apenas um buraco no chão e um retrato na parede, a intenção do legislador foi compensar um pouco Minas Gerais pela perda do minério que saía de lá. Então, foi estabelecido que 8% do lucro da empresa deveria ser aplicado na região de influência. A ideia inicial foi utilizar esses 8% na própria região de Itabira Porque, naturalmente, Itabira era a cidade mais diretamente prejudicada. Mas isso foi se ampliando ao longo do tempo e criou-se uma área de influência do Vale do Rio Doce que participava cerca de Itabira e até o porto de Vitória, no Espírito Santo, seguindo toda a geografia da linha da estrada de ferro Vitória-Minas. Muitas cidades estavam incluídas ali. E a própria construção da estrada de ferro trouxe um desenvolvimento grande para aquela região. Muitas pequenas cidades, vilarejos, foram nascendo, surgindo ao longo da estrada. Hoje é uma zona economicamente poderosa, Ipatinga, Governador Valadares, Colatina, outras cidades menores que também fazem parte daquele veio de escoamento do minério, terminando no antigo porto de Vitória, de certo modo estrangulado. E porque a visão dos administradores da Vale, naquela época, ensejou a criação do Porto de Tubarão, ensejou a modernização da extração de minério, a automação, a duplicação da linha da estrada de ferro Vitória-Minas e o Porto de Tubarão, com a usina de pelotização. Fez com que aquele complexo tivesse condição de subsistir no mercado mundial de minério de ferro. A reserva do Rio Doce, durante muito tempo, ficou mais ou menos sobre a estrada, até que a Vale, anos depois da sua construção, começasse a ser uma empresa rentária e passasse a dar lucro. Então, isso, claro, era um veio político muito forte. De certo modo, também um veio eleitoral, porque parlamentares, desde a época anterior, do Juscelino Kubitschek, e os presidentes que se seguiram, ficaram atentos para aquela possibilidade de aplicação do recurso. A Vale sempre foi muito ciosa na utilização disso. Ela sempre teve muito cuidado, até porque, como quase por um milagre, ela conseguia de certo modo não ficar envolvida pela política ou pela politicagem nos estados onde ela atuava, especialmente Minas e Espírito Santo, naquela época. Mas a ideia inicial da constituição do fundo ou da reserva tinha um mérito muito grande. E o que me atraiu, de fato, foi isso: ela dava uma possibilidade de participação social de uma empresa de porte. Então, essa participação social qual seria? Inicialmente, compensar o Estado de Minas Gerais pela perda do minério de ferro. Depois, algumas pessoas da direção da Vale do Rio Doce tiveram uma visão mais ampla e, à medida que essa visão se ampliava, se ampliava também aquela região de influência. Durante os últimos anos da Vale do Rio Doce, eram cerca de 150 e, até o final, 160 municípios que recebiam esses benefícios. É claro que nem todos podiam receber, porque o dinheiro também não era de tão grande monta. Mas a Vale do Rio Doce, a partir do momento em que começou a ser lucrativa e rentável, 8% desse lucro já significava alguma coisa. Então, quando eu cheguei, a convite do presidente Eliezer Batista, para tomar conta dessa área, havia sempre algumas municipalidades dos dois Estados, Minas e Espírito Santo, que eram mais atentas para esse recurso. Entre elas a própria Itabira, que, sempre e com razão, reivindicava a parte do leão desse recurso. E muitas coisas puderam ser feitas naquela comunidade. Eu mesmo, muitas e muitas vezes me desloquei a Itabira para discutir com os prefeitos, diversos prefeitos, com pessoas de entidades de classe, com associações beneficentes, associações de pais de crianças excepcionais. Isso, de certo modo, claro, não resolvia o problema social da cidade, mas muita coisa foi minimizada, participação em escolas, em hospitais, etc. Itabira, Valadares, Colatina, Ibiraçu, Linhares, Vitória também, Vila Velha... Então, claro, alguns parlamentares, os próprios governadores se dispunham a conversar com o outro. Eu, muitas vezes, fui convidado a ir a Vitória ou mesmo a Belo Horizonte para discutir com os governadores de então. Eu ia muitas vezes com o Delegado e às vezes acompanhando o próprio presidente da Vale, quando se discutia antecipadamente a utilização de recursos no anos seguintes. Eu tinha entrementes que obedecer a uma orientação macropolítica para aplicar esses recursos. Nós tínhamos regras, normas que precisavam ser seguidas. Mas claro que, dentro dessas regras ou dessas normas, a gente tinha flexibilidade para discutir e nós tínhamos a possibilidade, sempre respeitada pela direção da Vale, de elaborar os projetos junto com as comunidades, fazer uma proposta para a direção da Vale do Rio Doce. E a direção da Vale se dispunha a discutir isso conosco e aprovava em reunião de diretoria. O gerente da reserva, que era _______, nos últimos anos que passei na Vale do Rio Doce, tinha acesso às reuniões de diretoria em que eram discutidos esses assuntos. E alguns presidentes, como foi o caso algumas vezes do Mascarenhas, do Agripino Abranches, por exemplo, que me delegavam quase toda a decisão disso. Muitas e muitas vezes eu tive que representá-lo em inauguração de obras financiadas pela reserva do Rio Doce. Nós tínhamos uma parte que era financiada a juros, subsidiada e uma outra parte de doação. E então nós tínhamos, com essa parte de doação, uma flexibilidade bastante positiva e agradável até, porque muitas instituições de auxílio para pessoas carentes receberam esse benefício de 8%. Quanto mais cresce a Vale, quanto maior é o seu desempenho, o seu lucro, maior seria esse percentual. Nós não podemos negar que sempre existe, dentro da Vale do Rio Doce, aquelas pessoas com a cabeça financeira, que querem reter, que querem segurar, que querem deixar para liberar esse recurso no último dia possível. Mas há também outras pessoas que têm uma visão social. E essa visão social dessas pessoas é que me fazia entrosar com aquele trabalho. Eu tinha minha vocação, e a vocação política pode se demonstrar naquelas visitas que eu fazia, encontro com comunidades, clubes, associações e tal. Então eu saía da estrada muitas vezes e ficava empolgado com aqueles encontros, com aquelas conversas, com aquelas solicitações, ao mesmo tempo em que a gente via a necessidade premente da comunidade. São Estados, de certo modo, ricos no contexto nacional, mas têm manchas de pobreza muito fortes, principalmente na zona mais ao norte do Rio Doce. Perto de Valadares, por exemplo, você tem muitas comunidade que têm muito da minha região do nordeste. Não é à toa que aquela região de Valadares é também incluída no Polígono das Secas. E aí qualquer coisa que nós pudéssemos fazer em benefício daquela gente era bem vinda, bem recebida e um ato, de certo modo, social. Eu lembro que uma vez eu fui convidado pelo Ministério de Minas e Energia e outra vez pelo SESI para fazer uma palestra sobre a reserva do Rio Doce. como é que funcionava isso? E isso me empolgou muito, porque eu pude, ou pelo menos tentei, mostrar para as classes empresariais, no caso no SESI, por exemplo, o interesse social de uma empresa do tipo a Vale do Rio Doce. E que eu achava que aquilo não devia ser uma atitude exclusiva de uma empresa de economia mista, que tinha a obrigação legal de fazer aquilo, pela legislação do início dos anos 1940, mas que aquilo podia ser um exemplo para todas as grandes empresas do Brasil. Eu sempre participei desse sistema que nós estamos vivendo aí, trabalhei dentro do sistema. Cheguei a presidir o Banco de Desenvolvimento na minha região, mas eu nunca me despi daquela ideia inicial minha, do tempo de estudante, de que todos têm obrigação com todos, todos têm um dever social. E a Vale do Rio Doce tinha isso. E isso foi pela própria lei que a criou, depois, pela consciência de alguns de seus dirigentes. E eu, empolgado com isso, achava, como acho até hoje, que toda empresa tem uma obrigação social. Claro, ela tem que buscar, em primeiro lugar, o resultado, o lucro, mas isso não significa que os demais componentes que uma empresa deve ter devem ser minimizados. O capital, por exemplo, eu sou o dono do capital, então eu sou o dono da empresa e tudo vai girar em torno disso. É uma mentalidade, é uma opinião, eu até respeito, embora não concorde. Capital é importante, mas a pessoa é importante, o trabalho é importante, a base física da empresa é importante, a região onde ela se situa é importante. É um contexto geral que tem que receber igualmente o mesmo tratamento. A gente sabe que não é assim. Lamentavelmente, a ideia capitalista no Brasil é uma ideia absolutamente superada, até mesmo nos países mais capitalistas. O Henry Ford dizia que só seria um capitalista vitorioso no instante em que o carro que ele fabricasse pudesse ser comprado pelo seu próprio operário. E ele conseguiu isso. E relativamente, porque ao longo de uma geração, talvez, a linha de produção e outras ideias magistrais que ele teve fizeram com que o operário que trabalhava na indústria Ford pudesse comprar o seu carro. No Brasil, o empresário, ou o capitalista, ou o dono da empresa é a cabeça, o tronco e o membro da própria empresa. Então seria o quê? Seria 90% para ele e o resto para o resto. A Vale, não. Por ser uma empresa estatal, ela não tinha, teoricamente, um dono, embora tivessem pessoas que manobrassem ou que dominassem. Mas ela tinha limitações, limitações de salário, o que não levou a que seu corpo técnico fosse mal remunerado, mal pago, não. Mas era um corpo especializado, um corpo que teve um tratamento excepcional no contexto brasileiro. As pessoas eram preparadas, iam fazer curso no exterior, eram estimuladas, de certo modo, a se desenvolver como empregados. Faltava, talvez, um pouco da ideia de desenvolver esse empregado como pessoa e como participante de uma entidade e que tivesse voz naquela mesma entidade. Isso foi sendo conseguido, paulatinamente, mais como concessão da empresa do que como conquista desses próprios empregados. Nasceu a consciência, através do Sindicato, de certo modo, mas também muito limitados e muito bitolados à questão puramente salarial. A Associação dos Empregados, a qual eu já me referi antes, teve uma participação também no sentido de dar voz e vez àqueles empregados, especialmente o pessoal mais preparado, o corpo técnico. Isso, essa nova mentalidade surgida, com relação à capacidade ou à capacitação desses empregados. E a reserva do Rio Doce era o embasamento quase que ideal para uma empresa no país. Não somente uma empresa do governo, uma empresa estatal, mas uma empresa, empresa! E eu me lembro que em 1960, 1970 e pouco, quando eu gerenciei pela primeira vez a área de comunicação social, de relações públicas da Vale do Rio Doce, eu dediquei um capítulo especial ao público interno. A isso eu já, en passant, me referi da última vez. E que o público interno, ele era a personificação da própria empresa. E que esse público interno tinha que estar motivado. E motivação não é apenas salário, não. É a certeza de que essas pessoas tinham de que eram gente e de que eram importantes para a empresa e para o destino dessa empresa. Isso, ao longo dos anos, foi se sedimentando. A Vale do Rio Doce, eu digo que é uma casta com seus empregados, mas ela tem um espírito de corpo muito forte. As pessoas tinham sempre orgulho de dizer: "Eu sou da Vale. Eu trabalho na Vale." Você percorria todas aquelas cidades da estrada de ferro Vitória-Minas e via a satisfação. Mesmo empregado de Itabira, que gostava de dizer que Itabira é uma cidade pouca aquinhoada, mas ele tinha orgulho de dizer: "Eu sou da Vale. Meu pai foi da Vale. Eu tenho uma responsabilidade pelo que vocês estão vendo hoje aqui." E é tão interessante você observar essa mudança. Logo que eu comecei a trabalhar na empresa, quando eu casei, em 1964, a minha viagem de lua de mel praticamente foi uma viagem de lua de mel com a Vale do Rio Doce. Eu lembro que eu saí de Brasília de carro, tinha um fusca naquela época, e fiquei uns dois ou três dias em Itabira. Botei o carro numa plataforma daquelas de minério, desci no trem e percorri tudo aquilo. Fiquei uns dias lá, recebido carinhosamente pelo saudoso Quintino Barbosa Figueiredo, que era sogro do Marcos Viana, pai da Deise, uma técnica, arquiteta também da Vale do Rio Doce. E a minha viagem de lua de mel foi praticamente quase que uma lua de mel também com a Vale. E depois, se você visse, por exemplo em 1964, o que era Itabira e você vê hoje aquele ________, embora um tanto quanto exaurido pela utilização constante por mais de cinquenta anos, quase sessenta anos, você vê de certo modo que a cidade mudou, a cidade cresceu em torno da Vale. E todas aquelas cidades, Ribeirinhos ou Rio Doce, ou marginais da estrada de ferro Vitória-Minas, elas tiveram essa influência. A reserva, claro que, se eu fosse constituir uma reserva de desenvolvimento do Rio Doce, eu talvez concentrasse um pouco mais os recursos em pontos-chave e não ficasse ao sabor e ao relento das influências políticas do momento. E nenhuma dessas atitudes políticas que a gente tinha que preservar... Nós tínhamos que ter um bom relacionamento com o governador de Minas Gerais, é claro, de diversas gestões, ou com o governador do Espírito Santo, ou com alguns deputados de Minas e de Espírito Santo, que participavam muitas vezes da Comissão de Minas e Energia, que era importante também para os interesses da Vale do Rio Doce. Então, aqueles deputados federais ou estaduais, prefeitos de muitos daqueles municípios e os governadores dos Estados nos chamavam, exigiam, reivindicavam, etc. Então, o que nos competia fazer era mostrar um pouco as nossas limitações e tentar trazer para um debate franco, claro, sobre a forma que nós achávamos ideal de aplicação daqueles recursos. Tinha deputado que vinha todo ano e tinha deputado que vinha todo ano com propostas sérias. Prefeitos também. A gente, de vez em quando, atendia solicitações extra-curriculares, fora desses canais políticos competentes, e entrava em contato direto com associações beneficentes, como eu disse, com crianças carentes, velhos, deficientes físicos, atividades culturais. Então isso, de certo modo, fazia com que nós tivéssemos um trânsito fluente na zona de influência. O que significa isso? É 8% do lucro. É muito? Quem sabe? Eu queria ter lucro para poder aplicar 8%. As empresas nossas não têm essa visão, lamentavelmente. Algumas são obrigadas, como é o caso da Petrobrás e outras que depredam o meio ambiente, têm que fazer isso. Mas todas poderiam dar a sua parcela, de certo modo. E esse trabalho político, sem dúvida, mas muitas vezes político com "P" maiúsculo, uma política macro, me motivou nos últimos anos que eu participei no trabalho com o time da Vale do Rio Doce. Esse trabalho não acabou, mudou a estrutura jurídica legal da Vale do Rio Doce. Eu tenho uma certeza absoluta de que essa estrutura jurídica mudou, não porque precisasse mudar ou porque a Vale do Rio Doce não tivesse desempenhando o seu papel histórico. Isso não é verdade. Ela sempre desempenhou isso. E quem ler com isenção a história empresarial brasileira, vai sempre colocar a Vale do Rio Doce como ponto de destaque, mesmo sendo uma empresa do governo, mesmo havendo épocas de grande influência política geral, pelegos, politiqueiros, gente que estava procurando exclusivamente o benefício eleitoral próprio, mas a Vale do Rio Doce, à duras penas, conseguiu passar, eu diria quase que incólume, por tudo isso. Passou, construiu, investiu, participou do desenvolvimento. Ninguém pode negar a participação da Vale do Rio Doce em Minas, no Espírito Santo, hoje, e no norte do Brasil, lá no Carajás. Isso, claro, para mim, não deixa a menor dúvida de que a Vale estatal, de economia mista, sempre desempenhou o seu papel. A decisão do governo, para mim, foi uma decisão puramente política. Puramente política. A Vale nunca foi um ônus para o país, pelo contrário, ela sempre deu resultado. Se, muitas vezes, ela reinvestia os seus lucros ou não dava o dividendo para o país ou para o governo diretamente, ela reinvestia para o próprio país. Mas havia essa potência que é a Vale do Rio Doce hoje. E isso não foi constituído de dois ou três anos para cá, não. São sessenta anos desde que ela começou. As pessoas que passaram por ali, quantos milhares de funcionários que foram lá, na construção da estrada. Eu não fui desse tempo, nem sou um ferroviário. Mas quantas histórias a gente já soube ou já ouviu, na tradição oral da própria Vale do Rio Doce, de pessoas que morreram de parasitismo ou de febre amarela, picada de cobra, de acidente, desmoronamentos, etc, na construção daquela estrada, ou naufragagem do porto? Então, é uma história longa, é uma história demorada. Uma história de muitos e muitos atores, que aparentemente eram coadjuvantes, mas que eram atores realmente... Porque eles faziam com que a peça funcionasse. Eu considero ator não aquele que está aqui de frente para a câmera falando, não. Ator são vocês, que estão entrevistando, é aquele que está filmando, é quem organizou isso aqui. Quer dizer, tudo faz parte de um contexto. Eu estaria aqui falando para nada se não tivesse essa estrutura. A Vale do Rio Doce é o que ela é pela totalidade dos que participaram dela, uns com maior, outros com menor evidência, mas todos. A estrada, a mina, o porto, a parte administrativa, que é importante também, a infraestrutura geral de funcionamento da empresa... A reserva esteve, de fato, talvez pouco compreendida, em muitas ocasiões mal utilizada. Mas, de qualquer maneira, é o objeto essencial para mim em qualquer empresa, capitalista ou não. Ninguém pode estar dissociado da sua base física, do seu território. Então, o território da empresa o que é? É o capital apenas ou é a inteligência do seu dirigente máxi? Não, ela é o que ela é pelo contexto geral. O cara que está lavando o terraço lá fora, ou a secretária que está anotando o recado, têm também. Claro, pode não ser uma estrela de primeira grandeza, mas é participante disso. A reserva pode não ter sido uma estrela de primeira grandeza na história da Vale do Rio Doce, mas ela tem uma coisa que um dia ainda poderá ser aproveitada pela totalidade do corpo empresarial desse país. E é importante você motivar aqueles com quem você lida. Não precisa muito, não, basta você ter um pouco mais de atenção, mais de cuidado, mais de carinho, fazer a coisa amorosamente, como tudo que deve ser feito na vida. Pode ser que isso seja mal interpretado como anticapitalismo, embora eu, filosoficamente, seja anticapitalista, porque é mais fácil dizer que é empresarial incluindo capital e trabalho, e não simplesmente capital. Por quê? Então, o capital é importante, a empresa tem que dar lucro, como a Vale tinha que dar lucro. Ela precisava reinvestir naquilo, ela precisava aplicar, ela precisava crescer, ela precisava estar up to date, ela tinha que estar atualizada para competir em um mercado difícil, que era o mercado mundial de minério de ferro, sempre foi. Mas a visão social que o governo, muitas vezes, apregoa ou que diz que tem, mas que está longe ainda de uma realidade, ela deve ser constante a cada momento, como a gente faz na nossa casa, como a gente faz na nossa família. Eu posso ser o dono da casa, entre aspas ou não, mas eu tenho que considerar a totalidade da casa. Até os cachorros que vivem lá dentro têm que ter, de certo modo, a mesma atenção, a atenção que eles merecem ou que eles precisam ter. O empresário tinha que ter essa visão, para mim. E foi com muita satisfação que eu digo que passei esses últimos anos da minha atividade na Vale do Rio Doce nessa área. É uma área política? É. É uma área muito visada, sem dúvida. Mas, de certo modo, ela era o coroamento da própria Vale do Rio Doce, do que ela significava: uma empresa voltada para fora, mas também voltada para dentro. Não adianta só daqui para fora. É voltada para dentro. Ela sempre considerou os seus empregados, de certo modo. Não idealmente, mas diferentemente da grande maioria das empresas do país. Ela considerava. Isso dava aquele sentido de amor à camisa. A gente usava muito a coisa de vestir a camisa da Vale. Aquilo era um símbolo, mas era um símbolo muito real. Nós vestimos aquilo, sempre vestimos. Uns mais, outros menos, isso existe em qualquer coletividade, mas havia a mística do amor à empresa. A reserva do Rio Doce, a política de pessoal da Vale, a seriedade quase total na empresa fazia com que ela se constituísse em um corpo quase à parte no sistema econômica brasileiro. E acho que é mais ou menos isso. A reserva tem muita coisa a ser feita. Não sei, quem sabe a gente poderia levantar um dia o que a gente atendeu em termos de solicitação da região. Umas atendendo à solicitação, outras, de certo modo, a gente procurava influir em projetos e em processos de desenvolvimento social da própria região. A cultura, por exemplo, recebeu durante muito tempo uma atenção especial na reserva do Rio Doce. Se você visitar hoje, em algumas comunidades de Minas, por exemplo, Ouro Preto, Santa Bárbara, Caraça, aquilo teve o dedo da Vale do Rio Doce também. Essa atividade de recuperação da história, já muito massacrada daquela região, a Vale do Rio Doce teve também, através da reserva do desenvolvimento, uma atuação marcante, uma atuação forte. Atividade social, atividade beneficente, etc. Então é isso um resumo, uma síntese do que eu penso a respeito da reserva do Rio Doce. Eu fui um dos seus vários gerentes. Normalmente a pessoa ficava lá um ano, quando muito, dois anos. Eu fiquei sete anos, até me aposentar, eu era ainda gerente geral dessa área. E fiz com muita satisfação, mesmo com uma atividade política paralela, como presidente da AVAL, da Associação dos Empregados, eu continuei isentamente aquele trabalho na reserva do Rio Doce. E, embora a direção da empresa considerasse um pouco a AVAL como oposição a uma política oficial, quando de fato não era, nós aspirávamos e sonhávamos o somatório, trazer o empregado ou o técnico da Vale do Rio Doce para trabalhar junto com a direção da empresa, mas com respeito, com dignidade e com voz também. Eu, presidente da AVAL, continuava como gerente da reserva do Rio Doce. E aí eu quero fazer uma justiça total à direção da empresa, que em nenhum momento misturou as bolas. Eu continuei tendo acesso às reuniões de diretoria, continuei discutindo com a comunidade e com a própria direção da empresa todos os projetos que interessavam à reserva do Rio Doce. Nunca a minha condição de presidente de uma Associação de Empregados foi colocada na mesa, que pudesse trazer em decorrência algum embaraço, alguma dificuldade ao exercício das minha duas tarefas na ocasião. E eu fiz até o último dia em que eu trabalhei na Vale do Rio Doce, antes da minha aposentadoria. Eu fiquei como gerente da reserva e foi realmente, talvez, para mim, pessoalmente e profissionalmente na Vale, um coroamento dessa vida de trabalho ali.
P/1 - Como é que era o corpo de vocês, o corpo técnico. Quer dizer, vocês desenvolviam projetos também ou vocês recebiam os projetos e aprovavam? E como se fiscalizava isso, como que era um pouco esse trabalho?
R - É, nós tínhamos um corpo pequeno de funcionários, a Vale sempre foi muito sumítica nessa coisa de empregado. Mas nós tínhamos bons técnicos ali que, mais do que analisar um projeto recebido, pronto, no pacote, nós elaborávamos esses projetos. Ninguém pode pretender, por exemplo, que uma comunidadezinha lá no norte do Rio Doce, cidade pequena, como Ibiraçu ou qualquer uma das cidadezinhas pequenas, tinham pleito. Ele mandava uma carta ao presidente da Vale do Rio Doce solicitando recursos para a Fazenda. Então o que é que nós fazíamos? Pegávamos aquele pedido, dávamos um corpo de um projeto, claro, resumido, e dependendo da capacidade técnica desse órgão que solicitou ou dessa prefeitura, dessa municipalidade, dessa associação, nós propúnhamos a doação de um recurso ou então um financiamento, como eu disse, a longo prazo e a juros subsidiários. O nosso corpo era muito bom, nós tínhamos excelentes funcionários. Houve uma espécie de um assessor dessa minha área de conhecia aquilo na palma da mão. Ele era capaz de elaborar um projeto em 24 horas, o Aquino, de Bocaiúva, uma pessoa extraordinária, como outros que trabalharam comigo ali também. Nós fazíamos esse resumo do projeto e, com esse projetinho que nós elaborávamos muitas e muitas vezes, fazíamos uma proposta à direção da Vale do Rio Doce, enquadrando na legislação, enquadrando na regulamentação nossa e pedindo a aprovação com liberação, etc. A liberação era feita com a conclusão das etapas da obra ou do projeto. Nós tínhamos permanentemente poucos funcionários, é claro, mas visitando todas aquelas localidades ou todos aqueles projetos que nós havíamos aportado recurso. Está fazendo ou não está fazendo. Quando ele dava o ok, nós então propúnhamos a liberação das parcelas seguintes. Dificilmente nós temos algum caso de não cumprimento dessas tarefas. Tínhamos atrasos, às vezes. Coitado, o cara não tinha nem como pagar, a entidade era pobre e tal. A gente, de certo modo, segurava, mas a gente não podia liberar o recurso subsequente se não tivesse cumprimento da etapa. Se era uma obra necessária, e era quase que impossível a gente liberar para aquilo que nós não estávamos convencidos de fato, a gente agia assim também, como pessoa interessada. Então nos forçávamos para que aquelas etapas fossem cumpridas. A própria Vale do Rio Doce, direta ou indiretamente, ajudava. Se estava ali ao lado da estrada, então conseguia uma carreta, um caminhão para ir ajudando aquela pequena comunidade. Associação de cegos ou de velhos no interior, como é que aquele pessoal vai ter, sei lá, acuidade, para executar o projeto? Então, a gente fazia uma coisa assim, quase que de certo modo, paternalista também. Mas porque nós sabemos que você tem que aprender primeiro para poder fazer depois. E muitas pessoas estavam se dedicando a um trabalho social importante na região. Para nós aqui, talvez não signifique nada, mas para eles é tudo, ou é a própria vida. Então, a gente muitas vezes fazia isso. Era quase que um “banquinho de desenvolvimento” a reserva, mas ao mesmo tempo tinha muita coisa de sensibilidade social que não era nossa, era da própria empresa. Por isso que eu disse e repeti exaustivamente: essa reserva tem que ser apreendida pelo sistema capitalista, pelo sistema empresarial do país. Não é porque é simplesmente uma empresa do governo que tem mordomias, facilidades. Não é isso, não. É a responsabilidade social que todos nós temos. Ninguém pode abrir mão disso. Eu sou um ente social, eu sou uma pessoa coletiva, vamos dizer assim. Então, eu não posso me isolar no meu dinheiro, no meu poder, ou na minha ciência, na minha capacidade intelectual e simplesmente deixar de lado tudo mais. A reserva tem sido isso. Hoje eu estou afastado, não acompanho, não sei de nada do que está acontecendo lá, mas é uma ideia que tinha um dia que ser resgatada na história desse país.
P/1 - Mas então o senhor... O norte o senhor incorporou também ou não?
R - Como assim?
P/1 - O norte.
R - Sim, o norte também. Ele depois já, é claro. Carajás é relativamente recente na história da Vale, mas foi feito de forma diferente. O nosso corpo técnico praticamente ficou restrito à região sul, Minas, Espírito Santo, 150 ou 160 municípios. Lá os projetos eram feitos, aprovados pela direção da empresa junto com os governos do Pará, do Maranhão, etc. Então, lá é um sistema um pouco diferente, embora a ideia seja a mesma. A legislação que criou a Vale do Rio Doce não era diferente para o sistema sul e para o sistema norte. É a mesma. Entretanto, a forma de utilização disso, de aplicação ou de execução, era diversa. Eu praticamente não tive nenhuma influência nesse trabalho feito no sistema norte. Fui lá, conheci, conversei e tal, mas nosso trabalho era muito restrito, o que já era muita coisa tendo em vista o resumido quadro que nós tínhamos de pessoas. Muitas vezes a gente tinha que se desdobrar, você tinha que assobiar e chupar cana ao mesmo tempo. Você tinha que, muitas vezes, traduzir um pedido em um projeto, preparar uma proposta, aprovar na diretoria, acompanhar a execução. E tinha uma coisa que eu considerava essencial: era a presença nossa naqueles pontos. Saía, viajava, dificilmente eu passava uma semana sem viajar. E o pessoal técnico também, que trabalhava comigo, ia muito. Mas eu gostava também, aquilo fazia parte, sei lá, do meu próprio DNA. Me relacionar com essas pessoas e conversar com esses prefeitos, esses vereadores, aquelas disputas de câmara de vereador. E associações, visitar aquilo, jantar no clube tal, jantar na Associação dos velhinhos lá e tal. Isso, de certo modo, me atraía, eu gostava daquilo. Eu esgotava uma vocação, de certo modo, já que eu não quis morrer nessa politicagem pessoal. Então isso me dava um trabalho motivado, porque eu gostava de fazer aquilo. Achava que era um trabalho sério, não tinha nada daquilo de ser vigarisse para atender à política da região, não teve nada disso. E se havia alguém que pensava isso, ou se havia alguém que conseguia recurso com essa intenção, nunca teve apoio de nossa parte. O trabalho era sério e a média geral aprova com louvor isso que a empresa fez. E que uma grande ideia, talvez... Sabe a política de Getúlio, de compensar os dinheiros pela Volta Redonda aqui no Rio de Janeiro? Ele pode ter dado, ensejado uma possibilidade de redenção do próprio sistema capitalista. Não só isso de você aplicar na zona de influência, mas que deixe de lado um pouco da avidez capitalista. Eu encarei assim. Encaro assim ainda hoje e fico muito feliz, de certo modo, por ter dado uma colaboração, por menor que fosse, nesse trabalho da reserva.
P/1 - E o itabirano, Senhor Danilo, como é que era o itabirano com a reserva, como é que ele lidava com a Vale, como é que era um pouco essa relação? O senhor sentia aí?
R - Olha, me lembro, no comecinho da minha vida profissional, eu estava lá no Ministério de Minas e Energia e o ministro era Gabriel Passos, aqui eu já me referi a ele, um grande brasileiro, um grande patriota. E eu tinha vinte e poucos anos, ainda fresquinho da faculdade, me formei com 22, devia ter uns 23, 24 anos. Isso deve ter sido em 1962, no regime parlamentarista. Aí, um movimento grevista muito sério que ______ de transportadores de derivado de petróleo. Naquela época, Brasília era uma cidade ilhada, isolada, que praticamente não produzia nada. E, claro, todo o apoio de abastecimento vinha basicamente de São Paulo, principalmente no tocante a combustível. Os transportadores achavam que precisavam aumentar a sua parte no frete, pararam e isolaram uma região lá perto de ______, na divisa de Minas com Goiás. Puseram dinamite nos pilares de uma ponte e proibiram praticamente a passagem de qualquer veículo que viesse de São Paulo. Só passava quem eles queriam. Trezentos ou mais caminhões estavam parados ali e Brasília estava na ameaça de um colapso de abastecimento durante três ou quatro dias. Aquele negócio estava incomodando muito. No parlamentarismo, o presidente era o João Goulart, o primeiro ministro era Tancredo Neves. E Gabriel Passos, um homem muito sério, ministro de Minas e Energia, com todos os méritos, estava agastado com aquilo. Que ele era considerado também... Era um nacionalista, considerado um homem de esquerda, e aqueles que se diziam de esquerda é que estavam fazendo, capitaneando aquele movimento. Ele estava pressionado, o ministro da Guerra, o ministro da Aeronáutica já estavam dispondo o deslocamento de tropas de São Paulo para desobstruir a ponte, para desocupar a ponte, desativar aquilo. E podia acontecer uma carnificina, realmente. Então eu, ou o Ministério, decidiu mandar um observador. E ele... Eu estava lá disponível, ele gostava de mim, o ministro, e pediu que eu fosse. E eu fui, como observador, até o avião do ministro da Aeronáutica, major, sargento, a população do avião, para observar, sobrevoar o local. Aí nós fomos para aquela região perto de Uberlândia, _________ etc. E quando sobrevoou aquilo, estava coalhado de caminhão embaixo, tinha trezentos, quatrocentos caminhões. "O negócio é sério mesmo." Aí o major também, tal... Aí eu sobrevoei ali e perguntei: "Major, eu vou descer aqui." "Não, você não pode descer. Eu tenho ordens de levar você de volta." Eu disse: "Não, eu queria descer. Eu queria descer, eu queria conversar com esse povo." Ele disse: "Mas eu sou responsável." Eu disse: "Não, pode deixar. Eu tenho delegação do ministro." Não tinha. Tinha delegação para olhar, mas não tinha delegação para descer nem conversar com ninguém. Aí fomos lá, fez aquele vôo rasante, fomos para o aeroporto, eu desembarquei e pedi ao major, então, para me pegar no dia seguinte, às nove horas da manhã, sei lá, de manhã. Ele, muito cuidadoso e tal. Chegou uma delegação de pessoal da greve e foi conversar comigo. Eu conversei com eles, então pedi para o major ir embora para Brasília e voltar no dia seguinte com o avião. Saímos para a greve lá. Fomos lá, conversei com o pessoal, almocei lá com eles, não sei o quê, aquela frente ________, não sei o quê. Sei que, a duras penas, consegui falar com eles para irem fazer uma reunião para discutir a greve. E eles terminaram indo, nós fomos para Uberlândia, tinha muita gente conhecida lá, e depois chegaram a ocupar cargos importantes na República, até na época da revolução. E, nessa época, eles estavam fomentando um pouco aquela greve. Então, nós fizemos a reunião e de certo modo deu resultado, que à meia-noite, mais ou menos, eles resolveram acabar a greve. Eu falei, apelei para o patriotismo, apelei para isso, eles estavam querendo fazer uma revolução, eu também estava querendo isso, porque eu estava fresquinho da faculdade. E eu tinha sido presidente do diretório, então eu estava querendo a mesma revolução deles. O que vocês têm aí? Vocês estão muito armados, tem muito tanque, dá para derrubar o governo ou é brincadeira? Nessa conversa eles conseguiram... Voltaram a confiança ao ministro Gabriel Passos e disseram que iam acabar a greve. Aí foram. Eu fui dormir e meia-noite, no telefone de linha, que era difícil naquela época, falei com o ministro. O ministro ficou feliz e ligou para o presidente da República, ligou para o primeiro ministro, não sei o quê, tal. Aí eu disse: "Pô, agora eu vou dormir." Tomei um uísque e fiquei relaxado. Uma hora depois, o cara bateu na porta dizendo que eles tinham voltado atrás e que a greve não ia acabar. Aí eu disse: "Pô, então vamos de novo para lá." Aí fomos lá para o Sindicato dos Rodoviários de Uberlândia, isso foi em Uberlândia. Aí cheguei lá, comecei, pedi a palavra de novo: "Está bom, então agora vamos para a barricada, vamos fechar tudo, e tal." E os caras ficaram vendo que era sério mesmo, porque a tropa do exército estava vindo de São Paulo. Chegava lá com 24 ou 48 horas. E iam fazer o que ali? Iam acabar com aquela brincadeira. E quanta gente que ia morrer e o prejuízo que ia dar com quatrocentos caminhões pegando fogo ali, carregados de combustível. Aí, pô, ficamos lá e, num determinado momento, três ou quatro horas da manhã, eu disse: "Eu não posso mais voltar para Brasília!" A reunião _______, aquela coisa de comitê de greve. "Eu não posso mais voltar para Brasília, eu estou desempregado. Eu acordei o ministro à meia-noite para dizer que tinha acabado a greve. E agora vocês não acabaram a greve. Então, eu vou ficar aqui com vocês, para derrubar o governo." "Calma, ninguém quer derrubar o governo!" "Claro, desse jeito vocês estão. Vocês não confiam no Gabriel Passos? Ele é um mineiro, ele é um cara como muitos de vocês aí. É um cara sério, um nacionalista, um patriota. Vocês acreditam ou não acreditam? O ministro confia que a reivindicação de vocês é justa." Aí eu já estava extrapolando, mas eu sabia que era isso mesmo. "É justa a reivindicação de vocês. Pô, eu levo, pego três ou quatro de vocês aqui, ponho no avião do ministro da Aeronáutica e nós vamos para Brasília para ter um encontro com ele, com o ministro. Vocês querem?" Aí, vota, vota: "Não quero! ______que é sempre um agitador!" Eu sei que terminou de manhã, o sol nascendo, os caras resolveram acabar o movimento. Aí eu digo: "Então, faz o seguinte: organiza o deslocamento desses caminhões para Brasília. Faz aí uns grupos de dez, vinte, trinta caminhões, para não fazer um... Senão vai ser um tumulto. E vai dando saída, porque quando o pessoal vier de Brasília para me apanhar, já viram que os caminhões estão na estrada. Aí houve isso. De fato, o camarada chegou às dez horas. Eu estava sem tomar banho, sem fazer barba, sem nada. Mas peguei três ou quatro pessoas daquelas, representantes do movimento de greve, e fomos para Brasília. Chegamos lá meio-dia, sei lá, e o ministro recebeu a gente. E, de fato, a reivindicação era um aumento de 5%, sei lá, do frete, não sei o quê, que eles achavam que estavam sendo explorados pelas refinarias, aquela história de sempre. O fato é que eles conseguiram uma vitória, senão total, mas pelo menos teve um bom resultado e o ministro ficou feliz. A partir daí ele se tornou mais amigo meu, me designou a assessor parlamentar naquela época. Então, essa experiência de discussão que eu adquiri, quem sabe, no embate de política estudantil e nesse exemplo rápido que eu citei, dessa greve de Uberlândia, acontecia na minha relação com o pessoal de Itabira. Eu tenho muito bons amigos lá, eu tenho saudade daquela terra, daquela gente, eu gosto daquela montanha, eu não sei, eu me dou bem em Itabira. E muitas vezes eu tinha que funcionar como o marisco entre o rochedo da empresa Vale do Rio Doce e o oceano da mentalidade itabirana. Eu consegui, de certo modo, desenvolver esse trabalho na prefeitura. Eu chegava para o cara, xingava a Vale: "Pô, essa Vale não faz nada por Itabira, está dando dinheiro, não sei quanto para Valadares, que Valadares é só passagem de trem. E Colatina, não sei o quê, Vitória tem tudo. Aqui em Itabira a gente está..." Quer dizer, _________: "Não. Ah, você tem razão." "Mas, de certo modo vamos sentar um pouquinho aqui, vamos tomar uma cerveja, vamos conversar." Então, a minha relação em Itabira foi muito assim. Não de pano quente, mas uma relação afetuosa, uma relação muito sincera, muito cordial. Eu sabia que eles também tinham razão. Podia eu ser impotente para mudar totalmente, ou pegar todo aquele recurso e jogar dentro de Itabira, embora muitas vezes eu achasse que era justo. Mas o que me competia fazer, e o que eu procurei fazer naquela ocasião, foi trazer o que eu pudesse para Itabira também. E, quem sabe, arranjar palavras para consolar aquelas pessoas que se achavam prejudicadas. O cara chegava: "Eu peço cem milhões." Aí o cara diz: "Só tem dez." "Ah, não dá, não dá." "Pô, ______é melhor do que diabo de nada. Pega esses dez. Depois a gente bota mais dez." E era assim, mais ou menos, que a gente fazia a coisa. Eles têm queixa e vão ter sempre queixa histórica da Vale. A Vale foi madrasta, etc. Mas eu tenho a impressão de que alguns deles devem reconhecer o trabalho que a gente fez. E a reserva de desenvolvimento fez também aí. Claro que, se eu pudesse, eu daria quase tudo para o social e um tanto para a remuneração do capital, mas isso não é o que o sistema quer. Como eu não posso fazer, eu tenho que dançar de acordo com a música, ou então administrar a escassez. E era isso que, muitas vezes, a gente fazia lá em Itabira. A minha relação sempre foi muito boa. Às vezes a gente tinha briga, tinha discussão, tinha tudo, mas sempre foi muito aberta, muito franca e muito cordial. Eu tenho amigos ainda até hoje lá.
P/1 - Os projetos de desenvolvimento econômico de Itabira, também isso passava pela reserva ou não?
R - Claro, o desenvolvimento econômico de Itabira é uma decisão da empresa. Era muito maior do que o estabelecido para a reserva do Rio Doce. Mas a gente sempre opinava e, muitas vezes, o recurso, parte do recurso da reserva ia se somar àquela decisão macro do desenvolvimento econômico de Itabira. Nós não tínhamos dinheiro, por exemplo, para custear a instalação de uma empresa, que eu me lembro até, uma vez, de uma empresa de álcool lá em Itabira. Mas a gente dava um jeito de colaborar com os empresários que estavam instalando-se naquela região e financiar recursos da reserva para que ele pudesse aplicar na sua empresa e a empresa funcionasse lá em Itabira. Mas era um fator auxiliar. A decisão estava acima de nós, a decisão de cabeça. Nós éramos um corpo médio. Mas, de certo modo, a gente tinha o interesse, tinha a intenção e, às vezes, até soprava no ouvido de alguém da própria comunidade: "Por que você não pede isso?" A gente sabia que aquele pedido, se fosse bem encaminhado, tinha chance de comover a direção da empresa e ser atendido. E, muitas vezes, fora da própria reserva. Então se você tem, por exemplo, uma aplicação de recurso em um ramal novo da estrada, por que você não pode urbanizar aquela região? Então, prefeito, vai lá e pede isso, não sei o quê. "Está bom, então me dá um dinheirinho a mais para fazer uma pracinha ali, para fazer..." Então, quer dizer... Mais ou menos isso que era o trabalho que a gente fazia. Muitas vezes em anteparo, para evitar também que o desgaste fosse direto com a administração da empresa, que nós não estávamos ali também para isso. Mas, mesmo assim, a gente procurava colocar um pouco mais de sangue na veia. Sempre a gente ________. É isso aí.
P/1 - Senhor Danilo, tem mais alguma coisa que o senhor lembre da reserva, que o senhor queira comentar?
R - Não, eu acho que não. Isso é um assunto que... Era bom que tivesse um papo informal, que a gente pudesse trazer gente de lá também, que aí cada um ia trazer uma história etc. Era bom. O _____, ______, sei lá, pessoas lá de Itabira.
P/1 - O senhor lembra de obras que o senhor tenha se orgulhado de ter feito ou participado nesses anos na reserva?
R - Tem muita coisa, rapaz. Eu teria que rever isso. Eu tenho isso tudo guardado. Eu sou um cara muito capricorniano, eu gosto de ter as minhas coisas. Mas tem coisas bonitas que a gente fez ali. Tem algumas insituições beneficientes que... Associação de Pais de Crianças Deficientes, outra de velhos ou de cegos lá no Espírito Santo, Instituto Santa Cecília, a obra do Caraça. Eu achei que foi um negócio lindo que a Vale do Rio Doce participou, a restauração de uma daquelas alas ali. Em Itabira mesmo a gente ia ao hospital, Valério Doce, de certo modo, a gente ajudava também. Porque a atividade social, a atividade esportiva, isso motiva a comunidade também. E o Valério, quando chegava ao terceiro lugar do campeonato mineiro, não tinha greve, não tinha chateação. O povo estava feliz. Não é a coisa do pão de Maria Antonieta: "Se não tem pão, dá brioche." Não é o pão e circo. Não é nada disso. É o somatório, é o nível de satisfação de uma comunidade, você vê como é que a administração está indo. Nós éramos a gota d'água no oceano que era Itabira, Minas Gerais, Espírito Santo, ou a própria Vale do Rio Doce. Mas se aquela gota tem uma direção certa, isso vai contaminando, de certo modo, as outras gotas, e todas poderão caminhar e formar uma correntezinha, um rio, etc. Foi isso que a gente fez. Foi muita coisa. Eu ainda posso tentar fazer um resumo depois ou lhe mandar isso em paper, uma coisa assim, uma informação sobre o que a gente, nesse tempo todo, participou. Está bom?
P/1 - Está ótimo.
R - Então, muito obrigado mais uma vez por essa oportunidade. É bom, a gente rejuvenesce e revive quando fala de história. Eu estou falando para um professor de história. Então, como falei lá fora com você, a história não é um processo morto, é um processo dinâmico, vivo. Quando você aproveita a lição da história, você tem muito menos chance de errar no futuro. Quem sabe se isso que nós estamos falando aqui um dia vai ajudar alguém a errar menos do que nós erramos. Muito obrigado a vocês todos.
P/1 - Muito obrigado.
(fim do depoimento)Recolher