Museu da Pessoa – Conte sua história
Histórias de Esperança – 29 anos do Projeto Criança Esperança
Depoimento de Helen Lucinda Januário
Entrevistada por Eliete Pereira
Santo André - SP 09/03/2015
Realização Museu da Pessoa
Entrevista HECE_HV_47
Transcrito por Liliane Custódio
P/1 – ...Continuar leitura
Museu da Pessoa – Conte sua história
Histórias de Esperança – 29 anos do Projeto Criança Esperança
Depoimento de Helen Lucinda Januário
Entrevistada por Eliete Pereira
Santo André - SP 09/03/2015
Realização Museu da Pessoa
Entrevista HECE_HV_47
Transcrito por Liliane Custódio
P/1 – Bom dia, Helen.
R – Bom dia.
P/1 – Helen, qual o seu nome completo?
R – Helen Lucinda Januário.
P/1 – Helen, você nasceu onde, e a data do seu nascimento?
R – Nasci em Santo André, e foi dia 6 de março de 1982.
P/1 – Qual o nome completo dos seus pais?
R – Meu pai é Paulo Roberto Januário e a minha mãe é Aparecida Paciente Januário.
P/1 – Os seus pais são daqui de Santo André?
R – São também.
P/1 – Os seus pais, como eles eram e como eles são, da sua infância a hoje? Como você descreve os seus pais?
R – Em relação à forma que educou?
P/1 – Não, como eles são com personalidade? Como você descreveria seus pais?
R – Meu pai sempre trabalhando, mas hoje em dia uma pessoa engraçada, construiu as coisas dele, agora ele está mais tranquilo, aposentou, está mais tranquilo, uns dias fica na casa dele, outros dias vai passear, e fazendo as coisas que ele gosta. A minha mãe também, a minha mãe continua trabalhando, tem aquela firmeza de mãe, aquela coisa que mesmo eu com 33 anos, quando preciso, corro lá, aquela coisa, mas está bem também. Passa dificuldades de saúde, tem algumas dificuldades em relação à saúde da minha mãe, mas ela está firme aí também.
P/1 – O que seus pais fizeram? O que seu pai fez? Ele se aposentou? Qual a profissão que ele teve?
R – Meu pai trabalhou na Eletropaulo, ele estava diretor, alguma coisa lá na Eletropaulo, aí ele se aposentou. E a minha mãe hoje trabalha numa escolinha na área da limpeza. Essas escolas particulares. Mas foi daquele jeito de passar... Casou, aí não podia trabalhar, aquele momento que homem não deixa a mulher trabalhar, aquela coisa toda, e aí ela ficou muito tempo sem trabalho. Depois de 20 anos, quando separou, é que ela foi correr atrás de carteira profissional, de fazer as coisas dela e tudo mais.
P/1 – Você tem irmãos?
R – Tenho.
P/1 – Quantos?
R – Dois. Uma irmã mais velha e um irmão mais novo.
P/1 – Você é a do meio?
R – Sim.
P/1 – Os seus irmãos... A sua irmã mais velha tem quantos anos?
R – Minha irmã, 35.
P/1 – E o seu irmão mais novo?
R – Meu irmão, 30.
P/1 – E como foi a infância?
R – Ah, a gente brincou muito. É bem diferente da infância de hoje. A gente brincou muito, 12, 13 anos, subindo em árvore, essas coisas, brincando na rua. Hoje em dia já está mais... Em relação às mulheres, ainda era uma pessoa magrinha, com a perna toda cinza de estar brincando. Hoje em dia não, as meninas de 12, 13 anos, já tem outro cuidado, que a gente tem que ter com ela. Porque tem meninas de 12 anos que têm mais corpo do que eu com 33. Então eu acho que isso se perde muito com a infância, porque muitas pessoas não respeitam o desenvolvimento do corpo, principalmente do corpo feminino. Eu vejo a infância de hoje, comparada a minha, eu vejo um pouco perdida. Muito mais cedo as meninas estão preocupadas com a maquiagem. Preocupadas e se exigem isso delas.
P/1 – E o que você brincava na rua com os irmãos, com os colegas, com os amigos?
R – Ah, mamãe da rua, bandeirinha, esconde-esconde, subir em árvore, pega-pega, stop, de casinha, brincava muito disso.
P/1 – Helen, você falou que seus pais sempre foram daqui de Santo André.
R – Sim.
P/1 – A família também deles?
R – Não. Tanto do meu pai, quanto da minha mãe, são de Minas. Da minha mãe eu tenho pouco contato com a família dela lá de Minas. Acho que nunca tive. Uma vez ou outra. E do meu pai não, do meu pai tem... Em Minas é uma cidade pequena, Campo Belo, aí eu costumo brincar que lá todos os habitantes são da minha família lá. Bastante gente. E a gente sempre foi muitas vezes pra lá, todos os anos. Depois de crescer, depois de adulta, e começa a trabalhar, diminuí bastante isso. Eu fiquei seis anos sem ir e esse ano completou um ano que eu não vou pra lá.
P/1 – Então a memória de infância que você tem também são essas viagens?
R – Muita. Muita. Sempre férias início do ano, meio do ano, a gente sempre viajou bastante. E aí sempre era: de janeiro, a gente ia pra Minas, ficava bastante parte das férias em Minas, depois que ia pra outros lugares, mas sempre em Minas.
P/1 – Vocês iam pra casa dos avós?
R – É, minha avó tem uma casinha lá. Minha avó faleceu tem uns três anos, mas ela tem uma casinha lá, e aí a gente ia e ficava na casa. Ela morava aqui em Santo André também, mas sempre manteve a casa dela lá. Então a gente ia, ficava na casa da minha avó. Mesmo agora... Agora que ela faleceu, depois de algum tempo alugou, mas aí a família conversou e a gente não quer manter alugando, a gente quer manter do jeito que era da minha avó, aí está assim.
P/1 – Quais lembranças você tem da sua avó?
R – Boas. Boas. Boas. Boas lembranças. Muita manga. Tinha pé de manga, tinha pé de tudo na casa da minha avó. E aí aquela coisa, ela acordava a gente de manhã e perguntava se era manga ou leite, não deixava tomar as coisas. Hoje em dia a gente faz. E às vezes eu com fome, queria o leite, mas eu falava: “Não, vou chupar manga”. Aí não podia, ficava horas sem poder tomar leite (risos). Hoje em dia quando eu faço uma manga com leite, eu sempre penso: “Nossa, se a minha avó vir isso” (risos). Sempre tem isso.
P/1 – Tinha alguma história que a sua avó contava que você lembra?
R – Bem desse pé de manga, porque depois de um tempo, a gente ainda não sabia o que era, mas a minha avó acabou tendo um tumor na cabeça, e depois de um tempo ela esquecia muito as coisas. E o pé de manga estava dando muito trabalho, porque ele era gigantesco e caía na casa das pessoas. E lá são telhas o telhado, e aí quebrava muito, vivia quebrando o telhado das pessoas. E aí se reuniram: “Não, tem que cortar. Tem que podar”. E em algum momento ela acabou autorizando que cortassem, mas ela não lembrava. E aí cortaram o pé de manga, que cresceu... Quer dizer, quando eu nasci já tinha. A gente cresceu com aquele pé de manga ali, que de tantos pés, aquele era o favorito. E depois ela não se conformou, então toda vez que a gente a via, ela tinha falado que tinham cortado o pé de manga. E anos depois a minha via a gente e falava: “Olha, cortaram o pé de manga, eu não acredito, não sei o quê”. Então sempre a gente fala de manga, a gente se lembra do pé de manga da avó.
P/1 – Ah, legal.
R – Sempre.
P/1 – E, Helen, vocês moraram sempre numa mesma casa, ou vocês chegaram a mudar?
R – Não, meus pais, eles fizeram parte da ocupação do Centreville, que é um bairro aqui de Santo André. Eles moravam próximo da represa, ou na represa. Eu lembro muito pouco, eu tinha dois anos e pouco, que isso foi em 84, se eu não me engano, que fez 30 anos de ocupação. Eu lembro muito pouco. É um bairro que dizem que os japoneses que fizeram esse bairro pra poder trabalhar na cidade, uma coisa assim, e daí eles iam fazer um grande shopping, ia ser o maior shopping da América Latina e tudo. Então eles construíram casas para as pessoas que vieram trabalhar. Vieram muitos imigrantes pra cá pra trabalhar. Mas aí eles abandonaram o emprego, tiveram algumas dificuldades com emprego, eles abandonaram o emprego e aí ficaram as casas no Centreville. O Centreville é um lugar bem interessante, é um bairro grande e ele é todo igual. É tudo igual, as ruas são iguais, as vielas são iguais, o padrão das casas é igual. Hoje em dia mudou, porque a casa da minha mãe, onde ela mora, que é o sobrado, é uma das únicas casas que ainda mantém desde a ocupação, que minha casa dividida, é um sobrado com 14 cômodos. E muita gente, moram três, quatro famílias, dividem a casa, põe uma escada ali, põe uma escada lá, e fazem várias entradas diferenciadas. E a casa da minha mãe não mexeram ainda. A gente não mexeu na casa. É uma das únicas casas que ainda mantém de 30 anos atrás. Então meus pais quando souberam da ocupação, eles vieram pra cá. E quando eu falo que eu lembro, eu lembro um pouco dessa gritaria toda, era muito grito, muita gente correndo. Quem entrou na casa ficou com a casa. Eu lembro que a gente entrou em uma casa, depois meu pai foi ajudar um amigo a entrar em outra casa. E como era minha mãe só com minha irmã e eu, quando meu pai chegou, estavam tentando entrar nessa casa. Que aí eles entravam, tiravam quem estava dentro e entravam. Meu pai chegou bem na hora, aí me lembro de mais grito, mais grito, e a gente ficou com a casa. E é uma casa... Até hoje não tem escritura, então tudo era muito conversado. Nós mudamos três vezes dentro do Centreville. Era tudo muito conversado. Dessa casa que eu morava tinha um porão e as casas são muito boas, até hoje, grandes e tudo, tinha um porão gigantesco, era bem legal. Engraçado, meu filho me perguntou antes de ontem dessa casa, que eu sempre comento com ele. E dessa casa, a gente mudou pra uma casa da rua de baixo, essa foi negociada. A casa de baixo era maior ainda, aí meu pai só pagou o valor da diferença. Porque a família lá queria ir pra uma casa que fosse menor. E depois dessa casa de baixo a gente acabou mudando, porque o dono dessa casa, eles tinham muitos gatos, e os gatos não perderam o vínculo de irem pra aquela casa. A gente mudou, mas os gatos ficaram, eram dezenas de gatos. E a gente não aguentou esse convívio com gato, a gente não queria isso. E dessa casa, a gente mudou pra esse sobrado que a minha mãe mora até hoje. Eu cheguei nesse sobrado...
P/1 – Nessa mudança, você tinha mais ou menos quantos anos?
R – Cheguei nesse sobrado com oito anos.
P/1 – Com oito anos.
R – Com oito anos.
P/1 – Então você se lembra da mudança?
R – Lembro-me das duas. Das duas. Na primeira eu quebrei um vaso, meu pai ficou bravo (risos). E a gente mudava ali na mão mesmo, era tudo conversado. E meu pai pagou bem mais por esse sobrado, pagou a diferença. Até hoje não tem escritura, a gente sempre foi muito torturado com: “Vai vir tropa de choque, vai tirar todo mundo do Centreville, vão derrubar as casas e tudo”. Sempre teve...
P/1 – As ameaças.
R – Essas ameaças. Mas nunca aconteceu e não acredito mais que isso aconteça. Isso eu acho que não acredito mais, não.
P/1 – E como era a infância lá no Centreville?
R – Era boa. Muito boa. Muitas crianças, a gente brincava o tempo todo. Meus pais sempre deram bastante, um suporte pra que a gente pudesse brincar, mas com aquela coisa: tem o horário da lição, horário pra dormir, banho, tudo isso. Mas é uma vila com muitas crianças. Era muito mais tranquilo também. Hoje em dia eu vou pra minha mãe, aí chega ao Centreville, eu percebo por conta... É muita moto, os adolescentes cada vez mais com moto, essas coisas. Antes não tinha tanto isso. Hoje em dia mesmo adulta, mesmo dirigindo, eu sempre fico atenta às motos lá. Antes não, antes era mais a gente na rua de um lado para o outro e as bicicletas. As crianças hoje não brincam de bicicleta, vão de moto. Tem umas que sim.
P/1 – E você falou dos seus pais, que sua mãe acabou vindo a trabalhar bem depois, né?
R – Isso. Isso.
P/1 – Então ela cuidava de vocês?
R – Ah, sim. Sim. Ela cuidava e nesse leva um pra escola... Quando não conseguia manter os três filhos no mesmo período pela diferença de idade, ia mudando de série, aí só tinha à tarde, e o outro só de manhã, então minha mãe ficou muito nisso: leva um, leva outro. Mesmo de carro, depois eu passei a estudar aqui no Centro, e minha mãe me trazia de carro todos os dias, depois vinha me buscar e tudo mais. Coisas que hoje em dia eu cobro, porque eu fui andar de ônibus muito tarde, fui conhecer algumas coisas muito tarde. E eu cobro porque até quando eu fazia o magistério, até no momento do magistério, meus pais ainda eram casados, eles ainda me buscavam. Aí tinha uma pracinha na frente da escola aqui do Centro, eles ficavam lá namorando sentadinhos na frente da escola. E todas as minhas amigas e amigos iam e voltavam de trem, de ônibus, a pé, e tudo, meus pais pontualmente todo dia lá na frente da escola. Nunca fui de estudar à noite, só quando fui pra fui pra faculdade, que aí eu consegui estudar à noite, mas fora isso, sempre mãe e pai buscando.
P/1 – Então eles eram muito cuidadosos?
R – Sim. Sim.
P/1 – Muito presentes?
R – Sim.
P/1 – E você comentou que tinha essa vida de vila, das crianças brincarem, tal. Havia violência naquela época, da sua infância, adolescência?
R – Olha, poucas coisas que eu tenha presenciado, ou mesmo sabendo que fosse de perto. Mas teve um momento que teve brigas de bairro, o Centreville brigava com o pessoal do São Jorge. Aí se meninos do Centreville iam para o São Jorge e paqueravam alguém lá, depois eles vinham aqui. Aí ficava só nisso de briga. Mas chegou um momento que acabou virando mortes mesmo. Então se alguém do Centreville ia lá ao São Jorge, corria risco de vida, e vice-versa. Ficaram alguns anos. Até em escola quando você falava que era do Centreville... Aí eles acabam... Bom, eles acabam estereotipando como o bairro que foi ocupado, é violento e tudo mais. Mas foi violento um tempo sim. Essa violência não chegou perto das pessoas que eu conhecia ali, mas era violento sim.
P/1 – E, Helen, você estudou ali no bairro mesmo ou você estudou numa outra escola, um pouco distante?
R – Sempre em escolas distantes. Primeiro, o fundamental eu fiz numa escola mais distante, alguns bairros de... Era uma escola... Minha mãe e meu pai sempre bem preocupados. Era uma escola padrão. Na época tinha esse negócio de escola padrão. Era uma escola padrão, aí eu fui pra essa escola.
P/1 – Escola pública?
R – Isso. Pública. Sempre pública. Depois eu fui para o Américo Brasiliense, que é aqui no Centro, que é magistério e tudo mais.
P/1 – E quais lembranças você tem da escola?
R – Ah, da escola? Eu tenho algumas coisas boas, mas nem tantas também. Porque algumas coisas a gente vai pegando uma base quando você vai envelhecendo, que é a base que hoje eu passo para a minha filha e para o meu filho. Mas ser uma menina preta, de periferia, com cabelo crespo, dentro de escola, nunca é uma coisa tão confortável, porque a gente tem uma falta de... Os próprios professores, eles não sabem lidar. Eles não sabem lidar com as diferenças, eles querem tratar todo mundo de forma igual. E nós não somos iguais, nós temos as nossas diferenças e têm que ser respeitadas. Então, depois de um tempo, quando a gente vai ganhando mais conhecimento, aí lembro eu falo: “Poxa vida, como eu sofri na escola”. Muito preconceito e tudo mais. Agora, depois de ter crescido e depois de já ter uma base, de saber me defender e tudo mais, aí a escola se tornou um ambiente agradável, mas isso foi na faculdade, magistério e faculdade, antes disso não. E é onde eu faço o corre pra que meus filhos não passem por isso.
P/1 – Mas na escola tinha outras crianças negras?
R – Ah, tinha. Pública sim. Tinha também. Tinha também.
P/1 – E você observava uma relação diferenciada do professor com as outras crianças?
R – Tem. Tem. Tem sim.
P/1 – Tem situação que você lembra que te marcou?
R – Em relação a professor agora não. Assim, professores pegando no pé, alguma coisa assim. Mas tinha, por exemplo, em relação a um amiguinho da sala, que também era um menino preto e também o zoavam, e aí como me zoavam e o zoavam, a gente criou um negócio que eu nem conseguia olhar pra ele, porque se você olha, “tão namorando”, aquela coisa que a gente morre de vergonha. Hoje em dia eu me arrependo muito, mas na época eu não tinha como perceber isso. Porque ele era um menino superlegal e a gente não conversava, porque se a gente chegasse perto, as pessoas brincavam, faziam essas coisas, e a gente acabava não... Isso da primeira série, até quase oitava na mesma sala que ele, a gente não tinha um diálogo, porque se a gente se olhasse, alguém falava alguma coisa. Eu lembro que na oitava série teve aquele acampamento, ou acampamento ou formatura, eu fui pra acampamento. E antes de ir pra viagem, ele ficou na formatura, a gente sentou no pátio da escola e só tinha nós dois, aí quando eu via que estava perto dele, eu já virava as costas. Aí ele me chamou, a gente começou a conversar e foi muito legal, a gente conversou bastante, a gente deu muita risada. Aí eu pensei: “Poxa vida, uma pessoa tão legal e eu não tinha me aproximado”. A gente só se aproximou quando não tinha ninguém no pátio. Aí fui para o acampamento, e depois de uns dois meses do acampamento, ele faleceu atropelado. E aí eu penso: “Nossa, uma pessoa que eu poderia ter feito uma parceria, a gente poderia ter conhecido muitas coisas juntos também, tudo”. E aí acabou acontecendo isso. E disso pra frente eu fui... A gente vai aprendendo algumas coisas. Não são as pessoas que têm que limitar até onde você vai ou até onde você não vai. E hoje em dia com essas facilidades tecnológicas aí, conversando com os amigos de antes, da escola, vejo também que a cabeça mudou também, é outro tipo de papo, é outra... Não que se deva apagar e não que não continue, mas a cabeça já deu uma mudada. Mas ainda em muita coisa pra melhorar.
P/1 – Helen, você comentou também dos preconceitos que existiam na escola, e quais eram os penteados que você fazia no cabelo?
R – Ah, eu fazia trança. Minha mãe fazia trança no meu cabelo. Ou trança, ou amarrava o cabelo, aquele que você prende aqui em cima. Era muito assim. Solto, eu acabava não me sentindo à vontade pra usar o cabelo solto. Isso foi tirado de mim, não tive essa vontade.
P/1 – E você observava que outras colegas, não da sua turma, até porque você comentou que só tinha aquele seu colega, né? Mas de outras turmas que você observava que também tinha um modo diferente de fazer um penteado, de não mostrar o cabelo.
R – A violência, né, que tem bastante hoje também, mas na época tinha mais, como a escova. A escova é uma agressão para o cabelo. Então muitas pessoas acabam entrando num processo de “embranquecimento” às vezes mesmo sem querer, porque você tem que se tornar o mais padrão possível pra ser aceitável, pra ter uma amiguinha no recreio, alguma coisa assim. Então tinha muito disso. Eu não fazia. Ainda bem que a minha mãe nunca concordou com isso, não fazia, então ia para as minhas raízes mesmo. Inclusive sábado minha filha fez trança também. Fez uma trancinha enraizada lá, está toda bonitona.
P/1 – Agora, Helen, como era a relação com os colegas na escola? Você se envolvia com os grupos? A escola participava das atividades? Tem alguma lembrança relacionada a algum professor? Uma lembrança que tenha te marcado na escola?
R – Bom, em relação aos amigos, eu sempre fui muito tranquila, nunca fui peralta, sempre fui muito tranquila, então quem se aproximava, eu tinha uma relação boa e alguns eu tenho até hoje, uma relação boa. Em relação aos professores, tinha uma professora, a Jurema, que eu gostava muito dela, acho que era quarta série. E eu lembro... Ela ficou doente, começou a ir outra professora no lugar, outra professora no lugar, mas eu tinha um envolvimento com ela, e minha mãe sempre muito próxima, me levou até a casa da professora Jurema. Ela ligou pra professora, conversou com ela. Então eu fui pra casa dela, eu me lembro de um chazinho que ela fez. E ela estava bem debilitada. Eu não consigo dizer o que ela tinha na época, pouco tempo depois ela faleceu. Eu não consigo dizer o que ela tinha, mas era uma diferente, porque a gente tem a professora como um espelho, a gente admira, sempre aquela pessoa forte ali na frente, e quando eu fui à casa dela, ela tinha dificuldade de levantar a xícara, isso pra mim ficou bem marcante na época: “O que está acontecendo com a minha professora”.
P/1 – Qual disciplina ela dava?
R – Era quarta série, era...
P/1 – Ah, ela era professora da turma então?
R – Isso. Isso. Eu me lembro dela.
P/1 – E na escola, como era a sua vida de adolescente? Você está sempre na escola, estudando, você saía?
R – Então, eu sempre fui muito certinha. Muito certinha. Se minha mãe falava não, era não. Não tinha aquela de tentar enrolar, ou de dizer uma coisa e fazer outra. Eu via isso muito com a minha irmã. Minha irmã era bem espoleta, é espoleta até hoje. E eu não conseguia seguir a minha irmã, sempre fiquei... Se a minha mãe falava pra eu ficar aqui paradinha, eu ficava paradinha. Então a adolescência também foi tranquila. Saía, ia pra baile com algumas amigas, mas sempre nos horários certos, sempre... Foi tranquila.
P/1 – Onde eram os bailes?
R – Tinha um aqui em Santo André, o Aramaçan. Inclusive não sei indicar outros, que eu só conheci esse, eu não fiquei indo pra muitos lugares.
P/1 – E que tipo de música tinha?
R – Ah, na época? Não sei, acho que um pop. Um pop, aquele... Como chama? Underground, não sei, alguma coisa assim. Era um pouco assim. Eu também ia e ficava com vergonha de dançar.
P/1 – Você ia lá só pra...
R – É. Ficava ali, conversava, tudo, não bebia, nada. Muito tranquilo.
P/1 – E os primeiros namorados foram dessa época?
R – Sim. Adolescência. Namorado mesmo veio bem depois, mas acaba assim, você vai pra um, fica com um, fica com outro, uma coisa assim.
P/1 – Você se lembra do seu primeiro amor? A primeira pessoa que você gostou, que te marcou?
R – Ah, teve um cara que foi... Ele é bem inteligente, aí me marcou porque ele não... Eu o conheci lendo um livro. Ele estava lendo um livro, que era Malcolm X. E aí ele me apresentou o Malcolm, passou tudo do Malcolm pra mim. E aí a gente começou a ficar, depois a gente foi namorando, minha mãe achava superengraçado, porque ele era cabeludo e usava várias xuxinhas no cabelo ao mesmo tempo, e meu pai desacreditava (risos). Engraçado. Mas depois de um tempo estando com ele, aí eu percebi, ele veio falar, ele era analfabeto na verdade. E ele ficava ali na curiosidade do livro, mas ele pegava as coisas muito rápido, muito inteligente. Pegava as coisas muito rápido e ele sabia muitas coisas. Ele era iniciado no movimento negro. E ele me iniciou, através dele tive conhecimento. Então era muito legal, porque ao mesmo tempo em que ele passava pra mim coisas do movimento, me falava sobre Malcolm, me trazia uma coisa de peso, que eu levo até hoje, eu sentava com ele e a gente ficava separando sílabas, que aí eu já estava no magistério, então eu era professora dele. Aí a gente se encontrava, em vez de ficar namorando, ele levava o caderninho dele e a gente separava sílabas: “É sa-po”. E a gente ia fazendo as coisas assim. Minha mãe não sabe até hoje que ele era analfabeto, senão ela não tinha deixado. E a gente ficou um tempo. Só que periferia, a vida, acaba levando pra outras coisas. Você precisa ser ágil pra fazer algumas coisas. Lembro um dia que ele falou pra mim que ele tinha virado gerente. Eu achei muito legal: “Nossa, gerente”. Pensei de roupa, alguma coisa assim. Uma pessoa que às vezes algumas pessoas me chamam de inocente, demora um pouco pra cair, eu não saquei muito. E na verdade era gerente de boca, de droga e tudo mais. E ao mesmo tempo em que foi com ele que aprendi tudo isso, foi com ele que eu vi uma arma, foi com ele que eu vi que teve que se afastar, porque dentro eles têm todo um comando, toda uma coisa, aí chegou um momento que ele falou: “Olha, agora eu tenho que me afastar de você, porque senão as minhas ações vão acabar interferindo na sua vida, e você tem outro caminho. Você tem outro caminho, não vai dar e tudo mais”. Então foi um sofrimento de ter separado, mesmo gostando. E de fato seguiu outro caminho, foi preso. Depois de muito tempo ele foi solto, aí até o encontrei no Centro de Santo André com o meu filho também, ele brincou muito com o meu filho, correu, fez um monte de coisa com o meu filho. Fiquei contente de vê-lo, não tinha nem reconhecido. Depois de um tempo eu soube que estava preso de novo. Então a vida acabou levando para o outro lado. Mas aprendi muita coisa.
P/1 – Helen, como você o conheceu? Essa situação que você descreveu que ele estava lendo um livro foi onde? Foi na rua? Foi em algum espaço específico?
R – Um espaço que tinha aqui em Santo André chamado CJ. Era uma espécie de um espaço de convivência. E aí se faziam desde reuniões, a encontros, hoje tido como saraus. Então era como sarau, era roda de poesia. Então eu saía de casa à noite, ia pra esse lugar e aí passavam lendo, declamando poesias. E foi lá que eu conheci. Aí foi onde fui encontrando várias pessoas, apresentações de... Comecei a me apresentar com teatro ali também, apresentações musicais, aí fui me envolvendo nesse campo também.
P/1 – Foi lá que você se aproximou de teatro então? Foi nesse centro de convivência?
R – Não. Não. O teatro eu faço desde os 11 anos.
P/1 – Na escola que você fazia?
R – Isso. Tudo que era grupo de teatro quando iam passando nas salas, eu topava fazer. E aí fui fazendo, fiz fora. Em um determinado momento eu precisei parar, porque era sempre aos sábados, final de semana, e o meu irmão era muito grudado comigo, então eu ia ao teatro, passava a tarde toda no teatro, meu irmão passava a tarde toda chorando (risos), porque eu não estava com ele. E meu pai com toda sensibilidade do mundo pediu pra eu sair do teatro pra poder ficar com ele. E eu fiquei fora, mas foram alguns meses, depois deu a oportunidade de novo, eu voltei. E a primeira peça, tudo, aí meu pai foi ver.
P/1 – Ah, é? Qual foi a primeira peça?
R – Foi uma coisa que não tem a ver comigo, mas foi lá que... A primeira coisa foi numa igreja, essas peças de final de ano de Natal. Era uma coisa assim que eu entrava umas duas vezes, batia na porta de alguém (risos). Mas eu gostei muito, porque igreja cheia e tudo mais, e no final bateram palmas. E aí bateram palmas, eu senti muita coisa. Senti muita coisa. Eu falei: “Acho que é aqui que eu quero ficar. Eu só preciso sair da igreja, mas é aqui que eu quero ficar”. Aí decidi, aí fiz algumas coisas.
P/1 – Você decidiu a fazer mais cursos de teatro? Decidiu a se envolver mais?
R – Sim. Sim. Fui fazendo. De escola acaba sendo peças pra própria escola mesmo, você monta pra própria escola. Depois de um tempo, acho que quando eu tinha 20, não sei, 20, 21, aí eu entrei na Fundação das Artes, que é em São Caetano, que aí já é pra algo profissionalizante, tudo. Mas antes fiz, conheci o Moreira, que nem aqui, eu falo que ele é o diretor até hoje. O Moreira tem sempre vários projetos de teatro na cidade, ele trabalhava no Argos, uma escola de boy, grande mesmo, de muito boy. E aí ele conseguiu um espaço de final de semana pra fazer teatro com a gente. Então fiquei anos fazendo teatro com o Moreira, eram peças infantis. Depois de um tempo a gente passou a fazer até recreação também, a gente fez alguns trabalhos também. E do Moreira eu fui pra Fundação. Depois voltei com o Moreira também, fiz algumas coisas com ele também. Ele me vê na rua, está sempre do mesmo jeito, com prancheta na mão: “Não, vamos apresentar uma coisa comigo, não sei o quê”. Eu falo: “Não, Moreira, está corrido, agora não dá”.
P/1 – Você tem alguma lembrança de algum espetáculo que você fez que te marcou de alguma forma?
R – Espetáculo? Ah, cada um tem sua lembrança. Acho que cada um tem sua lembrança, mas um que marca, mesmo que não seja tão positivo, foi uma vez ali numa travessa da Paulista, no Ruth Escobar. Apresentei lá uma vez, era um sábado e um domingo que a gente apresentava. E supertranquilo, tudo, mas foi um teatro muito grande, não esperava. E quando eu entrei em cena a primeira vez, aquele teatro, muita gente, muita gente, eu simplesmente não me lembrei de fala nenhuma, nenhuma (risos). Era uma cena de uns cinco minutos, aí eu olhava todo mundo. E lá no fundo o diretor, que era o Tim Urbinati, gesticulando, falando, tipo: “Faz alguma coisa”. Mas eu representei de outra forma, com o corpo mesmo. Com o corpo fui de um lado, fui de outro, mas não me lembrei da fala. Não me lembrei da fala, mas, por incrível que pareça, a expressão que eu fiz ali na hora deu a entender o que eu tinha que fazer, sabe? Eu só me esqueci de falar. E enquanto eu passava de um lado para o outro, as pessoas na coxia, aí tinha gente na coxia que fazia: “Ashsh” – tentando falar, mas não dava pra você ouvir. E as pessoas tentando dar o texto e tudo. E no outro dia foi brilhante. No outro dia eu lembrei, fiz tudo. Mas foi uma coisa que me marca de pensar: acontece. Você está preparada, mas acontece. Se acontece, o que você vai fazer? O improviso. Que eu não me vejo boa no improviso. Eu gosto do teatro, mas eu gosto: anda aqui, dois passos pra direita, vai fazer assim. Esse de “entra e vê o faz” eu não gosto muito. Gosto de assistir, mas de estar na posição do improviso eu não gosto muito, não.
P/1 – E, Helen, você chegou a trabalhar quando você tava no ensino médio? O seu primeiro emprego você tinha quantos anos?
R – Meu pai só deixou depois dos 18. Eu tentei antes...
P/1 – Só um minutinho, Helen, porque... Pode continuar.
R – Eu tentei antes, coisa de adolescente, saí no bairro, aí todo bazar que eu via, mercadinho, eu perguntava se estava precisando de alguém. E meu irmão, ele sempre foi muito grudado, inclusive meu irmão foi de chupeta e fralda atrás de mim (risos). Aí cheguei, levei uma superbronca, porque não poderia, não é pra você procurar emprego, aquela coisa toda. Aí depois dos 18, dentro já do Magistério, eu consegui entrar numa escolinha, e trabalhei uns dez, 12 anos como professora.
P/1 – E como surgiu essa vocação de professora, de educadora?
R – Olha, de uma forma engraçada, mas de repente foi pra acontecer assim. Quando eu mudei pra essa escola do Centro, o meu irmão também mudou, minha mãe colocou nós dois. Só que o horário do meu irmão era de manhã e o meu era à tarde. E aí minha mãe fez isso durante uma semana, de levar meu irmão de manhã pra escola, buscava meu irmão, na sequência me levava pra escola, que tinha um intervalo de quase uma hora e meia, e depois ela vinha me buscar. Então minha mãe tinha que vir para o Centro quatro vezes de carro pra fazer isso. E aí um belo dia ela falou: “Olha, mudei seu horário pra de manhã, porque não dá pra fazer isso” “Mãe, mas eu não queria ir de manhã”. Ela falou: “Não, vai ser bom, é Magistério. É Magistério”. Eu comecei de manhã. Aí entrei no período da manhã, aí passei a conhecer o Magistério, fui me identificando, e não teria outro lugar pra mim. Eu iria fazer o Normal, não teria outro lugar pra mim. Aí me identifiquei com o Magistério, muito. Hoje eu agradeço a minha mãe, mas eu fui, na verdade, pra mudar de horário, pra facilitar.
P/1 – Foi por acaso.
R – É. Pra facilitar pelo transporte pra minha mãe.
P/1 – Então o Magistério foi o seu ensino médio, foi o Magistério?
R – Isso. Isso. Eram três anos, aí eu fiz quatro, faz um ano a mais. E tudo que eles passam é voltado ao Magistério mesmo, tanto que a faculdade de Pedagogia, a grade, tem muita coisa em grade hoje em dia que ainda era o que eu fazia no Magistério.
P/1 – Você chegou a fazer faculdade, Helen?
R – Não, eu fiz o de Artes Cênicas, mas eu não peguei o DRT. Mas eu fiz de Artes Cênicas. E agora eu estou na dúvida se eu presto vestibular até o final de semana, ou se eu deixo para o próximo semestre pra entrar em Serviço Social. Eu estou só nessa dúvida agora.
P/1 – Qual faculdade?
R – Serviço Social.
P/1 – Mas em qual faculdade, ou universidade?
R – Ah, qual faculdade?
P/1 – É.
R – É Unopar. Ela fica aqui em Santo André também, uma faculdade à distância. Porque todo o corre que eu fiz antes com faculdade, de sair do serviço e ficar todos os dias em aulas presenciais, hoje em dia não dá mais. Eu tenho dois filhos, não dá pra eu pegar essa rotina. Está bem corrido agora. Hoje em dia já tem a faculdade à distância, que eu vou testar. Eu acho que vai ser válido.
P/1 – E, Helen, você tem essa experiência do teatro e agora você está na coordenação de um programa social aqui da instituição. E como surgiu isso? Você encontrou esse projeto, ou te encontraram?
R – Eu participei um bom tempo de um projeto que... Trabalhei num lugar que era com arte-educadores, então eu trabalhei com teatro, com recreação, aí passei a ter bastante contato dentro das escolas também, dava aula de teatro e tudo mais.
P/1 – Isso foi logo depois que você terminou o Magistério?
R – Isso. Logo depois. E tendo esse contato, aí passa a conhecer outras coisas, e aí um momento eu optei e trabalhei num abrigo em São Paulo. Trabalhei alguns anos num abrigo em São Paulo, que aí sim você passa a ter contato com a realidade. Não adianta dizer que não, mas você passa a ter contato um pouco com a realidade mesmo. Crianças que tinham, e que tem até hoje, uma infância muito diferente da que eu tive. Depois do abrigo, porque eu saí do abrigo, conhecendo projetos daqui, conheci primeiro um projeto em São Bernardo parecido com o nosso, mas eles são organizados pela militância, não têm vínculo com Prefeitura e nada disso. E dentro do Andrezinho entrei como educadora, porque também poderia exercer como arte-educadora, que os educadores também trabalham com isso.
P/1 – Você foi convidada pra trabalhar no Andrezinho, ou você passou por uma seleção?
R – Não, eu passei por uma seleção, mas acho que era só eu na seleção. Eu fui na verdade indicada por uma amiga que trabalha na saúde e aí ela acabou me indicando. Aí entrei e fiquei quase cinco anos como educadora.
P/1 – Como você poderia descrever pra gente o Projeto Andrezinho? O que você fazia? Quando você começou, o que você fez?
R – Então a gente trabalha com abordagem de rua. Então, por exemplo, eu conhecia as crianças do abrigo, aí eu passei a conhecer crianças na rua, que é um processo, antes de ir para o abrigo, normalmente, acabam passando pela rua. Nem todas, mas acabam passando pela rua. Então o contato.... Porque você pensa que toda miséria está dentro do abrigo, mas ainda tem... É mais fundo. O buraco é mais fundo. E aí indo pra rua, fazendo vínculo com as crianças, desde as que ficam no farol com malabares, que eu vejo até como uma arte os malabares e tudo, e crianças que dormem mesmo em situação de rua, então mesmo em situação de drogadição e tudo mais. Então é feita uma conversa, você consegue vínculo depois de um tempo com elas, elas não aceitam muito facilmente. Você consegue vínculo com o tempo. Agora eu ando na rua, se vêm eles, eles vêm, abraçam. Então se eu estou no Centro, normalmente eu estou abraçada com quatro, cinco. E é isso, é enxergar as diferenças. Eles são vistos e não vistos, na verdade, são praticamente invisíveis, e você chegar até um deles e falar o nome deles, você já tem outro tipo de olhar, é alguém me viu aqui, alguém que me percebeu aqui, alguém que para, tem a escuta. Pra ser educador de rua precisa ter sim uma sensibilidade. Você precisa saber com quem você está mexendo, porque só o fato de estarem na rua e são crianças, eles já estão com todos os direitos violados.
P/1 – E ali você observa um engajamento seu? Que você começa ali com o magistério, que você entrou de uma forma...
R – Inusitada.
P/1 – É, foi uma forma inusitada, a partir da sua mãe, do horário do seu irmão da escola. E você vê uma relação entre o seu engajamento social, a sua certa vocação artística, e o movimento negro nisso?
R – Ah, sim, está tudo junto. Tudo junto.
P/1 – E isso sempre foi muito consciente ou você foi ganhando essa consciência com o tempo?
R – Não, acho que ganhando com o tempo.
P/1 – E quando você chegou ao Andrezinho, você já tinha essa consciência de um engajamento político?
R – Sim. Sim.
P/1 – E como isso se traduzia no seu fazer, no seu jeito de ligar com essas crianças, no jeito de fazer abordagem de rua?
R – Primeiro que se tem identificação, né? E também trabalhar o histórico. Não é à toa que a maior parte das crianças que estão dentro de abrigo ou na rua são crianças pretas. Isso não é à toa. Isso tem um processo histórico desde antes da falsa abolição e tudo mais. Eu gosto de conversar isso com eles e dizer: “Não é à toa”. Os que ainda têm casa estão no fundo, em áreas isoladas, em barracos caindo, em barracos que não têm banheiro e tudo mais. Então a gente tem que trabalhar um pouco da classe também. Pra você ir pra rua, você tem que ter uma questão relacionada à raça, à classe, tem que dizer o que é um pouco do capital também. Porque é isso, é isso que jogou a gente desde lá de trás, colocou a gente na rua e onde a gente conseguiu chegar, com poucos destaques, com consciência e tudo mais. Acho que isso é importante que eles saibam. E isso não é de forma pregada, porque é um processo, não é de uma hora pra outra, mas eles mesmos percebem. Eles percebem. Eles estão na rua, eles estão mais ligeiros do que a gente pensa. Percebem e trazem muita revolta também. Alguns, mesmo sendo crianças, já não tem expectativa. Eles mesmos já não têm expectativa.
P/1 – Você durante esses cinco anos que você trabalhou no Projeto Andrezinho, você observou mudanças qualitativas em crianças que você acompanhou e que você pôde, de alguma forma, acompanhar no tempo?
R – Olha, tem crianças que acabam... Infelizmente eu conheci com uma idade, e mesmo passando cinco anos ainda estão em situação de rua, e os irmãos, que ainda eu via em casa, já estão acompanhando também. Muito disso. Mas, em relação à valorização, bastante das meninas, dá pra perceber sim a diferença. Só que também é uma coisa que a gente tem que ir com muita calma, porque mesmo sendo cinco anos trabalhando temas com eles e com elas, a gente perde muito, porque a drogadição é muito forte também. Então é sempre uma calma, sempre um jeitinho de chegar. Sempre assim.
P/1 – E quando você fala de drogadição, seria mais o quê? O crack aqui?
R – Não, aqui não é tanto o crack, não, é o thinner.
P/1 – Thinner?
R – Nesse momento eles estão com o thinner. O thinner é barato, é fácil de se comprar, eles precisam de um adulto pra comprar em alguns lugares, outros vendem pra crianças mesmo. E alguns adultos se recusam, mas tem muitos moradores de rua também, então é negociado: você vai lá, compra, te dou três dedos e pronto. Porque eles colocam um pouquinho e diluem com água numa garrafinha. Então de um pouquinho numa garrafinha eles usam quase o dia todo. Rende muito, o thinner é barato. Aí tem a maconha, a farinha também, mas o thinner é o que eles usam mais.
P/1 – A farinha você quer dizer o quê? A cocaína?
R – Isso. Isso.
P/1 – Agora, Helen, você tem alguma história, alguma lembrança que te marcou durante esses cinco anos?
R – Com eles? Tenho.
P/1 – É. Com eles. Que você pode contar agora pra gente, que você queira descrever.
R – Ah, são... Deixe-me ver se tem alguma coisa boa. Ah, que marca agora pra dizer mesmo, acaba sendo morte de crianças que a gente atendia. Uma garota teve overdose com lança-perfume, porque parece que você usa um pouco, acelera o coração, e se você usa um pouco a mais, é perigoso mesmo dar overdose e tudo mais. Eu desconhecia. E ela teve, a gente soube que ela faleceu depois de um mês e pouco. O que mais?
P/1 – Helen, você estava comentando de uma adolescente que faleceu com overdose de lança-perfume, que é algo que te marcou.
R – Sim. Sim. Teve ela e teve um menino também, que tinha passado com a gente há poucos dias, depois ele foi pra casa e acabou se enforcando em casa. Então é uma coisa que marca muito, é uma criança de 12 anos. Em cima disso eu estudei algumas coisas, isso acontece sim, só que são dados não divulgados. Eu nunca tinha ouvido de uma criança que se matou, e isso tem toda semana, mas isso não é divulgado. Então eu fiquei bem chocada mesmo. Então foi um grito que ele deu pra que olhassem as outras crianças. Tem que prestar atenção.
P/1 – Esse caso foi de uma criança aqui da casa? Do Lar São Francisco?
R – Não. Da casa não. Estava em situação de rua também, mas de vez em quando ia pra casa. De vez em quando tinha um contato com a mãe, mas não era um contato muito bom também. Acontece muito também às vezes de a mãe casar e o atual marido não querer a criança. Acontece muito isso também. Que aí a gente entende toda uma vitimização também da mãe, toda uma carência de uma mulher que também se diz precisar de um homem pra fortalecer e tudo mais. Acaba tendo muito disso.
P/1 – Agora, Helen, quando você entrou no Programa Andrezinho, você já tinha os seus filhos?
R – Tinha o Ayan, o menino.
P/1 – Conta um pouco essa história. Você chegou a casar? Como é a história desse seu relacionamento, do seu companheiro, do seu marido?
R – É ex-companheiro.
P/1 – Do seu ex-companheiro.
R – Sim. Sim. Olha, ele é músico, ele faz um rap, uma musicalização muito boa, com banda e tudo. Dentro do movimento negro, ele é bem conhecido. E acabei conhecendo nesse processo que eu falei que eu ia, fazia as poesias, essas coisas todas, ele frequentava também, e acabava que a gente morava ali no mesmo bairro de depois de um tempo a gente passou a namorar e tudo mais. E disso a gente teve uma relação de dez anos. E vai fazer dois anos, perto do final do ano vai fazer dez anos, e aí a gente acabou, resolveu finalizar, a gente finalizou, mas a gente acredita na educação com as crianças, numa educação libertária e tudo mais. Mas primeiro veio o Ayan, hoje ele está com sete anos, eu brinco, falo que ele é um “nerdezinho”, todo de “oclinhos”, faz piano. Ele é todo tranquilo, muito tranquilo. E quando eu entrei no Andrezinho, eu o tinha. O Ayan, acho que tinha... É, ele era bem pequenininho, dois pra três anos, por aí. Depois a Luanda. A Luanda agora está com três anos, também uma menininha danada, danada. O Ayan é bem tranquilo, ele é calmo no que diz, ele conversa, ele dialoga, ele é muito curioso, pega as coisas rápido, não tenho dificuldade nenhuma com ele na escola, e ele é bem amoroso também com as pessoas. Até gosto muito de passear com ele, porque ele vai e volta de uma forma bem tranquilo, não é uma criança birrenta, nada disso. Já a Luanda é um pouco diferente, ela causa. (risos). Ela causa. Mas é questão de geração. Você vai ver as crianças de três anos hoje, ela é muito espoleta, ela é rápida demais no raciocínio, e é ela quem bate no Ayan, você precisa chamar a atenção dela. É ela que vai pra cima dele. Ontem mesmo ela estava na sala: “Vem Ayan. Vem para o pau. Vem”. Ela, sabe? E ele fazendo a lição com o “oclinhos” dele lá tranquilo, sabe? Eu: “Calma, Ayan, não entra na pilha dela, continua a sua lição, fica aí de boa”. E ela: “Vem. Mãe, deixa ele vir para o pau. Deixa” “Calma, Luanda. Sossega, meu. Corre um pouquinho pra ver se cansa”. Então ela é bem agitada. Bem agitada. E eles têm uma relação muito legal. Eles têm uma relação muito bacana. Como eu falei, ela fez trancinha esses dias, trança enraizada lá, ela está toda, toda e ele fica em cima. Se ela está doente, alguma coisa, ele fica muito em cima. Inclusive, se eu chamar a atenção dela, só de chamar a atenção, ele já chega junto: “Mãe, não briga com a minha irmã, ela é bebezinho, não sei o quê”. E com ele a mesma coisa, se eu chamar a atenção dele... Só que ela já fala assim: “Mãe, não briga com o eu irmão”. Fala assim: “Mãe, tu tá falando com o meu irmão? Não briga com o meu irmão, não”. Ela já chega se impondo de outra forma. Mas eles são bem carinhosos um com o outro. E isso vem muito porque o pai deles tem um filho também, o Caique tem 15, vai fazer 16 anos o Caique. E a relação que o Ayan tem com a Luanda é muito a relação que o Caique tinha com ele, e agora tem com os dois. Bastante respeito, é carinhoso. E algumas atitudes do Ayan eu vejo muito parecidas com as do Caique. Eles têm uma relação muito próxima, muito...
P/1 – De irmãos, né?
R – Isso. Isso. É muito bonito. O Ayan uma vez chegou até agradecer a mim e ao pai dele por levar a irmãzinha pra ir morar na casa com a gente, porque ele gosta. Na gravidez toda ele foi muito presente. Ficava beijando a barriga o tempo todo, inclusive depois que ela nasceu, quando ela chorava muito, nem eu, nem o pai, era o Ayan conversando com ela que ela sossegava, e hoje em dia também. Muita coisa quando ela causa, eu falo: “Ayan...”. Ele vai lá e brinca com ela, dá beijo nela, aí ela fica tranquilo.
P/1 – Helen, tem um significado Ayan?
R – Ayan é orixá dos tambores, mas também é o nome de uma árvore. Se eu não me engano, é da Nigéria, se eu não me engano, pra aqueles lados da Nigéria. E Luanda é capital de Angola. Luanda é capital de Angola.
P/1 – E como foi essa mudança de filha pra mãe. Mãe que tem aí hoje as atividades ligadas ao movimento e também projetos sociais? Você encontrou dificuldades de você, por exemplo, o Ayan ficava com quem quando você estava no Projeto Andrezinho? Ia pra creche, ficava com a sua mãe? Como era esse lado Helen mulher, mãe?
R – Sim. É. Em relação ao lado artístico, eles sempre acompanharam, os dois. Os dois. Eu com o teatro, teve uma vez que eu estava me apresentando, e antes de eu falar a minha fala, eu escutava um sussurro, eu olhei na plateia, ele que estava na primeira fileira, ele tava sussurrando a minha fala. Ele estava fazendo. O Ayan acompanhou bastante, desde um último projeto que eu tive, que foi Pretas em Cena, que éramos só eu e uma amiga, a gente fazia várias denúncias em relação à mulher preta, e ele acompanhou bastante coisa. A Lulu não chegou a acompanhar, porque ela pequenininha, aí eu me vi um pouco com essa dificuldade de ter dois filhos e de uma forma artística, porque a gente vive de um ensaio pra outro, o pai músico. Então tinha momento que ele tinha ensaio e eu tinha ensaio. Tinha momentos que ele tinha apresentação e eu tinha apresentação. E aí a neném ficava muito comigo, porque ela mamava. Teve um momento também que eu me apresentando com dança afro, eu me apresentando e ela chorando, e o peito vazando, aquela coisa toda, eu falei: “Espera aí, deixe-me dar uma acalmada”. Mas hoje em dia eles ainda acompanham muito, o pai nos estúdios, às vezes ele ensaia muito de segunda-feira, e aí eles estão sempre em estúdios, sempre em shows, sempre acompanhando. E eu parei de atuar, mas eu continuo com produções. Um tempo um tempo atrás eu fiz aqui em Santo André a Noite Sankofa, que era uma noite preta, com apresentações, com DJ, contos africanos, apresentação musical também, teatro também, as meninas capulanas. E aí o Ayan participou de toda a programação. E foi perto do aniversário dele. E o pai dele também tinha feito outro evento também, que era o Baile das Beneditas. E o pai dele fala de programação lá, eu falo de programação aqui, aí ele: “Mãe, quero saber qual a programação do meu aniversário”. Então ele também conversa de uma forma artística, sabe? Ele pega bastante isso. E agora eu estou fazendo um calendário para o próximo ano também, com atividades também com mulheres pretas, e o Ayan já tá participando disso. Agora, em relação aos projetos sociais, o Ayan... Teve um momento quando eu entrei no Andrezinho, o pai dele ainda trabalhava num albergue, e aí trabalhava só no período da noite. Então durante o dia ficava com ele. Depois ele foi pra creche, tinha a creche, e a gente tem a Nice. Quando o Ayan fez um ano, a Nice passou a tomar conta dele quando a gente não estava. E a Nice está com eles até hoje.
P/1 – A Nice é uma vizinha, uma amiga?
R – Ela era uma vizinha, que aí eu passei a conhecer e tudo mais, e ela começou a ficar com o Ayan. Hoje em dia já é amiga, inclusive ela morava do lado do meu apartamento e agora ela mudou, tem que ir de ônibus ou de carro pra casa dela. E mesmo ela mudando, a gente não procurou outra pessoa, a gente continua... Agora mudou toda uma rotina. Sair do serviço, aí tem que pegar o ônibus, ou ir até a casa, pegar o carro pra ir buscá-los. Mas a gente mantém com a Nice, porque ela cuida do Ayan já tem seis anos, e cuida do Luanda também, desde o primeiro dia de gravidez ela já estava ali se mostrando presente. E as crianças gostam muito. Inclusive eu tirei férias em janeiro, aí me afastei com eles, fui viajar com os dois, a gente estava em Boiçucanga, um lugar superlegal, litoral norte, e tinha hora que ele queria vir embora pra poder falar oi pra tia Nice. Falei: “Filho, você quer ir embora pra falar oi pra tia Nice?” “É, mãe, a gente a gente vai de manhã e volta à noite pra cá”. Mas eles sentem falta. Então, esse carinho todo, essa troca toda, mantêm. Mesmo morando mais distante e tudo mais, mas mantém isso, porque é o que vale, né? Eu acho que não tem outra Nice por aí. É em quem a gente confia. Então a Nice ajuda muito, ganhou a confiança de todo mundo, inclusive das avós que sempre ficam em cima, tanto minha ex-sogra, como a minha mãe, sempre ficam em cima. Mas agora elas ficam bem tranquilas com a Nice também.
P/1 – E, Helen, voltando agora para o projeto, o Andrezinho, o Projeto Andrezinho foi o primeiro projeto que você acompanhou que foi apoiado pelo Criança Esperança?
R – Sim.
P/1 – E como aconteceu isso?
R – Então, eu peguei pouco, na verdade, porque isso quem fazia ainda é uma amiga pessoal minha, a Carla, e também um rapaz, André, apelido Pirata. Eles faziam muito isso. E nesse desenvolver de início, eles faziam em um bairro aqui em Santo André, no Jardim Santo André. Essa participação toda da escrita, da formatação, essas coisas, eu não participei. Os educadores mantinham o fluxo na rua e eles faziam isso, não chegavam a ser contratados como educadores junto com a gente. Depois de um tempo, eles... Acabou que a Carla foi pra outro lugar, o Pirata fazia toda a parte de edição e tudo mais, promovia atividade com eles na comunidade. Depois que eles saíram, entramos eu e o Edgar. Nós fizemos um pouco. E aí foi pouco tempo também. Na verdade, a gente deu uma sequência em uma escola, que é perto de uma comunidade onde a maioria das crianças mora.
P/1 – Que comunidade é essa, Helen?
R – É Vila João Ramalho. Mas aí tem uma rua, que a gente diz que é uma rua bem conhecida, que é a Rua Pôr do sol, uma rua bem complicada essa rua. Tem muita necessidade lá e tem uma área verde muito grande, muitos eucaliptos, e eles dizem que é da Marinha, e a Marinha diz que é da Prefeitura, então quando acontecem coisas lá, você não sabe quem chama, e por fim eles se resolvem lá dentro. Então é bem complicada a situação.
P/1 – É aqui em Santo André?
R – Isso. É aqui em Santo André. É aqui em Santo André. E aí a gente fazia lá, numa escola lá próximo a esse local. E aí eu ajudava no desenvolver das atividades, a gente passava alguns documentários também, desenvolvia algumas atividades com eles. Tinha um negócio muito... Que as crianças pediam bastante, era, por exemplo, de segurar a câmera. E aí a gente mostrava como manusear a câmera, então isso pra eles foi bem importante. Aquilo de filmar o amiguinho, depois a gente mostrava. Foi isso. Depois de um tempo, eu estava grávida neste momento, depois de um tempo eu passei a não ir pra lugares tão distantes, porque eu tive uma gravidez de risco da Luanda, então aí me poupei bastante, me pouparam bastante também e eu saí, não acompanhei. Então acabei acompanhando pouco tempo. Mas foram algumas semanas que deu pra ter esse... Foi o mais próximo que eu cheguei.
P/1 – Agora, como você vê como educadora que acompanhou, mesmo sendo poucas semanas, diretamente o projeto, este projeto trabalhava com audiovisual, era isso?
R – Isso mesmo.
P/1 – Como você observa e analisa a contribuição do Criança Esperança?
R – Ah, os próprios equipamentos. Os próprios equipamentos já facilitaram bastante. Facilitaram e trouxeram a criançada pra conhecer. Mas tem aquela coisa, ao mesmo tempo que eles se interessam, uns querem se aprofundar no conhecimento, alguma coisa assim, era uma escola aberta, com a quadra bem grande, uma área verde também, eles brincavam aqui, conversavam um pouco aqui, mas ao mesmo tempo saíam correndo, porque estava caindo uma pipa. Então eles ficavam sempre mesclando. Por isso que a gente até passou a fazer atividades dentro de algumas salas. E aí a gente não sabia se afastava mais ou não, porque eles já ficam nas salas a semana toda, aí de sábado você aparece com uma atividade dentro da sala de aula, né? Então eles acabavam brincando muito. Mas aproximou sim. Aproximou principalmente nesse momento de um filmar o outro, de eles aprenderem a manusear. Isso foi o que chamou mais atenção.
P/1 – Vocês ofereciam uma espécie de módulos pra eles ou era só uma atividade: “Olha, hoje a gente vai trabalhar com vídeo, quem quiser participar...”? Como era o processo?
R – Então, nessa de trabalhar com vídeo, de manusear e tudo mais, mas principalmente dentro dos temas que a gente via dentro do trabalho mesmo. A gente precisa trabalhar tal tema com eles, então vamos aproveitar esse momento e trabalhar um pouco disso. E a gente foi até lá à comunidade justamente pra evitar que eles viessem para o Centro, porque eles fazem amizade muito rápido, e só de perceber que já tem alguém da comunidade no Centro, a gente temia isso, que eles passassem a pegar o fluxo do Centro. Uma forma de prevenção também, de trabalhar isso na comunidade pra preveni-los, e que eles mesmos fiquem ali ao redor, passem a desenvolver as coisas. Tinha vezes que a gente falava: “Pode. Até mesmo se for pegar a câmera, se você for fazer algum documentário, alguma coisa assim”. A gente falava com eles, que eles ficavam interessados. Aí a gente explicava o que era documentário, eles ficavam ansiosos pra fazer. E a gente falava: “A gente pode ir a sua casa, aí você pode filmar a sua mãe, você pode conversar, você pode isso”. Mas tudo isso com certo cuidado, que pra você subir com câmera, aquelas coisas, tem que pedir licença para o tráfico. Você não pode só chegar lá com câmera na mão e tudo mais. E o Andrezinho conquistou esse espaço lá. Mesmo hoje em dia a gente sobe, os cumprimenta e tudo mais, mas é daquele jeito, a gente sabe até onde são os nossos limites, até porque se a criança sair filmando, ela compromete muita gente. Então tinha muito disso. Então nem muito pra vir para o Centro, mas também não conseguia chegar tanto à comunidade, mas a gente fazia um pouco ali, usava um pouco o espaço da escola.
P/1 – Agora, Helen, quando você está falando “Centro”, você fala Centro de Santo André?
R – Isso. Isso. Região central.
P/1 – Então existe, uma territorialidade muito definida... Helen, eu estava perguntando antes, na cabeça dessas aqui há uma definição muito clara dessa territorialidade, o Centro e a comunidade. E pra entrar na comunidade tem também um poder ali, que vocês também têm que respeitar, pedir licença.
R – Sim. Sim. Tem que saber chegar. E, as crianças que estão no Centro, muitas vezes são... É, são da comunidade. É difícil ter criança que já mora no Centro em situação de rua mesmo. E aí eu digo isso porque vai o irmão um pouco mais velho, ganha esse espaço na rua, aí o irmão mais novo passa a perceber isso também. Muitas crianças que estão na rua inclusive têm dificuldade de se adaptarem em abrigo. Por quê? Porque a rua é livre, tem uma liberdade na rua, a criança vira pra direita, vira pra esquerda. Ela tem essa liberdade, que mesmo que seja uma liberdade falsa, ela tem essa liberdade. Dentro dos lugares, elas acabam vindo para o abrigo, ficam dois, três dias, e saem. Porque abrigo você tem horário pra comer, você horário pra tomar banho, você tem horário pra televisão, você tenta colocar na escola de novo. E a criança que ganha essa liberdade na rua, ela dificilmente se adapta de novo às regras, e acaba acontecendo como em casa também, chega à casa, tem lá as suas regras também, que muitas vezes muitas mães precisam impor isso pra conseguir levar uma casa. Como eu falei, elas levam as casas sozinhas. Sozinhas elas levam. Então acaba sendo nesse vínculo, sabe? Porque às vezes desenvolvendo atividades ali na comunidade, a criança passa a ficar mais tempo lá, e vai ganhando uma consciência e tudo mais. E na rua já, principalmente Centro, por exemplo, as crianças que estão no Centro de Santo André, elas estão com fluxo aqui em Santo André e Paulista. Elas já ganharam até lá pra São Paulo. O que elas tinham medo de fazer, de pegar trem, de ir pra um lugar, para o outro, elas já não têm mais esse medo, elas têm já os mocós, os lugares delas em São Paulo também. Então é um fluxo muito grande. Então a gente tenta trabalhar um pouco na comunidade como forma de prevenção mesmo.
P/1 – E quando você fala “comunidade” são comunidades, ou é uma comunidade só?
R – Depende do bairro, mas eu quero dizer o bairro.
P/1 – Ah, o bairro.
R – Depende do bairro.
P/1 – Vocês têm comunidades específicas que vocês trabalharam com o Projeto Andrezinho?
R – Não. Comunidade específica não.
P/1 – Geral.
R – Não. Ficava indo aos bairros mesmo.
P/1 – Ah, tá. E você observou algum resultado, alguma transformação com o apoio do Programa Criança Esperança? O Projeto Criança Esperança com esse trabalho que vocês fizeram focado audiovisual?
R – Olha, eu acho que pela minha participação, eu não consegui resgatar muito disso, porque foram poucas semanas, e não consegui. O que eu posso dizer é que quando a gente fazia, a nossa salinha enchia. A crianças estavam... Elas eram muito curiosas pra saber como tava acontecendo, e depois se ver ali na telinha do computador, ou no datashow, de alguma forma. Agora, os resultados mesmo, não. E até porque muitos a gente perdeu o vínculo. Lembro até de um garoto que ele estava bem... Ele participava muito mesmo, ia lá à sede do programa perguntar qual era o próximo dia e tudo mais, mas a gente acabou perdendo o vínculo, acabou se mudando com a família pra outra cidade. Esse trabalho também traz muito improviso também. É tudo muito imprevisível nesse trabalho. Você conhece aqui, mas como não é uma sala de aula, na sala de aula você chega, o aluno está lá todos os dias, na rua não. Na rua você não sabe. Inclusive você marca coisas com eles: “Olha, amanhã então dez horas eu estou aqui nesse ponto”. Você chega lá, não está mais, aí você vai ver a criança daqui duas semanas. Então na rua é muito disso, não é nada tão certo. Eles estão andando, dependendo do que acontece, eles somem, depois eles voltam, ou ficam muito tempo no mesmo lugar.
P/1 – E, Helen, você lembra como vocês ofereceram esse curso a essas crianças? Vocês divulgaram diretamente ali na rua, na comunidade que eles estavam?
R – Isso daí foi mais quando era a Carla e o Pirata. Mas sim, de forma de divulgar nos bairros mesmo.
P/1 – E depois eles...
R – E conversando com as mães.
P/1 – E depois eles foram até vocês então, num lugar onde vocês tinham os equipamentos?
R – Isso. Isso. Mas é uma forma de ir conversando com as mães, explicando o que está acontecendo. O que aconteceria, como seria e tudo mais. Aí elas vão permitindo. Na verdade, elas acabam gostando, porque quando mais a gente manter ocupado, melhor pra elas também, porque se evitam outras coisas e tudo mais.
P/1 – Você acompanhou outro projeto apoiado pelo Criança Esperança? Ou só foi esse que você acompanhou?
R – Só foi esse. Só foi esse.
P/1 – E você conhecia já o Criança Esperança? Ou você veio a conhecer à parte pela mídia, pela própria Globo?
R – Isso. Isso. Dessa forma da mídia mesmo. Mas não sabia desses projetos.
P/1 – Você chegou a ser doadora do Programa Criança Esperança?
R – Não. Doadora não.
P/1 – E, Helen, você continua trabalhando como coordenadora do programa?
R – Sim. Sim. Estou coordenadora.
P/1 – Você faz mais outra atividade, por exemplo, através da arte? Porque o Rui nos informou antes que o programa, que esse projeto audiovisual acabou, que ele era um projeto que tinha início, meio e fim. Quais são atividades hoje que vocês estão oferecendo dentro do Programa Andrezinho?
R – Então, dentro do programa a gente trabalha com oficinas. E aí a gente busca... Tem a oficina de teatro, que está acontecendo, a gente tem também o nosso grupo de teatro dentro do projeto, que são os educadores mesmo, a gente montou um esquete, na verdade, pra apresentar em alguns lugares com prevenção do trabalho infantil. E aí a gente tem também oficina de artesanato, de musicalização também, um cine debate, falta por um nomezinho, mas uma espécie de um cine debate também. Tem essas oficinas.
P/1 – De alguma forma, o tema do audiovisual continuou então dentro do Andrezinho?
R – Sim. De certa forma sim. Nós fizemos até uma atividade dia 4, eu acho, de março com os meninos. Nós mostramos um documentário, passamos pra eles lá, tudo, foi bem legal.
P/1 – E hoje o que são... Já mudando pra um sentido mais geral, Helen, o que é importante pra você? Existencialmente, a Helen que é militante também, a Helen que também é educadora, o que é importante hoje pra você na sua vida?
R – Pra mim, o importante é manter o sorriso dos filhos. É mantê-los bem. Preocupo-me em formar no tempo deles. Mas o meu filho, por exemplo, ele já sabe que o cabelo dele é crespo, que é bonito o cabelo dele, e que ninguém tem que ficar pondo a mão no cabelo dele. Ele já sabe disso. Ele mesmo já tem a fala dele: “Ah, está bom”. Porque muita gente: “Ah, que bonitinho” – vai passando a mão no cabelo. Ele fala: “Ah, está bom, eu sou bonitinho, mas não fica pondo a mão no meu cabelo. Pra por a mão no meu corpo, você tem que me perguntar”. Então eu acho que talvez agindo dessa forma, ele vá sofrer menos na escola do que eu que não sabia que o corpo é meu e sou eu que decido as coisas do meu corpo. E pra Luanda a mesma coisa. E é legal que o próprio Ayan já passa algumas coisas pra ela também. E pra mim, como existência mesmo é manter o sorriso deles. Trabalho, mesmo na forma artística, mesmo produzindo algumas coisas como hoje em dia, procuro envolvê-los, eles ficam bem a par do que eu estou fazendo, participam das coisas, vão junto comigo, assim como fazem com o pai também, participam bastante. Inclusive com o pai, o Ayan dançava junto, entrava dançando, cantava uma parte da música. A gente tem um quarto lá em casa que seria o quarto deles, mas está vazio, porque eles dormem comigo, a gente acostumou. É maior legal, eles dormem comigo. E no quarto, o Ayan mesmo nesse dia decidiu de por o nome do quarto de ateliê de artes. Então a gente faz alguns passeios, a gente foi à exposição da Mafalda esses dias, e eles pintaram a... Tanto da viagem que nós fizemos nas férias, eles pintam com tinta, com um monte de coisa e fazem a exposição no próprio quarto. Então lá é cheio de tinta, essas coisas. Então eu gosto disso, de fazer por um caminho que eles fiquem bem. E, enquanto mãe, é saber que vão crescer, que os filhos são para o mundo, e respeitar as decisões. Se mais tarde eles não quiserem nada disso, a minha filha aparecer com chapinha e tudo mais, é respirar fundo, orientar o máximo que puder, no máximo do que eu acredito também, mas já tendo esse respeito por eles. Eu respeito a opinião deles.
P/1 – Agora, essa é uma atitude, Helen, sua que os seus irmãos também têm, a sua família?
R – Não. De jeito nenhum. Não. De jeito nenhum. De jeito nenhum.
P/1 – E como você imagina, como a sua família te vê?
R – Ah, meu pai me vê, aí eu começo a falar alguma coisa, meu pai já vem: “Ih, é do teatro. Alá, é do teatro, é do teatro”. Já começa a brincar dessa forma. O meu irmão não percebe tanto o racismo. Não percebe tanto. A minha irmã, ela faz parte desse processo de “embranquecimento”, às vezes o cabelo dela tem até uma tonalidade bem clara, com progressiva, essas coisas. Tem um pouco disso. E, não sei, já conversei, já mostrei um pouco, mas como eu sempre fiquei por esse lado artístico e sempre me apresentando, fazendo muitas coisas, às vezes pra quem não tem uma visão artística é meio “a doidinha”, sabe? “Não acredito que você estava fazendo isso e aquilo e as crianças junto?” “Estava. Estava fazendo uma apresentação e eles estavam juntos.” Então eles não têm muito isso. O tato artístico eles não têm. Eles não têm. Então o máximo que eu posso eu fico informando: “Ah, mas é racismo sim. As crianças lá que eu atendo, elas passam por isso, passam por aquilo”. E são coisas que eles desconhecem, porque de fato a gente teve uma infância um pouco diferenciada, com muitas viagens. Eu não conhecia o famoso “perreio”. Essas coisas eu não conheci. Eu não conheci isso na minha infância e na minha adolescência. Então eu falo pra eles: “Isso acontece. Isso existe”. Então, por exemplo, a minha irmã, ela trabalhava nas Casas Bahia, então é social o tempo todo, rosto pintado. E uma vez eu encontrei com ela no Centro, estava conversando com ela, e aí chegaram quatro, cinco crianças, já me abraçando, tudo, minha irmã tomou um susto, e preocupada se eu ia pegar um piolho, alguma coisa. E não, a conversa é outra, esse é o meu trabalho, é isso que eu gosto de fazer. Então eles acham um pouco “É bonito, mas não é pra mim”. É outra visão. É outra visão. Hoje em dia eu estou mais tranquila com isso, é outra visão.
P/1 – Você acha que deve essa especificidade, até mesmo contrastante na sua família, vem do teatro e vem também lá daquele centro de convivência que você participava?
R – Sim. E muitas coisas também de companheiros que eu tive também. Aprendi bastante coisa, inclusive o pai das crianças também, foram dez anos de aprendizado também. Se eu comecei a conhecer o movimento negro, ele já era mergulhado no movimento negro. Então passei a conhecer muita coisa. Inclusive meus amigos de hoje em dia também. Muito pela arte mesmo. E das músicas também. Eu conheço muita coisa, mas ainda estou muito nas músicas alternativas. Que nem, as músicas que o pai das crianças mesmo faz não é uma música que vai ser tocada em rádio, que vai aparecer em algum programa de TV. Esteve na Cultura. Mas não é uma música pra isso. Então é uma música alternativa, das quais a gente ganha uma força pra seguir, como outros músicos também.
P/1 – E, Helen, quais são os seus sonhos?
R – Meus sonhos? Eita! (risos).
P/1 – Tem algo que você pensa assim: “Isso aqui eu quero realizar ainda”?
R – Ah, eu penso em estudar mais, cada vez mais. Em relação a conquistas materiais, não quero, não quero luxo, não gosto disso, pra mim é o suficiente. Estou na minha folga, o meu final de semana pra mim é suficiente ter um dinheiro pra sair com as crianças, e vamos ao museu, vamos a tal lugar, que são os lugares que eu gosto de levá-los pra conhecer. É isso. Agora um sonho específico, agora, agora, acho que não, acho que por enquanto é estudar mesmo, conhecer mais coisas.
P/1 – Você pensa em fazer o curso de Serviço Social então?
R – Isso. Isso.
P/1 – Helen, você gostaria de acrescentar mais alguma coisa que eu não tenha perguntado, que você pensa que seja importante pra que deixe registrado na sua história e que eu não tenha abordado, não tenha comentado?
R – Bom, acho que não foi citado, não sei onde entra isso tudo, mas acho que vale a pensa dizer também, em relação às mulheres, pra tomar cuidado com o machismo. O machismo está aí, o patriarcado ainda está dominando. Não é um feminismo de “Homem também lava louça”. Não é isso. É óbvio que homem também lava louça. Mas é pela busca dos nossos direitos mesmo. Violência doméstica acontece a todo momento, a cada três minutos uma mulher é morta por ex-companheiro, ou pelo companheiro atual. E isso está do nosso lado, isso está cada vez mais perto da gente. Eu acho que é uma coisa com a qual eu também me preocupo. E acho que a gente tem que ficar ligada nisso também. A gente tem que saber que o machismo existe e que o patriarcado ainda domina. A gente tem que tomar cuidado com isso também.
P/1 – Você comentou antes da história da sua mãe, rapidinho, que a sua mãe acabou, depois que ela se separou, ela foi para o mercado de trabalho.
R – Isso.
P/1 – Como você... Você apoiou a sua mãe nisso? Como isso significou pra você como filha também?
R – Ah, eu apoiei bastante. Apoiei bastante. Minha mãe, quando eles se separam, eu já estava com quase 20 anos. Acho que eu já estava com quase 20 anos. E foi uma surpresa, nunca tinha visto minha mãe saindo de casa pra ir trabalhar e tudo mais. Mas a gente sabe o que vem desse tempo todo, ela conseguiu só na área da limpeza. Ela poderia ter estudado. Minha mãe, ela... Antes era orfanato que se dizia, né? Mas ela foi uma pessoa criada em orfanato, que seria o abrigo hoje em dia. Então acho que a minha mãe poderia ter tido muito mais oportunidades, estudar mais coisas, ter mais conhecimento, ter explorado mais o mundo dessa forma. Porque ela acabou vivendo pra cuidar da gente, o que foi ótimo, porque a gente teve uma mãe muito presente o tempo todo, mas que hoje em dia tem as sequelas disso. Tem sequelas. Ela trabalha na área da limpeza, sábado mesmo eu estive na casa dela, ela vem com algumas dificuldades de saúde também. E coisas que a gente percebe na parte do homem, adoro meu pai, mas a gente percebe na parte do homem sempre construindo, agora colhe os frutos do que sempre construiu e não deixou a pessoa aqui trabalhar, e está bem. Tá bem, principalmente na parte de saúde e tudo mais. Então essa diferença pra mim pesa um pouco. Foi negada ali, e aqui ela ainda está fazendo um corre, mas já era pra ela estar mais tranquila também. O machismo vem de lá de trás. O machismo impede bastante coisa.
P/1 – Sim. Sim. Helen, como você se sentiu contando a sua história agora pra gente?
R – Um pouco difícil, porque são pessoas que eu não conheço, a gente tem um pouco de dificuldade mesmo, mas eu acho que acabei me surpreendendo, falando mais do que eu pensei.
P/1 – Helen, pra gente foi um prazer ouvir a sua história, mesmo a gente não se conhecendo. Mas às vezes é mais fácil falar pra quem você não conhece do que pra quem é muito próximo, né? (risos).
R – É (risos). Também (risos). É verdade.
P/1 – Mas em nome do Museu da Pessoa, a gente agradece pela sua contribuição.
R – Sim. Obrigada.
P/1 – E parabéns por uma história muito bonita a sua.
R – Obrigada.
P/1 – Obrigada.
R – Obrigada.
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