Museu da Pessoa

“É um lugar onde eu aprendo todos os dias”

autoria: Museu da Pessoa personagem: Elaine Maria de Santana

Museu da Pessoa – Conte sua história
Histórias de Esperança – 29 anos do Projeto Criança Esperança
Depoimento de Eliane Maria de Santana
Entrevistada por Tereza Ruiz e Caroline Marinho Martim
São Paulo 28/01/2015
Realização Museu da Pessoa
Entrevista HECE_HV_43
Transcrito por Liliane Custódio

P/1 – Então primeiro, Eliane, fala pra gente seu nome completo, a data e o local de nascimento.

R – Eliane Maria de Santana, eu tenho 39 anos, nasci no dia 22 de janeiro de 1976, aqui em São Paulo.

P/1 – Agora o nome completo da sua mãe e do seu pai, e seu você souber, data e local de nascimento também deles.

R – Minha mãe se chama Nelcina Maria Santana, ela tem 62 anos, nasceu em 26 de abril de 1952. É isso. Meu pai se chama Manuel José de Santana, ele tem 63 anos, ele nasceu em... Espera aí, deixe-me ver a data oficial. Ele tem duas datas (risos). Quinze de dezembro de 1950, ele vai fazer 64, 65, a gente nunca lembra a data exata. Mas é isso.

P/1 – E onde ele nasceu, o seu pai?

R – Os dois são de Pernambuco, tanto o meu pai, quanto a minha mãe.

P/1 – Fala um pouco pra gente o que eles faziam profissionalmente.

R – Eles são de famílias do sertão, então ambos trabalhavam com a colheita antes de vir pra São Paulo. A minha mãe, se não me engano, ela é de Pedra de Buíque, e meu pai nasceu ali na região de Caruaru, ali pra aqueles lados também. E lá eles trabalhavam com plantação. Meu avô materno, ele tinha plantação de tomate, então eles trabalhavam pra falecida fábrica Etti, naquela época lá. E meu avô paterno, ele tinha plantação também, mas não era de grande porte assim, então eles viviam do que eles plantavam mesmo.

P/1 – E você sabe por que eles vieram pra São Paulo? Eles te contaram essa história? Como eles tomaram essa decisão? Quando foi que eles vieram pra São Paulo?

R – O meu pai veio pra São Paulo com 18 anos, se eu não me engano, junto com dois irmãos pra tentar a vida. Naquela época, São Paulo era a terra das oportunidades ainda, então eles vieram pra cá pra tentar a vida, pra tentar buscar alguma coisa melhor e tal. E minha mãe também, minha mãe veio pra cá com mais ou menos 18, 19 anos, e também pra tentar a vida aqui. Mas eles se conheceram aqui.

P/1 – Você sabe como eles se conheceram?

R – Bom, segundo as histórias que eles contam, sempre tem um detalhe novo e eu não vou me lembrar de todos, que eles vão lembrando e vão contando, eles se conheceram... Meu pai trabalhava com transporte público, era fiscal de linha de ônibus, e minha mãe pegava sempre o mesmo ônibus, no mesmo lugar, aí se conheceram e começaram e se relacionar e tal, e daí foi (risos). Virou uma história.

P/1 – Quando seu pai veio pra São Paulo então ele começou a trabalhar como fiscal de ônibus? Foi isso? E a sua mãe?

R – Não. Antes disso ele trabalhava com várias outras coisas, fazendo várias outras coisas, mas aí ele encontrou a oportunidade de trabalhar como fiscal, e depois, um pouquinho mais pra frente ele foi tirar habilitação pra trabalhar como motorista, enquanto isso ele era cobrador. Então ele começou como fiscal, depois ele passou pra cobrador, e antes de tirar a carta de habilitação, ele trabalhou um tempinho aí, depois ele passou pra motorista. Aí ele passou mais de 20 anos como motorista de ônibus. Hoje em dia ele está aposentado, mas muitos anos como motorista.

P/1 – E a sua mãe quando ela veio pra São Paulo, com quê ela foi trabalhar?

R – Ela é doméstica, então ela já foi trabalhar na casa de uma família, ali na Avenida Nove de Julho. Enquanto ela trabalhava lá, ficou grávida do meu irmão, e de mim depois, e a gente ficou morando lá com ela, o meu pai vinha visitar a gente de vez em quando, não dava pra morar todo mundo junto.

P/1 – Vocês moravam com ela na casa da família em que ela trabalhava? É isso?

R – Isso. Foi a família que acolheu a gente naquele período.

P/1 – Como é o nome do seu irmão?

R – Carlos.

P/1 – E é seu único irmão?

R – Não, tem mais três. Tem mais as caçulas, que é a Elaine, a Liliane e a Letícia, que é a caçula mesmo.

P/1 – Conta um pouco pra gente como seus pais são de temperamento, de jeito, de personalidade.

R – Minha mãe é muito simples e muito cativante, uma pessoa linda. Meu pai já é um pai já é um pouco mais reservado, mas acho que por causa do tempo que ele passava longe da gente, então ele é mais reservado, mais tranquilo (emocionada). Hoje em dia ele passa mais tempo com a gente, porque está aposentado e tal, mas são duas pessoas muito especiais. Muito. Muito lindas.

P/1 – E essa casa em que você passou a infância? Que recordações você tem da sua casa de infância? Como era a casa, o bairro?

R – Eu não tenho muita lembrança da casa, porque eu era muito pequena no período que a gente passou lá. Era um apartamento... Eu me lembro das histórias que a minha mãe conta, eu fico buscando lá, que a gente aprontava muito no apartamento desse senhor que acolheu a gente, que depois se tornou o meu padrinho, que hoje já é falecido (emocionada). Passei muitos anos sem vê-lo. E lembro que o meu irmão quebrava todos os meus brinquedos, que ele era um pouco mais velho. E me lembro de algumas vezes tentar lavar a louça pra minha mãe, na pia lá, arrastar a cadeira pra subir pra lavar a louça. E quando ela chegava, eu estava lá tentando lavar a louça. Isso com uns três, quatro anos, não lembro muito bem. E me lembro da escola, que a gente estudava no bairro ali e a gente tinha bolsa no Sacre Coeur, da Avenida Nove de Julho, que hoje também não existe mais. Lembro-me bastante desse período da escola, de alguns amigos e tudo, de algumas professoras. Que era o que a gente vivia mais intensamente.

P/1 – Quantos anos vocês moraram nesse apartamento com esse senhor que foi seu padrinho?

R – Lá a gente ficou acho que uns cinco anos. Cinco, seis anos, mais ou menos. E depois a minha mãe foi trabalhar com a filha dele e aí a gente mudou pra casa dela. Aí acho que era Alto de Pinheiros, não me lembro direito o bairro. Mas era uma casa mesmo, não era mais apartamento. E dela eu me lembro... Da casa dela, eu me lembro dos cachorros, que ela tinha dois dálmatas. E aí eles tiveram filhotes e era muito cachorro pra todo lado, todos fofinhos e bonitinhos, branquinhos, manchadinhos, a coisa mais linda. E me lembro de alguns colegas da rua também, uma em especial, que na época ela tinha a vida que toda criança queria, que a família tinha muito dinheiro. E ela falava pra mim que ela não gostava da mãe dela, não gostava do que a mãe dela fazia, e que ela chegava a agredir a mãe. Eu não entendia muito bem o que aquilo significava, mas eu pensava comigo: “Nossa, mas você agredia a sua mãe? Mas é sua mãe”. Ela falava: “Ah, não me importo”. Eu fiquei com aquilo na cabeça muitos anos, é uma das poucas lembranças que eu tenho dela, dessa menina, até o nome dela era Elaine também. E eu gostava dela, mas ela me dava medo. Eu falava: “Bom, se ela bate na mãe dela, o que ela vai fazer comigo?” (risos). Mas foi um período difícil pra gente, porque não era uma... A gente não tinha muito acesso às coisas, minha mãe trabalhava muito, meu pai também trabalhava muito já nessa época. Mas nessa época ele já morava com a gente. A filha do meu padrinho convidou meu pai pra morar com a gente também. E ela era madrinha do meu irmão. E a gente viu a filha dela crescer, minha mãe cuidou da Renata, que era a filhinha dela. E depois a gente acabou saindo de lá, eu não sei bem te dizer o que aconteceu. Mas a gente se afastou da família, perdemos totalmente o contato. Só vim encontrar com o meu padrinho quando ele já estava pra falecer mesmo, já nas últimas já.

P/1 – Que idade você tinha quando você saiu dessa segunda casa? Você sabe?

R – Sete anos. Seis pra sete anos. Lá a gente passou pouco tempo.

P/1 – E aí vocês foram morar aonde?

R – Eu fui morar no bairro que eu moro até hoje. A gente mudando de um lado para o outro, mas sempre no mesmo bairro. A gente não tem casa própria ainda, minha mãe também não quer aqui em São Paulo, já decidiu que vai comprar em outro lugar. E aí eu fui morar numa região do lado de lá do bairro, que eu moro do lado de cá hoje. Então do lado de lá, perto ali de Diadema, aquela região ali.

P/1 – Qual o bairro?

R – Lá em cima, Americanópolis II. Porque o lado de cá era Americanópolis I, do lado de lá é Americanópolis II. Alguns conhecem como Vila Clara, não tem uma definição exata.

P/1 – E você lembra como era esse bairro na época que vocês se mudaram pra lá e como era a sua casa? Como foi essa mudança pra você? Porque até então você tinha morado na casa de outras pessoas.

R – A casa era um quintal com várias casas, acho que é comum, periferia. Uma coisa que eu lembro bem é que só a avenida principal era de asfalto, o resto, todas as ruas eram de terra, muito barro, então quando chovia era um problema pra sair de casa. E nesse quintal tinha a dona do quintal com os filhos dela e tinha mais uma casinha lá nos fundos. A gente foi morar nessa casinha lá dos fundos, meu irmão, meu pai, minha mãe, eu, e logo em seguida nasceu a Elaine, então ela era pequenininha ainda quando a gente estava morando lá. Depois vieram uns parentes do meu pai pra morar lá também, as irmãs dele que estavam vindo do Nordeste pra São Paulo e estavam procurando um lugar pra começar a construir. E uma das minhas tias também estava grávida, nasceu a menininha, ficou lá com a gente um tempo. Era um lugar bem apertado, o banheiro era fora de casa ainda. Era muito engraçado, porque o filho da proprietária lá do quintal tinha mania de ficar olhando a gente tomar banho na porta, ele ficava olhando pela fechadura (risos). Menino maldito. Que raiva eu tenho daquele moleque! O que mais tinha lá? Era um quintal muito pequeno, não tinha espaço pra gente brincar. Tinha um vizinho que era muito querido nosso, uma família vizinha que a gente brincava bastante. Acho que só. A dificuldade mesmo era pra sair, principalmente quando chovia, ir pra escola era complicado. Porque a gente estudava lá no centro, porque a gente não conseguiu vaga nas escolas da região e a minha mãe conseguiu bolsa pra gente lá no Externato São Francisco, que era bem ali no centro, e meu pai fazia aquela linha de ônibus, então a gente ficava numa parte do caminho, meu pai pegava a gente, levava, deixava na escola. Depois a gente voltava. Minha mãe trabalhava ainda com essa família nessa época. Não morava mais junto, mas ainda trabalhava com eles. O que eu me lembro dessa fase acho que era isso.

P/1 – Você falou da escola, antes até dessa mudança, quando você morava ainda na casa do seu padrinho, eu queria saber quais são as primeiras lembranças que você tem da escola. E que idade você tinha quando começou a frequentar.

R – Quando a gente entrou na escola, eu devia ter uns quatro anos. Eu lembro que era um lugar muito bonito o Sacre Coeur. Era um pátio muito grande, tinha muito verde. A gente usava uniforme naquela época, que era o vestidinho azul, a jardineirinha azul. As meninas e os meninos usavam camisa e bermudinha azul. E as brincadeiras, eu lembro muito as brincadeiras, da correria na hora do recreio. As professoras eram muito atenciosas com a gente. Depois quando a gente mudou de escola, a gente foi para o externato, aí já era uma escola mais fechada. É um prédio ali do lado do Universidade da USP, da Universidade de São Francisco. E o prédio não tinha muito lugar pra brincar, então não tinha verde nenhum, tinha só um pátio interno. E a gente não podia brincar muito, porque tinha as freiras circulando, porque era um colégio de freiras e tal. Apesar de a gente não ficar no internato, ele tinha parte do internato também. Não lembro muito bem porque a gente passou pouco tempo nessa escola. Mas a única coisa que eu lembro bem foi o dia que eu entrei na clausura, que eles deixaram aberta a porta, aí eu não tive dúvida, falei: “Vou ver o que tem lá dentro”. Eu sempre fui muito curiosa. E era muito bonito lá dentro. Eu falei: “Olha elas guardando o ouro aqui”. Tinha muitas flores, muitas árvores, tinha um espaço grande pra brincar. E eu lembro que foi um dia meio tumultuado, porque depois todo mundo ficou me procurando pra ir embora: “Cadê fulana? Cadê fulana?”. Quando elas entraram na clausura, é lógico que eu tomei aquela bronca, porque não era pra eu estar lá dentro. Mas é uma das lembranças que eu mais guardei desse período, que era a clausura. Hoje em dia quando as pessoas falam de clausura, eu me lembro daquele lugar, eu falo: “Mas não é um lugar tão ruim. Por que as pessoas falam que é ruim?”. Mas na minha concepção era um lugar bonito. Foi o que eu tive naquele momento, foi a sensação que eu tive e a sensação que eu tenho até hoje. Pode até não ser um lugar não muito convidativo, mas pra criança era, então está tudo certo. Pra mim tá tudo certo.

P/1 – E você teve algum professor ou professora marcante nessa fase?

R – Eu tive, mas já depois que nós nos mudamos de escola de novo. Nós fomos estudar no bairro mesmo. Tive minha professora da segunda série, foi uma pessoa que me incentivou muito a estudar. Mostrava pra gente o que era estudar, por que estudar. Dona Carmen, o nome dela. Gostava muito dela, porque era ela muito carinhosa com a gente, mas também ela tinha pulso, ela não era do tipo da professora que: “Olha, vocês podem fazer o que vocês quiserem” – ou – “Não. Não vão fazer nada do que vocês querem, vão fazer só o que eu quero”. Tinha ali um equilíbrio nessa relação. E ela me incentivou muito a estudar, a ler principalmente, e a usar a imaginação pra tudo. Falava: “Não consegue resolver pela forma, usa a imaginação que você vai conseguir”. E isso ficou muito marcado pra mim. Depois quando fui avançando um pouco mais, eu tinha... Quando a gente mudou daquela fase da quarta série pra quinta série, que você passa a ter vários professores, foi meio complicado pra mim essa fase, me acostumar com tantos professores, porque era uma diversidade muito grande e cada um com seu jeito. Então ao mesmo tempo que era divertido, alguns deles eram muito divertidos, outros eram intragáveis, insuportáveis. Mas, enfim, desse período tinha a minha professora de Português, ela me influenciou a ser uma professora de Português hoje. Não que ela dissesse: “Olha, você vai fazer”. Não: “Você pode fazer”. Eu acho que tem uma diferença entre o “vai fazer” e o “pode fazer”, ainda mais com crianças que não tinham acesso. Até hoje no bairro a gente não tem uma biblioteca, então tudo era muito difícil naquele período. Pra ir pra escola era um desafio, porque quando chovia não tinha condição de sair de casa. A gente acabava dando um jeito lá, todo mundo... Era um grupo de crianças que morava no mesmo lugar, que acabavam se ajudando pra chegar à escola com tanto barro no pé, com a roupa toda molhada. Enfim, tinha ela, tinha outra professora que eu achava muito legal, ela não explicava nada, coitada, mas eu gostava do jeito dela, porque ela era japonesa e ela era japonesa mesmo, na indumentária, no que ela usava, no jeito de falar, eu achava aquilo tão bonito, eu falava: “Nossa...”. O pessoal tirava sarro porque ela ia dar aula de quimono, de chinelo, aquele chinelo quadrado. Mas eu achava aquilo fantástico, porque ela me ensinou a gostar das minhas raízes, nunca diretamente, mas indiretamente ela falava: “Olha, eu sou isso. É o que eu tenho pra oferecer pra vocês”. (emocionada) Então acho que isso me marcou muito. E o que a gente tem pra oferecer para as pessoas é o que é mais importante, na minha visão.

P/1 – Essa professora de Português que você mencionou que foi importante pra até a escolha profissional que você fez, você se lembra de algum momento, de um episódio, uma história com ela que tenha te marcado?

R – Lembro. O primeiro dia de aula com ela, que a minha primeira aula com ela foi na sétima série, ela levou um rádio pra sala, isso pra nós era novidade, e colocou um cassete com música do Toquinho, Aquarela, falou: “Vamos imaginar essa música”. Aí foi passando a letra, a gente foi ouvindo, e ninguém estava entendendo muito bem aonde ela queria chegar. Mas aí chegou a um determinado ponto que ela falou: “O que vocês acham que significa esse trecho?”, que é o encontro, o “beijo azul” que fala na música. E aí eu fiquei pensando, pensando, ninguém respondia nada, eu falei ela: “Professora, eu não sei, mas parece que deve ser o encontro do mar com o céu lá no final, lá no horizonte” “Você já foi à praia?”. Eu falei: “Não. Nunca fui. Mas eu imagino que seja isso. Você falou pra imaginar, eu estou imaginando”. Ela falou: “Muito bem, tal”. E a gente começou a destrinchar a música inteira. Depois que eu falei alguma coisa, aí os colegas começaram a botar a imaginação pra funcionar também. E foi um momento muito legal, porque a gente se sentiu acolhido por essa pequena dinâmica que ela fez, e acho que nós a acolhemos também, aceitamos aquelas brincadeiras e as várias propostas que ela sempre nos fazia. E uma dessas propostas foi um concurso de poesia que ela fez entre as sétimas séries. E eu nunca tinha escrito nada, em termos. Eu costumava escrever minhas próprias brincadeiras, mas era diferente, poesia eu nunca tinha me aventurado. Mas aí eu me aventurei e foi o primeiro concurso de poesia que eu ganhei, foi aquele. E ela trouxe duas bonecas, para o primeiro e para o segundo lugar, uma boneca de fantoche, que a gente enfiava a mão e mexia nela. E eu tive a oportunidade de escolher qual eu queria, porque eu tinha sido o primeiro lugar. E eu lembro muito dessa boneca. Eu não sei onde ela foi parar, não sei mesmo, porque a gente se mudava muito, então ela deve ter se perdido numa dessas mudanças. Mas eu lembro muito dela, uma bonequinha muito linda. E isso foi alimentando essa minha vontade de ser professora, talvez, e de escrever principalmente. Eu falei: “Bom, se eu ganhei uma boneca, eu posso ganhar alguma coisa daqui pra frente, não sei”. Eu fui nessa caminhada. Mas ela me incentivou a gostar de escrever e a querer escrever sempre mais.

P/1 – E essa professora japonesa que você mencionou, que te ajudou a pensar na importância de raízes e tal, de que disciplina ela era?

R – Matemática.

P/1 – Matemática.

R – Era Iasue o nome dela.

P/1 – Eu queria perguntar, você falou de raízes, um pouco como era essa questão da cultura pernambucana na sua casa. Tinha alguma coisa? Música, comida?

R – Sim. Sim. Sempre teve. Minha mãe fazia muita coisa pra gente. Meu pai até hoje faz o cuscuz pernambucano lá. Todo domingo de manhã é cuscuz com abóbora e leite, já virou tradição. Além das próprias músicas. Minha mãe falava muito do frevo, que era o que eles tinham mais contato, principalmente na época do Carnaval. E ela ensinava algumas coisas pra gente, algumas comidas e tal. Mas como o acesso deles era pouco, então o grosso mesmo da cultura pernambucana eu vim conhecer depois, quando eu já estava mais velha e tal. E carne seca, a gente comia muito, comia demais, porque ela fazia uma salada desfiada lá com carne seca, com pimentão, inhame... Como é o outro? Cará. Cará. Que o meu pai falava bastante também, que ele gosta muito de comer também. Acho que era basicamente isso.

P/1 – E a sua família tinha o hábito de ouvir música ou cantar em casa?

R – Sim. Sim. Depois que a gente se mudou pela segunda vez, dentro do bairro mesmo, nós fomos pra um lugar que tinha várias casas, era um quintal enorme, tinha várias casas e a gente foi morar nesse lugar. E a gente não tinha televisão, não tinha rádio, não tinha nada, de repente, um belo dia meu pai apareceu lá com uma televisão, uma televisão redondinha, preto e branco, e a gente assistia naquilo e achava o máximo, principalmente Carnaval, que a minha mãe gosta muito. E de repente meu pai apareceu com uma TV a cores, eu falei: “Nossa, que legal, e tal”. Na época a gente chamava de som, é uma vitrola. E aí a gente começou a comprar muitos discos. E minha mãe gosta muito do Luiz Gonzaga, então a gente ouvia muito Luiz Gonzaga e a gente aprendia a cantar as músicas e tudo. Foi uma época bem legal. Ela ensinou a gente a dançar forró, ela ensinou a gente a sambar, tudo que tinha direito quando ela tinha um tempinho, que ela trabalhava demais nesse período. Então sempre que tinha um tempinho num domingo, que a gente... A família estava crescendo já, então a gente a ajudava com as coisas de casa, principalmente eu, que cuidava do meu irmão mais velho, que só se metia em encrenca. E cuidava de pequenininha, a Elaine, depois a Liliane nasceu também, aí cuidava dela também pra minha mãe poder trabalhar. Mas a gente se divertia muito nesse período de transição. Tinha muita criança no quintal, então a gente se acabava de brincar. O quintal tinha várias escadas, uma mais perigosa que a outra, então a gente se divertia imaginando os maiores perigos, as maiores aventuras, muito baseado nos seriados japoneses, que era o que a gente assistia naquela época: Jaspion, Changeman, e tudo isso. E também foi quando começaram a entrar no Brasil os jogos eletrônicos, aí minha mãe comprou um vídeo game para o meu irmão e a gente se reunia lá em casa pra jogar e tudo mais. É uma coisa que a gente faz até hoje, se reunir pra jogar.

P/1 – E dessas músicas do Luiz Gonzaga que a sua mãe escutava tem alguma que tenha te marcado, uma canção que você goste em especial ou que tenha marcado um momento?

R – Ela gosta muito de Asa Branca, então ela vivia cantando Asa Branca, e acho que foi a que ficou mais, desse período, pra gente, foi Asa Branca mesmo, que tinha aquela do renascer, da liberdade, de buscar outros caminhos e tal. Isso ficou muito marcado nela e acabou ficando marcado pra gente também, pra mim em especial. Eu gostava bastante. Até hoje. Já passei para os meus filhos também esse sentimento que a música traz. E fora o Luiz Gonzaga, ela gostava muito de Roberto Carlos também, e Elvis Presley. Elvis Presley ela ouvia muito, então acho que ali começou a nossa sementinha do rock'n'roll, que é a semente da família inteira hoje, e a gente aprendeu a ouvir com ela. Ela gostava muito de Love me tender, então a gente ouvia bastante. Eu lembro que ela tinha um vinil duplo do Elvis, tinha o Elvis bonitão na capa, preto e branco. E era uma edição de colecionador que ela tinha ganhado de uma das patroas dela, que sabia que ela gostava bastante. E a gente estava sempre ouvindo esse vinil.

P/1 – Dessa fase de infância ainda, Eliane, você lembra o que você queria ser quando crescesse? A primeira vez que você pensou numa profissão, criança ainda?

R – Eu queria escrever. Não sabia o que eu ia ser. A gente brincava muito de professor e tal, mas eu queria escrever. Então desde pequena eu tinha lá pastas e mais pastas com coisas que eu escrevia, com coisas que eu ficava imaginando. Muitas dessas pastas se perderam também nessas mudanças e tal. Mas o que eu sabia é que eu queria demonstrar meus sentimentos por meio da escrita. Depois acabou... A profissão de professora, de educadora, acabou vindo naturalmente, porque eu ajudava muito meus irmãos, a gente brincava muito de escolinha. Nos trabalhos voluntários que eu fui me dedicar, um desses trabalhos foi como educadora, então acho que foi meio natural. Eu não sabia se eu tinha vocação ou não, mas fui aprendendo, fui melhorando, fui me estimulando a fazer sempre melhor. E acho que eu de alguma forma, alguma semente frutificou disso. E é o que eu faço até hoje, é o que eu gosto de fazer, não só em sala de aula, acho que qualquer lugar onde você vá é um lugar educador, depende da sua postura, depende daquilo que você quer transmitir para o outro. Então aonde eu vou, qualquer lugar é lugar pra mim de educação. Eu mesmo sem querer acabando dando uma de educadora.

P/1 – Você contou um pouquinho pra gente na sétima série, que foi a primeira vez do concurso de poesia, que você entendeu que escrever podia te trazer alguma coisa, eu queria que você falasse um pouco dessa mudança da infância pra adolescência. O que mudou pra você em termos de hábitos, de passeios, de amigos? Quais foram as mudanças mais marcantes da infância pra adolescência?

R – Acho que a grande mudança que teve nesse período foi quando eu entrei no ensino médio, porque daí eu perdi o contato com todos os meus amigos do fundamental. E a gente estudou todas as séries juntos, desde o terceiro ano até o... Terceiro ano... Terceira série até a oitava série fomos sempre juntos. E quando nós passamos para o ensino médio ainda tinha aquela questão de fazer o exame pra entrar no ensino médio, tinha umas escolas que ainda exigiam esse exame, e aí muitos não conseguiram entrar na mesma escola, acabamos procurando outros meios. Ali eu percebi que teve uma ruptura muito grande, que eu falei: “Bom, agora cada um pra um lado, a gente começa a procurar outras coisas”. Eu já estava trabalhando quando eu fui fazer o ensino médio. Era uma época conturbada, porque não tinha vaga pra todo mundo. E eu lembro que a minha mãe teve um problema muito sério de tireoide nesse período pra arrumar vaga para o meu irmão e pra mim numa escola lá da região. E quando eu fui pra essa escola, eu fui pra estudar à noite e era um perfil muito diferente. O pessoal que estudava à noite já era um pessoal que trabalhava, mas que só queria saber de trabalhar, não queria estudar mais. Então esses meus primeiros seis meses do primeiro ano do ensino médio foram muito traumatizantes, arrumei briga com professor, coisa que eu nunca tinha feito, não conseguia me entender com os meus colegas de classe, aí acabei desistindo, passei mais um tempo sem estudar. E como eu já tinha começado a trabalhar, fui pagar um colégio particular pra mim, pra poder terminar o ensino médio. E eu acabei entrando num curso técnico de Contabilidade por influência do meu padrinho, que era contador. Eu achava que seria uma coisa legal pra se fazer. Não era muito boa de Matemática, mas fui mesmo, e acabei gostando bastante, porque eu percebi que tinha coisas que eram práticas, mas também tinha muito mais essa coisa voltada pra leis e tal. E eu gosto desse meio também, apesar de eu nunca ter pensado em fazer Direito, nem nada, mas eu gosto de entender como a coisa funciona. E depois eu me dei muito bem na escola lá, a gente fazia gincana, a gente fazia uma série de coisas. Nem sempre eu podia estar junto, porque eu trabalhava numa farmácia, então eu trabalhava de segunda a sábado. E o pessoal fazia teatro lá e eu nunca podia estar no teatro, e tinha maior vontade de participar, mas não dava tempo. Eu lembro que o primeiro ano a escola promovia uma gincana, tinha os esportes e tinha o teatro, e era meio que tradicional já na escola que os primeiros anos do ensino médio nunca ganhavam nada, nunca ganhavam nenhuma gincana, eram péssimos, era uma coisa muito feia. E teve um colega nosso lá, um colaborador nosso que tinha uma peça de teatro pronta já, falou: “Vamos fazer?” “Vamos”. E ele queria que eu fizesse o papel da protagonista, mas eu não conseguia estar em todos os ensaios. Eu falei: “Olha, me arruma um papel de figurante, que fica mais fácil pra mim e tal”. E eu acabei fazendo um jornaleiro, um molequinho muito divertido. Foi muito divertido. E a peça ficou muito legal, ficou muito boa, o pessoal se envolveu muito. E nós acabamos ganhando. Nesse ano nós ganhamos, o primeiro ano ganhou a gincana. E eu lembro que os veteranos ficaram muito bravos porque a gente tinha ganhado e não podia, sabe? É como se a gente não pudesse ganhar. E o prêmio dessa gincana foi um final de semana num sítio, foi uma coisa muito divertida. E nesse mesmo ano eu ganhei um segundo concurso, aí de redação, que a escola promoveu. Foi meu primeiro conto. Foi um concurso de redação, mas eles acabaram dividindo em poesia, conto, redação. E foi o primeiro conto que eu escrevi. E eu lembro que a gente naquela época tinha professor de redação. E era um professor muito legal, muito inteligente, cheio de ideias e tal. Eu lembro que uns dias antes da divulgação do resultado ele trouxe pra mim de presente um livro, que ele mesmo estava me dando, porque ele tinha gostado muito do meu conto. Ele falou: “Olha, não quer dizer que você vá ganhar o concurso, mas eu quero te parabenizar pelo que você escreveu, porque ficou muito bom”. E eu lembro que esse livro é do Luís Sepúlveda, eu o tenho lá em casa até hoje, Um velho que lia romances de amor. E é um livro muito bonito. Na época eu não consegui entender o livro. Depois de alguns anos eu reli, falei: “Olha só”. É um livro, como a gente pode dizer? É um romance, e num romance tudo pode acontecer, não quer dizer que as coisas tenha uma ordem cronológica ou tenha uma ordem de sentimentos, as coisas vão acontecendo ao mesmo tempo. E na época que ele me deu, eu não consegui entender, e hoje eu entendo bem. E é um livro muito querido pra mim. Está lá guardadinho.

P/1 – Quantos anos você tinha quando você começou a trabalhar, Eliane? Você mencionou o trabalho, por que você começou a trabalhar?

R – Eu estava com 17 anos quando eu fui trabalhar. Eu fui trabalhar mais pra ajudar em casa mesmo. Porque, lógico, você chega na adolescência, você quer ter acesso a outras coisas e tal, mas meu pai e minha mãe continuavam trabalhando muito e a gente nunca conseguia nada. Meu irmão também já estava trabalhando. Aí eu fui trabalhar porque eu queria ajudar mesmo em casa e pra ter outras experiências. Depois que eu entrei na escola, nesse colégio particular, eu conheci muita gente interessante, muita gente diferente. Quando eu fui trabalhar, eu conheci mais gente ainda. E é uma coisa que eu gosto, conhecer pessoas. Acho que conhecer a história das pessoas é muito interessante, faz com que as pessoas tenham um valor diferenciado. Acho que a história é muito importante.

P/1 – E esse primeiro trabalho já foi a farmácia? Foi isso?

R – Foi.

P/1 – E como era? Conta um pouco como você encontrou trabalho, como era seu dia a dia.

R – Essa história eu tenho que voltar um pouquinho. Quando eu fiz 15 anos, a minha mãe já frequentava um centro espírita e a gente fazia as nossas reuniões em casa, mas quando eu completei 15 anos foi que eu comecei a frequentar de verdade esse centro espírita. E o dirigente do centro, que era o senhor Roque, senhor Roque Jacinto, a primeira vez que eu cheguei lá, ele me pegou pelo braço, falou: “Vamos lá que eu tenho um trabalho pra você”. Eu falei: “Ah, meu Deus do céu. Tá bom, vamos, né? Fazer o quê?”. E ele me jogou na sala com um monte de crianças e falou: “Olha, são suas”. Eu falei: “Mas o que eu vou fazer com essas crianças?”. Primeira vez. Ele falou: “Você vai saber o que fazer”. Eu falei: “Tá bom”. Tinha umas 40 crianças dentro da sala, crianças já passando pra adolescência, então aquela bagunça, aquele tumulto. Eu falei: “Gente, vamos conversar, vamos sentar, vamos nos conhecer, porque eu não conheço vocês, vocês não me conhecem. Vamos ver se a gente consegue estabelecer algum contato aqui, tal”. E foi uma experiência muito legal, porque foi meu primeiro contato mesmo com uma educação não formal, mas educação. A partir desse primeiro momento, a gente começou a conviver dentro do centro e lá no centro eu conheci um senhor, que era o dono dessa farmácia, onde posteriormente eu fui trabalhar. Era um senhor muito bom, ele gostava muito de ajudar as pessoas, então muita gente já tinha trabalhado com ele, já tinha começado nesse mesmo caminho. E eu segui o fluxo e fui trabalhar com ele também lá nessa farmácia. E na farmácia, como eu não tinha nenhuma experiência com balcão, ele falou: “Olha, você tem duas opções: ou você trabalha com a Blanca” – que era a senhora que trabalhava lá, que ela era terrível, ela não gostava que ninguém trabalhasse com ela, ela não admitia – “ou você vai trabalhar com as entregas”. Porque como tinha convênio com algumas empresas... Eu falei: “Ah, então eu vou trabalhar com as entregas, porque pelo menos eu não fico fechada aqui dentro o dia inteiro, que eu não vou aguentar ficar o dia inteiro com a Blanca enchendo o saco”. Beleza. Então vamos. E então foi como eu comecei a conhecer mais a cidade, porque daí eu pegava metrô, zona leste, zona oeste, e fui conhecendo muita gente nas entregas que eu fazia, e fui fazendo amizade com o pessoal e tal. Eu não passei muito tempo lá, porque depois meu irmão se meteu numa confusão aí, e acabei o deixando ficar no meu lugar, porque ele estava precisando muito mais do emprego do que eu. E acabou ele ficando lá na minha função e eu fiquei em casa com a minha mãe mesmo. Enfim.

P/1 – Você lembra como você gastou seu primeiro salário nesse trabalho? Se você comprou alguma coisa que você queria?

R – A farmácia era ali na Correia Dias, no Paraíso, e na Domingos de Morais tinha uma loja, que não tem mais, que era uma loja de artigos militares, então tinha várias coisas nessa loja, tinha faca, tinha mochila, tinha armas também, mas aí era pra quem era licenciado e tal. E eu lembro que tinha um... Que eu entrei nessa loja uma vez com o meu irmão, falei: “Meu primeiro salário eu vou vir aqui”. E quando eu recebi meu primeiro salário, eu voltei lá. Eu lembro que ele foi comigo de novo, falou: “Mas o que você vai comprar aqui? Não tem nada pra uma menina aqui”. Eu olhei pra ele, falei: “Eu vou achar. Não se preocupe, não”. Eu fui olhando e tal, e tinha umas camisetas lá, umas camisetas com umas estampas diferentes. Eu gosto muito de camiseta e tal. Eu falei: “Eu vou levar uma camiseta”. E eu lembro que naquela época eu escolhi uma camiseta que era branca e tinha o brasão do Senta a Pua. Ele falou: “Mas você nem sabe o que é isso”. Eu falei: “Eu vou procurar saber, não se preocupe, não”. Comprei a camiseta e adorava a camiseta, a usava muito. Depois de um tempo, quando eu completei 18 anos, tinha uma senhora, que era do mesmo centro que a gente frequentava, ela falou: “Está precisando de gente lá onde eu trabalho. Você quer ir trabalhar lá?”. Eu falei: “Ah, eu quero. O que você faz lá?”. Ela falou: “Ah, é supersimples lá, não tem muita dificuldade, você pega rapidinho”. E ela trabalhava na Associação dos Funcionários do Banco do Brasil. E aí eu fui trabalhar lá com ela. Era um prédio na Paulista, eu sempre tive vontade de trabalhar na Paulista. A gente ter certo fetiche com a Avenida Paulista, principalmente quando você é jovem. E fui trabalhar lá com ela. E lá tinha uma biblioteca pra uso dos funcionários. E nessa biblioteca, eu achei um livro do Senta a Pua, que contava toda a história desse grupo da FAB, da Força Aérea Brasileira, que era um grupo que foi para o front na Segunda Grande Guerra junto com os aliados. E eu li a história e acabei entendendo por que era Senta a Pua, por que da camiseta e tudo. Falei: “Nossa, que coisa”. É engraçado a ligação que as coisas fazem. Mas, enfim, depois foi a época do Plano Real, foi a época que o Plano Real foi lançado. Lembro que a minha carteira foi registrada, o primeiro registro mesmo, porque na farmácia eu não tive. O primeiro registro foi em URV, aquela unidade de valor, e quando entrou o Plano Real, eu estava trabalhando lá. Então eu lembro que meu primeiro salário lá já foi em real. Quando eu cheguei em casa foi uma festa, porque tudo novo, tudo diferente. Eu lembro que a minha mãe falou: “Bom, amanhã a gente vai pra feira, mas será que alguém vai aceitar essa moeda nova já?”. Enfim, o pessoal, os feirantes já estavam mais preparados que o povo, comerciante, tal. Mas eu lembro como se fosse hoje, que com cinco reais a gente trouxe uma feira imensa. Imensa. Muita coisa. Muita coisa. E à noite a gente foi pra balada, meu irmão e eu, e o metrô não tinha recebido as moedas de real ainda, então eles não tinham como trocar e a gente acabou indo de graça no metrô, porque eles não tinham como trocar o dinheiro, eles não tinham recebido ainda. E foi uma coisa que me marcou muito, porque foi a primeira grande mudança econômica que eu notei, que eu já tinha entendimento. Então foi uma coisa que eu percebi que ficou muito marcado, que as coisas eram... Um quilo de tomate era dez centavos. E hoje eu olho para o real, falo: “Gente, dez reais o quilo do tomate. Que absurdo! Como pôde mudar tanto?”. Mas eu percebi que a gente teve várias conquistas nesse meio tempo aí por causa da bendita da moeda.

P/1 – E você mencionou essa balada com o seu irmão, eu queria saber um pouco o que você fazia pra se divertir nessa fase de adolescência e juventude. Pra onde você saía, ou você encontrava os amigos? Quais eram assim as...

R – Tinha o pessoal da escola, mas não era muito de sair com o pessoal da escola. Mas naquela época a gente tinha um hábito de passar nas casas uns dos outros e a gente ia conhecendo gente. Esse hábito começou com as minhas amigas no fundamental. Então a gente saía junto, ia passando na casa de um por um, ia juntando uma galera e: “Ah, vamos fazer alguma coisa. Vamos comer alguma coisa”. Ninguém nunca tinha dinheiro, então tinha que fazer uma vaquinha lá e a gente ia. E nesse meio eu comecei a... A gente ouvia muito rock lá em casa, então o meu irmão começou a conhecer um pessoal que curtia, eu também conheci um pessoal que curtia também, aí a gente juntou um grupo bom no final das contas: “Ah, vamos pra Led, vamos pra Fofo?” “Meu, eu posso entrar nesses lugares? Eu sou menor”. Falou: “Ah, a gente dá um jeito” “Beleza, então...”. E com 16 anos, eu comecei a ir pra Led quase que todo sábado. Lá a gente conhecia muita gente, a gente se divertia muito. Quase sempre sem dinheiro, tomava água a noite inteira, porque não gostava de beber mesmo, e lá não tinha comida, era só bebida mesmo que os caras vendiam, então tomava água a noite inteira. Acho que foi nessa época que eu me esqueci de engordar, porque agora eu não consigo mais (risos), de tanto ficar sem comer, ficava horas e horas sem comer. Mas a gente se divertia bastante nesse período.

P/1 – O que vocês escutavam de rock?

R – Lá tocava de tudo um pouco, mas principalmente os clássicos: Iron Maiden, Led Zeppelin. Eu já ouvia muito Kiss, desde os sete anos. Gostava muito do Kiss, assistia pela televisão quando teve essa abertura da televisão brasileira. Eu lembro que em 83 eles marcaram o primeiro show no Brasil, eu tinha sete anos, sete, oito anos, eu virei para o meu pai, falei: “Pai, você vai me levar ao show do Kiss”. Ele: “Não. Isso é coisa do demônio. Você está louca, eu não vou te levar a lugar nenhum”. E eu: “Poxa vida, eu nunca vou ver o Kiss”. E em 2012 foi a primeira vez que eu vi o Kiss, então foi agora, recente. Aí já fui com a minha filha.

P/1 – E como foi?

R – Nossa, foi surreal. Eu mais chorava do que tudo, porque eu achava que eu não ia ver os caras nem vivos mais: “Pô, os caras estão caindo aos pedaços já, não nem conseguir assistir a um show deles”. E assisti e foi um momento... Não dá pra explicar. Foi muito emocionante. Muito legal. Foi tudo ao mesmo tempo. E a minha filha: “Para de chorar, mãe”. Eu falei: “Você não vai entender se eu te explicar. Deixe-me chorar em paz, pelo amor de Deus”. E foi lindo. Foi sem precedentes. Foi muito legal. E era isso que a gente ouvia lá na Led. A gente ouvia forró também, porque a saideira da Led era forró, então a gene dançava muito também. E era uma coisa interessante, porque era um período que havia certa intolerância entre os grupos, entre os punks, entre os roqueiros, os carecas e tal. E eu lembro que foi um período ruim pra gente, porque a gente não podia sair sozinho com a camiseta, ou com alguma indumentária, porque com frequência a gente encontrava grupos, então a gente tinha medo de sair sozinho. E a gente sempre saía em bando por causa disso. As pessoas achavam que a gente ia fazer coisa errada, mas não era porque a gente queria causar, era por proteção mesmo. Eu lembro que teve um colega nosso que morreu, que o pegaram sozinho. Morreu com uma machadinha na cabeça, foi muito triste, foi bem complicado. (emocionada) E era uma coisa que eu não entendia, falava: “Poxa, a gente está do mesmo lado, a gente ouve as mesmas coisas, curtimos as mesmas coisas, pra quê isso?”. Com o tempo eu fui entender que não era só nesse meio que tinha intolerância, eram em outras coisas também, era no fato de a minha religião ser diferente da do outro, no fato de os meus pais serem pernambucanos, enfim. Foi uma época complicada.

P/1 – Você falou dessa questão da religião, você mencionou algumas vezes, eu queria saber como é a sua relação com a religião. Você falou que a sua mãe já era espírita, né?

R – Sim.

P/1 – Se ouve um momento de conversão na sua família, se você teve alguma experiência mais forte com essa questão da religiosidade.

R – Foi uma coisa natural. Como a minha mãe já era médium, não tinha ainda um conhecimento da coisa, mas a gente já fazia um... Como eu posso dizer? A gente acabava recebendo pessoas com problemas que nenhum médico resolvia. Aí a gente fazia essa reunião na minha casa, lia o Evangelho e as pessoas foram melhorando, foram entendendo o que estava acontecendo com elas, que era uma coisa natural, que o ser médium não era uma coisa do demônio, enfim, outras coisas. Era um fenômeno natural, que tinha um desenvolvimento que precisava ser seguido e tal. Eu lembro que a gente teve momentos muito fortes durante essa caminhada, porque as pessoas chegavam com muito medo, mas tinha um problema sério que precisava ser resolvido, até pra que a pessoa tivesse paz, porque ela começava a demonstrar essas coisas, esses fenômenos, e sem entender o que estava acontecendo, então a pessoa desmaiava, caía no meio da rua, se machucava, enfim. E a gente foi estudando, entendendo esse processo e ajudando essas pessoas. Fui a outros lugares. Como eu falei pra vocês, eu sou muito curiosa. Então eu tenho como premissa a minha religião, não a mudo por nada, ela me completa, mas eu sempre quis conhecer outras coisas. Então eu lembro que eu nesse período que eu estava trabalhando na Asbac, na associação, tinha um templo Hare Krishna na Avenida Angélica, e aí eu passei algumas vezes por ele, de vez em quando a gente encontrava alguns adeptos e eles sempre convidavam a gente pra conhecer. Eu falei: “Tá. Eu vou lá qualquer dia”. Eu fui. Era uma coisa muito diferente do que eu esperava, do que eu conhecia, então aquilo ficou muito marcado, aquela visita ficou muito marcada pra mim, porque eles me receberam muito bem, o rapaz foi superatencioso conosco, participamos de um culto deles lá. No final de tudo ele falou: “E aí, o que você achou?”. Eu falei: “Eu gostei. Achei tudo muito legal, mas eu acho que eu não consigo viver como vocês vivem, acho que ainda preciso evoluir um pouco mais, talvez entender um pouco mais os processos”. Já fui a templo de umbanda, de candomblé, já fui a igrejas protestantes. Ainda não fui a um templo budista, mas irei, eu vou achar um pra eu visitar. Essa religiosidade acabou sendo natural e tal. E a gente continua fazendo isso, esses encontros de família pra estudar o Evangelho juntos. E acabou se tornando uma tradição pra nós. Porque a gente pode passar a semana inteira se se ver, sem se falar direito, porque trabalha, estuda etc., mas no domingo à tarde, seis horas da tarde, a gente está lá todo mundo junto pra sentar, pra conversar, pra estudar, pra aprender juntos.

P/1 – E você se lembra de algum momento nessa relação com a religião de um episódio ou um momento marcante em especial, que tenha sido forte pra você, ou que você tenha presenciado?

R – Teve vários, mas quando eu era menor, eles eram... Tinha uma força maior, porque eu não entendia muito, então todas aquelas manifestações de mediunidade... Teve um caso específico de uma vizinha nossa que tinha uma mediunidade muito forte, muito aberta, e ela pegava as coisas com uma facilidade imensa. Vou usar o termo popular, não é o ideal, mas vou usar pra ficar mais fácil, ela incorporava umas coisas que eram difíceis de a gente acreditar que aquilo estava ali, mas estava, porque não era a pessoa, a gente percebia que não era a pessoa. Teve uma vez que ela se arranhou, se machucou toda, saiu de lá muito machucada mesmo, e a gente tentando contornar a situação, até que ela consegui se acalmar e tal, mas foi uma coisa bem forte. Que a gente nunca espera que tenha esse tipo de manifestação. Hoje a gente já sabe melhor como lidar, mas naquela época era mais complicado. A gente tinha vários vizinhos que vira e mexe eram médiuns e não sabiam, e a gente tinha que acabar socorrendo sem saber meio como fazer. Mas a gente socorria e graças a Deus nunca teve nenhuma coisa mais absurda, fora esse momento que essa menina se machucou e tal. Mas graças a Deus ela está bem hoje, não temos mais essa preocupação com ela.

P/1 – Eu queria voltar um pouquinho pra questão da sua vida profissional. Você tinha mencionado que foi fazer o Técnico de Contabilidade, contou um pouquinho pra gente como foi essa experiência. E eu queria saber quando você vai se encaminhando pra essa questão mais da educação mesmo. Como veio essa mudança? Quando você decidiu fazer uma faculdade de Letras? Como essa descoberta, essa decisão?

R – Eu nunca tinha pensado em fazer faculdade. Eu gostava muito de ler, com 13 anos eu já tinha O capital, e achava aquilo fantástico e tal, mas nunca pensei em fazer faculdade mesmo. Mas quando eu fui para o ensino médio, eu acabei me envolvendo com o pai da minha filha, com 18 anos, e acabei desistindo do curso técnico, então eu não completei naquele período, porque eu acabei ficando grávida e tal. E aí ela nasceu, teve todo aquele... A coisa não deu certo, não fluiu do jeito que a gente imaginava. Fui morar com o pai dela, não deu certo, voltei pra casa. E aí eu comecei a me envolver mesmo com trabalhos em escolas da região. Fui num primeiro momento como auxiliar e tal, só pra ficar mesmo tomando conta das crianças, depois com recreação. E aí abriu uma escola do lado da minha casa, e minha mãe ficou muito amiga da dona e tal, e ela falou que estava com dificuldade de encontrar pessoas que ficassem com as crianças de quatro a seis anos e tivesse essa empatia com as crianças. Porque ninguém queria ficar. Elas não se davam, as crianças não se davam com ninguém, só com ela, e ela não podia tomar conta de todas as salas. E aí ela me convidou pra pegar uma dessas turmas, e foi onde eu comecei a estudar sozinha algumas vertentes de educação, pra entender como funcionava essa coisa com crianças e tal. E estudando sozinha e dando aula para as crianças. Eu lembro que a casa onde ela colocou a escola não tinha uma estrutura para escola. Eu um dos quartos tinha armário embutido e não dava pra colocar lousa, porque não cabia, e eu usava o armário como lousa pra dar aula para as crianças. E foi um negócio que acabou ficando muito legal, porque a gente fez um alfabeto móvel, cada criança fez o seu, e a gente usava durex e colocava no armário. E elas achavam aquilo superdivertido, uma coisa tão simples. E começou assim. De manhã eu ficava lá com essas crianças. A minha irmã nesse período já estava fazendo Pedagogia na USP, a Liliane, ela já fazia Pedagogia, e ela já conhecia algumas pessoas envolvidas com educação e ela dava aula no Mova nesse período. Mas ela foi convidada pra dar aula numa escola, pra estagiar numa escola, ela falou: “Eu não vou conseguir mais, você quer?”. Eu falei: “Mas não tem que ser formada?”. Ela falou: “Não”. Aí eu fui. E foi uma das melhores fases da minha vida, porque eu conheci pessoas incríveis. Não sabia de nada, mas a Marlene, que era a nossa supervisora, falou: “Não precisa se preocupar, porque a beleza da educação não formal é que você vem sem saber de nada e constrói esse saber junto com os outros”. Eu falei: “Ah, beleza então, vamos lá”. E logo de cara já foi uma diferença muito grande, porque eram adultos e eu não tinha dado aula pra adultos. Dia após dia a gente vai criando instrumentos, criando ferramentas pra melhorar as coisas. Mas o legal desse período é que toda sexta-feira a gente tinha formação, então isso me ajudou muito. Então a gente ia pra formação, a gente trocava experiências com os outros educadores também. E eu fui melhorando as minhas aulas. Tinha até um diário, tenho esse diário guardado, toda aula colocava alguma coisa e tal. E a gente acabou constituindo um grupo na sala muito forte, tanto a questão da educação, quanto a questão do afetivo mesmo, a gente criou laços de afetividade muito grande. Então eles sabiam da minha vida, eu sabia da vida deles, a gente ia se ajudando à medida do possível. E eram pessoas da região, eram pessoas do bairro, então tinha desde um adolescente lá de 15 anos, até uma senhora de 70 que não sabia escrever nada, a gente acabou conseguindo ali que ela aprendesse a escrever. E foi muito legal quando ela falou: “Ah, eu escrevi meu nome pela primeira vez”. Aquilo foi muito legal. E ali eu percebi que, poxa, acho que só tem um caminho pra nós, e o caminho é esse. E eu me convenço disso todos os dias, que é uma coisa que me emociona hoje, porque é o que eu gosto de fazer. (emocionada) Eu aprendi que é o que eu gosto de fazer, que é o que eu faço por prazer, não é uma coisa que me impõem. Independentemente de salário, de formação, estar com as pessoas e ajudar as pessoas a construírem o seu caminho é importante pra mim e é uma coisa que eu gosto. E nesse meio, depois dessas formações, profissionalmente eu saí do Mova, porque inclusive o projeto foi fechado lá, teve mudança de governo, de prefeito em São Paulo. E eu fui trabalhar numa outra coisa que eu não conhecia, mas que também me envolveu muito, que foi educação de rua. Então eu fui trabalhar num projeto que também já está extinto hoje, com crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. E ali foi, , um marco zero pra mim, porque eu tive que recomeçar. (emocionada) Porque até o que eu tinha, até então, eram histórias de pessoas, mas que tinham certa estabilidade. E esquece tudo que você fez até agora, é outro momento. E foi um grande desafio. Eu lembro que os seis primeiros meses foram muito difíceis, porque eram famílias e mais famílias em situação subumana, vivendo dentro da mesma cidade, dentro do mesmo bairro (choro). Então eram muitas coisas que... Eu tive pai e mãe pra me amparar, mas muitas daquelas crianças não tinham. E eles eram superdivertidos, superamigos, superpróximos da gente. E a gente acaba criando vínculos com essas crianças, com esses adolescentes. Então era muito comum a gente chegar ao farol e eles já estarem lá esperando a gente: “Oi, tia. Trouxe um brinquedo pra gente hoje?”. E a gente sentava e passava horas e horas com aquelas crianças. E eram crianças que viviam nas favelas, quando não estavam só na rua. E tinha uma história tão densa já, pra tão pouca idade, que muitas vezes eu achei que não ia aguentar. Mas a gente passou três anos nesse trabalho, infelizmente não conseguimos atingir todas essas crianças, encaminhar todas essas crianças, porque dependia muito do poder público. Então ao mesmo tempo que era um trabalho gostoso de estar com eles, de conhecê-los, de entender que eram pessoas, porque normalmente a gente passa pela calçada e ignora. Mas tem histórias ali, histórias muito fortes. Ao mesmo tempo era frustrante, porque a gente não podia fazer nada. E nós representávamos o poder público, de alguma forma, e não podíamos fazer nada, principalmente as mães quando a gente ia visitar, elas questionavam muito isso, falavam: “Vocês não vão fazer nada? Vocês não podem fazer nada? Vocês vêm aqui na minha casa representando o poder público e não vão fazer nada?”. Então foi uma experiência muito importante como pessoa mesmo, pra mim, não só como profissional. Mas era frustrante. Era muito complicado.

P/1 – Você se lembra de uma criança ou um jovem que tenha te marcado em especial, ou um momento?

R – Tinha uma família aqui na Favela do Buraco Quente, ali na Água Espraiada, aquela que pegou fogo várias vezes, era uma família de seis irmãos, se eu não me engano, e o pai tinha abandonado a família e ficou só a mãe. E a gente conheceu essa família através de uma das crianças que ficava ali no aeroporto. Era uma menina linda, linda, linda, loirinha, dos olhos verdes, que também era novidade pra mim, porque até então o que tinha eram, infelizmente, as crianças negras, as crianças pardas, indígenas. E ela não, ela era linda. E a gente se aproximou dela, superdesconfiada, tal, fomos conversando, a minha colega e eu, a Soninha, fomos conversando com ela, até que ela pegou confiança no nosso trabalho e começou a contar mais sobre ela, sobre a mãe e sobre os irmãos. Ela falou: “Ah, eu fico aqui porque eu tenho esperança de que alguém vai me levar embora”. Eu falei: “Mas pra onde você quer ir?”. Ela falou: “Ah, não sei, passa tanto gringo aí, eu tenho certeza de que alguém uma hora vai me levar embora”. E aquilo cortou o coração. Eu falei: “Mas e a sua mãe? Você não se preocupa com a sua mãe?”. Ela falou: “Mas é por ela que eu estou fazendo isso. Porque eu estando com outra família, eu sei que eu não vou mais dar trabalho pra ela”. E a gente conseguiu convencê-la a visitar a família, já foi a primeira dificuldade. No dia marcado nós fomos lá, e na entrada da favela, e essa foi uma situação bastante pontual, que quando a gente chegou... Nós não trabalhávamos uniformizadas, mas tinha que andar com o crachá. Quando a gente chegou na entrada da favela, a menininha estava na nossa frente junto com o irmão, tinha duas figuras sentadas: “Onde vocês vão?”. Eu olhei pra Soninha, ela olhou pra mim, eu falei: “Putz, agora a gente está encrencada”. Aí comecei a conversar com eles, falei: “Olha, a gente é do projeto tal, a gente visita as famílias pra conhecê-las e tal”. Ele olhou para o crachá, olhou pra gente, falou: “Tem certeza de que é só isso que vocês vão fazer?”. Eu falei: “Sim. Não tem nenhum outro sentido de a gente estar aqui, é só isso mesmo”. Falou: “Porque se não for, a gente vai atrás de vocês”. E aí eu percebi que ele estava armado. Eu vi atrás da cadeira um negócio enorme, eu falei: “Nossa...”. Aí a Sônia (risos), a Sônia era bem diferente de mim, a minha parceira, ela é muito delicada, muito feminina, eu olhei pra ela, ela estava pálida, eu falei: “Calma! Calma, vamos entrar”. Eu falei: “Pode ficar tranquilo que a gente não vai fazer nada demais”. Ele falou: “Assim espero. Que família vocês vão visitar?”. A gente falou o nome da mãe, ele olhou pra gente, falou: “É, essa daí precisa de ajuda mesmo, vai lá”. A gente subiu, uff, daquele jeito, ainda meio sem pisar no chão direito. A Sônia encostou na parede, falou: “Meu Deus do céu, a gente vai morrer aqui”. Eu falei: “Calma, vai dar tudo certo”. O barraco da família era lá em cima e tinha um baita de um lixão em frente. E quando a gente chegou lá em cima, o caçula estava brincando no meio do lixão, devia ter uns dois aninhos. Peladinho brincando lá no lixão, eu falei: “Nossa!”. Aí a menina falou: “Ô, fulano, vem cá. Vem aqui”. A gente conheceu a mãe, e foi uma das situações que a gente se controlou muito pra não se emocionar, porque a mãe muito emocionada o tempo todo, muito triste, uma autoestima muito baixa, e a gente não conseguiu fazer muita coisa por eles, porque tinha uma série de empecilhos e burocracias, e foi uma das situações que me deixou mais nervosa. Eu lembro até que a gente foi discutir o caso com a assistente social lá do serviço de referência e ela falou: “Ah, mas a gente não pode fazer nada” “Mas como vocês não podem fazer nada, gente? Aquilo é menos do que o subumano. A família não tem o que comer, os filhos não têm o que vestir. A menina vai acabar sendo realmente levada por alguém. A mãe vai ficar sem essa criança”. E a mãe já estava conformada com isso. Ela já sabia que isso ia acontecer, estava só esperando que a menina não voltasse mais. Eu falei: “A favela é controlada pelos traficantes. Vocês têm que fazer alguma coisa”. Nossa, eu lembro que naquele dia a gente chorava de raiva, de vontade de esganar alguém, mas, enfim, o projeto fechou, a gente não sabe que fim foi dado pra essa família. A gente espera que tenha sido o melhor possível.

P/1 – Você pode falar o nome do projeto?

R – Era Casa da Praça. Núcleo de Convivência Casa da Praça, que era em Santo Amaro. E tinha o núcleo, que recebia essas crianças e adolescentes que moravam na rua, que era um núcleo de convivência, então lá eles tomavam banho, eles comiam, só não tinham o acolhimento pra dormir, pra ficar. Mas de lá... Era o que a gente chamava de serviço de passagem, então de lá a gente entrava em contato com os abrigos, quando alguém queria ir, a maioria deles não queria ir, porque eles diziam que eram muito maltratados nos abrigos. E tinha uma menina, ela se apresentava como Amanda, a gente nunca soube o nome dela realmente, que ela era a líder dos meninos ali, então tudo tinha que passar por ela, ela que articulava tudo. E era uma menina menor que eu, mais magra que eu, mas ela era de uma inteligência fora do comum, era uma líder nata a menina. Eu lembro que na época que eles receberam a notícia que o projeto ia fechar, já existia há 13 anos, então já era referência para o serviço de passagem ali, eles ficaram muito nervosos, teve... Foi na época do PCC, que eles fecharam São Paulo, e os meninos estavam muito envolvidos por essa questão também do PCC, aí quiseram quebrar tudo, foi um momento muito tenso pra gente, e tentando conversar, tentando acalmá-los e tal. E por fim conseguimos unir esse grupo no sentido de acompanha a gente aos fóruns, às discussões com o poder público, pra que não fosse fechado o serviço, pra que ao contrário, se expandisse o serviço. Porque tem muita criança que não tem pra onde ir e os abrigos não têm condição de receber, porque já estão lotados. E nesse período a gente lutou o máximo que nós pudemos pra não fechar o serviço, por causa deles. Mas não teve jeito. Tinha uma proposta da... Não lembro agora se era Unicef ou se era Unesco, pra trabalhar com mulheres, com mulheres vítimas de violência, e eles queriam aquele espaço. Então não teve muito o que fazer, fechamos o serviço. E quando a gente fechou, eu estava grávida do meu segundo filho. E a Amanda, eu lembro quando eu contei pra ela que eu estava grávida, ela era muito mãe, muito... Apesar de ser ela que articulava os assaltos da região, ela também cuidava muito dos meninos. E ela reuniu os meninos e falou: “Olha, a tia está grávida, hein? Não é pra chegar perto dela com cheiro de cola, nem com cheiro de maconha, de nada. Se eu souber que alguém fez isso, vai se ver comigo”. Foi engraçado, porque quando fechou mesmo, que aí a gente só tirou as coisas de dentro da casa, ela foi lá no portão e falou: “Eu vou sentir muito a falta de vocês”. Eu sei que ela está na rua, que ela continua na rua, porque eu trabalho na região que ela fica, então de vez em quando eu encontro com ela. Ela não lembra mais da gente, já está muito deteriorada por causa da drogadição, está muito diferente. Eu sei que é ela por causa do olhar, não dá pra esquecer, mas já está mais velha, já está mais debilitada, enfim. Ela falava pra gente: “Eu nasci na rua e é na rua que eu vou morrer, não adianta vocês quererem que eu vá pra um abrigo”. Ela até tentou, eu acho que mais pra agradar a gente do que por ela mesmo. Mas realmente ela não conseguiu ficar. E é o tipo de serviço que o outro tem que querer, não pode ficar obrigado. Então foi uma situação bem triste, muito chata mesmo, que a gente não pôde fazer muita coisa. É uma das frustrações que eu tenho, acho que eu vou levar isso por muito tempo na minha vida.

P/1 – E quando terminou esse projeto, o que você foi fazer de trabalho? Continuou nessa área de educação?

R – Continuei nessa área, mas num outro instituto. Aí já trabalhando aqui mais pra zona leste, na região do Pari ali. Aí foi outra experiência, porque era com educação de rua, mas era com adultos e idosos. Então era um público diferente, além da própria região ser diferenciada. E eu tive contato com outras histórias de muito sofrimento e de escolha. E foi uma coisa interessante, porque principalmente os idosos, eles viravam pra gente e falavam: “Mas eu não estou aqui porque alguém me abandonou, eu me perdi. Eu estou aqui porque eu quero”. Eu falei: “Mas por que você quer?”. Eu falei: “Porque em casa eu não tenho liberdade de fazer o que eu quero, eu não tenho liberdade de gastar o meu dinheiro, porque os filhos é que gastam, eu não posso comer o que eu quero. Então eu estou aqui porque eu quero. Eu não vou voltar pra casa. Não quero voltar pra casa”. E a gente fica sabendo o outro lado, no caso dos adultos, tem família, tem casa, alguns até tinham profissão. A gente encontrou um advogado, que ele falou que tinha já sido muito bem-sucedido, mas que cansou daquela vida e queria ficar na rua. Eu falei: “Nossa!”. Estranho, né? Você acha que a pessoa está na rua, que ela está realmente necessitada, e não, ela não está na rua porque está necessitada, ela está porque quer estar. E eles tinham um lugar onde eles tomavam banho, onde eles comiam. Muitos deles estavam na rua limpinhos, estavam na rua porque queriam mesmo, tinham até lugar de dormir já e tal. E pra essas pessoas, o que você oferece? Não tem o que oferecer. Era um homem extremamente inteligente, muito bem articulado. Era engraçado que ele falava pra gente: “Olha...”. Ele nos indicava os que eram realmente necessitados, porque ele não precisava. Ele falava: “Olha, eu não preciso. Não se preocupe comigo. Vá conversar com aquele e com aquele, com aquele outro, porque eles, eu sei que não têm nada. Não precisa se preocupar comigo”. E aí a gente encontrou... Teve casos de encontrar pessoas realmente debilitadas, que a gente conseguiu devolver pra casa, outros que usavam uma suposta doença, e na verdade não tinham nada, mas usavam da comoção pública realmente pra tirar vantagem e tal. A gente teve histórias diversas desse lado da coisa. Era um pouco mais complicado, porque alguns tinham problemas mentais sérios e eram agressivos, e realmente batiam na gente, queriam bater na gente. E várias vezes alguns lugares a gente teve que realmente ter o aparato policial, porque senão a gente não conseguia chegar. Enfim, dessas histórias todas, teve de duas senhoras, eu não lembro o nome daquele viaduto, uma que ficava debaixo de um viaduto e ela tinha vários cachorros, vários cachorros, que ela ia pegando pra cuidar. E era uma situação engraçada, porque as pessoas levavam doação de ração pra ela. E, lógico, se ela está recebendo a ração dos cachorros, ela não vai sair daqui. E aí a gente tinha que parar pra conversar com as pessoas que doavam a ração, pra elas não trazerem mais. E as pessoas ficavam bravas, falavam: “Não, mas eu estou fazendo uma caridade pra ela”. Eu falei: “Mas, gente, eu entendo que vocês querem ajudar, mas permitindo que essa pessoa fiquei aqui nessa condição subumana que ela está, você não está ajudando. Você pode estar alimentando os cachorros, o que é muito válido, lógico que é, mas ela não está sendo ajudada, ela precisa de outras coisas”. E ela tinha problemas de saúde sérios, precisava estar sempre medicada e tal. Mas ela não queria sair dali, por causa da ração dos cachorros. E, poxa vida, como a gente lida com isso? Porque a própria sociedade contra a sociedade, então uma coisa meio bizarra. E teve outra senhora, que era ali na região da Rua da Mooca, que o filho a deixava lá todo dia de manhã. Ela era cadeirante, o filho... Ela tinha uma casinha lá, já na rua, mas tinha a casa dela, e o filho a deixava lá todo dia de manhã, e passava à noite pra pegar. E a gente conversando com ela, e ela era superagressiva, sabe? Ela não deixava ninguém chegar perto dela. E com muito custo a gente foi conseguindo criar algum vínculo, e ela falou que era o filho que a deixava lá, que o filho não queria que ela falasse com ninguém, porque já sabia o que ia acontecer. E acabou dando caso de polícia, acionamos o Conselho Tutelar do Idoso, deu um problema bem sério com essa senhora. Porque como ela ficava muito tempo na cadeira de roda, então ela estava toda machucada, e precisava tratar aquilo, porque senão ela ia perder o resto das pernas que ela tinha. E o filho não deixava. Ela era aposentada, recebia aposentadoria, mas o filho não permitia que ela conversasse com a gente, justamente porque ele seria com certeza acusado de maus tratos e tudo mais. Mas, enfim, essas foram duas situações que ficaram muito fortes pra mim. Fora outras coisas, e principalmente esses períodos de Natal. E aí eu comecei a verificar que caridade não é uma coisa boa. Porque aquela caridade só pela caridade, ela vai fazer com que o outro fique cada vez mais dependente da sua caridade, você não está ajudando, você está atrapalhando, porque você não está ensinando nada pra ele, você não está dando ao outro a oportunidade de mudar, de mudar-se, de melhorar-se, de mudar de vida, você está fazendo com que ele fique cada vez mais dependente daquela situação. E a tendência é permanecer daquele jeito, porque acaba cômodo, acaba sendo cômodo. E eu comecei a repensar os meus conceitos de caridade, eu falei: “Não. Não quero mais trabalhar com caridade, não, porque não dá certo”. Não é uma coisa que resgata o humano do outro, é uma coisa que faz com que o outro seja dependente de você, e se você não tiver uma cabeça muito boa, você passa a achar que você é Deus, porque você está fazendo o bem para o outro, sendo que na verdade você não está fazendo bem nenhum. Então foram experiências que dia após dia me faziam repensar os meus conceitos, as minhas ideias, a minha ideia de fazer o bem, de fazer caridade, enfim. E todas elas sempre me levaram pra educação. A educação é o que permite ao outro alcançar as mudanças que ele quer alcançar, não é a que eu vou impor, é aquilo que ele acha que vai melhor pra ele, enfim.

P/1 – E como você chegou ao Educadores? Queria que você falasse um pouco isso. Na faculdade, ou na ideia, ou na vontade de fazer uma faculdade, e no trabalho mesmo com o Educadores.

R – Depois que eu dei aula para o Mova, passei por todas essas experiências, eu tive a oportunidade de fazer faculdade. Não queria fazer Pedagogia, falei: “Não, educação não é só Pedagogia”. Brigava com a minha irmã o tempo todo por causa disso. Eu falei: “Não vou fazer Pedagogia. Eu não quero fazer Pedagogia. Eu quero fazer outra coisa, quero lidar com a palavra, com a palavra bruta e transformar essa palavra bruta em coisas para as pessoas”. E aí eu fui fazer Letras. Nessa época eu era coordenadora do Projeto Guri, ali no polo da região onde eu trabalho... Onde eu moro, desculpa. E fui fazer faculdade, tive vários problemas com a faculdade, mas, enfim.

P/1 – Mas como foi essa experiência? Conta um pouco pra gente. Da faculdade, a sua relação com o curso, com o universo da faculdade.

R – Pra mim foi uma descoberta, mais uma, porque eram coisas diferentes. Por eu não ter escolhido fazer Pedagogia, a gente passou muito rápido pelos conceitos de educação, Vygotsky, Jean Piaget e tal, e a gente ficou mais na coisa do prático mesmo, da gramática, e principalmente na literatura. E na literatura foi onde eu me achei, falei: “Poxa, isso aqui é fantástico. Dá pra você ler o mundo de várias formas por meio da literatura”. E nesse período, isso foi 2010, finalzinho de 2010, passeando lá pela parca internet que a gente tinha naquela época, eu conheci um site chamado Setor 3, e no Setor 3 eu encontrei a oferta pra educador no Educadores sem Fronteiras. Então só o nome já... Eu falei: “Opa, aqui tem alguma coisa e deve ser muito divertido”. Eu fui, me candidatei, tal, e eles me convidaram pra uma seleção e tal. Logo de cara eu já fiquei muito à vontade com o pessoal, com o Paulo, a Lu, todo mundo que trabalhava lá deixou todos nós muito à vontade, tal. E conforme o Paulo ia explicando a ideia do Instituto, eu ia já me apaixonando. Eu falei: “Nossa, isso aqui é o tipo de educação que a gente quer pra todos os níveis de educação nesse país”. Porque é tudo muito legal, é uma forma diferente de fazer educação, e de fazer educação que funcione. E passei por todo aquele processo, aí em 2011 eu comecei a trabalhar com eles, e sempre buscando melhorar e tal, e conciliando faculdade e Educadores. Acabei me transferindo, na época, pra outro lugar, porque essa primeira faculdade eu não conseguia chegar no horário para as primeiras aulas, começava seis e meia, e eu trabalhava lá no Jardim Ângela, então até chegar a Diadema... Era um horário meio insano. E eu me mudei, me transferi pra Unisa, em Santo Amaro, que era bem mais próxima. Só que a outra faculdade alegou que eu não tinha me matriculado, foi uma coisa assim... Ah, triste. Eu falei: “Olha...”. Eu conversei com o pessoal do Educadores, falei: “Eu vou ter que começar de novo, porque eles não querem liberar a minha transferência”. Aí eu comecei tudo de novo. Formei-me o ano passado lá na Unisa. Formei-me, ainda tenho que entregar o estágio, porque apesar de eu já ter milhares de horas como educadora no Educadores, eu preciso entregar o estágio com CNPJ de escola, senão o MEC não aceita. Mas é só o estágio que tem pra entregar. E faculdade pra mim foi uma coisa muito legal, porque daí eu percebi que outra coisa que eu gosto de fazer é pesquisa. Então eu queria me dedicar a essa área de educação e de pesquisa, juntar as duas ali. E foi um momento muito legal pra essa minha trajetória, porque principalmente quando liberaram a gente para o TCC lá, que todo mundo falava tão mal, eu falei: “Ai, gente, não deve ser tudo isso”. Nunca acreditei que fosse tudo isso. E aí quando eu me vi diante dele, eu falei: “É, acho que eu mordi a minha língua”. Porque a coisa é mais complicada do que parece. Mas fui e o meu objeto de estudo era o Educadores. Então não tinha nada que eu não tivesse muita propriedade pra falar já, porque eu já estou lá há quase quatro anos. Então foi muito simples de fazer, e fui juntando o depoimento dos meninos, e os depoimentos dos educadores, e acabou sendo um trabalho muito prazeroso. E foi mais prazerosa ainda a minha nota no TCC, que foi uma coisa com a qual eu me realizei muito, porque até os professores disseram: “Olha, se eu fosse você, eu continuava nesse caminho da pesquisa, porque você tem uma facilidade pra isso”. Então educação e pesquisa agora pra mim vão caminhar juntas. E eu espero poder continuar nessas pesquisas com os professores da faculdade, que já me convidaram, inclusive, e fazer outras coisas aí nesse sentido, nesse viés.

P/1 – Eu vou querer entrar contido agora nessa questão do Educadores, do trabalho que você faz e tudo, mas antes da gente entrar, eu quero voltar numa questão da sua vida pessoal, que é importante. Eu queria saber... Eu vou falar um pouquinho sobre o seu relacionamento com o pai da sua filha e dos seus filhos. Que é uma coisa importante, a gente passou muito rápido. Eu queria saber primeiro como vocês se conheceram, você e o seu ex-marido, não sei se ele chegou a ser o seu marido.

R – É, a gente não... Foi a melhor coisa não me casar, na verdade, porque depois aquela burocracia de separação não era o que eu queria. A gente se conheceu dentro de um ônibus. Ele voltando pra casa, eu também, a gente começou a conversar. Num primeiro momento não rolou nada demais, mas eu fiquei com o telefone dele, porque eu não tinha telefone naquela época. Liguei pra ele algumas vezes, fui muito mal atendida, falei: “Quer saber? Não vou ligar mais”. E não liguei. Depois de uns três meses ele apareceu de novo, no meio da rua. Eu falei: “Meu Deus do céu, não é possível isso”. E aí sim a gente começou a se relacionar e tal, descobrimos que morávamos no mesmo bairro, na mesma região, e acabamos nos envolvendo muito e tal. Ele tinha uns problemas lá com a família dele, nunca ficou muito claro qual era o problema, ele se dizia... Como eu posso dizer? Mal amado pela família, tal, mas não queria nem me apresentar a mãe dele. E de tanto que eu insisti, fui lá conhecer a mãe dele, a mãe dele morava de favor na casa da tia... Na casa do irmão dela. E ele morava de favor também. Só que eu percebi que tinha ali uma disputa na família ali. Era uma coisa interna, mas era uma coisa muito forte, porque um queria ser mais do que o outro, e ele não aceitava as raízes dele. Que a mãe dele era nordestina também. E ele não queria ser nordestino, então foi uma coisa meio estranha pra mim, porque ele não aceitava a família que ele tinha. E do meu lado a gente era superjunto, superpróximos, e tinha essa coisa da raiz, era muito importante pra mim, e pra ele não era. Mas mesmo assim a gente acabou se envolvendo, fomos morar juntos, eu acabei ficando grávida da minha primeira filha. Como nós tínhamos algumas diferenças de incompatibilidade de gênios, não sei dizer exatamente o que era, principalmente em relação à família, ele quis impor isso pra mim, que eu não visse mais a minha família. Eu falei: “Não. Isso pode existir pra você, pra mim não. A minha família é minha família sempre”. Mesmo escondido, quando ele ia trabalhar, eu ia pra casa da minha mãe. Enfim, passamos por uns maus bocados pelo fato de ele ser muito orgulhoso, e eu sempre fui muito tranquila, muito humilde, trabalhava no que viesse, não fazia muita questão, o que eu queria era ser útil. E acabou que não deu certo, nos separamos, a Jade tinha dois aninhos quando a gente se separou. Foi na época que o meu padrinho faleceu, foi por causa dele. Foi uma situação muito bizarra, porque eu tinha ido visitar o meu padrinho, que estava na cama do hospital, morrendo, e ele por não gostar, o pai dela por não gostar de família e tal, quando eu cheguei a casa, ele tinha revirado a casa toda, tinha... Não sei até hoje se aquilo foi uma tentativa real de um suicídio, ou se foi uma montagem de cenário. Eu sei que eu virei pra ele, falei: “Olha, não vai dar certo, é melhor você seguir o seu caminho, eu vou voltar pra casa da minha mãe”. E voltei. Não convivemos muito. Ele continuava vendo a menina até certa idade, depois ele não a viu mais. De vez em quando ele aparece no Facebook da vida. Só que hoje ela já está com 18 anos, então é escolha dela. Eu já falei pra ela: “Olha, é você quem vai dizer se você quer conviver com o seu pai agora ou não. Eu não tenho essa obrigação, então fica a seu critério”. Agora o pequeno não é filho dele, é filho já de outra pessoa, que eu conheci na Casa da Praça. Ele acabou não ficando muito tempo, a gente acabou se envolvendo, tal, eu fiquei grávida do menino, Aramis o nome dele. A gente continua se relacionando até hoje, mas não casamos. Tentamos morar junto, não deu certo, então a gente fica só namorando, de vez em quando a gente sai e tudo. Mas é uma pessoa mais tranquila, muito ligado à família, e foi com ele que eu fui conhecer um pouco das minhas próprias raízes, porque ele é muito envolvido com essa coisa de música, de maracatu, e tudo mais, então ele me mostrou um lado de Pernambuco que a minha mãe não conhecia, nem meu pai, e acabei conhecendo por meio dele. Apesar de ele ter nascido em São Paulo, ele fala que o sonho da vida dele era ter nascido em Pernambuco (risos). Acaba virando uma coisa engraçada, porque meus pais são pernambucanos, e ele tem um carinho muito grande pela família por conta das nossas raízes e tal.

P/1 – Deixe-me voltar um pouquinho na gravidez da Jade. Como foi que vocês descobriram? Como você descobriu que estava grávida? Como foi a sensação?

R – Foi meio estranho. Eu descobri que eu estava grávida porque... Eu trabalhava num projeto chamado Berço de Luz, na Vila Prudente, com a criançada da Favela da Vila Prudente. E teve um determinado dia lá que a nossa auxiliar de cozinha virou pra mim, falou: “Você está grávida, né?”. Eu falei: “O quê? Como assim?”. Ela falou: “Você está grávida”. Eu falei: “Mas como você sabe disso?” “Você está comendo muito” “Mas você reparou nisso, Marlene”. Ela falou: “Eu reparei. E você está grávida. Pode ir ao médico, que você está grávida”. Isso foi num dia, uma semana depois eu estava trabalhando, aí eu comecei a sentir muita dor, ela falou: “Vai ao hospital, porque senão você vai começar a passar mal aqui”. Aí eu fui e foi onde a ginecologista realmente falou: “Você está grávida de um mês e meio”. Eu falei: “Nossa, que coisa”. Foi confuso, porque eu cheguei lá com dor, estava com muita dor, e quando ela me deu essa notícia, a dor sumiu. Eu sentei lá, fiquei olhando o pessoal se movimentando no hospital, e eu fiquei um tempão lá olhando, pensando. Eu falei: “Cara, como assim eu estou grávida?”. É como se eu nunca pudesse estar grávida, é uma coisa meio estranha. Então foi uma surpresa pra mim. E quando eu cheguei lá, que eu falei pra ela, ela falou: “Viu? Eu sabia. Pode confiar, índio tem dessas coisas”. Porque ela tem umas raízes indígenas, e ela parece bastante mesmo com índio. E ela falava: “Índio bate o olho e já sabe, não precisa falar mais nada”. Eu falei: “Olha, então você está de parabéns, você acertou direitinho”. E eu acabei deixando de trabalhar lá, porque era muito longe. Eu morava aqui na zona sul, pra zona leste naquela época o transporte era bem mais precário do que é hoje, e aí eu realmente não aguentei, a barriga começou a crescer e eu não consegui acompanhar o ritmo do projeto lá, aí acabei me afastando, acabei perdendo o contato com esse povo todo lá.

P/1 – E como foi a sua gravidez?

R – Foi conturbada. Foi bastante conturbada, principalmente por causa do pai dela, essa questão de não poder conviver com os familiares e tal. Eu tive uma reação muito forte à gravidez, então eu fiquei muito tempo com a pele cheia de feridas, surgiram não sei de onde, eu sei que eu fui fazer um... Ele não queria que eu fosse ao médico pra tratar, eu falei: “Mas eu tenho que ir, porque a minha obstetra do pré-natal não quer nem chegar perto de mim. Eu tenho que ir”. E numa época, num determinado dia que eu fui fazer... Eu estava indo para o pré-natal, eu tive um acidente, que cortou inclusive a mão. Estava passando ali na Vila Mariana, e eu tinha sempre o hábito de andar com a mão na barriga, e foi o que me salvou, porque a placa de zinco caiu de uma construção e cortou a minha mão que estava em cima da barriga. Eu não percebi nada, eu só senti a placa caindo. Eu olhei pra cima, normal. Quando eu olhei pra minha mão, eu vi o meu ossinho. Eu falei: “Nossa, acho que foi sério” (risos). Sangrando. Entrei no posto sangrando. E eu lembro que a recepcionista quase desmaiou quando me viu sangrando daquele jeito. E aí eu fui para o Hospital São Paulo, que era ali perto, fiz a sutura, tudo. E o médico notou a pele, falou: “Olha, precisa... Vamos tratar isso já, já que você está aqui, já dá entrada no tratamento, porque isso dá pra ser tratado e tal”. E acabei fazendo o tratamento lá com eles, melhorei, tudo. Mas foi a questão pra ir me buscar lá no Hospital São Paulo. A primeira superbriga que teve entre a minha mãe e o pai dela foi ali, dentro do hospital. Porque ele não queria que ela me levasse pra casa dela, e ela veio me buscar, ela falou: “Vou levar. Vou levar. Vou levar”. E eu estava ficando no meio dos dois sem saber o que fazer, sem saber pra onde correr. Acabou que eu falei pra ela: “Olha, eu vou pra casa e depois eu ligo pra você”. E fui pra casa e tal, e foi outra briga. Teve até uma situação que eles pensaram que ele tinha me batido mesmo, mas não foi, foi um acidente mesmo, foi dentro de um ônibus, que estava muito cheio e o motorista freou de um jeito que eu bati o olho no poste dentro do... E eles pensaram que ele tinha me batido, e pra provar que não tinha foi um caso sério. Mas, enfim, depois acabou ele maleando um pouquinho mais. E o bebê nasceu, as minhas irmãs iam lá pra casa com frequência, principalmente a que gostava muito de vídeo game, pra jogar com ele. E a gente acabou passando um pouco, mas depois desse incidente que ele simulou tudo aquilo... Pra mim, aquilo tudo foi simulado. Aí eu não tive mais paciência, falei: “Olha, não dá pra cuidar de duas crianças. Porque você é uma pessoa difícil de lidar, porque você quer sempre as coisas do seu jeito, e não vai ser sempre assim, e tem a pequena que eu tenho que dar conta dela”. E aí nos separamos e tudo mais. E aí a minha vida passou a ser ela, eu comecei a me dedicar a ela e tal.

P/1 – E como foi ser mãe pra você? O que mudou na sua vida? Como é a sensação de ser mãe?

R – A grande diferença que fez na verdade foi a barriga, porque eu já tinha cuidado das minhas irmãs, então eu já tinha mais ou menos como era ser mãe, cuidar de um bebê e tal. Então a diferença que fez foi a barriga, foi a dificuldade de andar, eu era muito magrinha, então a barriga ficou muito grande. E eu tive que me adaptar mesmo comigo, o corpo físico, porque até então eu não tive nada disso. E quando ela nasceu foi uma sensação muito diferente, porque foi a única menina que nasceu aquele dia dentro do Amparo Maternal. E a primeira coisa que a enfermeira me perguntou era se eu ia deixá-la pra adoção. Eu falei: “Não. É minha. Por que eu vou deixar pra adoção?”. Ela falou: “Ah, é que na maioria das vezes as mães que vêm pra cá, elas já vêm com esse intuito de deixar a criança pra adoção”. Ela começou a me contar um pouco da história do hospital e tal, que não tinha vaga em outros hospitais no dia que eu comecei a entrar em trabalho de parto, então acabei indo parar lá, mas não foi porque eu quisesse deixar a menina, foi porque não tinha vaga em outros lugares. Ela falou: “Ah, tá. Então tudo bem, você leva seu bebê pra casa, não tem problema”. Mas que já tem um monte de gente na fila esperando na fila, tem”. Eu falei: “Não, mas a minha não. A minha vai comigo”. Foi engraçado que eu acabei conhecendo outras mães que realmente foram lá só pra ter o bebê e já deixar lá. E eu criei um vínculo com o Amparo Maternal de carinho por causa disso, por causa dessas mães, por causa dos médicos, que eram residentes do Hospital São Paulo. E eu lembro que teve... Eles até brigaram pra fazer o meu parto lá, porque a mulherada berrava que nem louca dentro da sala de parto. Era uma sala coletiva pra esperar a hora do parto. E eu estava com medo, e com dor, e com tudo apo mesmo tempo, e a mulherada gritando, e eu: “Gente, que negócio de louco”. Teve até uma lá que foi à toalete sozinha, sem a enfermeira, e voltou com a criança pendurada na... (risos) Eu falei: “Gente, o que é isso?”. Ela tomou uma bronca, falou: “Você podia ter perdido essa criança se tivesse batido na bacia, na privada. Ia morrer e você ia ficar sem o seu filho”. Eu falei: “Nossa!”. Eu falei: “Gente, que coisa bizarra”. Depois, lembrando de tudo isso, foi muito engraçado. E o meu segundo filho, eu acabei indo direto pra lá, não quis ir pra outro lugar. Acabei indo direto para o Amparo. E foi engraçado, porque minha mãe e minha irmã foram comigo, e quando a gente chegou lá, enquanto elas estavam fazendo a ficha, a moça já me pôs lá pra dentro e tal, e eu passei por uma pessoa que era familiar pra mim, ela estava indo fazer o parto de outra pessoa, ela ficou olhando pra mim. Tudo bem, fui para o quarto. E depois ela voltou, foi me procurar: “Você é filha da Nelcina, né?”. Eu falei: “Eu sou”. Falou: “Sua mãe está aí?”. Eu falei: “Tá. Está lá fora”. E era uma vizinha de uma das patroas dela que acabou ficando muito amiga dela e fazia muitos anos que não se viam. E ela acabou fazendo o meu parto também, aí ficou lá conversando com a minha mãe, chamou a minha mãe pra assistir ao parto do meu segundo filho. Foi uma coisa familiar. Acho que tem a ver um pouco com esse vínculo que eu criei com a instituição e tudo mais. Que é um lugar que se Deus permitir, eu ainda vou fazer voluntariado lá. Porque é um lugar especial pra mim. Foi um lugar onde eu fui muito bem recebida, muito bem tratada. Apesar das conversas que existiam naquela época de que o hospital era um açougue, as pessoas morriam lá dentro. Eu sou a primeira a defender o Amparo Maternal.

P/1 – Você teve parto normal?

R – Os dois. Graças a Deus.

P/1 – Vou voltar um pouco então pra questão do Educadores. E queria entender um pouco qual o trabalho que você faz lá? Fala um pouquinho pra gente sobre o seu trabalho.

R – Lá no Educadores, eu trabalho com a área de linguagens, eu sou professora de Português e Inglês. Mas como a gente tem essa transversalidade das matérias, então a gente acaba falando de História, acaba falando de Geografia, um pouquinho de Matemática, de Física, um pouco de tudo. Hoje eu sou também coordenadora das mídias sociais do Instituto, então eu tomo conta do Facebook, do Twitter, do blog que é aberto, e do blog do diário de classe, que é o diário dos Educadores, que esse fechado, é só para os educadores mesmo e para os parceiros. O outro é aberto, é onde a gente põe as fotos e os passeios, os avisos, tudo que a gente faz lá. Eu comecei, estudando ainda, o Paulo gostou do que eu apresentei como proposta de aula, e ele falou: “Olha, lógico que a gente precisava de alguém que já tivesse mais experiência, mas eu não sei por que, eu quero confiar que você tem a cara do Educadores e que você vai fazer isso bem feito”. E aí eu comecei preparando aula, as aulas, aulas, e mais aulas, e conhecendo outras coisas, me aventurando por outras áreas também do conhecimento e fui pegando jeito, fui gostando. E aprendi a fazer aquilo com um carinho enorme. A molecada que tem lá é um perfil bem diferente das pessoas por quem eu já passei, mas de alguma forma sempre tem a vulnerabilidade, não em todos, mas sempre tem um ou outro que vem contar algum caso pra gente. E acabou se tornando a minha segunda casa. É onde eu gosto de estar, é onde eu aprendi muita coisa, é onde eu aprendo todos os dias. E se tornou referência pra mim, referência de vida, referência de profissionais. As pessoas que tem lá dentro é um perfil de profissional que eu gostaria de encontrar em todos os lugares, porque são pessoas sempre dispostas, são pessoas alegres, são pessoas que gostam daquilo que fazem. Acho que isso é o mais importante pra gente, você ser fascinado por aquilo que você faz, por aquilo que você está envolvido.

P/1 – E qual o perfil dessas pessoas que vocês recebem? Faixa etária?

R – Lá a gente trabalha o fundamental II, então a partir dos 11 anos, até o ensino médio, e alguns, já tivemos alguns alunos de universidade lá também, que fazem a faculdade, trabalham, e aos sábados vão assistir aulas conosco. Então a partir do fundamental II, qualquer pessoa, adulto, idoso. A gente já tentou ter uma turma só para os adultos mesmo, mas não deu muito certo, a gente percebe que essa troca entre os mais novos e os mais jovens dá uma... Como eu poderia dizer? Refresca o ar de ambos os lados e aí a coisa flui, porque aí percebe-se que tem toda aquela troca de experiência, de conhecimento, de vivências. E isso é muito importante para os mais jovens, principalmente, perceber que os mais velhos têm também a sua história e têm coisas pra contar, e que essas coisas são muito interessantes. Então a gente faz esse encontro lá de uma maneira bem sutil, quase que imperceptível. Alguns são mais difíceis, principalmente os adultos, não querem estudar com os adolescentes e tal, por conta desse próprio rótulo que os adolescentes carregam de ser insuportáveis. Mas lá eles percebem que a coisa é diferente, eles não são tão difíceis assim. É um rótulo e a gente tem que tirar esse rótulo dessa faixa etária, porque é perigoso crescer assim. Eles estão num momento de escolhas, de mudanças, e a gente tem que respeitar isso. Assim como os adultos também já passaram por essa fase e venceram, eles também vão passar e vão superar, e vão se tornar adultos felizes, adultos seguros, enfim.

P/1 – Como eles chegam ao Educadores? Quais são os critérios pra poder frequentar? Conta um pouco pra gente como funciona.

R – A grande maioria chega por intermédio dos próprios colegas, um vai passando para o outro e acaba indo parar lá. Alguns nós fazemos divulgação no entorno, algumas escolas que permitem a nossa entrada. A gente faz também essa divulgação. E basicamente é querer estudar. Pra estar lá dentro, você tem que querer estudar mesmo, porque a gente não tem tantas formalidades quanto a escola normal, mas a gente precisa que a pessoa esteja afim de aprender, de se dedicar, porque esse conhecimento é ele mesmo que vai construir, a gente vai dar algumas ferramentas e ele vai construindo na medida daquilo que ele quer. Não é obrigatório ficar. Se você não se adaptar, você pode sair, voltar num outro semestre. Você pode ficar o tempo que você quiser no Educadores, não tem uma seriação. E por não ter essa seriação, então a gente tem alunos de várias idades juntos, tanto no fundamental, quanto no médio. Acaba sendo uma experiência múltipla pra eles e pra nós, porque coisas que deveriam já ter visto e não viram, foram pra outra série sem saber, então a gente acaba resgatando. Então é uma forma diferente e interessante de se trabalhar essa não seriação. E eles ficam até o tempo que eles quiserem, alguns entram na faculdade e continuam como voluntários, ou entram nas ETECs e voltam como voluntários. Ou voltam como educador, como é o caso da Fernandinha, que foi aluna, se formou e continuou dando aula lá no Educadores aos sábados como voluntária, enfim.

P/1 – Tem uma frequência mínima deles? Como é que organiza isso? Só pra entender um pouco, eles chegam, procuram os educadores, se inscrevem.

R – Isso.

P/1 – E aí começam a frequentar dentro de que estrutura?

R – A gente tem uma estrutura mínima de pelo menos duas aulas por semana pra cada turma. Eu estava tentando programar algumas coisas diferentes pra esse ano, mas essa é a estrutura básica. Duas aulas por semana, aí a criança ou o adolescente vai escolher quais os dias melhores pra frequentar, e no sábado uma vez por semana, mas aí a aula é mais cumprida, são quatro horas de aula. A única regra é não faltar. Eles podem faltar duas vezes, no máximo três sem justificativa, mas se tiver que faltar que traga uma justificativa, um documento, alguma coisa que comprove por que você faltou e aí a gente vai abonando essas faltas. Na terceira falta sem justificativa, a gente liga pra saber por que não veio, o que está acontecendo, e aí alguns falam que não dá pra continuar, tudo bem, não tem problema, volta no próximo semestre. Não tem problema algum. A única sanção que a gente faz é pra casos de violência. A gente não admite em hipótese alguma nenhuma forma de violência verbal, física. Nenhuma. Se ocorre, aí o aluno é convidado, o educando é convidado a se retirar. Ele pode voltar depois de seis meses, mas primeiro ele vai ter que pensar em se adequar a essa organização de não-violência. E no caso dos educadores funciona da mesma forma. Se acontecer de faltar com respeito, agir de forma indevida com algum educando, ele também vai ser convidado a se retirar, pelo menos naquele momento.

P/1 – E quantos educandos vocês têm hoje nos Educadores?

R – A gente faz os projetos pra atender 80. Eu não sei te dizer exatamente quantos já estão rematriculados pra esse semestre, mas normalmente a gente atende entre 60 e 80 alunos, educandos aí, algumas vezes com fila de espera, enfim. Basicamente é isso.

P/1 – Queria que você falasse um pouco também qual que você acha que é a importância do trabalho do Educadores pra esses educandos que estão lá, pra sociedade de uma maneira geral.

R – Eu acho que resgatar essa coisa do estudar. Porque não é só o conhecimento, é fabricar conhecimento, é produzir conhecimento. E na escola a gente não vê isso, é aquela coisa maçante de conteúdo, decoreba, aquela coisa que não tem muitas possibilidades de ampliar esse quadro. E lá na Educadores você tem essa possibilidade de ampliar a sua visão de mundo, o seu entendimento de mundo por meio desse mesmo conteúdo, mas percebendo que ele permeia todas as áreas do conhecimento, todas as áreas da vivência que você vai tendo em sociedade. Eu acho que essa é a contribuição que a gente tem pra dar, de realmente perceber que é possível fazer uma educação diferente, uma educação que tenha significado, que não seja só o profissional, mas que vá permeando as várias áreas da sua vida, que é uma educação que você vai levar pra sua vida. Até é engraçado aquela velha pergunta: “Mas pra que eu vou usar isso?”. Olha, você pode não usar agora, mas daqui a um tempo, se seu filho estiver na escola, você não vai ter que saber isso pra poder explicar para o seu filho? Será que não vai ter uma... Você não vai se lembrar dessa coisa do: “Nossa, eu ouvi isso em algum lugar. Espera aí que vamos pesquisar juntos e vamos resgatar isso junto”. Porque isso sim é importante. Pode não ser importante pra profissão que eu escolhi. Eu como professora de linguagens talvez nunca use Física, mas o meu filho está estudando e ele vai um dia me perguntar: “Mãe, o que é isso?”. Então vai ser importante sim eu conhecer e eu saber pelo menos esse conceito. Porque isso é multiplicar o conhecimento, isso é democratizar o conhecimento, é o que a gente quer, que todos tenham acesso a esse conhecimento qualitativo, não só quantitativo. Não é só decorar as coisas e fórmulas e depois chegar num vestibular e despejar tudo. Depois do vestibular acabou, você não vai lembrar mais nada daquilo, porque normalmente é o que acontece, mas a gente quer que esse ensinamento tenha significado. Quando tem significado você não esquece.

P/1 – Você se lembra de alguma situação de sala ou da relação com os educandos que você tenha percebido ou sentido uma mudança na relação com o conhecimento?

R – Ah, sim. Sim. A gente sempre tem um ou outro que explicando determinada coisa a gente mostra que o conceito é bem mais fácil do que eles imaginam. E aí fulano levanta a mão e fala: “Nossa, mas é só isso?”. Falo: “É”. A coisa é bem mais simples do que a gente pensa, né? Vários deles trazem esse tipo de reflexão depois, falam: “Professora, eu estava pensando naquilo que você falou sobre, sei lá, a metáfora, mas me parecia tão difícil, mas agora eu percebo que eu uso metáforas o tempo todo, na minha fala com os meus amigos e tal”. Ou a ironia, que é uma coisa que a gente faz sem perceber e é uma figura de linguagem. Eles falam: “Eu não percebia que eu fazia isso, ou não sabia identificar”. Eu falo: “Pois é”. São coisas que a gente usa sim todos os dias, que a gente faz na brincadeira ou no convívio com os nossos pares sem perceber. Então vejam como é importante sim eu conhecer. Esse conhecimento vai muito além do que aquilo que a gente ouve na escola ou daquilo que a gente foi ensinado a pensar que era o conhecimento.

P/1 – E nesse tempo de Educadores teve algum educando que tenha te marcado ou um momento importante pra você, marcante?

R – Eu acho que todos têm alguma coisa que sempre fica, mas tem alguns alunos que depois dos vestibulares ou depois de alguma redação que eles tinham que fazer e foram muito bem, eles chegam e falam: “Professora, lembrei de você, aquele negócio que você falou sobre fulano, ciclano e a crase”. É muito engraçado quando a gente fala da crase por que é uma das coisas que eles falam: “Mas é só isso?”. Eu falo: “É. É só isso. Não tem segredo”. E aí depois eles comentam: “Ah, a professora foi falar de crase e eu expliquei pra ela o que era crase, e ela falou que estava certo”. Eu falei: “É isso aí. É isso que a gente quer, que vocês compartilhem desse conhecimento com os professores de vocês”. Na mesma forma que tem aluno que chega lá e fala que faz tal pergunta pro professor e o professor não responde ou dá as costas, enfim. Falo: “Olha, gente, o que pode acontecer é o professor não saber”. Lógico que é sofrível o professor admitir que não sabe, não sabe como as coisas funcionam, mas se eu não souber, a gente vai sentar e vai pesquisar juntos e vai construir isso juntos. É isso que é marcante do conhecimento e eles têm muito isso, então principalmente os veteranos quando chegam os calouros, eles já recebem os calouros nessa vibração de construir junto. Então eu acho que isso acabou se tornando uma marca registrada nossa, de trazer pra perto, de comunicar, de trocar, enfim, construir junto.

P/1 – Tem algum critério socioeconômico pra se inscrever?

R – Não.

P/1 – Não. É totalmente livre?

R – Não tem. Pode ser de onde você estiver, você quer estudar com a gente é só chegar.

P/1 – Queria conversar um pouquinho contigo agora sobre essa relação com o Criança Esperança, do Educadores com o Criança Esperança. Primeiro saber como você conheceu o Criança Esperança? Qual é a primeira lembrança que você tem? O que você sabe sobre o Criança Esperança?

R – A primeira relação que a gente tem com o Criança Esperança é na televisão. Querendo ou não, é um projeto que já tem muito tempo. E eu lembro que eu era criança, eu assistia o Renato Aragão falando, a Xuxa. Naquela época bem mais, hoje eu já não assisto tanto, mas os shows, as doações e tal. Também já fui doadora do Criança Esperança. Conheci muitos projetos que foram financiados pelo Criança Esperança por meio de um seminário oferecido pela Unesco e a Petrobras. Vi que realmente a coisa funciona e que muita gente se beneficia disso, eu acho que é o mais importante, pra gente que trabalha com o Terceiro Setor, conhecer coisas que funcionem. Porque infelizmente de uns tempos pra cá a gente tem ouvido falar de vários projetos que são fachadas e isso nos atinge muito diretamente porque a gente acaba pagando o pato pelo que outras pessoas fazem de errado. Então foi muito legal conhecer, saber que tem pessoas por trás desse projeto que trabalham sério e que fazem a coisa acontecer e a coisa flui. Com relação ao Educadores, a gente... Eles não chegaram a ir lá no Jardim Ângela, que era a unidade que eu ficava mais, eles iam muito na unidade da Raposo Tavares, mas aí a gente sempre sabia que eles estavam lá, a gente tinha um banner do Criança Esperança lá. Foi muito legal quando a gente recebeu o apoio do projeto, porque daí a gente passou aquela sessão de imagem para as crianças, explicamos que nós éramos parceiros do Criança Esperança e foi uma coisa que contaminou toda a comunidade do lado porque ninguém conhecia nenhum projeto que tivesse sido financiado pelo Criança Esperança, e nós éramos. Então foi um ano que deu pra fazer bastante coisa, deu pra gente alcançar algumas metas aí, principalmente melhorar essa comunicação com as pessoas, falar: “Olha, a coisa funciona”. Então mais gente começou a doar por causa disso, porque conheceu um projeto que foi financiado pelo Criança Esperança, isso foi muito legal. Eu acho que aproximou a instituição da comunidade por meio desse financiamento. Tomara que isso aconteça mais vezes, que a gente possa conhecer mais projetos financiados pelo Criança Esperança, porque é importante para as comunidades e saber que não está tão longe como parece. Porque a gente vê pela televisão, parece tão longe, tão distante, e não é tão distante assim.

P/1 – Você sabe como que... Não sei se você acompanhava isso, como esse recurso foi utilizado dentro do Educadores?

R – Eu sei que a gente teve alguns passeios que foram com esse recurso. Também pudemos adquirir mais equipamentos, projetor, notebook, tudo. As câmeras fotográficas que nós temos foi com a parceria deles também. Enfim, o que a gente pode direcionar foi um financiamento muito bem aproveitado, deu pra dar uma incrementada maior no projeto. Alguns livros também foram comprados com esses valores, deu pra gente fazer bastante coisa. E se eu não me engano, os nossos laboratórios de Química e de Física também foram adquiridos com essa verba.

P/1 – Você acompanhou alguns desses passeios?

R – Sim.

P/1 – Conta um pouquinho pra gente então como foram.

R – Deixa-me lembrar. Todos os nossos passeios são muito divertidos, mas um dos maiores que eu acompanhei foi o da Bienal, não desse ano, o ano anterior, que foi acho que Bienal de arquitetura. Foi alguma coisa que nós fomos. Nós tivemos acesso a algumas construções de outros países e tal. E tinha um pessoal já com a gente que estava pensando em fazer Arquitetura, então aquilo foi legal pra eles, porque eles tiveram esse contato de como era em outros países e tal. Outros passeios que foram marcantes pra eles também, Museu de Zootecnia da USP, eu não lembro direito. Esse não foi um dos que eu acompanhei, mas foi um passeio que eles gostaram muito, que eles falam até hoje, que já está na nossa lista pra gente voltar porque marcou bastante. Deixa-me pensar. Bienal... É que fica mais na cabeça dos últimos anos, né? Não consigo lembrar direito os outros lugares, mas eu sei que teve alguns passeios pra museus, teve o da Língua Portuguesa também e a Pinacoteca, que a gente foi. Foi muito legal o da Pinacoteca, foi bem divertido. O da Língua Portuguesa infelizmente eu não acompanhei, não pude estar junto, mas o pessoal gostou bastante, na época eu acho que estava tendo centenário do Oswald de Andrade, foi alguma coisa assim. Estava tendo uma comemoração lá e o pessoal gostou bastante de conhecer um pouquinho mais da vida do autor e de participar de toda aquela interatividade do museu e tal. E o da Pinacoteca que nós fomos ver o acervo fixo do museu. Foi bem legal, foi bem interessante as reações, as obras de arte e tal, e a explicação dos educadores pra arquitetura do próprio museu. Eles falaram o que era o prédio, no que ele se tornou e tal, e depois de lá nós fomos pro Parque da Luz fazer um piquenique ali que acabou não dando muito certo, mas, enfim, fomos de qualquer forma. Foi divertido.

P/1 – E aí queria que você falasse de uma maneira geral, do seu ponto de vista qual que você acha que é a importância de um projeto como o Criança Esperança nesse apoio pra organizações sociais, de uma maneira geral. Qual que é a importância disso pra sociedade?

R – É aquilo que eu já tinha comentado antes. Eu acho que principalmente as comunidades locais, elas precisam saber que esse projeto financia projetos ali no entorno, porque senão fica muito distante. É importantíssimo que existam mais projetos de fomento a essas ONGS, porque o trabalho que elas fazem é muito importante, principalmente em regiões que não têm acesso a biblioteca, a um lazer mínimo, como é o caso da região onde a gente está. A única biblioteca que eles têm é a nossa, então a comunidade inteira acaba usando. Agora, ano passado foi que um ônibus biblioteca resolveu parar um dia por lá, mas é um período em que as crianças estão na escola, o período que o ônibus fica lá, então de qualquer forma eles não têm acesso, eles não conseguem pegar os livros, porque eles estão na escola. Então acabam usando a nossa biblioteca lá. Então é importante que tenha esse financiamento pra essas ONGs, porque eles realmente vão suprir aquilo que o poder público não faz, que é democratização do conhecimento, é o acesso a uma pesquisa. Internet, que os nossos alunos acabam usando a nossa mesmo, porque alguns não têm, realmente não tem como ter acesso em casa, não tem nenhum telecentro na região que esteja disponível. Então socialmente é um trabalho necessário, que precisa existir e as pessoas precisam divulgar isso, divulgar que é um trabalho sério, que é uma... Diferentemente do que rola por aí, é uma ação que tende a ter resultado. É uma pena que nem todos os projetos sejam patrocinados várias vezes. É uma vez só, e como foi o nosso caso, nos ajudou muito, mas depois a gente acaba dependendo de outros projetos pra receber esse apoio aí pra manter essa organização funcionando. Acaba que por meio do Educadores eles vão conhecer outras coisas, então por meio do projeto lá eles vão conhecer uma rede de serviços pra criança, para o adolescente, pra família, ou o próprio Conselho Tutelar, que agora está bem pertinho da gente lá, mas era uma região completamente fora de acesso. Então a gente já tem como encaminhar essas pessoas pra outros serviços que elas mesmas vêm nos solicitar, perguntar se a gente conhece ou não, e manter esses espaços abertos é importante por causa disso, porque acaba se tornando referência. Apesar de a própria comunidade, a grande maioria não conhecer a instituição, por isso que a gente faz divulgação boca a boca mesmo, batendo nas portas e falando do nosso trabalho, eles acabam indo até lá, conhecendo, se envolvendo, e vão fazendo o boca a boca para as outras pessoas.

P/1 – Qual foi o ano que vocês receberam o apoio do Criança Esperança?

R – 2012, 2013. Se eu não me engano foi isso.

P/1 – Tá bom. Eu vou encaminhar para as perguntas finais então já. Queria saber primeiro se a Carol quer perguntar alguma coisa. Não? São sempre duas perguntas de fechamento. Antes de fazer essas duas perguntas eu quero saber se tem alguma coisa que eu não tenha perguntado e que você gostaria de falar.

R – Não sei. Não sei mesmo. Assim, de pronto não... Eu acho que já é uma oportunidade muito legal poder contar um pouco da sua vida sem ser pra um psicólogo. Está em tempo de modernidade, essa loucura toda, poder conversar, contar histórias. Eu acho que contar histórias é muito legal. Só isso. Só agradecer mesmo por estar aqui hoje.

P/1 – Vou fazer a penúltima pergunta então, que é: quais são os seus sonhos?

R – Um deles eu já realizei o ano passado, que era me formar, porque estava muito complicado, mas consegui, graças a Deus. E um sonho que eu venho alimentando desde que eu me descobri gente e desde a época da minha professora de Língua Portuguesa é escrever. Então eu ainda espero um dia, quem sabe, publicar um livro. Nem que seja um. Eu já participei de algumas cooperativas de antologias e tal, mas não é o que eu quero ainda, o que eu quero é publicar um livro meu, quem sabe nem que seja um e-book, agora a coisa está mais simples, mas um livro meu. É um sonho que eu ainda alimento.

P/1 – O que você escreve, Eliane?

R – Eu faço poesia, eu faço conto. Tenho mais facilidade com contos do que com romances, então eu gosto muito de contos e poesias. Agora eu estou tentando viajar um pouco mais em literatura infantil, essas coisas.

P/1 – E pra fechar então, como é que foi contar a sua história?

R – É um filme, né? É um filme que vai passando e a gente vai se lembrando de coisas que foram excelentes, de coisas que machucaram, de coisas que deixaram uma marca às vezes que a gente já tinha até esquecido, mas que está lá, a gente percebe, a gente nota que está lá. E a gente percebe que a gente sim tem alguma importância, pode não ser pra sociedade como um todo, mas pra algumas pessoas a gente tem alguma importância. E se lembrar dessas pessoas e pensar que essas pessoas são importantes pra nós também, guardar isso de alguma forma é sensacional. Sem dúvida é muito legal, muito divertido de fazer.

P/1 – Então a gente encerra por aqui e agradece muito.

R – Eu que agradeço vocês pela oportunidade.

P/1 – Sua disponibilidade, generosidade.

FINAL DA ENTREVISTA