Projeto História das Profissões em Extinção
Depoimento de Reginaldo de Lima Honorato
Entrevistado por Paulo Tosetti e Manuel Manrique Gianoli
Estúdio da Oficina Cultural Oswald de Andrade
São Paulo, 17 de outubro de 1996.
Realização Museu da Pessoa
Entrevista: nº 31
Transcrita por Luciana Tosetti
P/1: Qual
o seu nome completo, o local e a data de nascimento?
R -
Meu nome é Reginaldo de Lima Honorato. Nasci em São Paulo, no dia 10de janeiro de l965.
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Qual o nome dos seus pais, Reginaldo?
R - Miguel Pedro Honorato e Maria José de Lima Honorato.
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O que fazia o seu pai, que profissão?
R -
Eles são de Pernambuco, né? Então lá em Pernambuco eles trabalhavam na roça, e aqui meu pai era cortador de pele, em São Paulo. Depois que ele veio para São Paulo.
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Pele, couro?
R -
Couro, isso, cortador. E minha mãe esteve trabalhando em casa, doméstica.
P/1 - Mas você nasceu aqui em São Paulo mesmo?
R - Exatamente.
P/1 - Você sabe por que o seu pai veio para São Paulo?
R - O motivo é que lá não tinha muito. O que ele tinha para trabalhar era só na roça, e não tinha retorno financeiro. Aí ele veio para cá para tentar a vida, para ver se conseguia um trabalho melhor, para ganhar mais.
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Onde você nasceu aqui em São Paulo?
R - Eu nasci em São Miguel Paulista.
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Você se lembra bem da sua casa, da infância?
R - É, porque eu nasci numa casa, mas a minha infância passei em outra. Quando eu nasci era de aluguel. Aí meu pai comprou o terreno lá, próximo dessa casa, e construiu uma casa. Então eu lembro mais ou menos a minha infância lá. Eram três cômodos na casa onde eu morava. As
brigas com os meus irmãos... (riso)
P/1 - São quantos irmãos?
R -
Nós somos em cinco. Comigo cinco.
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Pode descrever um pouco a sua infância e as brincadeira entre vocês?
R - Me lembro que a gente brigava demais. Meu pai tinha uns problemas dele, que ele sofre de nervosismo. Inclusive ele aposentou por causa disso. Ataque de nervos, foi internado várias vezes por causa disso. E as brincadeiras, um não podia encostar no outro, aí um achava ruim. Ele ficava nervoso, aí batia na gente, porque não aguentava aquele chora para cá, chora para lá. Brincadeira, eu não tive muito brinquedo, sabe? Era mais brincar assim com o que tinha mesmo. Com 12 anos eu estava ajudando ele a construir a casa lá que ele tem hoje. Então eu não tive muito aquela infância de brincar muito, não. Mais trabalho, mesmo.
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Quando começou a ajudar o seu pai?
R -
É, lembro. Com 12 anos eu comecei... Ele começou a construir uma casa onde ele mora hoje, com seis cômodos, e ele era o pedreiro, e eu o ajudante dele. Então ele não podia pagar e eu ajudava. Fazia massa, colocava bloco, em cima do andaime, ajudava a rebocar, também. Ele me ensinou a rebocar parede, então, praticamente eu ajudei ele a fazer a casa toda. Dos 12 até uns 14 anos. Foi uns dois anos, mais ou menos, construindo.
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Você e mais algum irmão, ou só você?
R - É mais eu, porque era o mais velho. Tinha minha irmã mais velha que eu, só que mulher... Trabalho sobra mais para os homens. E minha mãe ajudava também. Aí, depois que eu terminei, eu fui trabalhar. Ele não gostava muito que a gente ficasse na rua, era mais dentro de casa mesmo. Não deixava que saísse nem no portão.
P/1 - Por falta de segurança?
R -
É, falta de segurança e é o jeito dele também de criar. Então ele achava que tem que ficar dentro de casa, não pode ficar brincando na rua. Nem soltar pipa quase eu soltava por causa que ele não gostava. Uma vez eu lembro que ele foi viajar, foi para Pernambuco, e eu aproveitei para ficar soltando pipa. Falei:
“Ah, vou ficar soltando pipa aqui na rua. “ Aí um dia, ele não avisou que ele ia chegar, quando eu vi ele na esquina larguei a lata de linha no meio da rua e me mandei, saí correndo. (risos) Porque ele não gostava. Se ele pegasse, ele batia. Então ficou meio restrito esse negócio. Mais era dentro de casa mesmo, brincando com os irmãos.
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E como era o bairro?
R - É, o bairro é um bairro bom. Depois, tinha os amigos. Foi crescendo, a gente brincava de bola. Um bairro que não tinha muito que falar, não. Comum...
P/2 - Você pode falar um pouco da sua mãe?
R - É, a minha mãe foi uma pessoa que tentava ajudar a gente. O meu pai batia muito,
sei lá por ele ser criado no Norte os pais dele batiam nele também. Meu pai dizia que quando a mãe dele batia, aí quando largava um pegava o
outro para bater. (riso) Então, eu acho que ele queria criar a gente do jeito que ele foi criado, também. Acho que ele achava que surra era o melhor. Você apanhar é
melhor coisa do que você conversar. Então, ele batia muito e quando ele pegava a gente para bater, principalmente eu e a minha irmã mais velha, aí minha mãe não podia nem se meter porque, se ela entrasse no meio, ela apanhava também. Então ela tentava, ela queria ajudar, mas não conseguia. Minha mãe então não teve muita participação. Dificilmente ela batia na gente. É mais ele.
P/2 - E o lado positivo dela?
R - É, sobre trabalho de escola é meio difícil porque não tem muito estudo, ela. Ela só sabe ler. Dificilmente, pouca coisa. Orientação naquele tempo era difícil. Hoje em dia está tudo mudado, eu já me preocupo com a minha filha. Eu tenho uma filha de 7 anos, eu me preocupo em ensinar, explicar a vida para ela, e naquele tempo, não. A gente aprendia na rua. Na feira, eu ia todo domingo na feira com ela. Não gostava muito não, porque tinha que ir na feira com ela, ficar tomando conta do carrinho. Enquanto ela ia na feira, eu ficava lá parado, tomando conta do carrinho, para ajudar ela. Mais isso mesmo.
P/1 - Como é que você entrou na escola, e quando entrou?
R - Como assim você quer saber?
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Descreva um pouco como foi a sua vida escolar.
R -
Quando eu entrei na escola eu não lembro muito bem
não. Eu lembro que eu chorei, (risos) Eu acho que todos choraram. No primeiro ano, me largaram lá na porta: “Vai embora, vai lá para dentro.” E você fica chorando lá. Não lembro. Só lembro dessa parte, que eu chorei bastante quando ela me largou no portão e eu tive que entrar na sala. Não lembro muita coisa sobre o começo da escola, não.
P/1 - Nem dos amigos que você tinha lá?
R - Amigos? Às vezes encontro pessoas na rua aí que me reconhecem, às vezes eu converso e fico pensando: “ De onde eu conheço essa pessoa?”. Nem me lembro porque, uma que eu não moro mais naquele bairro, mudei, aí dificilmente você lembra de colegas, amigos.
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Você estudou até que idade?
R - Olha uns 24, 23 anos.
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Quais eram as disciplinas que você preferia, quais as que você não gostava?
R - Você quer dizer de...
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De disciplina, português, história.
R - Eu gostava mais de física. E o que eu mais odiava era química. Não sei, achava difícil. Inglês, também não gostava de aula de inglês. Não sei, não gostava muito de estudar, não. (riso) Se fosse depender de mim ir para a escola, eu não ia. Ia porque os pais obrigavam.
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E você acha que a escola, de algum jeito, contribuiu para a sua profissão?
R - É, eu creio que sim. Eu acho que eu devia ter estudado mais. Depois que eu terminei o segundo grau, eu casei. E aí fica difícil você entrar numa faculdade, pagar uma faculdade agora. Eu acho que eu fiz errado. Então, eu tinha que terminar o estudo
para
depois casar. Eu entrei com o carro na frente dos bois. Então, eu me arrependo. Eu repeti a segunda série. A segunda série eu lembro que eu repeti, mas eu era criança. O pessoal achava que eu não estava apto para ir para o terceiro ano, me repetiu. Mas a quinta série eu repeti duas vezes. Mas foi por bagunça. Cabulava aula. (risos) Não parava na classe. Uma vez nós quebramos as lâmpadas da classe todinhas, para
não ter aula, aí foi todo mundo suspenso. Hoje eu me arrependo. Me arrependo disso porque isso aí não são coisas que se fazem, tem que estudar mesmo. Quebrar lâmpada de escola, cabular aula, pular muro... Não entrava na escola.
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E aí vocês iam para onde? Vocês faziam o quê na hora da aula?
R -
Ia namorar! (riso) Saía, ficava lá fora.
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Isso você tinha quantos anos?
R -
Uns 20, 19 anos, por aí.
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Já trabalhava nessa época?
R - Trabalhava. Comecei a trabalhar com 15 anos. Registrado.
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Antes dos 15 anos você já tinha trabalhado?
R - Trabalhei numa fábrica de sapato, lá perto de casa, que não registrava. Fazia sapato de mulher, sandália, sapato de homem.
P/1 - Esse foi o primeiro emprego?
R - Foi.
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Conta um pouco. Quem arrumou para
você?
R -
Foi um vizinho. Ele trabalhava lá, e ele me falou que de vez em quando pegava gente, funcionário. Aí eu fui lá, conversei, era um japonês, conversei com ele, aí eu fui lá. Aí eu comecei a trabalhar, mexer com cola, essas coisas, cola de sapateiro. Lembro que, não sei, trabalhei uns seis meses, ou mais. Fazia sandália, fazia sapato, montando o sapato, sabe? Aí, eu não lembro muito de lá não. Mais ou menos é só isso mesmo.
P/1 -
E você foi procurar emprego para
ajudar a família?
R - É, para
ajudar a renda. Aí eu entrei na Motores Elétricos do Brasil, com 15 anos.
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Você saiu de lá para
mudar de emprego?
R -
É porque as firmas só pegavam com Carteira. Com menos de 15 anos eles não pegavam. Então por isso eu tinha que trabalhar, fazer um bico. Aí depois, quando eu cheguei na idade de 15 anos que eu fui procurar um emprego registrado. Eu sabia que as firmas pegavam com 15 anos.
P/2 -
Naquela época você só trabalhava, com 15 anos você não estudava?
R - Não, eu estudava.
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E como era o seu dia-a-dia naquela época, aos 15 anos?
R -
Inclusive foi quando eu passei para o horário noturno. Por isso que eu já não trabalhava em empresa, porque eu estudava à tarde. Aí eu consegui estudar à noite, e fui trabalhar. Pegava trens, trem lotado, ia na porta. Coisa de garoto mesmo de
15 anos, sabe? Não tem responsabilidade nenhuma. Eu cheguei até a cair do trem, na porta, pendurado na porta do trem. Trabalhei um ano e meio lá, e um ano e meio ia na porta e voltava na porta do trem. Hoje eu me arrependo disso porque eu escapei da morte por pouco ali.
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Um ano e meio lá nos motores?
R -
É, Motores Elétricos. Aí eu estudava à noite. Chegava em casa às 7 horas, jantava e ia para
escola. E tinha um horário lá que, quem estudasse saía mais cedo. Então dava
para
sair mais cedo um pouco, meia hora mais cedo para
poder chegar a tempo de ir para a escola.
Mas é difícil você estudar e trabalhar. Principalmente se você trabalha longe, tem que pegar condução,
chega em casa e é só jantar e ir para a escola, chega em casa 11 e meia, meia-noite, dorme, levanta às 5 horas da manhã para
ir trabalhar. É difícil.
P/1 - Onde é que ficava seu emprego?
R -
A firma? No Tatuapé.
P/2 -
Tatuapé?
R - Tatuapé.
P/1 -
E como você conciliava o trabalho, a escola e o lazer. Namorar, se divertir com os amigos?
R - É, namorar eu aproveitava o tempo da escola (risos). Porque como eu trabalhava o dia todo, aí quando era de noite, aproveitava. Em vez de estudar, eu ia namorar. Aí que eu
levei pau. Repeti dois anos a quinta série por causa disso. E lazer mais era jogar bola, mesmo. Futebol dia de sábado, domingo, nos campinhos do lado de casa.
P/2 - Em São Miguel
Paulista?
R -
São Miguel Paulista.
P/1 - Como você conseguiu esse emprego?
R -
É, o emprego eu consegui sozinho. Eu saí procurando emprego sozinho, não tive ajuda de ninguém. Só aproveitava uma vizinha, que ela saía com o filho dela para
procurar emprego, eu ia com ela. Mas ela ia para um lado, depois que chegava na cidade, e eu ia para outro. Meu pai não queria que eu fosse sozinho, também não ia comigo que tinha os negócios dele para
fazer. Aí eu consegui. Vi a placa precisando de menor, Carteira branca. Aí consegui um emprego como ajudante.
P/1 -
Como era o nome da empresa?
R -
Motores Elétricos do Brasil. Comecei como ajudante, sai como ajudante. Mas eu creio que eles aproveitaram. Porque o certo mesmo era estar como bobineiro na Carteira. Porque eu trabalhava numa máquina, bobinando o fio de cobre para
instalar no motor. Então creio que era uma profissão, isso. E na minha Carteira eu fiquei como ajudante e saí como ajudante.
P/1 - Você que fazia todo o serviço? Não ajudava ninguém?
R - Não, não ajudava ninguém. Eu trabalhava na máquina. No começo eu fiquei do lado de uma mulher. Nessa área trabalhava mais mulher. Eu fiquei do lado dela uns três dias aprendendo o serviço, só olhando como ela fazia. Aí depois me colocaram na máquina, eu e mais outros, uns dez que entraram junto comigo. E eu aprendi o serviço, e era produção. O encarregado me dava a ficha de produção, quantos que eu tinha que fazer, aí eu fazia. Ia lá, terminava o serviço, ele me dava outra ficha. Então acho que isso não era ajudante.
Desde quando você trabalha numa máquina, operando uma máquina, você não é ajudante. Mas eu não tinha experiência nenhuma, não sabia reivindicar os direitos... Saí como ajudante lá, mas hoje eu sei que eles aproveitaram bastante da gente.
P/2 -
Que ferramentas você utilizava como bobineiro?
R -
Usava o paquímetro, para poder medir as fôrmas. Porque eles te davam uma ficha indicando a largura das bobinas. Aí, como você enrolava aquele fio de cobre nas fôrmas, você tinha que saber o tamanho e a largura. Aí davam umas fôrmas para
você, com o paquímetro você media as fôrma e a largura dela. E na ficha estava marcado quantas voltas você tinha que dar naquela fôrma para
sair aquela bobina. Aí, depois de pronto, você amarrava e colocava lá ao lado, para
poder dar a quantia certa, que era a produção.
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O que era feito
com esta bobina depois?
R -
Depois ia para
uma seção para
ser enrolada dentro do motor. Eles encaixavam dentro do motor para
dar seqüência na montagem do motor. É fio de cobre.
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Que motores que eram produzidos na empresa?
R: - É, vários motores. Motores elétricos. Tudo que é tipo de motor, motor de bomba, motor
de... qualquer tipo, todos tipos de motor.
P/1 - Como era o ambiente de trabalho? Como era o lugar?
R - Inclusive não está mais aqui. Essa empresa agora está em Guarulhos, mudou daí. Eu lembro pouca coisa de lá. Mais era a molecada mesmo, sabe? Trabalhava bastante.
Naquele tempo entrou uns 15, dez, junto comigo. Inclusive, na hora do almoço, a gente almoçava correndo para
ir jogar bola, na hora do almoço. Coisa maluca! (risos) Almoçava em 15 minutos correndo, já descia para o asfalto. Jogar bola no meio do asfalto, lá uns 40
minutos que você tinha a mais na hora do almoço. Ia jogar bola e já ia trabalhar cansado. Aí, às vezes, eu lembro também que a gente ia no banheiro e quando um via que o outro ia no banheiro, ia também . Aí chegava no banheiro e ficava lá, conversando (riso) dentro do banheiro. É coisa de adolescente mesmo. Inclusive eu lembro uma vez que nós estávamos jogando bola na pracinha, o encarregado passou, aí viu a gente jogando bola. Aí falou: “Oh, se chegar alguém machucado lá, eu vou mandar embora, heim?” “Ah, não, a gente está jogando uma bolinha aqui, a gente não está fazendo nada de mais, não.” E eu lembro que eu estava correndo com a bola lá para
fazer o gol, no asfalto, o cara colocou o pé na frente, aí eu saí ralando. Ralei os dois joelhos, ficou tudo sangrando, mas mesmo assim eu voltei para
seção, né? Aí eu tentei esconder do encarregado, porque ele falou “ Se pegasse alguém machucado ia mandar embora.” Tentei esconder, aí ele viu eu mancando e falou: “Que que você tem?“. Falei: “Não, não tenho nada não.”.
“Não, que que você tem?”
aí eu falei: “Ah, eu caí lá, jogando bola.”. Aí ele falou: “Deixa eu ver.” Aí mostrei os dois joelhos ralados, aqui comeu tudo! Aí tive que ir para o hospital, fiquei afastado do serviço uma semana ou mais por causa disso, por causa de ficar jogando bola no almoço. (riso)
P/2 - Mas você foi demitido ou não?
R -
Não. (riso)
P/2 -
Não?
R - Não. Não fui demitido não. É que ele sabia que... Porque é ruim você estar com o estômago cheio e jogar bola. Então ele achava errado isso, e realmente é errado. Mas para
nós o que bastava era a alegria , era o lazer lá. Que você tinha os 40
minutos de lazer.
P/2 -
Qual era o horário de serviço? Vocês pegavam que a horas?
R -
Era das 7 horas e 30 às 17 horas. Que eu lembro, acho que era isso mesmo.
P/1 -
E dentro da empresa tinha algum problema de saúde, algum perigo, seu trabalho oferecia algum...
R - Risco?
P/1 -
Isso! Algum risco?
R -
Não, porque a máquina não tinha muita velocidade. Era pouca velocidade. Não tinha muito perigo,
você não mexia em nada de tóxico, nada. Não tinha risco nenhum, não. Perigo mesmo era jogando bola na rua. (riso)
P/2 - E você ficou um ano e meio lá?
R - Um ano e meio.
P/2 - E por que você saiu de lá? Você saiu de lá com quantos anos?
R - É, eu entrei com 15, saí quase na faixa do Exército. Inclusive, eu estava cansado já. Eu não estava gostando mais, um ano e meio lá, já. Estava enjoado de lá. Com 16 anos você não sabe o que quer da vida ainda. E já não estava dando mais produção, já estava diminuindo a produção, ficava muito no banheiro, essas coisas. Aí o encarregado queria me mandar embora. Aí eu tinha amizade com um rapaz do almoxarifado, e ele me falou: “O Aurélio está querendo te mandar embora.” Mas eu pedi para
ele não te mandar embora por causa da faixa do Exército. Você está na faixa do Exército, vai ser difícil você arrumar um emprego.” Eu estava até no corte lá. Eles estavam fazendo corte e me colocaram no meio. Esse rapaz pediu para o encarregado não me mandar embora porque eu estava na fase do Exército, tal. E realmente, eles mandaram várias pessoas embora e eu não fui.
Só que no outro corte eles me dispensaram. Aí ficou ruim para
mim porque não conseguia emprego, que eu estava entrando na faixa dos 17 anos, e eles não pegavam. Firma nenhuma pega funcionário, pessoas de 17 anos, porque sabe que provavelmente eles vão servir. Prejuízo para
eles.
P/2 -
E você serviu?
R - Não, não cheguei a servir não. Eu tive que trabalhar
sem registro. Fui procurar bicos por aí. Aí comecei a trabalhar numa firma lá no Alto do Pari. Negócio de sapato, montagem de sapato. Trabalhei seis meses lá sem registro.
P/1 -
Com quem você aprendeu esta coisa de mexer com sapato?
R - É, não, meu pai, ele tinha uma sapataria. Ele tinha sapataria na frente da nossa casa lá. Então às vezes ele deixava a gente tomando conta. Às vezes não, quase sempre (riso). Deixava a gente tomando conta da sapataria para ele e a gente mexia. Às vezes aparecia um sapato, lá, a gente tentava arrumar. Se não conseguia, ele dava um jeito e ali mesmo arrumava. (riso) Mas eu aprendi com ele também. Trocar sola de sapato, salto, essas coisas. Aí ficou fácil. Quando eu ia procurar um emprego assim no ramo de sapato, nessas firmas de sapato, perguntavam se eu tinha alguma experiência, eu falava que sim, que meu pai era sapateiro. Aí ficava fácil de arrumar emprego.
P/2 - E você conseguiu emprego?
R - É, então, inclusive eu fiquei seis meses, né, trabalhando numa firma lá no Alto do Pari. Só que não registrava, lá. É firma que aproveita do funcionário, e vai levando ali. Se você fica ali dez anos, você fica ali sem registrar. Aí eu fiquei seis meses lá e saí.
P/2 -
E lá, o que você fazia?
R -
Montagem de sandália para
mulher, sapato, tudo o que faz acabamento.
P/2 - E você utilizava que materiais para consertar?
R -
Cola de sapateiro. Trabalhava com cola.
P/2 - Esse cheiro não incomodava não?
R - É, no começo você se incomodava com o cheiro da cola, né? Mas depois seu organismo acostuma com aquilo. Acostuma que você nem sente mais o cheiro da cola. Era para
eles darem material de segurança, máscara, essas coisas, mas eles não davam. Então você tinha que trabalhar. No começo se sentia mal, mas depois você vai... com o tempo seu organismo acostuma
com aquilo, você não sente nem mais o cheiro.
P/2 - E o pessoal nunca reivindicou...
R - Não, se eles aceitavam trabalhar sem registro, quanto mais... Que nem agora, que o desemprego está aí, você quer trabalhar. Se você fica desempregado, sua família passando necessidade, é melhor você ter um bico para
fazer do que não fazer nada.
P/1 - E quantas pessoas trabalhavam nessa empresa?
R -
Umas 15 pessoas
mais ou menos.
P/1 -
Todas sem registro?
R - Sem registro. Tem muito por aí.
P/2 - Depois dessa fábrica você... Você continuou estudando naquela época?
R - Estudando.
P/2 - Sempre à noite.
R - Sempre à noite.
P/2 -
E qual foi o trabalho seguinte que você fez? Saiu da fábrica de sapato e foi para onde?
R -
Isso. Aí eu arrumei um serviço na Nitroquímica. Inclusive eu fiquei também sem registro, só fazendo bico, só. Sem registro. Aí eu consegui esse emprego na Nitroquímic, através de uma colega do meu pai, me apresentou lá e comecei a trabalhar na Nitroquímica.
P/2 -
Como o quê?
R - Como ajudante. Entrei como ajudante.
P/2 - Que seção?
R - Na fiação.
P/2 - E como era o ambiente do lugar?
R - Inclusive nessa fiação o ambiente lá é muito poluído, sabe? Cheiro de química muito forte. Primeira vez que eu entrei lá quase não estava agüentando o cheiro, de tão forte. É difícil. Uma semana ou mais para
acostumar. Que nem eu...o seu organismo acostuma com tudo. Se aqui está um cheiro forte, se você ficar aqui, entrando direto, direto, direto, você vai chegar uma hora que não vai sentir mais nada. A pessoa que nunca entrou vai sentir, mas você que está ali você não está sentindo nada. E esse cheiro, inclusive, afetava até os olhos das pessoas. Ficava com os olhos inchados. Tinha que ser afastado do serviço deles. Eu entrei lá ajudando a (fim da fita -A1) encapar as tortas de náilon, de um fio de náilon. Trabalhei acho que uns três meses fazendo isso. Aí foi quando um encarregado, que eu fui assinar a prorrogação de serviço. Fui assinar, ele falou: “Ô, você tem estudo?” Eu falei: “Tenho, tenho. Estou começando o segundo grau.”. Aí ele falou: “Ah, você não quer trabalhar comigo como secretário?”. Eu falei: “Secretário?”. Ele falou: “É ”. Eu falei: “Vou fazer o quê?”. “É, você vai me ajudar, aí”. Quer dizer, fazer o serviço para ele, né? (riso) “Você vai me ajudar. Você vai correr as máquinas. Você vai arrumar serviço para
quem estiver parado. Você vai fazer tudo para
mim.” . Aí eu falei: “Eu não preciso mais fazer aquele serviço?”. Ele falou
“Não, você vai ficar só comigo aí, para
cima e para
baixo.”. Eu falei: “Tá bom!”
P/1 - Você não gostava do seu serviço?
R - Não, porque ele era muito corrido. Corrido demais e era produção, muita produção, e eu estava quase desistindo, já. Estava quase saindo. Aí foi quando ele me chamou para
trabalhar com ele. Aí praticamente eu ficava entregando material para o pessoal. Porque era por turma, tinha quatro turmas. Às vezes sobrava pessoas, eu tinha que arrumar algum serviço para aquelas pessoas, ver o horário das máquinas. Inclusive eu ficava me escondendo do chefe porque o chefe não sabia que ele tinha... eram três horários. E cada encarregado nesses horários tinha um secretário, e o chefe não sabia. Aí o encarregado falava para
mim assim: “Quando você ver o Lázaro lá, você se esconde. Se esconde que ele não pode saber que você está me ajudando.”
Aí quando eu via o Lázaro vindo lá em cima eu ia
para um lado, ele ia para o outro. Aí eu fiquei sete meses, em três horários lá, das 5 horas e 30 às 2 e 30, trabalhava uma semana assim, seis dias, e folgava dois. Aí entrava das 2 horas e 30 às 10 e 30, ou às 9 horas e 30. Trabalhava seis dias, folgava dois e aí ia para a noite. Fiquei 7 meses assim. Aí como surgiu uma greve lá na eletroquímica, eu tinha três meses lá, e eu estava no horário da tarde. Eu ia sair, acho que era 9 e meia, e o pessoal das 9 e meia não podia entrar, porque lá não pára... é 24 horas direto. Então sai uma turma, entra outra, para
ficar revezando. E a nossa turma era para
sair, não pôde sair porque aquela turma que estava lá fora não podia entrar porque os piqueteiros não deixavam. E eu queria ir embora. Falei: “Não, tenho que ir embora, pô.”. E tinha um salão de baile da eletroquímica lá do lado... Todo domingo às 7 horas começava. Eu tinha uma namoradinha lá, e ela estava me esperando, lá. Eu ia sair 9 e meia e ia para
lá. Aí eu falei: “Não acredito!” Aí quando a cara falou: “Está tendo greve lá fora, o pessoal não vai entrar e o encarregado quer que a gente fique”. Eu falei: “Ah, não vou ficar, não. Eu vou para o clube. Aí o encarregado chamou todo mundo lá e falou: “Oh, é o seguinte, o pessoal que está lá, da terceira turma, não pode entrar e eu quero saber quem vai ficar. Não pode parar o serviço.” Aí falaram: “Não, não sei o quê, tal...” Falou: “Não, vamos ver quem fica, quem não fica.”. Aí ele olhou para
mim e falou o seguinte: “Oh, e você é para
ficar. Se você não ficar eu vou te mandar embora.”. (riso) Intimou logo. Eu falei: “Não, mas eu tenho que ir...” Ele falou: “Não, você escolhe. Você pode ir embora, mas também você não precisa voltar mais.” Aí eu fiquei. Fiquei três dias lá dentro porque não podia sair. Se você saísse não entrava mais. Até que parou toda a seção. O pessoal foi levando, levando, até quando deu. Aí quando não agüentava mais, aí foi parando as máquinas, parando, parou tudo! Até acabar a greve nós ficamos lá. Eu fiquei três dias, lá. Saí no terceiro dia, consegui sair à noite para o pessoal não ver. Aí no último dia acabou. A minha sorte também, dessa greve, porque aí eu passei
para um horário só. Porque eu já tinha pedido, né, para
ir para o horário das 8 horas às 17 e 30. Só que já tinha três caras na minha frente, três funcionários na minha frente para
ir
para uma seção. Só que esses três funcionários não participaram da greve, não ficaram lá. Deram prioridade para
mim. Eu então passei
para um horário só.
P/2 -
Qual era a reivindicação da greve, você se lembra?
R -
Olha,
melhores salários, né? E o ambiente também de trabalho que era ruim, muito puxado, muito serviço. Mas eles não conseguiram muita coisa, não. Eles tiveram que voltar atrás.
P/2 - Nesses três dias aonde você dormia, como era, tomava banho aonde?
R -
É, dormir todo mundo dormia na sala de capa onde encapava as tortas que eu te falei. É tipo uma meia, sabe? E tinha uma sala que só tinha aquele tipo de capa, uma para
cada tipo de material. Aí ficava aquele monte. Aí o pessoal, todo mundo dormia lá, que era macio. Para
almoçar tinha um refeitório lá dentro. O pessoal ia lá dentro e comia lá dentro mesmo. E para
falar com a família, o telefone ligava.
P/1 -
E eles permitiam que você ligasse na hora que fosse?
R -
Permitia, né, porque você está ali dentro, está ajudando eles, então eles não podem...
P/1 -
E se você quisesse sair eles não deixavam?
R - É, você podia sair. Mas tem um problema, tem um problema de você sair e você perder os dias. Porque aquelas pessoas que não entraram não receberam nada. E você ficando lá, além de você ganhar seu dia normal, você está ganhando hora extra porque você estava trabalhando direto lá dentro. Então era melhor você ficar lá do que você estar lá fora e arriscar de ser mandado embora.
P/1 -
Nessa época você estava como secretário do encarregado?
R - Certo.
P/1 - Mas qual era o seu registro?
R - Era ajudante.
P/1 - E a empresa pagava todos os seus direitos: férias, salário?
R - Como ajudante? Como você está perguntando? É tudo? Eu fiquei acho que sete meses. Eu fiquei um ano como ajudante. Aí saí de férias numa boa, recebi tudo. Aí quando eu fui
para um horário só aí que eu fui para essa sala de fieira. Aí eu passei a operador de fieira.
P/2 - Como é isso?
R -
Essas máquinas onde sai o fio de náilon... Cada máquina tem mais ou menos umas 100 fieiras cada máquina. E essas fieiras elas são enfiadas dentro de um banho que é químico, que é onde sai o fio de náilon. E para
não corroer, essas fieiras são feitas de prata e ouro, suja, e elas se entopem. Porque passa uma viscose ali, uma química, elas entopem. Então elas vão para
aquelas salas de fieiras para
serem lavadas. São lavadas com ácido. Tem umas bandejas de aço, aí você coloca as fieiras dentro de uma bandeja também, fechada. Aí você coloca ela lá dentro, lava ela, deixa uns minutos, lava, depois põe na água para
tirar o ácido, tira, sopra com ar... Porque os furos são tão pequenos que você só vê com microscópio, com aparelho certo, entendeu? Para
você identificar uma fieira da outra, são quatro tipos. Fieira de 60 furos, 40, de 30 e de 22 furos. Para
você saber qual fieira você tem que olhar com microscópio porque são bem pequenininho os furos e você não distingue legal. E para
você ver também se tem algum entupido você tem que olhar com a máquina.
P/1 - Desses furos que saem os fios, é isso?
R - Exatamente. Ali que sai a grossura, né?
P/1 -
Quanto mais furo, mais fino...
R - Exatamente, o fio. E essas fieiras inclusive eram contadas três vezes ao dia nessa sala para
ver se não estava faltando nenhuma.
P/1 - Para não roubarem?
R - É, exatamente para
não ter caso de roubo porque vale muito uma fieira. Ela é tipo desse negócio de dedal que coloca, sabe? Uma daquelas vale uma nota porque é ouro e prata misturado. Então de manhã quando chegava, contava. Almoçava e depois do almoço contava de novo. E na hora de ir embora contava de novo. Se estivesse faltando alguma tinha que dar conta. Tinha que procurar onde estava.
P/1 -
Você falou que eram 100 fieiras?
R - É, numa máquina. Tinham mais de...
P/1 -
Você tomava conta de quantas?
R - Eu tomava conta de... nós todos acho que eram cinco pessoas trabalhando naquela sala, então todos eram responsáveis por todas. Eram 100
fieiras assim numa máquina. Eram 120 máquinas. Então tinha mais de três mil fieiras. Lá na seção aquelas que estavam lá, o supervisor encarregado é responsável por elas. Agora as que estão lá dentro para
repor é responsabilidade nossa.
P/1 - E qual era o registro na Carteira, mudou?
R: - Era operador de fieira.
P/1 - E basicamente você fazia isso, limpar?
R -
É, lavar, passar na máquina para
ver se tinha alguma entupida, embrulhar ela... Para os operadores saberem qual o tipo da fieira, tinha quatro tipos de papel celofane, sabe? Amarelo, azul, vermelho e verde. Por exemplo, acho que a 40 era enrolada com papel celofane vermelho. Azul acho que era 22. Não lembro bem, entendeu? Eu sei que para
identificar, as fieiras eram enroladas com papel celofane. Então, você tinha que embrulhar uma por uma
depois que lavasse, passasse na máquina para
ver se tinha alguma entupida. Se estivesse entupida tinha que tirar e lavar de novo. Aí passava para
mesa para
poder enrolar as fieiras. Também tinha outro serviço que era cortar o pano. Cada máquina tem os filtros onde passava a viscose, e cada caneta era um filtro. Então nós tínhamos também que cortar os panos, enrolar no pano, enrolar os fios todinhos para
poder pôr nas máquinas.
P/2 - Você ficou quanto tempo lá?
R - Na sala de fieira?
P/2 - É.
R - Um ano mais ou menos também, como...
P/2 - E depois?
R - Aí depois eu passei a apontador de produção.
P/2 - Como aconteceu essa promoção?
R - Essa promoção aconteceu devido a um acidente de um amigo meu. Ele faleceu num acidente de carro. Ele era apontador. Lá naquele tempo tinha dois apontadores de produção. Inclusive eu estava até de férias nesse tempo, quando ele morreu. A gente saía do serviço na sexta-feira, ia para um barzinho lá chamado Chaparral. Ia o chefe também, se ajuntava todo mundo lá e ia tomar chopp. Aí ficava lá na sexta-feira tomando chopp até 11 horas, meia-noite. Saía 5 e meia... Inclusive um dia eu cheguei em casa e minha mãe estava chorando, lá. Porque eu não avisei nada. Saí do serviço 5 e meia e aí
estou lá, tomando chopp... Cheguei em casa meia- noite, cheguei lá minha mãe estava chorando. Aí eu falei: “Ah, está chorando por quê?”. Falou: “Ah, você quer matar a sua mãe do coração? Você sai
5 e meia do serviço...” porque é pertinho da minha casa onde eu morava, ia à pé lá, quinze minutos ,“ Sai do serviço 5 e meia, você chega uma hora dessas, meia-noite, você quer matar a sua mãe”. Aí eu lembro que meu irmão falou assim: “Eu falei que ele estava por aí bebendo. E a senhora fica preocupada com ele.” E o pessoal todo de sexta-feira fazia isso, ia para
lá tomar chopp, direto, ficava até meia-noite, lá. E eu saí de férias, em 87... Inclusive eu lembro que, último dia de serviço, esse meu amigo brincando comigo, falou: “Você vai para
Pernambuco?”. Falei: “Eu vou, eu vou para
Pernambuco.” Aí falou: “É, cuidado para
você não morrer por lá, heim?” Eu fiquei até cismado, né: “Ué, por que você está falando isso?” “Não, lá tem um monte de cabra macho. Lá os caras tudo anda armado! Cuidado, heim?” Aí eu fiquei, fui até cismado, né? Era para
mim passar uns 20 dias lá, que eu saí 30 dias de férias, né? Ia passar uns 20 dias, mas não consegui passar 20 dias. Fiquei lá, o máximo que eu fiquei foi 15 dias. Aí eu lembro que eu falei para a
minha avó: “Vó, quero ir embora.” Ela falou assim: “Ué, você não ia passar uns 20 dias?” Eu falei: “Não, não, eu vou embora. Estou querendo ir embora de qualquer jeito.” Sabe, me deu um negócio para
ir embora, assim, desespero: “Quero ir embora, quero ir embora...” Aí minha avó falou assim: “Mas meu filho fica aí, fica mais uma semana.” Eu falei : ”Não, não. Quero ir embora. Parece que alguma coisa está me pedindo para
ir embora.” Porque lá de onde meu avô mora para a cidade é longe. Eu tive que ir da casa da minha avó para a cidade para
comprar a passagem. Aí cheguei lá numa segunda-feira e falei: “Oh, quero passagem para
São Paulo.” O cara falou assim: “Oh, só tem para
quinta-feira e é a última passagem lá no fundo, perto do banheiro.” Eu falei: “Não tem outra passagem?” Ele falou: “Não, só na outra semana.” Aí eu falei: “Então vai essa mesmo.” Comprei a passagem, vim passando mal de lá até aqui em São Paulo. Porque é três dias e três noites dentro do ônibus, você perto do banheiro, um calorzão, tipo esse calor que está agora aqui. Cheguei num sábado aqui, saí numa quinta-feira, cheguei num sábado de manhã. Aí quando eu cheguei no sábado tinha uns dez minutos que eu tinha chegado apareceu um supervisor lá da Nitroquímica me chamando. Ainda falei para a minha mãe: “Não, mãe, fala que acabei de chegar de viagem, estou cansado...” Eu pensei até que era um vizinho meu, sabe? “ Fala que depois eu vou lá. Vê quem é que depois eu vou lá na casa dele.” Aí minha mãe falou: “Não, é o encarregado lá da Nitro te chamando. Falou que aconteceu um acidente com um colega seu.” Aí eu cheguei lá e falei: “O que foi?” “Não, eu queira saber...” Isso foi no sábado, né, de manhã. “ Eu queria saber se você estava no Chaparral ontem de noite, sexta-feira.” Falei: “Não. Cheguei agora. Acabei de chegar, estava viajando.” Aí eu falei: “Por quê?” “Não, é porque o Amarildo morreu” Foi o Amarildo e mais cinco pessoas, morreram no acidente de carro. Morreram ele, o irmão dele e mais dois irmãos de outra família e uma moça. Mas não acreditei, porque lá na firma ele era o meu melhor amigo. A gente andava junto na hora do almoço. Inclusive na hora do almoço também a gente saía, lá no refeitório não tinha refrigerante, a gente almoçava e ia para o Chaparral na hora do almoço tomar refrigerante. E ele brincou comigo no último dia de serviço que cuidado para
mim não morrer lá, e quem acabou morrendo foi ele. Eles saíram do serviço, foram para o Chaparral tomar cerveja... Inclusive ele morreu que ele nem viu, que ele estava bêbado, encheu a cara lá e... Entraram dentro de um Opala de um colega dele. Aí pegaram a avenida a cento e poucos por hora, e foram cortar um ônibus e tinha um caminhão parado no farol. Entraram embaixo do caminhão. Morreram todos degolados. Só quem não morreu foi o primo dele... Tinha sete dentro do Opala. Morreu cinco e salvou dois. O primo dele não morreu porque quando o primo dele estava do lado direito e viu na hora que ele cortou o ônibus, o caminhão parado, aí só deu tempo dele gritar: “Vai bater!”, e puxou o colega dele do lado e deitou no colo do Amarildo. Não deu tempo de puxar ele e a carroceira passou na cabeça dele. Ele levou cinco pontos. Se não tivesse deitado tinha morrido também. Aí eu acho que aquele lance de vir embora...acho que era para isso... (suspiro) Cheguei aqui... Se eu não tivesse vindo no dia que eu saí de lá, na quinta-feira, não tinha nem ido no enterro dele.
P/2 - Como era o trabalho do Amarildo que depois você fez?
R - É, o que ele fazia era, chegava de manhã ele tinha que ir para uma seção lá do lado, que era acabamento, ver a quantia de material que tinha lá, se dava para trabalhar no dia. Fazia a produção de lá, olhava, via se os produtos químicos que tinha eram suficientes. Se não fossem, ele tinha que fazer requisição pedindo material para
não faltar. Porque lá lavava as sedas que saíam lá da minha seção, lavava lá. Então, tudo produto químico, que não podia faltar. Era 24 horas, três turnos. A gente trabalhava até às 5 e meia. Vai que ele deixasse faltar, o pessoal da noite não ia trabalhar. E isso podia custar até o serviço dele, o emprego dele. Então ele tinha que de manhã verificar se tinha material suficiente, fazer a produção e depois disso ir para
seção onde os encarregados já tinham recolhido de manhã, às 5 e meia, a produção das 120 máquinas. Tinha um formulário, você tinha que passar
a produção do dia tudo para aquela ficha das máquinas. Quantas sedas saíram, quantas estragaram, dividir por... Tinha vários tipos, 110, 220, tinha que separar. Aí fazendo aquela produção você gastava mais ou menos umas duas horas, ou mais. Aí ia entregar vale-refeição para o pessoal, pegar vale que... O vale-refeição era um cartãozinho,
então eles carimbavam e a pessoa devolvia para
nós. A gente dava um novo e pegava aquele velho. Enquanto a pessoa não devolvesse aquele você não dava o novo. E praticamente
também entregava folha de ponto, folha de pagamento. Cada turno acho que tinha uns cento e poucos funcionários. Então você tinha que dividir por funcionário as folhas de ponto, folhas de pagamento, aí entregar para
eles, fazer memorando, se um funcionário chegava atrasado chegava lá e avisava: “Oh, cheguei atrasado porque eu fui levar a minha filha no médico”. Dava o atestado lá, então a gente fazia um memorando, levava para o departamento de pessoal, tirava xerox, várias coisas.
P/2 - Tudo no papel e na mão, e na caneta?
R - Isso, e máquina de escrever...memorando era. Não tinha computador naquele tempo que eu estava lá, eles estavam entrando ainda com a informática. Inclusive eles me deram aula, lá, de uma semana só, de computação. Mas foi para meio período, foi pouca cosia. Não deu para
pegar legal!
P/1 - Tudo que entrava e saía,
tudo o que precisava você tinha que entregar no fim do dia?
R - É, eu fazia requisição, mandava para o almoxarifado e o almoxarifado entregava lá na seção.
P/1 - E como é feito hoje em dia esse trabalho?
R -
Pelo que eu sei conversando com um colega que está lá dentro ainda, o serviço que a gente fazia tem outras pessoas fazendo, tipo encarregado, nessa seção de acabamento. A gente via lá se tinha material. Hoje cada encarregado faz aquilo.
P/1 - Da própria seção ele já faz?
R - Isso, o pessoal está lá de manhã. O encarregado vai lá e vai ver a produção, ver se tem material. Se não tiver a produção ele vai lá e pede. Não tem mais uma pessoa que faça aquilo especificamente. Que trabalhe direto com aquilo. Não tem mais apontador.
E, que nem na seção lá, negócio de produção que a gente gastava lá duas horas para
fazer, agora o Marçal, que fez o curso lá, ele está sozinho agora e ele faz tudo. Tanto ele faz os relatórios das máquinas, como ele faz a produção no computador. Então já saiu tudo lá, pronto. E também eu trabalhei lá como controlador de horário. Controlava os horários das máquinas, que é isso que o Marçal faz também agora. Era eu e ele que tínhamos que fazer isso. Agora, hoje ele faz sozinho e faz sossegado. Porque está computadorizado, não precisa mais... Se tinha quatro trabalhando, fazendo aquilo, tem uma pessoa fazendo só pelo computador.
P/1 - E por que você saiu de lá?
R - É, eu saí de lá mais por causa de chefe que tinha lá, o engenheiro Lázaro. Porque ele não sabia tratar os funcionários. Chamava o funcionário de burro, cavalo, entendeu? Qualquer coisa que você ia fazer errado, ele já vinha te xingando. Aí você queria se explicar ele não deixava você se explicar, só ele falava.
Eu agüentei três anos, quatro anos. Mas aí você vai indo, vai indo, chega uma hora que você não agüenta mais. Aí teve uma vez lá que o engenheiro Jaime, que está lá até hoje fez um serviço errado lá na máquina, saiu um material errado. Aí descobriram o serviço errado, chamaram esse engenheiro Jaime, o Lázaro chamou ele. Pegou e falou um monte para
ele lá... Que ele não sabia conversar com as pessoas, então ele xingava. Xingou o engenheiro Jaime de tudo que é nome lá. Falou que ele era burro, que era isso... Aí o Jaime ficou nervoso e a primeira pessoa que ele viu na frente ele descontou: fui eu! Que ele apertou a campainha... Eu trabalhava numa sala e o engenheiro trabalhava na outra. Então tinha campainha. Quando ele queria falar com a gente apertava a campainha. Depois que o Lázaro saiu de lá batendo a porta e tudo, tinha xingado ele, ele ficou lá sozinho e apertou a campainha, o Jaime. Aí eu peguei, estava indo, voltei para
trás para
pegar um envelope que era para
entregar para
ele mesmo. Falei: “Ué, já que eu vou faço uma coisa só.” Na hora que eu voltei ele apertou de novo. Aí ele falou: “Você está surdo? Você não ouviu a campainha tocar?” Aí eu falei: “Eu ouvi. É que eu fui pegar... “ “É, não quero saber não.” Aí começou a me xingar, lá. Falou: “É, se você não estiver satisfeito você pede a conta, não sei o quê. “Aí eu falei: “Oh, Jaime, calma. O Lázaro te chama a atenção e você vem descontar em mim? Isso não é certo.” Ele falou: “É, sai daqui.” Pegou e falou: “Some daqui que eu não quero ver sua cara aqui.” Aí eu falei: “Não, o que que é isso? Eu não fiz nada para
você”, eu falei. “Eu não vou sair. Eu não sou nenhum animal para
você falar assim comigo. Nem com um cachorro você fala desse jeito.” “Não, some daqui que eu não quero ver a sua cara. Eu vou te dar... “, ainda olhou no relógio “... eu vou te dar um minuto para
você sair daqui agora. Se você não sair eu vou te pôr para
fora.” Eu falei: “Então você vai me pôr para
fora, que eu não vou sair.” Aí fiquei lá. Ele ficou olhando para a minha cara. Eu fiquei, esperei um minuto passar, porque eu queria ver se ele ia me pôr para
fora. Porque a gente é um ser humano, não posso ser tratado como um cachorro. E aquilo me deixou, sabe, bastante decepcionado. E eu peguei e me desiludi bastante. No outro dia não queria olhar nem
na cara dele mais. Aí um dia ele veio conversar comigo, eu fiz de conta que ele não estava nem lá porque a pessoa é tipo assim: fala o que quer para
você hoje, e amanhã já é outra pessoa. Então isso eu não aceito. Aí no outro dia eu cheguei no engenheiro Lázaro e pedi para
ele me mandar embora.
P/1 - E quando começou a ser automatizado como você foi percebendo? Como você foi sentindo isso?
R - É, já tinham comentado que eles iam colocar um computador e não ia ter lugar para
todos. Ia ficar só um. Não sei, inclusive eu acho que eles deram preferência para
mim, naquele tempo, porque pediram para
mim fazer um curso lá... Deram um curso lá dentro da firma mesmo. Só que muito pouco tempo, uma semana, meio período, pôxa! Você não pega quase nada. Aí eles pararam, deram um tempo naquele curso. Era para
continuar, não continuou mais. Aí eu sei que quando eu saí o Marçal, que ficou lá, que eu ajudava ele... Ele que continuou fazendo o curso e hoje ele está lá. Mas eu sabia que um de nós ia ter que sair. Mas, do jeito que estava lá, não tinha condição de ficar. Mesmo que eu ficasse lá com o computador, não tem porque... Você trabalha com uma pessoa que não sabe te tratar, não adianta. Você precisa, você é pai de família, tudo, mas passar vergonha na frente dos outros, meu? Que nem eu já vi ele fazer com o encarregado. O cara sair chorando, o encarregado sair chorando porque ele chamava a pessoa de burro, cavalo, animal, e o cara não pode falar nada porque ele depende daquilo... Ele fazer... Porque antigamente, na Nitro, eles pegavam
pessoas assim sem profissão, sem escolaridade. O próprio funcionário fazia a ficha da pessoa, só assinava e pronto. Então eles pegavam muitas pessoas sem escolaridade nenhuma. Inclusive o encarregado que tem lá hoje ainda começou como faxineiro. O cara foi passando faxineiro, ajudante, operador, aí passou a encarregado. Eles passaram. Então lá na seção tinha um livro de recados, como ele trabalhava num horário só, ficava a outra turma para
de tarde, a outra para a noite, o engenheiro deixava os recados no livro. Como o encarregado para o engenheiro no livro também. Todo dia de manhã ele lia. Aí ele deixou um recado para
esse encarregado no livro, que era para
ele fazer um serviço, e ele não fez. Aí no outro dia ele chamou esse encarregado lá, de manhã, e eu estava na sala. Aí ele pegou e falou assim: “Você não sabe ler? “ Aí ele falou: “Não, por quê?” (fim da fita A -2) gaguejando, guaguejando, aí ele falou: “Você é burro, rapaz? Lê isso aí.” (resmunga) “Lê isso aí, rapaz. Você é um animal, você é um burro”, falando para o encarregado na minha frente, na frente de todo mundo que estava lá. Começou até a chorar o encarregado, e saiu. Aí ele pegou e falou para
mim: “É, o que a gente suporta para
poder dar sobrevivência para a nossa família, porque se eu não dependesse disso aqui eu dava um murro na cara de uma pessoa dessa.” Então não adiantava nada... Eu pedi para me mandar embora, de um lado eu me arrependo porque era perto de casa, o salário não era ruim, mas o outro lado era a convivência no serviço. Você não tinha convivência legal. O outro chefe que tinha lá era melhor, aposentou, aí ficou esse. Hoje ele não está mais lá graças a Deus, graças aos funcionários que ficaram lá, essa pessoa saiu de lá. Aposentaram ele. Mas não tem condição de trabalhar.
P/1 - Hoje você está trabalhando, Reginaldo?
R - Não, hoje eu estou desempregado.
P/1 - E você acha que como apontador vai ser difícil você arrumar emprego?
R - É difícil porque você não vê nem mais em jornal apontador de produção. Você vê apontador de cartão mas é mais em obras. Obra que eles pedem apontador de cartão. Mas em firma não existe mais isso, apontador de cartão, porque é tudo mais é só crachá. E apontador de produção, você procura no jornal, você não vê,
não acha.
P/1 - Estamos terminando a entrevista, e eu queria agradecer a você pela participação. Se você quiser deixar algum último comentário aí...
R - Não, eu agradeço por vocês terem me chamado aqui
para
fazer essa entrevista. Acho que foi bom para
saber sobre esses empregos aí que estão extintos. E eu acho que vai ter muito ainda. Mas agradeço vocês também por essa oportunidade que vocês me deram.