P/1 – Seu Marius, então nós vamos começar a entrevista dizendo seu nome, local e data do nascimento.
R – Eu me chamo Marius Vieira Gonçalves. Esse nome me foi dado por minha mãe em homenagem a um personagem do romance de Victor Hugo ou Victor Hugo como diz em francês, que só serviu pra c...Continuar leitura
P/1 – Seu Marius, então nós vamos começar a entrevista dizendo seu nome, local e data do nascimento.
R – Eu me chamo Marius Vieira Gonçalves. Esse nome me foi dado por minha mãe em homenagem a um personagem do romance de Victor Hugo ou Victor Hugo como diz em francês, que só serviu pra complicar a minha vida porque todo mundo se chama Mário no Brasil, e não contente com isso minha mãe me chamou de Marius de Pontmercy, que aliás, 84 anos depois que eu nasci veio servir como pseudônimo para a publicação de dois livros meus: um publicado aos 80 outro aos 83. Mas Marius de Pontmercy.
P/1 – Onde o senhor nasceu?
R – Eu nasci na cidade de Araguari, Estado de Minas Gerais, que na minha imaginação era o centro umbilical do mundo, tanto é assim que eu fiz questão de levar a Elizette pra conhecer a capital do mundo, centro de gravitação mundial. Eu tive uma enorme decepção com a minha cidade...
P/1 – Qual é a data do seu nascimento?
R – Nasci no dia primeiro de junho de 1916.
P/1 – E o nome dos seus pais?
R – Meus pais chamavam-se: Deoclécio Vieira Gonçalves, e eu até deveria dizer primeiro o nome da minha mãe em homenagem à mulher já que ontem foi o Dia Internacional da Mulher e na minha imaginação a mulher sempre esteve na frente do homem, mas o meu pai se chamava Deoclécio Vieira Gonçalves e minha mãe Jandira Rebouças Vieira.
P/1 – A atividade deles.
R – Eles é, minha mãe naquela altura deveria ser prendas domésticas, meu pai era contador , naquele tempo se chamava guarda livros, durante a vida inteira dele ele exerceu essa profissão. Aos dois anos de idade eles se transferiram pro Rio de Janeiro por via de conseqüência nos transplantamos de Araguari para o Rio de Janeiro, cidade onde eu fui criado até os 23 anos.
P/1 – Senhor se lembra de Araguari ou o senhor era muito pequenininho?
R – Não tenho a menor idéia, fui reencontrar Araguari depois que me casei com
a Elizette aos 58 anos de idade.
P/1 – Mas e do Rio de Janeiro o senhor tem alguma lembrança?
R – Ah, tenho todas lembranças da minha vida.
P/1 – Como é que era a casa?
R – A existência, embora isso seja muito remoto, mas era muito pacata a vida no Rio de Janeiro daquela época, meus pais eram , tinham um padrão de vida muito modesto, de modo que, mas não obstante isso tive uma formação bem razoável de escolar, eles se preocupavam...
P/1 – Qual era o bairro que o senhor morava?
R – Nós morávamos lá no Méier, Engenho de Dentro, aliás meu pai tinha mania de se mudar e é por isso que eu costumava brincar que ele não pagava aluguel, mas a verdade é que era nômade meu pai, de modo que eu...
P/1 – Mas por que é que ele era nômade, o senhor se lembra?
R – Não sei ele mudava com freqüência só não me lembro os motivos pelos quais ele se mudava.
P/1 – E como era a sua casa de infância o senhor se lembra, como era?
R – Era aquele padrão de classe média baixa do Rio de Janeiro e pode imaginar isso (riso) 80 anos atrás, não é difícil imaginar que se hoje ainda são precárias as condições de vida no Rio de Janeiro imagina naquela época.
P/1 – E o senhor lembra do seu tempo de escola?
R – Mas eu me lembro dos meus brinquedinhos, soldadinho de chumbo, tudo muito simples, professora tinha é professorinha particular, não sei porque cargas d’água eu...
P/1 – O senhor não ia à escola?
R – Eu não freqüentava a escola eu tinha professora particular, não é. E o curso primário todo eu fiz sempre com professora particular até o ano de 1929 quando eu me matriculei no Colégio Militar do Rio de Janeiro, cujo curso eu freqüentei até o fim.
P/1 – Mas como foi que o senhor tomou essa decisão de ir pro colégio militar?
R – Naquele tempo os colégios particulares eram muito caros como continuam sendo, mas a verdade é que o padrão de ensino do Colégio Militar era primoroso como continua sendo até hoje, de tal maneira que o meu pai, que tinha um rendimento muito modesto, houve a oportunidade de fazer concurso pro Colégio Militar e eu fui aprovado e cursei os cinco anos do ginásio no Colégio Militar do Rio de Janeiro.
P/1 – Do Realengo?
R – Não, o Colégio Militar do Rio de Janeiro é em São Francisco, na Rua São Francisco Xavier no coração do Rio de Janeiro, no bairro da Tijuca. O Colégio Militar no Rio de Janeiro, a Escola Militar é que era no Realengo.
P/1 – O senhor se lembra dos tempos do Colégio Militar?
R – Como?
P/1 – O senhor se lembra como é que foi a sua vida lá dentro?
R – A minha, o meu curso no Colégio Militar foi uma fase muito agradável da minha vida porque guardo recordações, o ensino era muito bem ministrado, de tal maneira que eu consolidei muito, por exemplo, tinha um professor de francês muito exigente que me permitiu que 60 anos depois ou 70 eu chegasse a Paris, tomasse um táxi e começasse a conversar em francês com o motorista do táxi, até então eu não tinha praticado francês pra nada, é verdade que eu tenho uma certa facilidade pra idioma, tanto é assim que eu sou tradutor de espanhol, mas eu passei 20, é 10 anos na Argentina e me formei pela Universidade de Buenos Aires tradutor de espanhol. Mas o francês estava armazenado no meu subconsciente, então esse curso no Colégio Militar me trouxe benefícios inesquecíveis. Esse período no Colégio Militar eu aprendi a amar o livro, foi uma das coisas mais notórias da minha vida, da minha infância foi justamente o amor que eu tomei pelo livro, tanto é assim que eu vivia com um livro debaixo do braço ainda que eu pudesse não ler na proporção que dava a impressão.
P/1 – O senhor se lembra de alguma coisa interessante dessa fase do colégio?
R – Essa fase do colégio...
P/1 - Alguma coisa mais marcante?
R – A fase mais marcante foi a parte quando eu era já adolescente comecei a participar dos torneios de atletismo, eu
me tornei atleta, a tal ponto que eu fui atleta do Vasco da Gama (riso) e por causa disso hoje eu torço pelo Vasco da Gama de graça só porque lá tinha um chocolate legal e os alunos do Colégio Militar que eram os melhores atletas foram atraídos para o Vasco da Gama, e na mesma época o Fluminense atraiu outros tantos alunos, também destacados, e a rivalidade se formou entre Vasco da Gama e Fluminense, tudo através dessa juventude do Colégio Militar. Mas o fato é que...
P/1 – Fora dessa parte esportiva que foi marcada...
R – Essa fase foi...
P/1 – E a vida dos colegas, o currículo escolar...
R – O relacionamento com os colegas foi muito bom, havia uns colegas que vendiam doce de leite que era o meu sonho, eu tinha que levar umas moedinhas pra comprar doce de leite e eu nunca vi imaginação tão fértil como a daqueles companheiros que vendiam doce de leite, pra você ter uma idéia Marina, eles pegavam o dicionário mais grosso possível, faziam um corte no miolo do dicionário, tiravam as páginas, pra encher de doce de leite pra entrar com o livro debaixo do braço pro bedel não perceber, você pode imaginar imaginação mais fértil do que essa?
P/1 – Não podia entrar com doce de leite?
R – Não podia entrar com nada, aquilo era, era proibido vender mas o cara andava com o, o bedel não tinha como interferir na venda do doce de leite, também tem isso se você comprasse o doce de leite e não pagasse ele tirava o teu bibico, o bibico era o gorrinho que a gente usava na época, era muito interessante. Mas é, da fase esportiva eu guardei uma recordação porque eu logo comecei a me destacar como atleta a tal ponto que, naquela altura eu não tinha a altura máxima que eu atingi que foi um metro e 64 na idade adulta, eu tinha muito menos do que isso, e eu consegui bater o recorde carioca de salto em altura, de salto livre, e esse recorde, um metro e 72, permaneceu durante dez anos sem ser batido. Essa marca pode ser medíocre hoje em face do progresso do atletismo, da tecnologia atlética, mas o fato é que isso marcou a minha vida, eu fui atleta destacado, era campeão de 100 metros rasos, campeão de quatro por 100, campeão de salto em altura, campeão de 800 metros rasos, de modo que essa fase da minha vida foi uma fase realmente muito gratificante pra mim.
P/1 – E como é que era assim o lazer, as festinhas?
R – Olha praticamente a gente naquele tempo não tinha era muito restrita a nossa proximidade de lazer até porque limitada pela condição financeira, mas a parte atlética preenchia todas as necessidades, todas as conveniências, todas as alegrias da gente, inclusive aqueles torneios inter-colegiais, a disputa por exemplo com o Colégio Pedro II que era um colégio igualmente importante do Rio de Janeiro, a disputa era ferrenha no campo atlético. De modo que isso foi realmente uma fase muito agradável da minha juventude.
P/1 – E dentro de casa como é que era a vida familiar, quem mandava era a sua mãe?
R – É, lamentavelmente eu não tive uma vida familiar muito aconchegante porque infelizmente os meus pais não se davam muito bem entre si a tal ponto que lá pelas tantas o meu pai se separou da minha mãe. E isso significou que eu fiquei sem lar definitivo, pelo menos permanente, então eu vivia na casa de todo mundo, de princípio eu adotei a casa das namoradas que era o mais fácil e mais cômodo, por exemplo, essa moça que eu me referi que eu quase fiquei noivo e larguei pra casar com a minha prima, essa moça eu freqüentei a casa dela em função, que o irmão dela era atleta como eu também destacado e essa afinidade que havia entre nós me atraiu pra casa dele, e eu durante muitos anos vivi na casa dos outros praticamente.
P/1 – O senhor tinha maios ou menos que idade?
R – Eu estaria entre, vamos dizer, entre 12, isso aconteceu entre 12 e 17 anos? Na formação da minha adolescência.
P/1 – E a sua irmã, ela também foi pra casa dos parentes?
R – É, nessa altura a minha irmão, que tem oito anos menos que eu, ficava hora com um hora com outro, ficou até com o meu pai bastante tempo, minha irmã é única que eu tenho até hoje e ela se revelou uma verdadeira guerreira porque ela também teve que ser autodidata em matéria de vida, o meu pai manteve num colégio razoável, um colégio de freira etc e ela teve uma formação muito satisfatória.
P/1 – E o que é que acontecia com a senhora sua mãe nesse tempo?
R – A minha mãe nesse ínterim se integrou a atividade de funcionária pública, era funcionária do Correio onde ela trabalhou mais de 50 anos, inclusive trabalhou praticamente de graça porque ela tinha tempo de aposentadoria mas tinha verdadeira paixão pelo trabalho de modo que a vida dela se resumiu nisso, minha mãe era uma mulher muito bonita a tal ponto que quando meu pai se casou com ela, eu não sei se ele casou antes ou depois, mas a minha mãe foi miss Araguari quando eu já estava gerado no ventre, então ela tem uma foto que eu guardo até hoje, e a minha mãe explorava muito essa foto (riso) porque tirava cópia pra distribuir, ela já com quase 80, se vangloriava daquela beleza que ela tinha sido fugazmente em Araguari, miss Araguari, você pode imaginar? Pois bem, mas ela se acomodou, tornou-se um pessoa absolutamente independente e passou a viver assim em função disso. Mas, completado o curso do Colégio Militar eu fiz concurso pra Escola Militar do Realengo porque também não tinha muita escolha naquela altura eu não podia pensar em entrar pra uma Faculdade, até porque eu sentia atração pela carreira militar porque não dizer, não tinha nenhuma influência externa, foi uma coisa de auto decisão.
P/1 – O que é que atraiu o senhor nessa...
R – Foi a minha formação no Colégio Militar porque o Colégio Militar é um (cadinho?) de formação de mentalidade militar porque toda, hoje as mulheres têm acesso ao Colégio Militar e até porque todas as Forças Armadas hoje admitem mulheres em posto de oficial, mas no meu tempo eram só meninos, só do sexo masculino.
P/1 – Como o senhor definiria este pensamento militar que o senhor absorveu no colégio?
R- Bem, em princípio eu me adaptei a disciplina, o que mais me empolgava na carreira militar era a disciplina, era o civismo, amor à pátria, aquela paixão pelos símbolos da pátria que subsistem até hoje mergulhado no meu âmago, na minha alma. Eu me revolto hoje pela indiferença, pela frieza com que as pessoas encaram os símbolos da pátria hoje porque hoje nós somos cidadãos do mundo, somos globalizados então isso tudo perdeu a essência, mas o Exército ainda é uma reserva moral do povo brasileiro que conserva essa chama de patriotismo, de amor as coisas do civil.
P/1 – E o colégio seu Marius, os adolescentes, mocinhos, tomaram conhecimento, tinham consciência dos grandes acontecimentos nacionais, como é que funcionava isso?
R – Não, naquele tempo não havia tanta divulgação como hoje porque a tecnologia avançou muito rapidamente em termos de divulgação das coisas por exemplo, os meios de comunicação sofreram um incremento brutal de tal maneira que hoje você a cada minuto do dia você está sabendo haja vista ontem o depoimento da mulher do Pitta que é um verdadeiro escândalo, é o sensacionalismo, o pior é que está desvirtuado porque essa mulher, a mulher do Pitta, é capaz de sofrer um atentado porque os canalhas que estão empoleirados no governo provavelmente vão providenciar que ela sofra um atentado, mas ninguém vai ser punido, então é uma coisa assim pra sensacionalismo, pra satisfazer a curiosidade do público que, dos escândalos maior ou menor, o escândalo por exemplo do salário dos juízes quer coisa mais ofensiva à dignidade do brasileiro, quando se pensa em dar 6% de aumento eles dão um monstruoso aumento pros juízes que já ganham brutalmente, então, é um sistema de injustiça institucional nós vivemos nesse país. Tudo isso...
P/1 – Agora voltando a nossa entrevista, quando o senhor sai do colégio pra ira pra Escola...
R – Pra Escola Militar.
P/1 – Como é que foi essa passagem?
R – É, a passagem foi interessante porque eu não tive direito a transferência direta como eu deveria ter se eu tivesse feito o sexto ano, ao invés de cursar o sexto ano do Colégio Militar pra ter direito a transferência automática, desde que aprovado é claro, eu interrompendo o curso no quinto ano, no término do quinto ano, eu tive que fazer concurso com os civis candidatos à Escola Militar, porque a Escola Militar quando abre concurso um percentual de vagas é destinado aos filhos de oficiais e de militares, não só oficiais, militares de qualquer graduação e uma parte aos civis, de tal maneira que eu entrei pra Escola Militar através de concurso, eu não consegui provar que eu tinha direito a transferência automática mas fiz jus a matrícula porque fiz concurso com os civis.
P/1 – Por que é que o senhor não fez o sexto ano?
R – Não fiz o sexto ano porque eu queria compensar o primeiro ano que eu repeti no Colégio Militar, então foi uma compensação, uma recuperação de tempo perdido, certo? Eu perdi um ano no Colégio Militar, o primeiro, eu tive que repetir porque eu sofri um acidente do qual eu tenho um vestígio até hoje, eu tenho um defeito físico nessa mão, que não obstante eu consegui sair oficial mas esse defeito eu já trazia desde 8 anos de idade. E o espírito dessa minha tentativa de ingresso, que afinal deu certo, foi justamente compensar o tempo perdido no primeiro ano, e eu recuperei. Já o meu filho por exemplo, 30 anos depois, isso é só pra, um parênteses, meu filho 30 anos depois fez o Colégio Militar e foi até o sexto ano e transferiu-se diretamente, foi aliás o aluno mais brilhante da Academia Militar da Agulhas Negras de tal maneira que ele hoje, se tivesse seguido a carreira militar, seria General, e eu não cheguei a General, mas é um motivo de orgulho pra mim saber que eu teria tido um filho General embora no posto de Tenente-coronel. Mas aí feita essa tentativa eu tive a oportunidade de conviver com elementos civis, com jovens da minha geração civis, de procedência civil, isso significa que houve um arejamento da minha mentalidade eu não fiquei bitolado naquela formação de cinco anos de Colégio Militar, foi muito benéfico pra mim ter convivido durante os quatro anos da Academia Militar, da Escola Militar do Realengo com elementos de procedência civil. Saí oficial em quinto lugar numa turma de 45.
P/1 – Agora, sem passar por cima desse período, nesse período da Academia o senhor tem alguma coisa marcante, o que é que o senhor contaria, como é que é isso?
R – Bom, nessa fase da Escola Militar eu dei procedimento a minha atividade atlética sempre com os mesmos resultados, mas eu tinha sofrido, sofri um acidente muito grave do qual eu estive a ponto de perder um pé por amputação, não foi amputado por uma razão muito simples meu pai se recusou a assinar o termo de autorização, embora eu fosse maior de idade mas a Escola Militar, quando eu sofri esse acidente foi na Escola Militar, e a 50 anos atrás a medicina do Brasil era muito atrasada e de tal maneira que a solução mais prática que eles acharam era amputar o pé quando eu cheguei no hospital, mas o meu pai pura e simplesmente se recusou a assinar a tal autorização e graças a isso o meu pé foi conservado no lugar do jeito que ele é, tiveram que se empenhar e me salvaram o pé.
P/1 – O que o senhor tinha sofrido de acidente?
R – Hein? Eu tinha 22 anos, foi no dia 31 de maio de 1937 e eu saí aspirante em dezembro, em novembro de 37, quer dizer, cinco meses depois eu consegui sair aspirante com o meu pezinho no lugar. Embora com sérias deficiências.
P/1 – Que acidente foi que originou essa...
R – É um acidente de equitação, eu montei um cavalo que tinha um defeito grave, ele nem era cavalo de montaria, ele era um cavalo de carga, o meu cavalo adoeceu numa certa ocasião e o Tenente, meu comandante de pelotão, ele mandou que eu pegasse aquele cavalo que estava de reserva, mas o cavalo tinha uma deficiência qualquer no lombo, ele não tolerava a carga em cima do lombo, ele corcoveava, ficava alucinado e hoje na perspectiva do tempo a gente percebe que era isso mas na ocasião ninguém atinava com isso era o único que tinha, não havia escolha, o meu cavalo estava doente baixado no hospital. Então, eu montei nesse cavalo e ele se atirou de costas e caiu em cima do meu pé e moeu, foi uma coisa gravíssima, e foi um impacto muito forte no pessoal da minha turma que assistiu, todos os
companheiros, nós somos é, hoje são 102 remanescentes da minha turma da Escola Militar mas nós saímos 250 aspirantes. Hoje todos na faixa dos 80 eles estão morrendo assim praticamente semanal, na semana que morreu João Figueiredo que era meu amigo de infância e de banco escolar, morreram quatro, todos da minha turma.
P/1 – Quanto a João Figueiredo foi seu colega de Academia?
R -
Meu colega de Academia do Colégio Militar e de Escola Militar, companheiro de turma e de arma, ele foi o primeiro aluno da cavalaria, da minha turma de 37 e oficial brilhante, uma mentalidade maravilhosa, hoje ele é repudiado, ele é tripudiado, ele é renegado, mas era uma reserva moral que ninguém, o tempo poderá dizer quem era João Figueiredo e eu mantive um relacionamento fraterno nesses 60 anos de convivência, 60 e tantos anos, 65 anos praticamente porque desde o primeiro ano do Colégio Militar. E muitos companheiros meus se destacaram nesta República, muitos ocuparam cargos importantes.
P/1 – Por exemplo.
R – Por exemplo, Costa Cavalcante que foi presidente da Itaipu binacional era meu companheiro de turma, nessa altura seria difícil me lembrar assim.
P/1 – O Geisel não?
R – Não o Geisel era mais antigo.
P/1 – Mais velho?
R – É era mais velho, a gente diz mais antigo, mais antigo porque saiu da Escola Militar antes de mim, então ele é mais antigo do que eu. E o mais antigo não é também só o que sai antes é o que sai na mesma turma por exemplo, mas sai classificado com pontuação maior, eu por exemplo, sou o quinto da minha turma, eu sou mais antigo do que todos os restantes, não é? Sou menos antigo do que os cinco que saíram na minha frente, o primeiro dos quais foi João Figueiredo, foi o primeiro aluno da Academia Militar da então Escola Militar. Mas a minha atividade na Escola Militar se restringiu, e já então sob o impacto desse acidente, começou a dar, eu não tratei adequadamente até porque as condições de saúde do Exército eram precárias mas...
P/1 – Como assim? O senhor podia explicar melhor?
R – Eram mais pobres do que hoje quer dizer a medicina era muito, a tal ponto que queriam amputar um pé antes de tentar uma solução mais racional.
P/1 – A sim, da medicina, eu tinha entendido que era do Exército.
R – Não, era geral mas o Exército como parte da sociedade também se ressentia dessa deficiência, não é? O Exército não podia ser diferente, o Exército é uma parte integrante da sociedade brasileira, por mais que queiram discriminar os militares e achar que eles são diferentes pra pior, são a escória do Brasil, mas não é assim na realidade de modo que, mas na Escola Militar eu desenvolvi minha atividade atlética por exemplo, eu entrei no concurso, de ter sido aprovado junto com os candidatos civis, eram 500 candidatos aprovados e eu fui o 51, foi uma classificação muito boa, mas as minhas médias, as minhas notas foram medíocres, por que é que eu entrei? Porque eu revelei, como eu era atleta, estava no auge da minha produção atlética,
bom no atletismo, por essa razão eu acredito, não foi declarado isso, mas eu sou muito objetivo porque eu tive uma nota tão baixa em Matemática por exemplo, que provavelmente não teria dado pra entrar, mas o fato de ter saltado um metro e 70 no campo de atletismo me valeu a aprovação e a matrícula, de modo que lá na Escola Militar eu exercia, eu fui presidente da Academia, da Sociedade Acadêmica.
P/1 – O que é que era uma Sociedade Acadêmica?
R – Sociedade Acadêmica era o Centro Acadêmico equivalente das escolas civis, não é?
P/1 – Essa escola era gratuita?
R – A Escola Militar não só era gratuita como a gente recebia salário, tinham vencimentos, recebia toda a roupa, roupa de cama inclusive, uniforme, todos os uniformes.
P/1 – Era um internato?
R – Era regime de internato, a gente só saia aos sábados quando merecia, quando fazia por merecer ou quando não estava de serviço na escala de serviço. Eu me lembro bem dessa fase porque quando eu sofri esse acidente eu fiquei no hospital dois ou três meses e saí de lá com muletas evidentemente mas com o meu pé original, e (riso) o Figueiredo , ele sábado ao invés de visitar a namorada dele, que todos os cadetes tinham namorada, quando mais não fosse eram as professorinhas do Realengo que viajavam no trem, a Maria Ffumaça daquela época, que havia uma aproximação física muito latente de tal maneira que no mínimo cada oficial namorava uma professora. O Figueiredo ao invés de ir pra casa da namorada dele ou pra casa dos pais dele ele ia ao hospital me visitar e me levar as questões das provas que tinham acontecido durante a semana, o que significa um desprendimento. Então, a minha amizade fraterna pelo Figueiredo é baseada num sentimento de gratidão profunda porque eu devo ao Figueiredo ter saído oficial junto com ele na mesma turma no mesmo ano, não perdi nada. Houve outros fatores que me ajudaram por exemplo, o comandante, o então comandante da Escola Militar naquele tempo era o General... a memória falha aos 84 as coisas mais remotas.
P/1 – Daqui a pouco o senhor lembra.
R – Mas era o comandante da, o que foi comandante muito destacado da Força Expedicionária Brasileira na Itália, não é? Ele era o comandante da Escola Militar nessa época, ele inclusive não era General ainda, era Coronel, mas no dia em que eu sofri o acidente um filho dele, que já era oficial, sofreu um acidente idêntico e ficou hospitalizado na frente do meu, lá no hospital militar, na frente do meu quarto. Isso significa que a família do comandante ia visitar o filho e me visitava também. Houve uma aproximação inclusive a média distância de uma filha desse General, portanto irmão do Tenente acidentado, que eu comecei a namorar, e o apoio que o comandante me deu foi de tal ordem que colocou uma
charrete a minha disposição pra eu não perder a instrução, então os companheiros iam todos a cavalo para o campo pros exercícios de combate, serviço em campanha e eu ia de charrete, quer dizer, foi uma facilidade adicional que me deram. Isso significa que um dia eu fui convidado pra jantar na
casa do Mascarenhas de Morais, grande Mascarenhas de Morais e eu namorava a filha dele, era uma gracinha, a gente tinha uma vocação namoradeira muito latente, muito espontânea porque o uniforme da Escola Militar é muito atraente.
P/1 – Como é que era o uniforme?
R – Era muito bonito, muito vistoso, muito colorido.
P/1 – O senhor lembra como era?
R – Com um espadinho, uma miniatura da espada de Caxias que a gente recebe seis meses depois que se matricula na Escola Militar.
P/1 – Que cor era o uniforme?
R – O uniforme, tinha vários uniformes conforme a circunstância: o uniforme de serviço; o uniforme de campanha, pra exercício no campo que em princípio era caqui, não era nem verde oliva naquela época; e havia o uniforme de gala que era pra passeio, uniforme de passeio, que era azul, não é, com enfeites...
P/1 – Azul meio claro?
R – É, não era um azul marinho com enfeites vermelhos, botões dourados e muito vistoso.
P/1 – A namorada?
R – A namorada, eu comecei a namorar, isso tudo contribuiu e a ajuda que o Figueiredo me deu porque não só ele levava as questões pra eu tomar conhecimento como me ensinava quando eu não sabia e provavelmente eu não saberia resolver todas. De maneira que a minha atividade na Escola Militar foi assim o tempo todo, esse foi já o fecho do meu curso na Escola Militar, saí aspirante fui servir num regimento glorioso fundado em 1908, o regimento de cavalaria dos Dragões da Independência que é o regimento mais tradicional do Exército Brasileiro fundado em 1908.
P/1 – Antes de passar pros Dragões, nessa formação do Colégio Militar vocês além de esportes e as matérias curriculares normais de uma escola vocês tinham o que assim de específico de academia? Lembra que assuntos vocês estudavam?
R – Hoje em dia, as matérias eram primordialmente as matérias especificamente militares, de cunho militar, não é? Porque eram por exemplo, combate, serviço em campanha, estratégia, história militar, muito importante, por exemplo, todas as batalhas de Napoleão Bonaparte, quer dizer, toda a estratégia utilizada por Napoleão nas suas tradicionais vitórias, ainda hoje estava vendo, ontem à noite fiquei emocionado com a Orquestra Sinfônica de Crianças da Venezuela, se vocês não assistiram vocês não sabem o que perderam, que coisa monumental, se você fechasse os olhos era como se fosse uma orquestra de adultos, primorosa, uma enorme quantidade de executantes em todos os instrumentos, todos, inclusive o triangulozinho que a menina dá aquela batidinha na hora H. Pois bem, eu fiquei emocionado porque eles fecharam a programação com a Suíte 1812 que assinala justamente a derrota de Napoleão na Rússia, não foram nem os generais russos que venceram Napoleão foi o “General Inverno”, e nós aprendíamos tudo isso. Nós tínhamos aula de Direito com um advogado muito competente porque a gente tem que ter noções de Direito, o oficial do Exército tem uma formação muito ampla de cultura geral, e tinha Matemática basicamente era o forte do nosso curso, mais História do Brasil evidentemente essa história camuflada que se conta aí ou fantasiada porque nós não temos muitos motivos de orgulho da nossa história então ela tem que ser contada de uma maneira fantasiosa daí a pretensão do meu livro, esse livro aqui, não é? A verdadeira história do Brasil tem que lê é na formação étnica do Brasil, essa moça que entrou aqui, essa beleza de exemplar feminino, ela lembrou bem a formação, um massacre de cinco milhões de negros arrancados da África isso é uma nódoa que o Brasil mantém na sua história, procura esquecer, bota embaixo do tapete mas isso nós estamos pagando hoje o tributo pesado do preconceito racial, por que o negro não tem oportunidade neste país? Por que se ele foi a alma desse país? Quem consumiu...
P/1 – Isso é uma linha do pensamento militar?
R – Não, eu não posso dizer que é um pensamento genérico do militar, esse é meu, isso se formou no meu espírito e eu consolidei isso, as minhas convicções nesse terreno, então, quando eu vejo as injustiças que se fazem com o índio, cinco milhões de índios foram massacrados, isto é civilização? Nós temos que festejar 500 anos de descoberta do Brasil tendo massacrado cinco milhões de índios, em nome do que?
P/1 – E os massacres do Paraguai os senhores estudaram na Academia?
R – Evidentemente, a Guerra do Paraguai é um capítulo que a gente estuda não muito profundamente até porque é uma das nódoas da nossa história também, foi uma covardia a Guerra da Tríplice Aliança.
P/1 – Contra quem o senhor acha?
R – Contra o Paraguai. A Tríplice Aliança contra o Paraguai é uma mancha da qual nós não temos motivo pra nos orgulhar.
P/1 – Ou seja, aí o Duque de Caxias deixa de ser herói.
R – Não, herói em termos, ele cumpriu a missão dele, é a tal história, herói em termos.
P/1 – Bom, nós estávamos na...
R – Eu estou tentando responder a tua pergunta...
P/1 – Nas matérias que o senhor aprendeu na Academia.
R – Na Escola Militar, então, Geometria Descritiva, Geometria Analítica, quer dizer, basicamente a Matemática, ela faz parte do nosso currículo com muita ênfase porque a técnica, a tecnologia militar se baseia nos princípios da Matemática, em algumas especialidade com maior ênfase por exemplo artilharia, artilharia o sujeito tem que colocar, dá um tiro aqui e atingir um alvo a 30 quilômetros, isso significa que você tem que fazer uma série de cálculos pra anular inclusive os efeitos negativos no lançamento daquele projetil de tal maneira que isso deixa bem evidente a importância da Matemática. O idioma português, evidentemente, que eles também dão muita ênfase e como eu sempre tive paixão pelo livro nunca tive muita dificuldade nessa parte, a Matemática eu tinha uma certa dificuldade eu não tenho uma mente cartesiana no sentido de racionalizar tudo, eu sou muito romântico, muito poético então, não sou muito objetivo.
P/1 – Quando o senhor estava terminando a Academia, nós estaríamos em que ano mais ou menos pra situar no tempo?
R – 1937, foi no fim do ano de 1937, nós estávamos no auge da era de Getúlio Vargas com a qual dentro da minha formação cívica ou daquilo que eu imaginava que era correto eu não concordava muito, com a ditadura, ditadura nós temos a muitos anos, mas foi um ditador num bom sentido, vamos dizer assim, porque o ditador também faz coisas positivas, os chamados gorilas da Revolução Militar eles construíram muito nesse país, ninguém reconhece isso, o progresso...
P/1 – O senhor mais recentemente?
R – Nessa fase recente.
P/1 – Mas vamos ficar lá no Getúlio.
R – Mas lá no tempo do Getúlio também havia progressos, Getúlio era um cara esclarecido demais de modo que ninguém pode negar isso na perspectiva do tempo você pode ter restrição a este ou aquele ato governamental dele mas em termos gerais a gente, o Brasil progrediu. Mas o Getúlio antes de ser um bom presidente ele era um político de (quatro costados?) ele era realmente um estadista, não é? Coisa que por exemplo, Fernando Henrique está muito longe de ser porque ele é um turista crônico, ele saiu de Portugal foi direto pro Chile e é assim que ele governa o país, ignorando a realidade brasileira, ele faz questão de ignorar e manter aquele sorriso de suficiência, isso me revolta, me indigna e eu reflito isso expressamente no meu livro, o meu livro chama-se “Os Lusíadas”, mas eu faço referência expressa à canalhice imperante na chamada democracia brasileira, de maneira que...
P/1 – O senhor saiu em 37 da Academia, depois disso o senhor foi fazer o que?
R – Bom, eu fui oficial do Exército durante 11 anos na ativa, oficial de tropa, então eu fui servir nos Dragões da Independência, como Tenente, depois, oficial do Exército não permanece mais de dois anos na mesma unidade.
P/1 – Qual era a atividade dos Dragões?
R – Atividade militar, quer dizer, era uma tropa que se prepara pra guerra permanentemente, o objetivo das Forças Armadas é preparar-se pra uma eventual guerra que poderá nunca acontecer como felizmente no Brasil poucas vezes aconteceu realmente, mas isso não impede que a gente tenha que estar pronto pra uma emergência, e agora...
P/1 – Como era a sua vida lá? Agora vamos pelo particular seu.
R – Bom, no período em que eu me mantive solteiro, que foi muito curto, eu tive uma vida rotineira de exercício, praticava muito esporte hípico ao qual eu paguei um tributo pesado porque sofri muitos acidentes, fui internado em hospital muitas vezes por acidente, o mais grave tinha sido aquele mas depois desse era tudo muito superficial, e até talvez devido à essa deficiência que eu fiquei porque o meu pé, embora não tenha sido amputado, ele ficou com uma limitação na sua função, isso significa que eu não podia me destacar no hipismo como eu me destaquei no atletismo por exemplo, porque no atletismo eu estava na posse integral das minhas condições físicas e já então como oficial eu tinha dificuldade pra montar a cavalo, não tinha um cavalo a altura daquele, e o Rio de Janeiro é um centro de atividade hípica muito desenvolvido porque tem sociedade hípica etc, tem muitos bons cavaleiros, mas nunca me destaquei como cavaleiro, mas tive a satisfação de que 30 anos depois meu filho saiu oficial de cavalaria e foi servir exatamente no mesmo regimento que eu servi 30 anos antes em Pirassununga, por isso foi muito grata essa palestra que nós fizemos agora em Pirassununga porque
me recordou, foi lá que ele foi gerado, foi lá que ele 30 anos depois veio servir já então como oficial brilhante que era e ganhador de prêmios, ele me realizou, aquilo que eu não consegui ele conseguiu, ele era um grande ganhador de prêmio, infelizmente meu filho não prosseguiu, eu digo infelizmente porque eu gostaria que ele tivesse continuado no Exército e quando chegou a Capitão ele pediu demissão e se afastou.
P/1 – Esse filho seu é qual deles?
R – É o filho mais velho, Sérgio.
P/1 – Agora o senhor então estava nos Dragões...
R – É, no início da minha carreira militar...
P/1 – Paralelamente o que é que acontecia na sua vida?
R – Não, na minha vida eu tinha a minha atividade profissional no quartel e paralelamente uma atividade sentimental, namorava até com uma certa volubilidade, mas eu tenho uma vocação assim pra me apegar a uma determinada pessoa, então, me apaixonei por uma moça que chegou a ser quase minha noiva e inclusive foi madrinha da minha espada quando eu sai oficial. Conheci essa prima foi um estalo e eu fiquei impaciente e cometi essa enorme injustiça, mas Deus é generoso e agora eu fui com a Elizette visitá-la no Rio de Janeiro, essa moça, e claro que isso não foi objeto de conversa. Nós nos relacionamos como pessoas civilizadas e não se mencionou nenhum episódio retrospectivo, as coisas se limitaram, até porque ela tem uma filha tão brilhante, que teria sido minha filha, que se chama Sônia também, que eu conheci agora, é uma mulher madura mas muito inteligente, muito esclarecida, então eu fechei com chave de ouro, primeiro porque eu senti não o perdão porque não era o caso de pedir perdão, eu teria que dramatizar um negócio dizer: “Elizette vai lá dentro porque eu preciso me ajoelhar aqui diante da Iolanda”, mas é só pra mencionar coisas que foram marcantes na minha vida.
P/1 – Claro.
R – Por exemplo, meu gosto pela leitura eu adquiri com um irmão da Iolanda, essa quase noiva, não é? Ele era brilhante, uma inteligência brilhante mas era atleta também como eu, então eu devo a ele esse hábito que eu adquiri, quase paixão pelo livro, que eu tenho uma idéia fixa com livro e só lamento cada vez que hoje por exemplo, eu ganhei dois livros, que deve ser lindos, de um veterinário lá de Pirassununga que eu começo a pensar “Meu Deus será que eu vou ter tempo de ler esses livros”, eu comprei um livro de Joaquim Nabuco agora sobre a, como é que se diz, a colonização, não a, como é o nome dessa mancha negra que nós temos, negra porque se refere aos negros?
P/1 – A escravidão.
R – A escravidão, chama-se “O escravagismo”, uma coisa assim, é monumental esse livro, a luta do Joaquim Nabuco, que ele devia ser de origem negra, a luta no sentido mais amplo da palavra, no Congresso e em todo lugar pra conseguir, mas ele faz uma análise tão objetiva como era difícil você acabar com a escravidão, você ia mexer com a sociedade inteira, não é? Quer dizer, aquela portuguesada inteira que tinha os negros subjugados, massacrados e as negrinhas a disposição porque também tem isso esse era um capítulo muito agradável da escravidão, tudo isso eu fico preocupado meu Deus, amanhã eu vou visitar a pneumologista pra ver se ela me dá alta da pneumonia que eu tive o mês passado e, mas eu ainda estou com um residuozinhos da pneumonia então eu estou preocupado “Será que eu vou ter tempo?”, sabe, eu queria ter mais tempo não só pra ler mais, aprender mais como também pra amar um pouco mais a minha Elizette, porque é um capítulo a parte a Elizette, a Elizette são 25 anos de felicidade integral, de identidade integral e eu o que estou dizendo aqui, que as palavras ficam registradas, mas eu também escrevi no meu primeiro livro tem um capítulo dedicado a Elizette no qual eu abri meu coração, minha alma pra declarar o quanto ela é importante pra mim e entre as cento e tantas razões pelas quais eu sou apaixonado pela Elizette a última diz assim: “Como se fosse pouco todos esses motivos porque eu te amo, tu amamentaste os meus filhos rebeldes, incompreensivos com o leite sagrado do teu amor”, isso é legal demais! Vai ser poeta assim lá... Os meus filhos ficaram embasbacados, os meus filhos homens, as mulheres não opinaram, os dois filhos homens ficaram “Velho, tu tens uma coragem, isso aí, isso é hombridade além de muita humildade”, é o preito que eu rendo a mulher na pessoa da minha mulher atual, da Elizette Cordeiro Viera Gonçalves com a qual eu tenho uma afinidade total, integral, mas eu estou saindo um pouco da linha da tua, do teu raciocínio...
P/1 – Não, não sai da linha, a linha é a mesma, é a sua vida.
R -
(risos) É a minha vida. De modo que no começo eu tinha atividade rotineira no quartel participava de concursos hípicos sempre mediocremente nunca me destaquei até pelas limitações físicas e no final da minha carreira no Exército eu tentei Engenharia, tentei fazer o curso de Engenharia Militar, eu me matriculei porque em função deste defeito eu fui julgado incapaz pro serviço do Exército, dez anos depois, porque realmente eu estava pagando um tributo terrível eu estava servindo de Don Pedrito num regimento de fronteira sem recurso nenhum, não tinha condição de fazer fisioterapia pra me recuperar pelo menos parcialmente e isso significa que eu vivia na contingência de ser despedido do Exército assim com uma mão na frente outra atrás.
P/1 – E pode despedir...
R – Claro, como eu tive direito a uma promoção e eu não fui prejudicado no sentido financeiro mas no sentido de realização de vida realmente foi um impacto, então eu ainda tentei, em última instância eu fui conversar com o Ministro da Guerra, fui pedir, naquele tempo chamava-se Ministro da Guerra não era Ministro do Exército e era o então Eurico Gaspar Dutra, General Eurico Gaspar Dutra. Cheguei pra Eurico, que era aquele nordestino atarracado, vocês lembram da figura dele ele foi presidente, o Eurico eu disse a ele: “General, eu estou sendo despedido do Exército porque o meu tornozelo não me permite mais continuar na atividade”, e era muito intensa a atividade eqüestre, depois disso o Exército passou por uma reformulação tecnológica e os regimentos de cavalaria a cavalo passaram a ser regimentos motorizados e mecanizados, então, o cavalo foi sendo paulatinamente substituído pela máquina, pelo carro de combate, pelos carros motorizados. E eu teria sobrevivido porque já então eu não teria tanto dispêndio de energia física, não me seria solicitada essa participação tão ativa. Mas o General compreendeu e me autorizou a matricular, a fazer o concurso, não entrei por generosidade, ele me deu oportunidade de disputar a vaga e eu consegui me matricular no curso de Engenharia do Exército, no qual curso, eu era Capitão, e sofri uma discriminação terrível junto com todos os outros oficiais de cavalaria porque nós tínhamos um professor que eu até dei um apelido jocoso porque ele tinha um vozeirão: “Ou, ou, au, ou” (imita a voz grossa do professor), então eu apelidei o cara de Cachorrão, ele ficou Cachorrão pro resto da vida, a minha vingança foi essa. Mas ele tinha uma má vontade gratuita e solene e sistemática com os oficias de cavalaria, os de cavalaria, vamos até admitir que os oficias de cavalaria não eram tão bons em Matemática, que era a matéria dele, era Geometria Descritiva não, Analítica, era mais profundo, esse professor cujo nome eu não me lembro (riso) mas o apelido era Cachorrão, ele discriminava os oficiais de cavalaria e dava
chance aos de Engenharia, de Artilharia que eram os predominantes, a tal ponto que pela primeira vez no Exército brasileiro houve uma reprovação em massa de oficiais num curso superior, que foram todos os oficiais de cavalaria da minha turma, menos eu porque eu pedi trancamento de matrícula antes que acontecesse. Então, eu saí com a mão na frente outra atrás, fiz dois anos de Engenharia jogados fora, não foram jogados fora porque eu abri os meus horizontes, consolidei um série de convicções minhas e portanto eu não dou por perda, nada do que eu fiz eu dou por mal empregado, graças a Deus, isso não me preocupa a consciência, puxa eu podia ter, não ter feito tal coisa, não é? De modo que foi mais uma etapa da minha vida, muito importante porque fui morar no Rio de Janeiro casado com dois filhos, não tinha dinheiro pra comprar livros porque ganhava mal, como ganho mal até hoje como Tenente-coronel do Exército Brasileiro, nós ganhamos mal, não em relação ao operário é claro, nós ganhamos mal em relação a nossa formação, a solidez da nossa formação.
P/1 – Mas esses anos de ditadura não melhoraram esses dados?
R – Absolutamente nada, nada. Não houve melhoria absolutamente nenhuma
P/1 – Mas é o que dizem, não é?
R – Dizem, eles não têm o que, inventam...
P/1 – Que os militares ficaram bem remunerados.
R – Pois é, isso é uma injustiça, uma inverdade. A verdade é a seguinte, nós somos comparados por exemplo com os juízes, deputados, senadores, o presidente da República, o nosso salário é ridículo, eu ganho hoje como Tenente-coronel 2.500 reais, quer dizer, é um salário que me permite ter um padrão de vida digno, eu consigo até viajar com esse salário que a minha mulher administra com sabedoria junto com o que ela recebe também como aposentada, pois bem, mas nós estamos a cinco anos com o salário congelado, as Forças Armadas estão desamparadas, abandonadas, porque isso faz parte da manobra geral de entregar a Amazônia ao capital estrangeiro, é o que estão tramando no Governo Federal.
P/1 – Mas a Transamazônica foi feita pelos militares, já começou a entregar...
R – Sim, a Transamazônica, mas não teve continuidade porque a Transamazônica tinha um sentido da posse da terra com tudo que ela tem, que ela significa de patrimônio material, de riqueza mineral, tudo isso, mas não teve continuidade, não é, e a verdade é que, o que é que se faz no Brasil hoje que tem algum objetivo? Tudo que se faz é pra salvar as aparências, então, você veja essa discussão ridícula em torno do salário mínimo, isso aí é humilhante pra um povo decente, e quando eu penso que nós não temos nem uma orquestra sinfônica infantil com a Venezuela tem, o que significa a Venezuela em termos de nação, diante dessa potência, 160 milhões de habitantes, a terceira potência militar, não sei o que, isso é ridículo, nós vivemos de ilusão, estamos nos iludindo, mas só se ilude quem quer, de modo que essa foi mais uma etapa da minha vida, eu fui obrigado a trancar a matrícula, tranquei a matrícula e logo em seguida pedi demissão do Exército. Iniciei minha atividade civil que eu desempenhei com a maior dignidade de 1962 até hoje, portanto trabalhei na Cesp durante 18 anos, eu já exerci as funções e os cargos compatíveis com a minha capacidade.
P/1 – Como civil?
R – Já como civil, e me especializei, saí do Exército imediatamente entrei pra Cesp.
P/1 – E era em 62?
R – Foi em 62. E a partir daí me especializei nisso a tal ponto que fiz carreira, foram 18 anos na Cesp, 5 anos na Itaipu binacional, onde eu atingi os 65 anos e me aposentei. Quando eu me aposentei, um ano antes de eu me aposentar eu fiz concurso pra tradutor público, porque eu tinha o meu título universitário da Argentina guardado na gaveta, então como eu não queria ficar à toa eu resolvi ser tradutor público, entrei num concurso que a 20 anos não se realizava, em São Paulo, porque os concursos pra tradutor são feitos em cada capital. Eu tirei primeiro lugar nesse concurso por motivos óbvios porque eu tenho um senhor curso, eu não sou improvisado, não é o turista que vai passar uma semana lá e volta falando castelhano não, eu tenho uma responsabilidade moral e universitária que eu tinha que justificar, e consegui justificar, fui tradutor público durante alguns anos, exerci a profissão em São Paulo e terminei esse estágio que eu fiz no sítio lá em Calcária do Alto onde eu tive o ensejo de escrever o meu primeiro livro, que era um sonho a muito tempo acalentado no coração, de escrever um livro.
P/1 – Agora, voltando um pouquinho, eu não sei a ordem disso aqui mas eu queria que o senhor falasse um pouco mais da história da Cesp, de Itaipu e do seu curso na Argentina que lhe permitiu ser tradutor posteriormente. Acho que pulamos, né, ficou bastante tempo pra trás?
R – É claro, é muito oportuna o seu retrocesso porque essa permanência na Argentina por dez anos não foi acidental.
P/1 – É, por que é que o senhor foi...
R – Quando a minha mulher engravidou do terceiro filho, que é a Suzana Gonçalves, no quinto mês de gravidez constatou-se que ela tinha o que eles chamam de hidronefrose, o rim dela tinha aumentado dez vezes o volume do rim e ele estava bloqueado, isso foi pra você ver como a medicina estava atrasada naquele tempo, 50 anos atrás. Pois bem, eu empenhei o salário de um mês pra uma consulta médica com o maior especialista da época cujo nome eu não me lembro graças a Deus, mas era a situação real, era um médico especialista em rim que fez apenas o diagnóstico: “Tua mulher está com uma hidronefrose precisa extrair o rim, só que na barriguinha dela tem um feto de cinco meses, então, é incompatível interromper este feto com essa operação, tem que esperar o termo da gravidez.” Eu fiquei desesperado porque você pode imaginar as condições, se eu não tinha dinheiro pra pagar uma consulta eu me empenhei, não me lembro exatamente o detalhe mais foi terrível, o cara me cobrou inclusive uma sonda que ele utilizou no exame que fez na minha mulher, cobrou à parte, uma sonda que foi rompida lá. Pois bem, eu fiquei desesperado e um médico militar que era lá do regimento de Pirassununga ele me aconselhou, disse: “Marius, você não tem escolha, você tem que arranjar um jeito de ir pros Estados Unidos ou pra Argentina”. A Argentina estava 50 anos na frente do Brasil em matéria de medicina dona Marina, pode crer.
P/1 – E era mais ou menos que época isso?
R – 1946, pois bem. Fui ao Ministro da Guerra, não eu não fui ao Ministro da Guerra, eu fui por conta própria, aí eu meti a cara como se diz vulgarmente, vendi o que eu tinha na minha casa na Pompéia, tem uns episódios interessantes na vida da gente eu vendi essa casa pra um padre, então, eu fiquei intrigado o resto da minha vida e até hoje eu estou, o que é que um padre queria com uma casa que ele comprou com tudo dentro, inclusive os talheres, ele fez questão de a casa como estava, foi vendido pra um padre, nunca fiquei sabendo, mas é só pra dar um toquezinho.
P/1 – Não ficou sabendo?
R – Não fiquei sabendo, mas também não é lícito fazer mal juízo do padre ele podia estar fazendo isso pra uma obra de caridade não é, pra alguma família necessitada. (riso) Mas de qualquer maneira eu fui pra Argentina com uma mala que era mala de cela. O oficial do Exército pra onde vai ele tem a mala onde ele guarda a cela do cavalo, aquilo é um bem, é um patrimônio, onde quer que ele vá ele leva a sua cela, o seu arreamento e aquilo já é uma instituição nossa. Mas acontece que eu nessa altura não tinha mais cavalo nem tinha mais cela aí então...
P/1 – E nem a mala?
R – A mala eu tinha, conservei a mala, mas dentro dessa mala eu botei o que? Meus livros, então o meu patrimônio eram os livros, que eu tinha conseguido muito escassos até aquela época mas o fato é que fui pra Buenos Aires, arranjei uma passagem de graça na Força Aérea Brasileira até Porto Alegre e a minha mulher com aquela dificuldade, passando mau, com o rim condenado, quer dizer, uma situação gravíssima. Em Porto Alegre eu me hospedei na casa de um companheiro meu que hoje é brigadeiro, tem a minha idade e é um grande militar da Aeronáutica, Brigadeiro do Ar, ele é o Tenente Brigadeiro Fortunato Câmara de Oliveira, emérito pintor consagrado nas Forças Armadas e comunista. Ele tem essa mancha...
P/1 – Das Forças Armadas?
R – É, ele é oficial das Forças Armadas.
P/1 – Comunista?
R – Pagou o tributo, foi preso, foi condenado, nunca provaram que ele tivesse tido uma atividade subversiva, ele era ideologicamente comunista, confesso, declarado, com a maior simplicidade, nunca renunciou a este pensamento. Pois bem, ele hoje foi reconduzido, ele foi preso, eu fui visitá-lo no regimento de artilharia...
P/1 – Torturado?
R – Não, torturado não porque nesse tempo não havia tortura, não é? Nem foi a Revolução que prendeu ele. O Exército Brasileiro, as Forças Armadas têm fobia contra o comunismo, é uma verdadeira fobia, então isso já passou a ser uma doença, e eu chamo de doença porque hoje não tem sentido você ter medo do comunismo porque ele não existe nem na sua fonte geradora que era a Rússia, pois bem. Minha mulher ontem ela estava vendo um catálogo de turismo ela está querendo visitar a Rússia, eu não sinto esse tipo de atração pela Rússia mas sempre é mais uma coisa pra conhecer. Mas o fato é que esse brigadeiro, nessa época ele era Capitão lá em Porto Alegre, estava servindo na ativa da Aeronáutica, eu fiquei hospedado na casa dele, eu, minha mulher, meus dois filhos e a minha mulher com aquele rim bombardeado. De lá de Porto Alegre fomos de avião até Montevidéu, de Montevidéu nós pegamos um barco que percorre o Rio da Prata, chegamos à Argentina, à Buenos Aires após uma noite de viagem, tudo são emoções, sensações que vão acrescentando a nossa experiência de vida porque cada experiência daquela é válida, você lembra até da maneira como o metal amarelo era polido, o navio impecável. Chegamos à Buenos Aires no auge de uma greve de motoristas de tal maneira que a gente não tinha condução para ir do cais do porto até o centro da cidade pra poder procurar uma pensão onde ficar. Até então eu estava solto no ar, eu fui por minha conta com meus vencimentos de Capitão, não é? Quis o destino, eu costumo dizer que Deus é meu cúmplice mas é muito pretensioso, então eu digo que é o destino, é o outro nome de Deus, não é, cá pra nós, que eu conseguisse trabalhar. O adido militar do Brasil junto ao governo argentino era um Coronel do qual eu passei a ter ódio, eu tive tanto ódio desse cara que adquiri uma úlcera no estômago graças a ele, ele cultivou carinhosamente aquela úlcera, úlcera da qual eu me livrei muitos anos depois mas sofri muito naquela época, eu estava com 33 anos nessa época, pois bem. Mas ele precisava de um auxiliar porque a função, pra não dizer missão fica muito importante, mas a função do adido militar o que é? é espionagem no sentido oficial da palavra, você tem um espião aqui dentro mas tem que permitir que o seu fique lá, então, nós temos um espião brasileiro lá como os argentinos têm um Coronel do adido militar aqui espionando as nossas coisas. Isso é uma hipocrisia universal institucional, isso já é uma segunda natureza, na diplomacia faz parte. Esse homem chamava-se Arthur da Costa e Silva, eu tive o desprazer de ser auxiliar do Arthur da Costa e Silva. Mas ele criou úlcera no meu estômago e alimentou essa úlcera não tanto pela burrice dele de que ele era notoriamente dotado mas pela desonestidade dele intelectual, sabe, e até ideológica que o Arthur da Costa e Silva, que o presidente da República, então este país, você endeusa as pessoas dá um nome a tudo, não é, é o Minhocão Arthur da Costa e Silva, é o Elevado Arthur, quer dizer, pelo amor de Deus, mas foi a minha mulher, estava condenada, ou perdia a criança ou perdia o rim ou perdia ambos, mas a minha sorte é que a Argentina era realmente progressista no campo médico. A minha mulher foi tratada até o término da gravidez, nasceu a criança em 18/3/47 como eu te falei, se chama hoje Suzana Gonçalves, mora em Rondônia, ela tem uma fazenda enorme em Rondônia e já fez mil coisas, foi atriz de televisão, de teatro, de cinema, por sinal, do meu modesto ponto de vista, muito mais bonita que a Suzana Vieira, talvez não tenha o talento da Suzana, a Suzana Vieira tem talento inegavelmente. Mas a verdade é que a Suzana Gonçalves nasceu em Buenos Aires nessa circunstância, ela terminou a gravidez nasceu nas melhores condições possíveis, ela começou a nascer de madrugada, eu fui pro hospital, pra maternidade, não me perguntaram de onde eu vinha, quanto eu ganhava, internaram minha mulher, a mulher fez os cálculos e disse: “Tantas horas o senhor venha conhecer a criança”, naquela altura a gente...
P/1 – Foi parto normal?
R – Foi normal. Pois bem, um hospital da prefeitura de lá, da época, chamava-se Hospital Duran, nunca me esqueço desse detalhe. Nasceu, durante algum tempo ela amamentou, que era recomendável, e ao término desse período que ela foi considerada apta a ser operada extraiu um rim, extraiu totalmente o rim com o maior êxito possível, eu não gastei um centavo, não me perguntaram nem quanto eu ganhava, eu estou te falando de medicina social, não é esta vergonha que nós temos aqui, pois bem. Ficamos lá, a minha mulher era muito capaz, muito competente, ela era secretária executiva, bilingüe, era professora de taquigrafia, ela criou um método de taquigrafia, adaptou um método inglês para o português e ela foi admitida na embaixada como secretária do adido comercial e o adido militar me admitiu como auxiliar dele. Então, nessas circunstâncias, nós passamos dez anos em Buenos Aires, nove anos e meio, certo, meus filhos dois que tinham ido pra lá cresceram, a Suzaninha cresceu, era uma gringa no seio da família porque nasceu lá, os meninos...
P/1 – O senhor tinha só o primeiro e a Suzana Vieira da televisão?
R – É, o meu filho Sérgio e a Sônia Maria que é a Suzana da televisão, pois bem. Ficamos lá dez anos e aí no fim dos quais dez anos eu fui contemplado com uma casa no clube militar daqui, do qual eu sou sócio remido, a mais de 60 anos eu sou sócio do clube.
P/1 – O senhor tinha uma casa no clube militar?
R – É, o clube militar tem uma carteira hipotecária, criou uma carteira hipotecária, eu fui sorteado, fui o primeiro oficial a ser sorteado pra receber uma casa financiado pela essa carteira hipotecária.
P/1 – Posso fazer uma interrupção?
R – Claro.
P/1 – O senhor volta um pouquinho conta como é que foi a sua vida em Buenos Aires, conta mais detalhes da sua convivência com a...
R – A nossa vida em Buenos Aires no decorrer desses dez anos, quase dez anos, aliás não foi totalmente passada em Buenos Aires porque um ano e meio nós passamos em Montevidéu porque a minha mulher foi transferida pelo Itamarati para a embaixada do Brasil em Montevidéu o que vale dizer que eu como era adjunto do adido militar não pude sair de Buenos Aires, então, nós ficamos separados, eu viajava todo fim de semana pra Montevidéu, o que significa 35 minutos de vôo porque é só atravessar o Rio da Prata. Mas aquilo de certa maneira contribuiu pra eu ter mais vontade de voltar pro Brasil porque eu sou muito apegado à família, então, passava uma semana eu fui morar numa casa de família e não me sentia feliz de maneira nenhuma mas eu estava num cargo muito importante que nessa altura eu fui guindado à condição de presidente da Comissão Brasileira de Indústria e Comércio pra fiscalizar a exportação de banana do Brasil para a Argentina, pra você ter uma idéia em 1947 e daí pra diante a Argentina consumia 1 milhão e 300 mil cachos de bananas por mês.
P/1 – Tudo era importado do Brasil?
R – Todas importadas do Brasil que era o mais cômodo e o mais barato. Essa importação que durante muito tempo foi feito atabalhoadamente passou a ser feita de forma sistemática através dessa comissão porque havia muita arbitrariedade no recebimento da banana até porque o brasileiro é relaxado, desonesto e aproveitava de várias recursos e truques pra enganar o comprador de banana argentino, e mandava por exemplo, um cacho de banana empalhado que era um cacho selecionado, daí dado o tamanho tinha que ser empalhado, o brasileiro o que é que fazia, fazia um palhão enorme e botava um feto de cacho de banana lá dentro, isto é coisa típica da colonização, da desonestidade entranhada no brasileiro. Então, o que é que faziam os argentinos com aquele facão bem afiado? chamavam o chefe da Comissão Brasileira que era eu dizia: “Coronel, ve a lo que manda.”, só fazia assim, vapt, lá no fundo daquele palhão tinha um feto de cacho de banana ridículo. Então, minha querida amiga, é doloroso você constatar que esta mentalidade existe no brasileiro, latente, quando ele tem oportunidade ele exerce essa desonestidade, esse tipo de...
P/1 – E o que é que acontecia nessa hora?
R - Simplesmente jogava no Rio da Prata.
P/1 – E o cara que exportou o que é que acontecia?
R – Não podia identificar porque era o produtor de banana do litoral santista, não tinha identificação, não tinha número, não tinha nada, a banana brasileira é exportada por exportadores, os caras de colarinho e gravata em Santos que tem lá as comissárias, são os exportadores, eles sim participavam disso, mas...
P/1 – Mas aí a sua função ela teve alguma... era fazer o que nessa época?
R – Era assinar o termo de... porque cada cacho de banana que entrasse na Argentina naquela época valia 20 dólares pro bananicultor, na verdade não era pro bananicultor era pro exportador de Santos de colarinho e gravata, vai ver quanto ganhava o produtor que está lá de pé no chão cheio de bicho, vai ver quanto ele ganhava por aquele cacho de banana, pois bem. Mas esse é um aspecto, havia milhares de outros, por exemplo, como é que eu fui guindado à essa condição de chefe da Comissão Especial argentino-brasileira de..., pois bem. Eu estava dormindo numa madrugada, bateram atabalhoada mesmo na minha janela, era um presidente da Associação Rural do Litoral Paulista, um japonês chamado, deixo eu ver se eu me lembro, a memória me trai muito, mas não importa, ele foi lá me convidar pra assumir a presidência, sabe quem era o presidente da Comissão Brasileira de Bananicultores, era um argentino cunhado do João Perón, chamado Juan Duarte, esse Juan Duarte, irmão da Eva Perón, era um salafrário de marca maior que não tomava conhecimento do bananicultor, chegava lá ele nem tomava, ele só recebia 2 dólares daqueles 20, 2 dólares por cacho de banana brasileira entrada no comércio argentino, quer dizer, milionário, pois bem, esse cara um dia amanheceu morto, um tiro na nuca, então foi aquele troço, aquela coisa louca, tinha inimigos, não é, essa canalia toda tem inimigos, a justiça às vezes acontece. Pois bem, esse cara amanheceu morto e foi aquele trauma, quem vai dirigir? Então, ninguém melhor que um Coronel brasileiro, que é um cara imparcial, supostamente honesto, até provar o contrário, é só dá oportunidade. Bom eu vou pegar, até porque, Marina, o salário era igual ao do presidente da República! Eu ganhava 165 dólares pra ser adjunto do adido militar como Coronel lá, 165 dólares. Costa e Silva ganhava 2.050 dólares, eu ganhava 165 dólares porque foi por favor, por generosidade que me deixaram ficar naquele galho já que a minha mulher era tão importante como secretária do adido comercial, pois bem. O salário era 10 mil dólares, 10 mil pesos argentinos, era quanto ganhava o Perón naquela época.
P/1 – Esse salário era pra fazer o que mesmo?
R – Pra administrar a tal companhia a tal...
P/1 – Mas aqui no Brasil?
R – Não, lá. Pra agüentar aquela barra toda. Pra dirigir o escritório, não é, foi um convênio internacional, foi um acordo Brasil-Argentina assinado pelos dois governos, ah, a exportação de banana tem que se condicionar 20 ou 30 itens seguintes: cacho de banana tem que ter um mínimo de tantas pencas e não sei o que não sei o que, e os caras faziam isso que eu te falei, matava a gente de vergonha e tiravam a autoridade moral, como é que eu ia. Outra coisa, daqui de Santos até Buenos Aires eram três dias e três noites de navio, a banana não pode ser empilhada no porão do navio a menos que seja bem ventilado porque a banana ela não pode ser congelada, por isso é que dificulta, o Brasil não pode exportar banana pra Alemanha por exemplo, eles têm outras fontes aí. Mas, enfiava em qualquer navio, o negócio era mandar, chegava lá a banana deteriorada no fundo do navio é de um fedor tão intolerável que quase mata o sujeito, você não imagina o trabalho que dava pra tirar a banana apodrecida no porão do navio que os caras mandavam de qualquer jeito, essa frota brasileira caindo aos pedaços, eram raríssimos os navios bem dotados de ventilação que permitissem chegar lá, chegou muita coisa bonita lá mas não sei como que está sendo feito hoje. Mas era isso, então eu era chamado pra poder dar o testemunha então: “Olha o que está acontecendo.” Esse navio, muitos navios chegaram em condições ótimas, então, a banana era descarregada, era consumida, distribuída pelo interior etc, mas havia essas limitações, eu tinha que, e também manter uma correspondência aqui exigindo, não é, vim a São Paulo pra reunião com esse pessoal, principalmente os exportadores que é uma elite, o produtor é o de pé no chão, era o que menos recebia. Então, nesse país tem isso, os caras enriquecem a custa da miséria dos outros, então, isso é uma injustiça nacional, institucional, arraigada na nossa mentalidade, nós temos que ter uma elite que manda. Então, essa foi a dolorosa experiência que eu tive. De modo que quando chegou num momento que a solidão da família, minha mulher e os meus filhos em Montevidéu durante um ano e meio, aí eu terminei a minha faculdade lá em Buenos Aires.
P/1 – Como é que era o nome da faculdade?
R – Faculdade de Ciências Econômica, eu sou formado pela Faculdade de Ciências Econômicas de Buenos Aires no curso de Tradutor Público que lá existe oficialmente, no Brasil nós não temos curso de Tradutor Público, o tradutor público aqui é improvisado, é juramentado porque a junta comercial de São Paulo por exemplo, trabalhei vários anos, inclusive fui presidente da Associação dos Tradutores Públicos do Estado de São Paulo, e quem fixa os valores do trabalho de tradução é a junta comercial, não é um critério objetivo, o critério é arbitrário, a única coisa que eu ganhei dessa experiência de tradutor foi a amizade de uma senhora que trabalhava na junta comercial da qual eu me tornei, é minha irmã, é uma coisa maravilhosa a gente troca correspondência com a maior alegria, com a maior afinidade, mas foi isso. Aí, a Argentina estava num período político muito difícil e o Perón proibiu a, porque a, os adversários do Perón se fixaram em Montevidéu pra fazer fusquinha e hostilizar o governo argentino de lá, do outro lado do Rio da Prata, o que vale dizer, aquele avião que eu pegava que durava 35 minutos pra chegar em Montevidéu eles foram cortando, cortando, porque não autorizavam ninguém a viajar, por que é que eu viajava? porque eu era diplomata, então eu cansei de viajar nesse avião sozinho, o avião eu não me lembro a capacidade que tinha nessa época 50, 60 passageiros, mas eu viajava sozinho no avião enquanto eles puderam manter, chegou um momento que não tinha mais condição nem de manter, foi a falência o transporte aéreo. Mas, isso consolidou em mim a vontade de voltar, e outra coisa, essa altura quando o meu filho Sérgio atingiu 12 anos lá em Buenos Aires, isso vale dizer que quando eu cheguei lá ele tinha seis, seis anos depois, eu me preocupei, começou a dar problema no Colégio Militar porque eu mandei pro Brasil ele sozinho, não tinha os pais no Rio, meu pai separado da minha mãe, então, alternava, hora ia a casa do meu pai hora da minha mãe, completamente solto no ar. Chegou ao ponto de ser desligado do Colégio Militar por uma falha, acho que ele, constou que ele roubou uma máquina fotográfica de um companheiro, se apropriou, sei lá, é um negócio que eu nunca conheci em detalhe, foi desligado, da noite pro dia, eu fiquei desesperado lá em Buenos Aires, você pode imaginar saber que um filho teu foi desligado do colégio, que roubou, então, essa experiência foi amarga, mas coincidentemente houve aquela circunstância favorável da outorga do sorteio da casa que eu pude comprar. Meu pai tinha escolhido a casa na Ilha do Governador, então foi mais uma etapa da minha vida que eu acho que é digna de ser mencionada porque foi edificante, eu criei uma escola primária na Ilha do Governador, escola essa que durou alguns anos enquanto permitiu a saúde da minha mulher. Nessa altura a minha mulher com um rim só, que ela tinha extraído o outro lá no Buenos Aires, um rim só, ela teve o primeiro dos filhos pós-operatório. O menino nasceu com 1 quilo e 600, era um ratinho, hoje está com 43 anos é um senhor atleta, não chega a atleta porque não pratica.
P/1 – Esse foi o último filho?
R – Esse é o Sérvolo, é o meu penúltimo, é 43. E depois, e mais a minha mulher pagou um tributo terrível porque com um rim só, a gravidez pra ela já era de risco e tornou-se de mais risco e acumulada com a atividade na escola porque ela era dedicadíssima à escola, nos absorvia totalmente lá na Ilha, nessa altura eu já estava também na reserva, não tinha compromisso de trabalho. E nós chegamos a ponto de querer fechar a escola porque não tínhamos condições de pagar os professores porque não sabíamos cobrar mensalidade.
P/1 – Como era o nome da escola?
R – A escola chamava-se Monteiro Lobato. Eu sempre fui gamado no Monteiro Lobato através da obra dele e interessante que não só por causa da obra literária mas pelo fato de que ele foi o pioneiro da questão do petróleo no Brasil e quando nós chegamos à Argentina em 47 ele estava auto-exilado lá, nós fomos visitá-lo no apartamento dele que era próximo da casa onde eu, o apartamento que nós alugamos lá. Fui visitar o Monteiro Lobato, foi tão interessante porque ele estava vivendo não sei se direitos autorais porque ele era autor de muitos livros etc, ele estava com um padrão muito bom, o apartamento dele era legal, e engraçado quando eu falei que ia pra Argentina que iria visitar o Monteiro Lobato um amigo nosso que tratava da minha mulher o tempo dela solteira ainda, ele era médico, ele escreveu um livreco, eu digo livreco porque era realmente muito medíocre o livro dele: “Ah, mas você vai visitar o Lobato, ah pelo amor de Deus leva esse livro.”, fez uma dedicatória pro Monteiro Lobato, é bacana isso, o cara vibra com isso, eu acho até justo que o cara tenha essa oportunidade, espera pra ver. Eu, o livrinho do cara embaixo do braço fui lá, não tinha outro passaporte pra entrar naquele santuário do Monteiro Lobato, pois bem. Ele nos recebeu muito cordialmente etc, conversa vai conversa vem eu sem saber nem o que falar porque pra mim era um monumento de inteligência, de cultura, e lá pelas tantas quando eu tive uma brechinha eu falei: “Olha, eu tenho um amigo que é médico, ele pediu pra entregar ao senhor esse livro.”, ele pegou o livro com uma cara, mas uma cara, você não imagina. Bom, ele estava muito amargurado...
P/1 – Foi depois do Petróleo é Nosso?
R – Foi, ele foi inclusive condenado aqui, né, foi condenado à prisão, pois bem. O Lobato pegou e disse assim: “É engraçado, o pessoal, todo mundo pensa que o Monteiro Lobato é uma cesta de lixo, qualquer coisa que escreve manda pro Monteiro Lobato.”, essa foi a reação dele menina, acredite se quiser, faltou um pouco de sutileza não, porque eu falei que o cara era meu amigo, o livro não era meu está bem, mas que diabo, né? Todo mundo pensa, a verdade é essa, hoje eu estou entendendo isso, porque o que se produz de má literatura nesse país (riso) é uma vergonha, eu conheci...
P/1 – Mas foi só o seu contato com ele foi só esse?
R – Só esse, é...
P/1 – Como é que ele era como pessoa?
R – Foi muito, ele era formal, ele se manteve, ele era uma pessoa séria, muito séria, ele ria pouco, certo, e a convivência foi muito fugaz, foi muito rápida, eu não tive tempo de formar uma imagem do Monteiro Lobato, pra mim continua sendo aquele gênio que ele é porque o livro dele estão aí ninguém tem dúvida, não é, mas não deixa de ter sido uma glória para mim ter tido esse contato com ele, assim como foi glória pra mim quando eu fui à Espanha eu fiz questão de atravessar o Mediterrâneo e botar o pé na África, isso pra mim foi um dia de glória, eu viajei com a Elizette, falei: “Eu quero ir lá passar um dia lá na África, quero botar o meu pé na África.”, que eu sinto que as minhas raízes são africanas.
P/1 – Por que é que o senhor sente isso?
R – Porque eu sou espírita, acredito na reencarnação e que o amor que eu tenho pelo negro é tão profundo, é tão grande que eu tenho impressão que eu só posso ter sido negro, e provavelmente sofri na minha carne aquilo que os negros sofreram porque essa minha indignação por causa da injustiça que está latente aí na rua, não é? O Brasil é um país injusto, profundamente injusto, mas é isso.
P/1 – Mas aí, nós estávamos em Buenos Aires?
R – Buenos Aires.
P/1 – E eu queria saber ainda de Buenos Aires como é que era o convívio com Costa e Silva?
R – O convívio do Costa e Silva era conflitante porque eu sou um intelectual desde sempre, eu sempre fui profundamente apaixonado pela leitura e a minha cultura geral não nasceu por acaso, pode ter vindo através de reencarnação também admito, mas eu consolidei essa cultura através da leitura e o Costa e Silva mais do que ignorante ele era prepotente ao extremo e a coisa que eu mais odeio é a prepotência, a prepotência do Fernando Henrique Cardoso, essa arrogância ultrajante que ele tem, que ele alimenta, que ele ostenta, que ele agride o povo inteiro do Brasil, quanta coisa esse cara fez pra corroborar isso que eu estou falando, isso não é uma ilusão, esse cara é isso aí, pois bem, o Costa e Silva era também assim. Acontece que o Costa e Silva fazia resumo de informação, as informações todas secretas, a mala diplomática é um negócio sagrado, ela é hermeticamente fechada porque contém informações úteis sobre as condições estratégicas do país onde o cara está espionando, o argentino está fazendo a mesma coisa reciprocamente, então, não é novidade, eu tolero você porque você me tolera lá, pois bem. O Costa e Silva fazia resumo de informação pro Estado Maior do Exército, que é o órgão que centraliza as informações para atuar em função de, não é, então nós sabemos por exemplo, ficamos sabendo, uma parada militar que houve em Buenos Aires comemorando uma data nacional deles, o Costa e Silva foi assistir a parada a paisana, para que ninguém o reconhecesse na rua, com um toco de lápis e um caderninho pra tomar nota das novidades que aparecessem militarmente falando, a artilharia, os argentinos tinham comprado dos Estados Unidos um material bélico, quer dizer, canhões e tratores esse negócio todo que no Brasil não tinha, e a Argentina não era a melhor amiga do Estados Unidos, os Estados Unidos são muito matreiros nesse negócio, venderam esse material sucateado lá porque não era um material de última geração, era um material superado mas que nós não tínhamos aqui, o Costa e Silva anotou lá, pau, o canhão não sei o que, as características do canhão que eu não sou de artilharia eu não sei, mas o fato é o seguinte: essa é a função do adido militar. E ele então fazia informações, durante a parada comemorativa do nove de julho que é a data nacional deles, desfilaram tantos canhões de tal de tantos milímetros, tá tá tá, com tais e tais características, pois bem. Ele redigia aquilo com uma letra horrorosa de semi-analfabeto porque ele foi muito mal alfabetizado, eu tinha que além de adivinhar, mas como era matéria que eu conhecia não me era difícil, agora difícil era agüentar os erros de português do Costa e Silva, então, eu no começo, eu Major, nessa altura eu tinha sido promovido por merecimento lá no Rio de Janeiro então eu já era Major, eu chegava pra ele muito timidamente: “Coronel, por gentileza, aqui não seria melhor...”, e eu tinha habilidade inclusive pra colocar o pronome, dizia: “Mas está errado.”, porque erro de concordância é demais: “Coronel, não seria...”, dizia: “Não mexa numa vírgula do que eu escrevi aí.”
P/1 – Era pra ir com erro e tudo.
R - Então, esta é a prepotência a que eu me referi porque ignorante e burra porque a imagem dele no Estado Maior devia ser péssima que quem assinava era ele, ninguém sabia que tinha um Major, quer dizer eles sabiam é claro, mas que um Major estava lá preocupado em corrigir, muita coisa eu corrigi porque era demais, eu não agüentava, eu não tinha coragem de escrever a monstruosidade que o cara tinha redigido então, essa foi uma experiência marcante na minha vida, aí apareceu uma úlcera no meu estômago, eu cheguei a ser inter..., eu ia ser internado no Hospital Militar do Exército Argentino pra operar porque não havia nenhuma dúvida, 33 anos eu tinha, foi ali que surgiu a oportunidade de eu ir ao Rio pra comprar a tal casa que o clube militar, quer dizer, pra fechar o negócio, assinar os documentos etc, que o clube militar, através da carteira hipotecária havia comprado pra mim e o meu pai tinha escolhido tal, foi onde eu fundei a minha escola na Ilha do Governador. Pois bem, eu fui pro Rio sozinho, minha mulher e os filhos ficaram, cheguei ao Rio e não me lembrei mais que eu tinha úlcera. E eu tinha um amigo que era Major médico do Exército que trabalhava no hospital me conhecia desde menino porque eu quebro osso desde criança, a primeira fratura que eu tive foi nesse braço que eu tenho defeito até hoje eu tinha 8 anos de idade, eu cai de cima de um muro em cima de uma grade cheia de ponta, pois bem, quebrei o braço e colaram errado esse meu braço é colado errado, você vê que coisa, isso você vê como eu só posso dar graças a Deus eu consegui completar uma carreira com todos esses óbices. Esse médico me atendia desde de menino então, tornou-se um irmão e eu cheguei telefonei pra ele, ele disse: “Olha, vai ao hospital amanhã pra eu ver como é que está essa tua úlcera.”, eu já ia baixar o hospital lá em Buenos Aires. No dia seguinte eu fui lá menina, o cara me virou do avesso, não tinha nem sombra de úlcera, quer dizer havia...
P/1 – A úlcera se chamava Costa e Silva?
R – (risos) Costa e Silva. Foi gozado porque na mesma noite eu fui visitar o irmão dessa minha ex-namorada com a qual eu quase me casei e ele gostava muito de música popular brasileira, tinha um conjunto em casa aquele negócio todo então era pinga aquele negócio todo, não me lembro se era pinga, se era uísque, provavelmente pinga porque uísque era muito caro, o fato é que tomei uísque, comi feijoada, não senti nada, nada, eu sofri horrores lá em Buenos Aires em função da úlcera, é uma coisa espantosa isso?
P/1 – Mas não era só por causa do português ruim dele, o que mais ele fazia?
R – Ah, ele fazia coisa do seguinte teor, ele ia ao melhor hotel, que naquele tempo não se falava em cinco estrelas quatro estrelas mas o melhor hotel de 60 anos atrás na Argentina, cujo nome eu não me lembro Alviar Palace não sei o que, mas era um hotel internacional, o Costa e Silva ia lá fardado de Coronel do Exército Brasileiro vender uísque importado a 50 centavos a garrafa, ganhava dinheiro assim, vendendo uísque
num país que tinha proibido a importação de bebidas porque o Perón proibiu os supérfluos um Coronel do Exército brasileiro ia lá...
P/1 – Fardado.
R – Fardado, não tinha o pudor de pelo menos tirar a farda, ia lá e vendia. Então, isso que me massacrou, certo. Então, eu nunca me conformei com o Costa e Silva presidente da República.
P/1 – Como foi, militarmente falando, que foi escolhido esse militar?
R – Como é que é?
P/1 – Do seu ponto de vista de militar, considerando que esse personagem é assim, como que os militares o elegeram pra...
R – Bom, eu não entro no mérito disso porque não sei que critério foi, ele era um sujeito que tinha tudo pra fazer, para satisfazer vamos dizer, todos os objetivos da Revolução que se implantou no Brasil, que aliás eles hoje estão pugnando pra se chamar Contra-Revolução, a Revolução propriamente dita foi a Revolução do Jango, do João Goulart e então o movimento militar de 64, hoje o Exército brasileiro e as Forças Armadas reivindicam o nome de Contra-Revolução porque na verdade a Revolução já estava na rua que houve uma subversão, que isso inegavelmente houve não é, nas Forças Armadas, os sargentos, principalmente na marinha houve muito movimento e portanto acho procedente essa preocupação da Força Armada...
P/1 – A Marinha se esquerdizando o senhor quer dizer?
R – A Marinha também nos escalões mais inferiores da Marinha se estabeleceu uma indisciplina generalizada porque realmente o movimento subversivo estava dentro dos marinheiros, estava lá dentro, então, eu mesmo servindo lá no regimento de cavalaria, nos Dragões, a minha tropa, o meu pelotão se deslocou para o centro pra reprimir a Marinha só que quando nós chegamos lá eles já tinham evacuado então nós tomamos, por sinal estávamos, foi interessante, interessante, foi um detalhe, estavam velando o corpo de um almirante que tinha morrido e estava sendo velado na Ilha das Flores, numa ilha daquelas e tal, sumiu todo mundo, nós chegamos lá e encontramos o almirante morto em cima da mesa, é um detalhe interessante esse.
P/1 – Mas eles ficaram sabendo que vocês...
R – Claro, estava em plena Revolução então, eu não cheguei a entrar em combate contra os marinheiros mas nós fomos lá pra reprimir esse movimento subversivo dos marinheiros que se recolheram aos navios aquele negócio todo.
P/1 – Pois é, nos anos 60 o senhor estava ainda no Exército?
R – É, pois bem. Quando Tenente eu passei pela Revolução Comunista de 37, não de 35, a Revolução Integralista de 37, foram os movimentos que eu participei, 35 eu estava na Escola...
P/1 – A Intentona Comunista?
R – A Intentona Comunista eu estava no Colégio, na Escola Militar, eu era cadete do terceiro ano.
P/1 – No comício do Prestes lá, o senhor não estava...
R - Por exemplo, no comício do Prestes eu estava na Escola Militar, no terceiro ano. Mas, então, a coisa foi assim...
P/1 – E a Segunda Guerra?
R – A Segunda Guerra Mundial eu estava no Instituto Militar de Engenharia e nessa ocasião como o número de combatentes estava limitado às exigências norte-americanas, porque nós fomos no contexto, no bojo de uma unidade americana, uma divisão americana, então, o contingente brasileiro tinha que ter um número x de oficiais praças de tal maneira que eles fizeram uma coisa inédita, eles consultaram quem queria ir pra guerra, perguntar a militar se quer ir pra guerra é uma pergunta cretina por excelência.
P/1 – Quem perguntou...
R – O Exército, as autoridades, o ministro. Pra formar o corpo expedicionário brasileiro, Marina, o critério foi o seguinte, os soldados não foram consultados, pegaram o regimento tal, tantos do regimento tal, tantos do regimento tal, os oficiais foram consultados, quem quer ir, o comandante era o General, como é que chama? Sempre falha quando chega na...
P/1 – Mascarenhas?
R – Mascarenhas de Morais, ele era o chefe já designado pelo escalão superior. Os oficiais começaram então a ser consultados, o pessoal da Escola Técnica do Exército que é o atual Instituto Militar de Engenharia onde eu estava fazendo o curso de Engenharia, não foi consultado porque automaticamente estava dispensado de ir. Então, havia muita gente que queria ir mas muita gente não queria ir.
P/1 – E acabou indo?
R – Quem é que quer ir pra guerra, sabendo que pode ficar lá? É lógico, se pergunta se quero ir, o indecente não é o cara dizer que não quer, indecente é perguntar se ele quer se ele é militar, se a profissão dele é essa, então, tinha que ter um outro critério mas esse critério foi adotado, certo, então eu não fui pra guerra, não participei.
P/1 – Até de forma democrático porque afinal das contas não quer ir não vai mas tem outro que quer.
R – Bom, é a tal história muita gente que quis e se locupletou por exemplo, pra você ter
uma idéia eu tenho um companheiro que já morreu, tinha um companheiro que era da mesma arma, era um ano menos que eu, mas ele era Tenente como eu naquele tempo lá em Don Pedrito no regimento 14 de cavalaria que tinha ido comandando um pelotão de cavalaria, o que esse cara trouxe de porcelana italiana, de cristais italianos na bagagem dele, ele não roubou não meu amigo, pelo amor de Deus, esse cara...
P/1 – Não, eu sei, mas foram fazer compras.
R – Não, acontece o seguinte, o cara chegava numa cidade bombardeada, o pessoal passando fome, cheio de porcelana de coisa, queriam um prato de comida, trocava, ele fez muito bem, ninguém pode criticar isso, quer dizer, não precisava ter exagerado que eu fiquei horrorizado, eu não sei se eu teria tido coragem de fazer isso, pode até ser, a tentação não é, você não conhece nunca os seus limites. Então, o fato de querer ir ou não querer ir, por exemplo, eu fui acidentado no mesmo período que o pessoal estava embarcando pra guerra, tive uma acidente de equitação, fui pro hospital e junto comigo foi internado um Tenente que estava designado pra ir, o cara tinha um corpo enorme, o cara tinha sofrido um acidente de jipe na hora do embarque, na hora de embarcar e ele foi porque queria ir pra guerra, foi acidentado, arrebentou a coluna, então, ele estava lá, você não imagina o sofrimento desse cara, eu fui testemunha disso, é incrível, o ser humano é uma coisa impressionante, é um abismo, é uma coisa, o que um cara sonha, o que ele deseja, de repente o cara foi acidentado no Cais do Porto do Rio de Janeiro na hora de, o jipe dele se acidentou na hora de embarcar.
P/1 – Ele queria porque queria ir?
R – Ele foi porque queria ir, era um Tenente, era um grande oficial, teria sido um grande combatente.
P/1 – Mas não ficou inutilizado?
R – Não sei, eu não soube mais depois disso porque naquele período eu também estava com problema de saúde...
P/1 – Mas o senhor não acompanhou as questões da F.A.B. e da F.E.B. e também da F.A.B.? Da F.A.B.?
R – Que é que tem?
P/1 – Os militares da...
R – O pessoal da F.A.B. está muito próximo de mim porque no meu tempo a Escola da Aeronáutica não existia, os oficiais de Aeronáutica eram formados na Escola Militar do Realengo conjuntamente com as outras armas então havia as armas tradicionais, Infantaria, Artilharia, Cavalaria, Engenharia e Aviação. Aviação o pessoal era quartelado em Realengo junto conosco, fazia todos os exercícios comuns de combate, serviço em campanha etc, as aulas teóricas também assistiam juntos e iam pro campo dos Afonsos receber treinamento de aviação com aqueles aviões mais primitivos que você pode imaginar no campo dos Afonsos. E o meu sonho teria sido ir pra aviação, é um sonho frustrado porque eu já tinha óculos aos 12 anos, eu não tinha condição nenhuma nem de pleitear, de modo que eu às vezes eu comemorava com a minha avó ali em Marechal Hermes, pertinho do Realengo, do campo dos Afonsos, eu matava aula, eu não ia pro colégio pra ir lá piruar, piruar é pleitear, pedir pra voar junto com os Tenentes que estavam saindo sozinhos chamavam lache, lache é deixado em francês então, o cadete quando era, atingia um certo número de horas de vôo ele era lache, saia lache, ele sozinho no avião, como o avião tinha dois lugares a gente ia lá e pedia pra voar junto, então os caras cansavam de fazer molecagem pra acabar com aquela chateação de menino pedindo carona os caras faziam pirueta do arco da velha sabe?
P/1 – Pra ver se desistiam?
R – É, pra ver se o cara, é a gente saia de lá bombardeado mas era persistente naquela idéia né, eu teria sido, eu teria ido pra Aviação. Mas eu tive uma convivência com o pessoal da aviação, inclusive esse Brigadeiro do Ar que ainda está vivo com 84 anos, que é um grande pintor mas que é comunista, foi comunista a vida inteira e não relegou até hoje, ele continua coerente consigo mesmo, mas era comunista na medida em que ele quer que o Brasil seja dos brasileiros, então viva o comunismo, pô, entendeu? Então, ontem ainda recebi um jornal, O Farol, que é escrito por oficiais da reserva e da ativa contra a ocupação da Amazônia, contra esses golpes sub-reptícios, essa privatização canalha que eles estão fazendo aí, vendendo o Brasil a prestação, o que é a comunicação no Brasil hoje, está tudo na mão de português, espanhol, firmas estrangeiras, é tudo, e esta essa maravilha que a gente vê aí, não é, o padrão baixou muito. Mas o Fortunato, através do Fortunato eu tive uma convivência com o pessoal da Aeronáutica muito agradável.
P/1 - O senhor me desculpe o sobrenome dele, Fortunato?
R – Fortunato Câmara de Oliveira, ele fez 100 ações de guerra na Itália, 100 ações, bombardeou pontos estratégicos da Alemanha não sei quantas vezes, está na história, esse cara está queira ou não queira, modesto que ele é, é tão modesto que eu quero escrever o meu próximo livro para adolescentes pra suscitar, estimular o gosto pela aviação, aquilo que eu não pude realizar, então todo esse entusiasmo, toda essa vibração que eu tenho pela Aeronáutica, que eu acho uma coisa espantosa, cada vez que eu viajo de avião eu sinto uma ternura, uma admiração pelo aviador, pelo piloto por aqueles caras que estão ali com aquela responsabilidade monstruosa levando vidas e vidas, não é, ali, dependendo de um movimento, de um gesto, eu acho isso sublime, eu quero escrever um livro, eu já tenho um título, chama-se “O menino passarinho”. Então, o meu livro, se Deus quiser eu vou escrever, vai ser calcado na vida do Fortunato Câmara de Oliveira porque é muito simples, eu não tenho que inventar quase nada, basta eu fotografar literariamente a imagem deste Fortunato, inclusive aquele lado supostamente negativo que é o fato de ele ser marxista, ele não é comunista ele é marxista, ele é um teórico do marxismo, então, ele acha que o marxismo seria uma forma de tirar o povo brasileiro da miséria, ele acredita nisso e por isso ele tem que ser fuzilado, massacrado? não, tanto assim que ele foi reconhecido, ele foi dado como morto, Marina, existe isso no Exército brasileiro, nas Forças Armadas brasileiras, ele, Coronel, chegou a Coronel aos trancos e barrancos, preso foi condenado a três anos de prisão, cumpriu os três anos de prisão. Esse homem agora foi reconhecido.
P/1 – Ressuscitado.
R – Não, foi ressuscitado. A mulher dele recebia pensão de viúva.
P/1 – Mas como foi isso?
R – Fizeram essa tramóia, essa coisa horrorosa, fizeram, está lá. Hoje eu vi lá a carta do presidente da República e infelizmente era o tal desse canalha anterior, o canalha anterior que estava (riso) na...
P/1 – O Collor.
R – O Collor, mandou uma carta pra ele reconduzindo a sua condição, hoje ele é Tenente-brigadeiro que é o posto máximo da Aeronáutica, certo, e só não pagaram porque no Brasil é isso, é a penúria, não temos dinheiro para pagar os atrasados já que ele teria tido direito, já que foi reconduzido. Então, eu fui a casa do Fortunato fiz um esboço do livro, um início do livro e reuni os dois lá e “Ah, vamos pra uma pizzaria aí tomar um choppinho e tal”, aí eu comecei a explicar o meu livro, a mulher dele que é muito prática, ela foi professora da Universidade de Brasília, e eu falei do “Menino passarinho”, quer dizer, um negócio assim meio infantilóide, mas é pra dar uma conotação que é uma leitura para jovens, não é, “O menino passarinho” e tal, que era um menino que sonhava voar, que é o sonho que eu sempre tive e nunca realizei, eu só vôo pela TAM quando tenho dinheiro. Aí ela fala assim: “Oh Marius, não me leva a mal, mas esse menino aí está muito chatinho.”, porque eu dizia que o cara era muito estudioso e não sei o que, coisa que provavelmente ele não tenha sido mesmo, né, que era um menino muito corretinho e tal, que é pra justificar o cara ter chegado ao posto máximo da carreira da Aeronáutica, você não acha, eu tenho que ser coerente não é, eu vou desenhar um cara, as bases têm que ser sólida, o cara começou, ele era estudioso lá na Vila Militar, o pai dele era comandante, o pai dele era General e, eu acho que eu estou extrapolando o teu tempo.
P/1 - Então Seu Marius, retomando a entrevista depois deste pequeno intervalo, eu gostaria que o senhor falasse agora da sua vinda pra escola da Ilha do Governador, como é que foi tudo isso?
R – A fase subsequente a nossa permanência em Buenos Aires foi a da Ilha do Governador onde nós desenvolvemos durante algum tempo a atividade escolar. E foi muito rica de experiência essa nossa passagem pela Ilha porque predominava entre os alunos da minha escolinha filhos de oficiais da Aeronáutica posto que na Ilha do Governador existem unidades da Aeronáutica, e eu mantinha na minha escola uma tradição, um princípio de disciplina dentro do qual eu achava que tinha que se desenvolver a formação da criança, então tínhamos desde o jardim da infância até o ginásio, tanto é assim que lá eu tive uma experiência de formação de alunos do curso de candidatos a admissão ao ginásio muito rica, por exemplo, eu tive um aluno nessa ocasião que hoje é Secretário de Estado aqui em São Paulo.
P/1 – Pode dizer o nome?
R – Posso dizer o nome, Paulo Narciso da Rocha Pinto. Mas é interessante essa experiência porque com a disciplina que eu tinha, que talvez fosse até mais rígida do que mandaria o bom senso, por exemplo, uma prova do Paulo Narciso no curso de admissão ao ginásio eu dei um zero pra ele e escrevi assim “BURRO” com uma letra enorme em vermelho e foi muito interessante porque muitos anos depois vim reencontrar o Paulo Narciso aqui em São Paulo como Capitão da Força Pública que me convidou pra jantar em companhia da esposa e disse: “Filhos”, durante cujo jantar ele foi buscar nos arquivos dele essa prova, disse: “Meus filhos, vocês sabem por que é que eu cheguei aonde eu estou? Porque eu tive um professor que disse, que teve a coragem de dizer isso.” Então eu não sei até que ponto a pedagogia falhou porque a verdade é que ele é brilhante, ele é muito inteligente, foi oficial brilhante na Força Pública, hoje ele está reformado mas está exercendo cargo importante aí na... Outra experiência interessante que eu tive, no jardim da infância nós contratamos uma professora que usava um decote tão audacioso que começou a me incomodar porque realmente eu achava que aquilo era uma falta de respeito aos alunos. Então você veja que preocupação que eu tinha, quer dizer, aquela rigidez disciplinar minha, por exemplo, menino chegava com o sapatinho sujo eu dizia: “Por que está com o sapato sujo?”, “É, mamãe não engraxou o meu sapato.”, “Mas quem disse que a mamãe é que tem que engraxar? Amanhã você traz aqui a lata de graxa e vai engraxar aqui.” Então, eu implantei esse regime entre os meus alunos e foi bacana porque ninguém renegou aquele sistema, portanto, não tenho porque me arrepender de ter sido do jeito que eu fui, como não me arrependo de ter sido rígido na formação moral dos meus filhos. E acho que é um depoimento que eu tenho que dar é esse, eu não tenho motivo pra me envergonhar de nenhum do meus filhos perante a vida, perante a sociedade, perante a humanidade. Talvez eu tenha motivo de queixa deles perante mim porque eles não são tão amorosos como eu gostaria que eles fossem mas aí já está falando mais alto o meu egoísmo.
P/1 – Como seria essa educação rígida que o senhor deu à seus filhos?
R – A educação rígida é que eu exigia disciplina, organização, falar a verdade e etc, sei lá. Eles se queixam até hoje de que eu fui muito exigente, demais. Mas foi a educação que eu tive pra transmitir a eles porque foi a que eu recebi do meu pai e da qual eu não renego absolutamente nada.
P/1 – Mas aí também com aquela grande pitada da passagem pela Escola Militar, não é?
R – É, de certa maneira essa tendência foi acentuada durante a minha formação profissional.
P/1 – Como é que foi essa passagem pra uma atividade inteiramente nova que é uma escola? Como é que foi que vocês decidiram ter uma escola e conseguiram montar, porque uma coisa é querer outra coisa é conseguir.
R – É, essa idéia da escola já era preexistente a nossa volta ao Brasil, aliás nós tínhamos a intenção de abrir uma escola na fronteira do Rio Grande de Sul com a Argentina, porque nós também não vamos negar que nos integramos bastante a vida argentina, não é só pra ser coerente com quem tinha uma filha nascida lá, cá pra nós por acaso, porque se não tivéssemos ido pra lá ela não teria nascido lá. O fato é que essa idéia da escola já existia e conjuminou com a idéia da aquisição da casa própria, uma casa que por suas características se prestava a adaptação a uma escola, uma escola despretensiosa, primária, mas que exigiu uma certa preparação material para a qual a minha esposa estava habilitada, seja dito de passagem, porque ela trabalhou durante muitos anos no antigo Colégio aqui da Barra Funda de São Paulo, ela foi professora durante muitos anos e adquiriu portanto essa, vamos dizer, essa vocação, não só a experiência como consolidou, vamos dizer, a vocação pra trabalhar com alunos. E, eu de certa maneira entrei meio de gaiato, quer dizer, a minha participação foi mais de ordem material, eu entrei com a casa e ela entrou com as idéias, a montagem.
P/1 – E aí vocês foram morar aonde?
R – Nós morávamos na própria escola, porque a casa tinha dois andares, nós morávamos na parte de cima e embaixo nós adaptamos de uma forma até bem adequada porque como tinha menino de jardim da infância nós fomos procurar vaso sanitário pequenininho, tinha um banheirinho, uma miniatura de banheiro. E foi muito bacana essa experiência.
P/1 – E seus filhos tinham que idade mais ou menos?
R – Bom, nessa altura o meu filho Sérgio estaria com 17 anos, aliás, um parênteses, me criou um problema porque começou a namorar não as professoras mas as mães dos alunos e isso, aluno do Colégio Militar, fardadinho, não sei o que, tudo não é, todo pimpão, começou a criar problema lá na escola, problema até de ordem disciplinar porque o chato é que havia quem desse bola, não é, e ele sendo uma criança, ele tinha 17 anos e as mãezinhas dos menininhos davam bola pra ele, e não é, o cara não nasceu de toca nem nada, não dormia de toca. Mas, a experiência mais gratificante que nós tivemos nessa escola foi quando nós sentimos que não tínhamos condições de melhorar o salário dos professores por cuja razão não tínhamos como fazer uma seleção, então, o nível dos nossos professores de certa forma foi caindo na medida em que a gente tinha limitação pra pagar o salário. Nessa altura nós resolvemos fechar a escola e houve um movimento espontâneo da parte dos pais e mães dos alunos no sentido de aumentar a mensalidade. Então, isso que hoje se combate e que se critica, não é, que é o aumento arbitrário das taxas escolares deu-se ao contrário, de tal maneiro que O Globo publicou uma nota, que eu tenho guardada em algum lugar no meu arquivo, exaltando isso. Houve uma reunião provocada pelos pais dos alunos deliberadamente para aumentar as mensalidades escolares dos alunos, não deixa de ser um padrão de glória pra nós porque nós antes queríamos fechar do que aumentar a mensalidade, é uma preocupação talvez até fruto da inexperiência porque a gente também tem que ser objetivo, se você dá alguma coisa você tem o direito de estabelecer um valor pra aquela coisa, mas nós não tínhamos coragem, faltava a preparação, vamos dizer, faltava o mínimo de espírito comercial da nossa parte pra poder por em prática uma política de maiores mensalidades.
P/1 – Só o senhor poderia repetir o nome da escola?
R – Escola Monteiro Lobato.
P/1 – Agora, como é que era a convivência dos seus filhos com as crianças da escola?
R – Bom, a convivência, você lembrou um ponto muito interessante porque nessa época a Sandrinha tinha nascido, viu Sandrão, a Sandrinha tinha nascido e era o bibelô da, vivia no colo de todo mundo, das professoras porque ela era menor do que o limite mínimo para o jardim da infância, não é. Então, ela praticamente foi pajeada, já que a minha mulher também tinha que dar aulas, e foi pajeada pelos alunos mais velhos, pelas mães dos alunos etc, quer dizer, se por um lado o Sérgio criava problema namorando as mães a Sandrinha atraia o lado carinhoso das outras mães. Nessa altura por exemplo, a Sônia, que é a atual Suzana Vieira, a Sônia estava fazendo o ginásio lá na Ilha do Governador...
P/1 – Outra escola?
R – Em outra escola. Num ginásio mesmo porque só tinha o primário. E, ela freqüentava o ginásio lá e freqüentava o Teatro Municipal aonde ela se formou bailarina, aliás ela se formou em São Paulo mas começou no Teatro Municipal do Rio e depois completou o curso aqui no Teatro Municipal de São Paulo de tal maneira que a Sônia iniciou a carreira artística, que desenvolveu até hoje, mas começou como bailarina, ela é bailarina formada, depois é que ela foi atraída pra novela. E foi bacana porque lá em Buenos Aires, ou melhor, em Montevidéu, no teatro oficial de lá, o equivalente ao Teatro Municipal daqui chama-se, lá chama-se Sodrei, é uma sigla que significa Sociedade não sei o que, Orquestral etc, Sodrei, e eles levaram a peça “O Pedro e o Lobo” e ela fez um papel de gato na peça do Pedro e o Lobo, mas foi uma revelação, ela era um tiquinho de gente, ela tinha seis anos, por aí, mas foi uma graça. Agora, é engraçado, na retrospectiva do tempo a gente percebe que ela já estava revelando a vocação artística pra representação nessa ocasião, sem nenhuma preparação, foi meio improvisado até, deram o papel ela desempenhou. E, na Ilha do Governador eu me lembro que no ginásio aonde ela completou o curso numa festa de fim de ano ela declamou uma poesia lá, dramática por excelência e eu me emocionei demais, chorei feito um bezerro, quer dizer, no fundo é aquela vaidade, né: “É minha filha, olha lá, bacana e tal.” Fiquei feliz da vida, quem diria que depois, anos depois ela ia se consagrar, porque ela realmente é consagrada, não é? Hoje eu recebi a visita de um veterinário lá de Pirassununga que eu conheci nesta palestra que nós demos, que ele veio me trazer os livros dele, eu estou encantado, eu estou louco pra ler os livros que ele... ele disse: “Você não se incomoda eu gostaria de trocar os meus dois livros pelos seus dois livros.” Um eu já tinha dado pra ele, “Eu queria o outro livro, aquele que você falou, que você exaltou o amor que você tem pela Elizette.” (riso) “É, mas com a maior tranqüilidade, vou te dar.” Então, ele veio a minha casa e engraçado que ele se penitenciou comigo de não conhecer a Suzana Vieira, veja você que coisa interessante, ele tem horror a televisão, ele tem uma ojeriza a televisão que eu não sei qual é o fundamento mas de qualquer modo ele não assiste, nem pra nada e muito menos novela, porque novela precisa ter um gosto especial, uma tolerância especial, como eu tenho que ter tolerância às vezes pra ver certas coisas, as novelas de que a Suzana Vieira participa eu assisto a contragosto porque a filosofia que orienta a novela da TV Globo é podre, é sórdida, é deliqüescente, é destruidora, não é? O mínimo que destrói é o idioma português, porque o que esses caras cometem de erros de português não está escrito em lugar nenhum, certo?
P/1 – Aí ela estava fazendo o ginásio enquanto o Senhor tinha o escola e a sua pequena ficava no colo de todo mundo...
R – A pequenininha é, então isso significa o seguinte, como a gente lá tinha que assobiar e tocar flauta não tinha tempo pra nada, não tinha tempo pra cuidar de criança então a gente deu graças a Deus de que alguém, então esse foi um outro aspecto dessa experiência de vida que é muito edificante porque o pessoal colaborava, todo mundo colaborava, aquilo era um congrassamento geral. E lá eu sofri um acidente, um dia nós demos uma festa de fim de ano, então a gente vendia guaraná, então eu fui lavar as garrafas de guaraná que estava cheia de poeira e uma garrafa bateu assim e quebrou e caiu o caco no peito do meu pé, justamente o pé doente. Bom, seccionou todos os tendões, quer dizer, esse pé estava realmente condenado, quer dizer, pelo menos visado ele estava. Pois olha, eu fui recuperado no pronto socorro da Ilha do Governador que naquela altura devia ser precaríssimo, os caras conseguiram juntar um por um dos tendões, amarrar e eu estou até hoje, quer dizer, não piorou a minha função do pé por causa disso. Mas foi também um evento.
P/1 – Qual era o seu desempenho nessa escola?
R – Eu era o diretor. Mas sei lá, não havia uma discriminação funcional. Eu era professor do curso de admissão ao ginásio e constava oficialmente, no registro da Prefeitura, como diretor do colégio, da escola. E a minha mulher era secretária, fazia parte de secretaria que ela tinha uma experiência enorme adquirida como eu falei no Colégio, tradicional Colégio da dona Blandina Rato, mulher de muito valor, uma gaúcha que no período do Getúlio essa mulher foi massacrada pela imprensa, pela sociedade, os granfinos tiraram, porque era um colégio de muito bom padrão ali na Barra Funda. E todo mundo tirou os filhos do colégio porque a dona Blandina Rato era gaúcha, a mulher radicada em São Paulo, pô, a não sei quantos anos, mas era gaúcha, então por causa disso, por causa do Getúlio, tiraram os filhos do colégio. E nessa escola foi que a minha mulher, a minha então esposa aprendeu tudo que ela sabia a respeito de administração escolar, de ensino mesmo porque ela lecionava, ela era pau para toda obra, lecionava em vários, vários... Aliás é interessantes que as três irmãs dela e mais duas irmãs exerceram cargos no Colégio, de modo que as três tiveram uma formação muito semelhante. Mas, a nossa experiência de vida era essa, nó não tínhamos lazer, até porque não havia dinheiro para isso, não sobrava dinheiro, nossa vida era muito modesta, muito sóbria e com um agravante, que a Sandrinha, como os meus dois últimos filhos já nasceram no período pós ablação do rim eles nasceram muito, nasceram prematuros com um quilo e 600 coisa assim e de oito meses ambos, hoje você precisa ver os caras, a Sandra é uma toquinha assim, uma gracinha, e o Sérvolo que é empresário, é publicitário etc, o cara está vendendo saúde graças a Deus. Mas, foi uma vida assim muito sóbria, muito sacrificada. Quando chegou o momento que não tinha mais condição de sobreviver nós realmente fechamos o colégio para um grande manifestação de tristeza por parte dos pais de alunos e nessa época eu consegui, me ofereceu um emprego em Brasília, pra ser chefe de departamento pessoal de uma empresa de engenharia que era de um Coronel do Exército, ele nem me conhecia nem eu a ele, aqui entre nós, não era flor que se cheirasse mas nessa altura eu não conhecia o lado podre do cara, é assim como Costa e Silva, lá no caso do Costa e Silva eu nem tinha escolha não é, porque lá eu estava dando graças a Deus de arranjar um cabide pra eu me pendurar, mas eu procurei justificar, fiz com muita dignidade, e lá tive duas promoções fui a Tenente-coronel lá em Buenos Aires nesse período, o Costa e Silva durou dois anos só, quase que acabou com a minha vida mas só durou dois anos porque depois se seguiram outros oficiais e algum brilhante, um deles até General Milton de Freitas Almeida foi embaixador do Brasil porque quando houve uma crise, essa crise do Juan Duarte na política argentina e que o pessoal, primeiro fuzilaram o Juan Duarte, segundo nessa noite em que foi fuzilado o Juan Duarte
que depois eles procuram convencer a opinião pública de que tinha sido um suicídio e é muito difícil de aceitar a hipótese de um suicídio com um tiro na nuca. Nessa noite o povo do partido Peronista saiu a rua pra incendiar o que houvesse, então, sabe o que é que eles incendiaram? A biblioteca do jóquei clube da Argentina que tinha, nessa altura tinha mais de três mil volumes, alguns raríssimos, eles foram lá e tocaram fogo naquilo, eles destruíram um patrimônio que é impossível reconstruir, mas tudo manifestação do partido comunista, quer dizer, o partido justicialista, não é, que deu seqüência a história Argentina na pessoa desse Menem que é um, cá pra nós, seqüência com excrescência rimam e ele é uma excrescência, pois bem. Nesse contexto todo foi que eu fui
chamado pra dirigir a comissão com aquele salário monstruoso e tal, quer dizer, aquilo até foi um alívio, eu nunca tinha visto tanto dinheiro na minha vida, durou pouco porque eu exerci a função talvez no período de um ano só, mas o fato é que nesse ínterim aconteceram coisas assim incríveis, por exemplo, a morte da Maria Eva Duarte de Perón foi um evento fora de série no contexto histórico de um país porque a mulher tinha uma origem altamente suspeita ela era vedete, era de vida airada etc, mas tinha muito mais personalidade do que o próprio presidente, consta até que nos momentos de crise a Maria Eva tirou o Perón de baixo da cama, quer dizer, houve um exagero nessa versão mas de qualquer modo a mulher tinha topete. E essa mulher, que morreu de câncer, era um monumento de ser humano porque o governo brasileiro, subserviente como de costume, resolveu condecorar a Maria Eva Duarte de Perón, eles não fizeram nada pra agradar o Brasil nem atender conveniências do Brasil, mas tinha que dar um... Essa relação hipócrita, diplomática, não é, pra salvar as aparências. Pois bem, teria sentido agora, Mercosul, aproximação, confraternização, conveniências comerciais, mas naquele tempo? O nosso embaixador lá chamava-se João Batista Luzardo, João Batista Luzardo foi declarado persona não grata ao governo argentino porque ele tinha os rebanhos de ovelha dele na fronteira do Rio Grande quando o preço da lã estava mais caro na Argentina ele transportava todas as ovelhas pro lado de cá e ia tosar lá e vender lá e faturar lá. Esse cara era um comerciante emérito, na história do Brasil diplomática fala-se do João Batista Luzardo foi um grande embaixador, ele realmente propiciou a aproximação argentino-brasileira de uma forma muito especial mas nunca se preocupou muito com a conveniência do Brasil, tanto assim que houve crise na exportação de trigo da Argentina para o Brasil em que ele sempre cedia às conveniências dos argentinos, quer dizer, o cara era verdadeiramente um embaixador da Argentina não do Brasil. Pois bem, o, perdi o fio da meada.
P/2 – O senhor estava falando de Brasília, do emprego que o senhor conseguiu em Brasília, isso o senhor passou pra cá.
P/1 – Da escola
R – Tá bom. Aí o emprego que eu consegui lá em Brasília me levou a viajar para lá e assumi meu cargo lá e exerci durante um ano. Mas aí eu comecei a conhecer o caráter desse meu colega, que era o presidente da empresa e hoje está vivo, ele é General, está vivo, mas então, isso somado a agravante da solidão que eu tinha, a saudade que eu tinha dos meus filhos e tudo, eles ficaram...
P/1 – Em Brasília também não foram?
R – Não foram. Que eu acabei renunciando àquele emprego e voltando. Mas foi lá em Brasília que eu consegui um emprego na Cesp, antes de voltar pra, nessa altura a minha família já tinha vindo toda pra São Paulo e eu arranjei um emprego na Cesp que estava então nascendo, aliás era Celusa antes da Cesp era Celusa, Centrais Elétricas de Urubupungá, que depois virou Centrais Elétricas de São Paulo que construiu várias usinas hidroelétricas e eu tenho a honra de ter participado, colaborado, trabalhado como um louco, eu trabalhei durante cinco anos num armazém na Barra Funda nas piores condições de higiene e de conforto no contexto como chefe do material da Cesp. Então, o equipamento, inclusive material pesado, as turbinas, postes, aquelas coisas volumosas passaram pela minha mão. Isso é um padrão de glória para mim, aquilo é trabalho que eu executei, então, eu quando olho pra traz eu não me sinto inútil diante do meu país, eu não fui um monumento de pessoa mas eu cumpri com muita dignidade durante cinco anos lá, não tinha nem mictório, inclusive era um negócio tão dantesco essa Barra Funda, esse depósito na Sorocabana, que o pessoal usava os vagões, o intervalo entre dois vagões pra urinar, pras necessidades fisiológicas, e houve mais de um acidente de gente que foi espremida naquelas manobras imprevistas que aconteciam de repente, o cara esmagado entre um vagão e outro, uma coisa impressionante, trabalhei cinco anos lá. Acabei como assessor do diretor jurídico da Itaipu. Eu saí da Cesp e fui pra Itaipu como assessor do diretor jurídico e lá eu tinha um status evidentemente melhor nunca passei mais, ao contrário, era um padrão elevadíssimo lá, que estava no nível dos engenheiros. Mas foi uma experiência de vida que me consolidou muito.
P/1 – Nessa altura a sua família morava em São Paulo.
R – Morava em São Paulo.
P/1 – Sua esposa viva.
R – É, minha esposa viva. E foi justamente lá pelas tantas, e a ordem cronológica é um pouco difícil de reproduzir pra mim, mas lá pelas tantas manifestou-se um tumor cancerígeno no cérebro da minha esposa, ela faleceu miseravelmente, eu digo miseravelmente porque a medicina nesse ponto ela é muito fria, então, o que fizeram pra pesquisar esse tumor, a minha mulher era secretária do presidente da Fundação Getúlio Vargas, uma mulher eficientíssima, era respeitabilíssima, de repente começou a apresentar sintomas desse problema, desse tumor no cérebro que a médio prazo acabou por matá-la. Mas a pesquisa que fizeram foi um sofrimento bárbaro, o que fizeram com ela, vira cobaia, não é, nessa altura porque a ciência realmente ela não pode ser muito emocional e ela foi massacrada, não é? Até constatou “Bom, é isso mas não pode remover, então tem que morrer disso”, ponto final, então é questão de até onde vai a resistência dela. Então, houve aquele sofrimento monstruoso, aquele período em que vai perdendo a razão, vai perdendo a memória, a razão etc, e morre miseravelmente, passa durante algum período viver vegetativamente, não é, porque com aqueles aparelhos de respiração artificial. Olha, vou te contar, aquilo é uma verdadeira é, como é que chama isso? é um masoquismo, é uma forma de, não é, o cara se sujeitar àquilo. E, da parte dos médicos, eles estão cumprindo a missão deles gloriosamente, tudo bem é respeitável, claro que ela serviu de cobaia pra que no futuro outras pessoas até venham a sofrer menos, vamos encarar assim, não é, como filosofia de vida aceitável. Mas, um ano depois, durante o período de viuvez que durou um ano exatamente, eu resolvi voltar pra faculdade porque, interessante que eu fui chefe do departamento jurídico sem ser advogado, então, tinha vários advogados subordinados meus que no fundo não se conformavam de ser subordinados a um cara leigo.
P/1 – Nós estamos em que ano mais ou menos aí?
R – Isso foi na Cesp, foi no ano de 40, de 60 é, de 73.
P/1 – Que o Senhor ficou viúvo?
R – Que eu fiquei viúvo. Um ano depois, 74, eu tinha me matriculado na FMU, resolvi ser advogado, eu preciso justificar perante os meus companheiros, eu tenho um senso ético muito aprimorado, talvez exagerado, porque eu não tinha que dar satisfação a ninguém, eu fui colocado lá não porque eu fosse Coronel, é porque eu era competente pra ser chefe daquele departamento, como eu fui chefe de departamento de relações públicas, como foi chefe de departamento de materiais na própria Cesp no decurso dos meus 15 ou 16 anos que eu trabalhei lá.
P/1 – Aí nessa altura os filhos já tinham tudo saído de casa? Já estavam casado?
R – Não, meio lá meio cá, nessa altura realmente alguns tinham, o mais velho nunca teve convivência nenhuma com a família, na verdade o último contato do Sérgio com a família foi lá na Ilha do Governador porque depois ele ficou interno no Colégio Militar, completou o curso, foi pra Academia Militar, Agulhas Negras, e, terminou a vida dele foi servir em Pirassununga do mesmo jeito que eu 30 anos antes e...
P/1 – E os outros?
R - ...a Suzana, a Suzana Vieira nessa altura se casou prematuramente com um sujeito chamado Régis Cardoso que era diretor de TV, da então TV Record se eu não me engano, uma dessas TVs, uma dessas pioneiras.
P/1 – Por que prematuramente o senhor diz?
R – Prematuro porque ela tinha 17 anos e era imatura (riso), então, eu achei que foi prematuro mas não exerci nenhuma autoridade no sentido de, ela chegou e me comunicou que iria se casar com o Régis Cardoso que depois se revelou um fracasso, o casamento dela foi um fracasso na origem, na fonte, por exemplo, a noite de núpcias dela durou um mês porque não havia meio de o cara se revelar como um companheiro masculino, certo, teve isso. Hoje nós nos damos com ele, engraçado que ele está casado com uma moça que chama Sandra que é um primor de mulher, uma mulher maravilhosa, bonita pra cachorro e ele está um bagaço, ainda agora eu vi no desfile das escolas de samba, o cara está lá porque ele foi presidente de uma dessas escolas famosas do Rio de Janeiro entre outras coisas. Mas a Sônia casou com o Régis Cardoso assim, vou casar, casou. Bom, a gente só ficou sabendo desse detalhe depois quando o casamento dela foi pro brejo. Mas tiveram um filho, não obstante isso deu um trabalho desgraçado pra fazer esse filho mas, vou te contar, o cara é um primor de ser humano, o filho do Régis Cardoso com a Sônia é uma delícia de pessoa, é o meu neto, ela só tem esse filho, meu neto, não vou dizer que ele é o predileto porque é meio cretino isso.
P/1 – Está com quantos anos?
R – Está com 35 anos, mora em Miami, é diretor internacional da Sony, essa empresa, mega empresa japonesa. E, está lá com os dois filhinhos, cujos são os dois bisnetos nossos, a gente baba de falar porque eles são lindinhos. Mas, a Sônia então se casou, saiu de casa, e respondendo uma parte da sua pergunta, não é, o Sérgio completou a vida dele, a Suzana sempre muito independente vivia um pouco em casa, só o suficiente pra incomodar, pra dar trabalho etc, pra dar despesa. Um dia nós chegamos em casa tinha uma moça lá fazendo, de cabeça pra baixo, assim com a cabeça e com as pernas pra cima, amiga dela, ela franquiou a casa pra moça, amiga dela, e a moça ficou lá não sei quantos meses. Então, são experiências, que olha, parece mentira, você conta um negócio desse, e nós tinha que agüentar, certo, a Suzana hoje ela é muito amorosa com a Elizette, muito amorosa comigo, ela está mais amadurecida, ela está com 52 anos mas ela nos deu tanta dor de cabeça e nesse ínterim os dois filhos adolescentes quase deixaram a Elizette louca pelo comportamento.
P/1 – A Suzana o Senhor diz a Sônia, a Sônia que levou a amiga de perna pro ar?
R – Não, não é a Sônia não, é a Suzana mesmo, é. A Suzana Vieira, falemos assim pra ficar bem definido, nunca nos deu trabalho, ela casou com o Régis, passou pelos problemas mas sempre fora, sem nenhuma influência positiva ou negativa na nossa existência, inclusive pra surpresa nossa é uma mulher madura, ela hostilizou muito a Elizette a tal ponto que ela telefonava lá pra casa pra falar, a Elizette atendia ela não dava boa noite ou bom dia conforme a hora, nem perguntava quem estava falando e dizia: “Quero falar com o meu pai.” Então, esse é um aspecto que as pessoas não conhecem da maravilha de pessoa comunicativa que ela é, ela realmente mas ela fez isso, é próprio do ser humano a mesquinhez, faz parte integrante do ser humano e ela foi mesquinha demais porque essa mulher foi a minha benção, a benção da minha vida foi a Elizette Cordeiro, pois bem. Os dois adolescentes foi uma coisa incrível, o meu filho Sérvolo ele era aluno da Getúlio Vargas porque a mãe tinha sido secretária do diretor e nada mais natural do que ele fosse fazer o curso, pois bem, ele chegou lá, mania de música ele sempre foi, o cara tem uma capacidade criativa pra música, nunca freqüentou um, como é que chama isso um, como é que se chama isso onde se ensina música?
P/2 – Conservatório?
R – Um conservatório, nunca teve aula particular de violão, o cara toca todo e qualquer instrumento que você der na mão dele, compõe maravilhosamente. Uma vez eu fui à uma audição de um aluno de violino do Mackenzie e como era muito extenso o repertório do rapaz eles intercalaram o Sérvolo tocando teclado, o Sérvolo empolgou muito mais do que o violino do cara que era o principal, mas tudo música que ele tem na cabeça, o cara não conhecia uma nota musical, hoje eu acredito, ele é empresário tem uma responsabilidade, ele cria slogan, como é que chama esses é, coisa de televisão, de rádio, não é, e portanto, ele deve ter aprendido bastante coisa e o cara... Um dia eu recebi um telefonema da Fundação Getúlio Vargas “Olha, seu filho faz um mês e tanto que não aparece nas aulas”, aí eu fui à casa dele, ele morava sozinho num apartamento onde eu tinha morado na Nove de Julho antes de me casar e cheguei lá o cara meio dia o cara estava dormindo, quer dizer, é um chute na canela da gente
“Meu filho, mas o que é que é isso você”, “É, porque eu ontem fiquei gravando não sei o que”, tudo música, paixão, “Bom, meu filho”, “Escuta pai, vou aproveitar a oportunidade para te dizer olha, Getúlio Vargas já era, eu não quero aquele troço, eu quero ser músico”, “Tá bom meu filho, mas tem que definir porque eu estou mandando o dinheiro todo mês pra você pagar a Getúlio Vargas.” Aí ele se definiu e hoje ele é empresário, um êxito fabuloso, ele realmente é um cara muito competente. Mas essa foi a experiência da Elizette, e a hostilidade, a Sandra por exemplo, hostilizava demais, não hostilizava diretamente porque ela, não é que a Elizette fosse uma intrusa, não é, substituta da mamãe não, até porque eles não tinham tanto chamego com a mamãe e seja dito a bem da verdade a mamãe não era uma pessoa muito dedicada aos filhos, era uma mulher intelectualizada ao extremo...
P/1 – Profissional.
R – Profissional, ela vivia pra aquela coisa da atividade profissional, então, não sobrava tempo. A Sandra ao invés de capitalizar o potencial de carinho que a Elizette trazia, a Elizette que passou a sua vida inteira ensinando criança, casou comigo já não tinha mais condição de ter filho, ela com 40 anos eu com 58 não tinha graça começar tudo de novo, resultado, a Sandrinha envenenou a vida da, hoje elas ficam duas horas conversando, eu fico besta como tem assunto pra conversar duas horas no telefone, não é, mas ela estabeleceu-se porque eles aí sentiram quem é essa criatura humana, esse ser humano chamado Elizette, ela pagou um tributo. Hoje, a Suzana Vieira, que é aquela que dizia “Quero falar com o meu pai”, hoje ela liga lá pra casa só fala com a Elizette, nem manda chamar só pergunta: “Escuta, e o véio tá vivo, como é que está”, é nessa base gente.
P/1 – Como ela conseguiu conquistar os seus filhos?
R – Com a paciência, com a tolerância, com humildade, não é, mas com a firmeza também porque ela tem personalidade, ela não é subserviente, nos meus padrões ela é subserviente porque dá muita pelota pra esses caras, eu não daria, de (moto?) próprio eu não daria, mas, aí vem aquele negócio sabe, aquela, por exemplo, o neto, não é, o bisneto, o neto que eu fui conhecer com 22 anos, o neto filho do Sérgio que mora em Rondônia ele é nascido lá, pois bem, esse cara veio à São Paulo fomos conhecê-lo, foi uma experiência maravilhosa de doçura, um guri que com cinco anos de idade ele tinha passado pela nossa casa lá em Caucáia do Alto, o cara queria furar o olho do cachorro com uma vara, eu falei “ esse cara vai ser um monstro”, foi a impressão que eu guardei do meu neto filho do Sérgio, como esse neto veio do segundo casamento, o primeiro ele abandonou lá em Porto Alegre, eu tenho um neto lá de 35 anos, Rogério, filho do Sérgio, e a Marina que também é filha do Sérgio que é minha neta, pois bem. O filho dele, esse que queria furar o olho do cachorro hoje é um monumento de ser humano, eu tenho um orgulho enorme desse cara ser meu neto, ter o meu sangue lá, metade só do sanguinho dele é meu também, porque ele é maravilhoso, você precisa ver a experiência. Foi gozado porque ele telefonou de uma pensão: “Oh vô, tu tá bom” e tal “Estou em São Paulo”, eu falei: “Pô, mas está tão perto, você está em Rondônia?”, “Não, eu estou em São Paulo, eu consegui um dinheirinho e vim aqui, será que eu posso ir à tua casa?”, “Meu filho mas porque essa pergunta?”, “É que eu estou com a minha namorada”, falei: “Manda ver, manda pra cá”, aí veio com a namorada, não é, que é uma rondoniense que por sinal é uma pessoa muito bacana também, não chega a altura dele mas ela me parece uma pessoa muito bacana. E, foi quando eu conheci esse filho porque antes passou lá em casa fugazmente e eu gravei aquela impressão negativa, né, o guri, um guri muito sabido, sabia de coisa, diz que eles foram em uma viagem que fizeram de carro eles se hospedaram num motel, motel de beira de estrada, aí o guri disse assim, aí disse que era uma cama redonda, o guri de cinco anos e ele me contando isso com uma vantagem enorme, aí o guri disse assim: “E pai, essa cama redonda aqui que acontece a sacanagem, é?”, aquilo foi um coice na minha, sabe, porque eu não sou puritano, certo, mas eu achei uma depravação aquilo desnecessária, gratuita, tem tempo pra gente se corromper meu Deus, tem tempo, deixa amadurecer, deixa passar por a fase intermediária, deixa ser criança, não pô, o cara sabe tudo e tal, bom, esse não degenerou porque ele virou um ser humano tão maravilhoso que eu até acho vale a pena correr o risco de criar os filhos assim. A Suzana por exemplo, essa de Rondônia, os quatro filhos dela, ela nunca se casou com esse marido com quem ela foi pra Rondônia, os quatro filhos dela são completamente loucos, tem três nos Estados Unidos, tem um lá em Rondônia e as três meninas estão nos Estados Unidos mas passaram pela Grécia trabalhando em lanchonete, fazendo qualquer serviço, uma tem 16, outra 17, outra 18 anos, mas é criado assim, sabe, então eu vejo um contraste com a maneira como eu criei os meus filhos, os pais deles, é gozado isso aí, a gente comparar assim, a gente tem que ter capacidade até de admitir que o jeito da gente é que estava lá muito certo não, eu fico horrorizado, quando eu fui à Rondônia a minha filha, o marido dela, que é marido entre aspas, nunca casou, então, ela é Suzana Maria Viera Gonçalves, por isso ela foi candidata a deputado e mandou fazer um pôster enorme, beleza de mulher que ela é, “Vote em Suzana Vieira”, usou o Suzana Vieira da outra, aí eu fiquei chocado quando eu vi aquilo, ela toda ufana e o marido também muito mercenário o cara, ele muito utilitário “Olha esse cartaz”, “É, o cartaz está muito bonito mas espera um pouco, vocês falaram com a Suzana Vieira pra usar esse nome? Porque hoje isso é um patrimônio profissional da minha filha, nós não podemos deixar de reconhecer, na época tudo bem...”
P/1 – Na verdade é ela que está se candidatando a atriz, não é?
R – É, mas a outra explorou esse lado porque todo mundo sabe quem é Suzana Vieira, pelo amor de Deus, “Vote em Suzana Gonçalves”, se os caras não votaram na Suzana Vieira iam votar na Gonçalves, não é? Bom, então, esse é um aspecto interessante do resultado do que eu tentei fazer na vida.
P/1 – Como é que o Senhor conheceu a sua Elizette?
R – Bom, isso aí é um capítulo tão agradável da minha vida que eu faço questão de contar, isso é a última poesia do livro “Trama Poética” de autoria da Elizette, aliás, capa e ilustrações feita por ela, em que ela conta, tem um capítulo que ela dedicou aos encontros, desencontros e reencontros, ela conta várias historinhas de encontros de pessoas com que ela conversa e diz: “Como é que vocês se conheceram” e tal, e o nosso foi o nosso encontro em Itanhaém. Quando eu entrei pra FMU, primeiro dia de aula, uma sala enorme, 140 alunos dentro de uma sala, eu nem imaginava isso, 139 mulheres e um Marius, você pode imaginar uma situação dessas? O Marius, viúvo, 58 anos, 57 anos, Coronel do Exército e tal, 139 mulheres de todas as matizes, cores, formatos maravilhosos e eu viúvo, não dá, não é, é difícil de agüentar. Quando foi na hora da identificação cada um se levantava e dizia e tal “Eu me chamo fulano, tenho tantos anos, faço isso faço aquilo”, aí eu me levantei falei bom, o que é que eu vou falar objetivamente, “Eu sou o Marius Vieira Gonçalves, tenho 57 anos, sou Coronel reformado do Exército Brasileiro e estou aqui querendo fazer o curso de Direito mas fui matriculado no curso de Serviço Social porque eu entrei sem concurso pra FMU, só valendo o meu diploma de universitário, então eu tive que fazer um curso preparatório, um ano de curso preparatório por isso me botaram nessa turma de Serviço Social.” Quando eu falei esse negócio aí foi “bhuuu”, eu senti no ar, a mulherada ficou, porque olha, não era só menininha novinha não, tinha mulher madura, professoras da USP que estavam lá fazendo o curso de Serviço Social etc, aí eu naquela coisa, levando muito à sério, levava trabalho pra casa, formaram um grupo de trabalho, dez alunos cada grupo, eu presidi um grupo, convidei pra ir à minha casa, sem nenhuma intenção até porque eu morava com a Sandrinha, nessa altura, eu viúvo com a Sandrinha. Aí o pessoal ia lá em casa, Sandrinha ficava tiririca da vida, com um ciúme desgraçado daquela, porque cá pra nós muitas estavam a fim de, não é, do Mariusinho e tal dando sopa aí, oh, viúvo, não é pra desprezar, pois bem, eu de propósito dizia “Sandrinha, vai fazer um chazinho aí pra turma com biscoitinho e tal” (riso), uma delícia, não? Foi aí que, eu tinha um confidente na Cesp que era o chefe de departamento pessoal, e a gente gostava muito, ele muito mais jovem do que eu, bate papo, mas um papo até de certa maneira meio íntimo embora ele fosse formal, Coronel pra cá, Coronel pra lá, “Coronel”, então ele me dizia assim: “Coronel”, eu contei a ele essa história da turma de 139 mulheres ele disse: “Coronel, mas que coisa maravilhosa que aconteceu na sua vida, mas olha o Senhor está com a faca e o queijo”, “Mas o que é isso, que é que você quer dizer com isso?”, “Mas no meio dessa mulherada”, ele jovem, sabe, o machista brasileiro, autêntico, não é? Eu dizia: “Olha, eu não vou negar que é muito agradável a convivência com as mulheres, eu nunca fui, nunca tive alergia com mulher mas, não é essa a minha preocupação, eu estou viúvo a um ano e eu sinto um solidão desgraçada, eu sinto necessidade de uma companheira”, ele dizia: ”Ah, mais Coronel, o Senhor...”, ele não acreditava na minha sinceridade, não é, quer dizer “Não, esse cara deve estar é doido”, pois bem, tantas eu falei isso, eu falei “Sabe o...”, Milton é o nome dele, ele hoje pertence a minha família porque ele é casado com a irmã caçula da Elizette, ele já era casado com a irmã caçula da Elizette. Tanto eu falei que queria ter uma companheira falei escuta “Você não conhece uma mulher, mas não pode ser muito jovem, não vou me casar, não é, imbecil de me casar com uma mulher jovenzinha só pra dizer que, não é”, ele disse “Olha Coronel, eu pra ser sincero eu tenho uma cunhada lá em casa que se enquadra mais ou menos nas características que o Senhor gostaria de”, eu falei “Me dá uma chance”, ele dizia “Pois é, ela acabou de voltar do Projeto Rondon”, eu achei aquilo genial, uma mulher que vai ao Projeto Rondon, é um bocado legal isso, qualquer um que vá ao Projeto Rondon, “E, ela é pedagoga, formada”, “Mais me dá a dica”, “Ela se formou lá na FMU”, “Ah, não diga, escuta, então é capaz de ela ter as apostilas das aulas” (riso), eu já inventei, sabe, a criatividade vem a flor, não é, “Ela deve ter, eu preciso de um pretexto pra me aproximar”, “Eu te dou o telefone dela, o Senhor conversa e dá a sua cantada lá, sei lá”. E de fato, o primeiro contato foi assim, eu telefonei pra ela, ela muito formal, um parêntese, dez anos antes ele tinha se casado com a irmã dela, caçula, e eu tinha ido à casa deles levar um presente, nós já éramos colegas da Cesp, então quem abriu a porta pra receber o presente foi a Elizette e eu não guardei a menor impressão da Elizette naquela época porque eu estava casado, vivia bem com a minha mulher e de certa maneira eu era apaixonado por ela porque eu vivi sempre apaixonado porque essa é a minha condição natural, ser apaixonado, eu me apaixono por tudo que eu faço, pois bem, entreguei o presente, passou despercebido, ela guardou, interessante isso, dez anos depois eu telefono pra ela, falei “Olha, você não me conhece”, ela disse “Não, eu conheço o Senhor”, ela muito formal “Eu conheço o Senhor, o Senhor não lembra que o Senhor foi levar o presente do Milton lá em casa no casamento do Milton”, “Ah, sei”, que sei coisa nenhuma, “Ah, sei, é tem razão você me conhece”, bom, vamos ver “O negócio é o seguinte, eu estou entrando pra tua faculdade, que você acabou de fazer e eu gostaria de saber se você tem umas apostilas lá do curso básico”, “Eu tenho alguma coisa aqui, o Senhor quer dar uma passada aqui eu vou ver”. De noite, naquela mesma noite eu já fui lá correndo, aí, quando eu toco a campainha abre a porta uma Senhora que devia ter quase 80 anos, eu caí duro, eu falei “Este canalha do meu cunhado” ele nem era o meu cunhado, “Este canalha do Milton, me fez uma palhaçada”, eu achava, porque eu tinha na minha imaginação e no meu desejo ela moraria sozinha por cuja razão, não é, eu já fui lá com uma intenção meio engatilhada, portanto, aparece uma Senhora idosa daquele jeito eu achei em primeira instância que aquilo era molecagem do cara, mas logo em seguida desfez a dúvida porque eu falei “Desculpe, acho que eu toquei em lugar errado, campainha errada”, porque era no subsolo, tinha subsolo um e o dois, falei “Acho que eu devia ter descido mais”, “Não”, “É aqui que mora a professora Elizette?”, “É aqui sim Senhor, ela já está esperando o Senhor”, tudo bem, quer dizer, o negócio não podia ser mais formal, não é, ressalvada todas as aparências, pois bem. Aí ela me conduziu à sala, Elizette apareceu depois, apareceu com um decote que eu hoje cobro dela e digo “Você fez de molecagem, você não precisava ter vindo com aquele decote, é um exagero”, e ela “Não, isso é a tua imaginação” porque no fundo é, não é, a gente vê aquilo que desejaria que fosse. E, foi muito formal e ela foi gentil, a velhinha lá pelas tantas trouxe um cafezinho, clássico cafezinho, falei “Escuta, onde é que a Senhora coou esse café?” (risos), não é, “Não foi coador que a Senhora coou esse café”, pois bem, começou assim. Aí, eu tinha uma casa em Itanhaém, uma casa de madeira que eu comprei junto com a minha primeira esposa, foi um esforço danado comprar uma casa pré-fabricada mas, nós curtimos muito pouco aquela casa, depois ela morreu a casa ficou lá, ficou até pra Sônia, e a Sônia que é a Suzana Vieira acabou dando pra mãe do Régis Cardoso, pra sogra dela. Mais essa casa ainda estava em meu poder e a imaginação continuou trabalhando ativamente, convidei a Elizette, por telefone, escuta “Aonde é que você vai passar a Semana Santa?”, “Ah, eu não tenho ainda aonde passar” não sei o que, falei “Você não gostaria de ir à praia? Eu tenho uma casa lá em Itanhaém”, “Ah, eu gostaria sim” e tal, engatilhamos tudo e eu falei pra ela “Olha, se você quiser pode levar alguém da sua família”, eu querendo salvar as aparências, “Leva quem você quiser” não sei o que. Nessa altura eu queria levar a Sandrinha que era a única coisa que eu tinha, não é, mas pra mostrar a minha boa intenção nada melhor, aí ela “Ah, tá bom, obrigada” não sei o que. Combinamos e fomos, menina, ela convidou a família inteira, ela tem sete irmãs, só de irmã ela tem sete, tem uma que mora em Ribeirão, essa não estava, e outra na Bahia, as outras cinco, estava tudo lá, então essa foi a minha experiência, quer dizer, caí duro, não é, e eu muito bem intencionado tinha lição pra fazer, levei a máquina de escrever e passei, o pessoal todo mundo na, daqui a pouco começa o desfile da mulherada toda saindo com aqueles biquínis bem audaciosos, não é, e eu lá na máquina e tal, estava dividido porque era demais, uma tentação desgraçada, e a velhinha na cozinha fazendo uma bacalhoada maravilhosa, engraçado que, eu costumo contar isso parece invenção mas não é, o primeiro beijo quem ganhou foi a Dona Francisca menina, ela estava na beira do fogão, eu sou beijoqueiro de mais sabe, mais sou demais, carinhoso, e também tem isso, beijo homem também, faço questão...
P/1 – A Dona Francisca ela é o que da...
R – Mãe da Elizette. Levou a mãe e as cinco irmãs que moravam sem São Paulo, quer dizer, as quatro irmãs mais ela. Eu levei só a Sandrinha, quer dizer, eu já estava perdendo numericamente mas, ela não estava nem aí, ela tinha voltado do Projeto Rondon noiva de boca, de palavra, dum indigenista lá, e quando eu a abordei, que foi na mesma noite, na primeira noite que nós passamos lá eu já fiquei, por que, mas eu não vou contar esse episódio porque está no livro da Elizette e quem quiser que compre o livro (risos), é isso aí minha gente, foi muito bacana, quando eu propus a ela casar ela disse: “Eu não posso, eu sou noiva”, falei “Mas não é possível”, eu tinha um motivo fortíssimo pra querer casar com ela naquela noite, se ela quisesse eu casava naquela noite. A casa era de madeira pré-fabricada, você pisava numa tábua aqui refletia lá “troque, treco, troco, treco”, era uma coisa doida, um corredor enorme, vários quartos, certo, e a minha imaginação nessa altura ficou tumultuada e tal, a gente fica pensando uma porção de coisa, desejando fazer coisa mas tinha a minha filha também lá não podia, tinha que ter um cuidado desgraçado, pois bem. Nessa noite eu botei as cartas na mesa falei: “Eu quero me casar com você, não tenho tempo a perder, eu tenho 58 anos, estou viúvo a um ano não agüento mais a solidão, gostei demais de você”, e nessa altura tinha vindo o desfile, a mulherada toda com aqueles biquinininho e tudo e pra lá, pra cá, não sei o que, não é, o pessoal tudo muito generoso, as roupinhas. Mas ela me marcou, mas foi, e foi um impacto definitivo, não é, e a glória da minha vida é de ter chegado aos 84 anos com a saúde que eu tenho graças a ela, a dedicação dela, a comida que ela faz pra mim, antes de vir pra cá eu tomei uma sopa gelada que ela faz pra mim que é uma coisa sublime, sabe?
P/1 – Quantos anos vocês tem juntos?
R – 25 anos. Quer dizer eu tenho vocação pra casamento, não é, porque 33 com uma e 25 com a outra, de modo que foi essa a experiência. Depois houve um processo assim de preparação, por exemplo, chegou um momento que eu falei: “Que é que eu estou fazendo na SPMU?”, não é, porque eu não tinha tempo pra namorar, que de noite eu não podia ir visitá-la e tal, e ela também começou a reclamar e tal, mas depois que engrenou o negócio porque custou um pouco, você já imaginou ela tomar a decisão de acabar com o noivado do cara lá, quer dizer, a minha persistência, se eu não sou de cavalaria eu não tinha conseguido viu, foi aquela perseverança que acabou vencendo. No fundo eu tenho um remorsozinho em relação ao cara mas eu digo pra ela: ”Escuta, você já imaginou hoje você andando de tanga lá na Amazônia, não tem graça você casar com um indigenista, você que adora São Paulo, não quer sair do asfalto, ora, com todas as irmãs aqui”, é uma fixação incrível com as irmãs, maravilhosa.
P/1 – Seu Marius, a gente está se encaminhando pro final da entrevista e eu gostaria de saber se faltou alguma coisa que o Senhor gostaria de colocar que não abordamos, se já está tudo completo, a sua vida é muito interessante, muito grande, não cabe tudo.
R – É, eu pensei aqueles aspectos, vamos dizer, aquelas passagens da minha vida, não que eu acho que sejam importantes, pra mim foram importantes e muitas até foram decisivas pra formação da minha personalidade, pra eu chegar a ser o cara que eu sou hoje, não é, com o pensamento que eu tenho hoje, o sentimento que eu tenho hoje, o amor que eu tenho pela humanidade, esse sentimento de doação que me caracteriza. Embora eu tenha aderido ao Espiritismo em forma, chamemos assim, acidental, porque aquela criatura que eu conheci em Brasília naquela passagem por lá me encaminhou e disse: “Bom, eu abro mão de você”, nessa altura ela tinha toda razão pra querer manter mas ela foi bem objetiva sentindo que eu era muito mais minha família, minha mulher e meus filhos, do que uma aventura acidental em Brasília, “Então, você vai voltar pra São Paulo mas você me promete você vai se matricular na Federação Espírita e vai fazer um curso de Espiritismo.” Eu não achei nada do outro mundo mas na verdade eu fui mais pra ser fiel àquele compromisso, matriculei meio sem convicção e fiz um curso de quatro anos na Federação Espírita e me tornei espírita, fundei o CVV, trabalhei 18 anos como plantonista de suicídio, que é um pedaço da minha vida que eu acho que foi o pedaço que mais dignificou a minha existência porque pelo menos eu tentei ajudar o meu próximo, eu fui coerente com essa minha vocação doativa, de me doar ao próximo.
P/1 – O senhor mesmo atendia aos telefonemas?
R – É, eu durante 18 anos eu fui diretor do CVV, fui diretor cultural do CVV mas eu exercia a função de plantonista de suicídio durante 18 anos aqui na Rua Abolição. O CVV depois cresceu incrivelmente e se espalhou pela América Latina, foram criados postos do CVV em todas as capitais da América Latina inclusive as do Pacífico e depois foram se apagando porque vocação para doação, principalmente os pan-americanos não têm, essa foi a constatação da experiência. O brasileiro tem vocação pra se doar, certo, sem interesse nenhum, são todos voluntários e muitos, a maioria, paga pra trabalhar como plantonista. E, criei o CVV em Foz do Iguaçu quando eu fui trabalhar na Itaipu, eu constatei que o índice de suicídio lá em Foz do Iguaçu era monstruoso, coisa que não aparece em estatística oficial nem extra-oficial.
P/1 – Mas o senhor diz Foz do Iguaçu onde, na hidroelétrica?
R – Quando eu trabalhei na Itaipu concomitantemente eu senti o drama social da cidade e o índice de suicídio por causa da solidão era enorme e eu achei que havia um terreno muito fértil pra plantar a semente do CVV e a Itaipu me deu um terreno, me deu um projeto de engenharia e me deu um telefone pra eu instalar o CVV em Foz do Iguaçu. É outro ponto de honra que nós temos, eu e a Elizette, que a Elizette nesta altura estreou na atividade de prevenção de suicídio, trabalhava como uma louca, mas tivemos uma decepção enorme principalmente com o pessoal de primeiro escalão, os plantonistas de suicídio mais dedicados, mais disciplinados, mais coerentes eram os operários que se alistaram como plantonistas, os engenheiros, advogados etc, o pessoal de nível universitário era uma vergonha, era uma vergonha, o cara estava lá no plantão atendendo suicídio telefonava a bruxa da mulher: “É, você não vem jantar”, quer dizer, usava o telefone, à revelia do regulamento, pra reclamar do cara estar atrasado pro jantar, então, foi uma decepção, foi um fracasso. De certa forma, foi parecido com o fracasso da América Latina que nós tivemos nos países hispânicos, ninguém faz nada que não seja por dinheiro, sabe, a forma “Mas como voluntário? Trabalho voluntário, o que é que é isso? Você está é doido.” Pois olha, o brasileiro tem essa vocação, e isso é herdado, acho, dessa miscigenação do negro, da humildade do negro, do sacrifício do negro, a capacidade de se doar ao próximo, de modo que, mas foi válida a experiência até porque eu consegui mobilizar uma empresa binacional, consegui um projeto de engenharia feito o desenho como eu queria implantando o atendimento ao suicídio, fizemos divulgação pela cidade, tinha tudo pra vencer, fracassou por causa da mentalidade dos caras que não tinham uma gota de solidariedade humana.
P/1 – Isso era em que ano, por favor?
R – 1970 e, quando é que eu completei 65 anos? Tem que fazer uma conta aí, quer dizer, 1916 é...
P/1 – Bom, enfim.
R – De qualquer modo, eu me aposentei com 65 anos lá na Itaipu, então isso aconteceu...
P/1 – E o senhor fazia o que Senhor Marius?
R – Hein, meu amor?
P/1 – O que é que o senhor desempenhava lá?
R – Eu era chefe dos arquivos de desapropriação e assessor do diretor jurídico, quer dizer, eu continuei não sendo advogado mas fui ser assessor do diretor jurídico e tinha uma infinidade de advogados subordinados funcionalmente a mim, mas eu consegui manter um clima de muito respeito recíproco e consegui me desempenhar, graças a Deus, se não com brilhantismo mas com muita eficiência. Eu criei um sistema de controle pra se formar a Bacia Hidrográfica da Itaipu, aquele lago, foram desapropriadas oito mil propriedades do lado brasileiro e outras tantas do lado paraguaio. A desapropriação do lado brasileiro foi feita separadamente, eles tinham até o departamento jurídico do lado da margem direita do Rio Paraguai e nós trabalhávamos só na esquerda, mas eram oito mil propriedades e é uma violência a desapropriação porque a tendência de quem está com a faca e o queijo na mão: “Olha, eu preciso da tua terra porque eu vou inundar, tem que te indenizar, claro, o que é que você fez”, “Ah, tem aquele barraco, aquela...”, “É, mas isso aí não vale nada, está caindo aos pedaços” tal, quer dizer, é horrível esse tipo, mas é a nossa realidade, que é pra
economizar no lombo dos coitados dos proprietários de mini propriedades e mini latifúndios. Agora, no Paraguai a coisa foi muito mais horrorosa, muito mais odiosa, no Paraguai tinha coisa assim, o desapropriado recebia o dinheiro da Itaipu, ia lá departamento jurídico, recebia o dinheiro e muitas vezes ele nem morava em Assunción, morava num campo lá na terra dele e ia a Assunción pra receber, ia pro hotel aí aparecia um sargentão do Exército Paraguaio dizia assim: “Velhinho, passa essa gaita pra cá”, isso aconteceu aos milhares, aos milhares, quer dizer, a Guerra do Paraguai se repetiu com Itaipu binacional, a exploração, eles foram escorchados pra construir essa maravilha, a maior hidroelétrica do mundo, quer dizer, pra mim o padrão de glória, eu participei da construção da maior hidroelétrica do mundo mas a que preço, a que preço no sentido humano da palavra. Eu fui a Assunción, passei uma semana querendo introduzir modificações pra racionalizar e acabar com aquela coisa odiosa da prepotência deles, o diretor jurídico era paraguaio porque na divisão das atribuições recíprocas, na binacional, os cargos administrativos eram todos paraguaios e os cargos técnicos eram todos brasileiros até por motivos óbvios, os engenheiros brasileiros, os advogados brasileiros esse negócio. Então, tinha a parte jurídica do lado esquerdo do rio que éramos nós, então, a gente fazia dentro daquele critério que é um pouco draconiano mas é o que existe no Brasil e, o cara às vezes desesperado, se ele não vendesse a terra ia ser inundada do mesmo jeito, então, o cara acabava entregando a rapadura. Mas do lado de lá era pior porque o cara recebia o dinheiro e era roubado. O diretor jurídico, professor, me escreveu uma carta linda em agradecimento pela minha permanência durante uma semana lá em que eu tentei introduzir inovações em técnicas e administrativas no controle dos processos que os caras não aceitaram de jeito nenhum porque o negócio dele era aquela marmelada, aquela corrupção institucional que está arraigada na alma do paraguaio, quer dizer, paraguaio da elite, eu não generalizo, mas a verdade é essa. Eu quero crer que não tenha ficado nada pra acrescentar, seriam detalhes...
P/1 - A entrevista foi maravilhosa, pra entrevistar o Senhor precisa uma semana, o dia inteiro.
R – Olha, eu me sinto muito honrado, eu estava dizendo ao Sandro que eu trabalhei no CVV e uma coisa que você desenvolve no CVV é a capacidade de ouvir e pela primeira vez na vida eu estou invertendo os papéis, eu encontrei alguém com capacidade, paciência e até tolerância para me ouvir, até estou me sentindo importante, não sou importante, sou importante na medida do que vocês valorizam como depoimento pra justificar a existência desse museu que pra mim foi uma surpresa muito agradável, meu Deus do céu, o Museu da Pessoa, a pessoa existe, nós somos uma entidade, nós somos criação de Deus, estamos valorizando a nossa condição humana através de vocês, nós estamos nos dignificando, não é, isso é motivo se não de vaidade mas de muito orgulho pra mim, eu não tenho palavras pra agradecer sobretudo a paciência que vocês tiveram comigo, a minha dispersão, a minha verborragia...
P/1 – Nós é que temos que agradecer ao Senhor por ter vindo e ter prestado depoimento, muito obrigada, foi maravilhoso, obrigada.Recolher