Museu da Pessoa – Conte sua história
Histórias de Esperança – 29 anos do Projeto Criança Esperança
Depoimento de Pedro Coelho Massela
Entrevistado por Tereza Ruiz
Osasco, 18/12/2014
Realização Museu da Pessoa
Entrevista HECE_HV_40
Transcrito por Liliane Custódio
P/1 – Primeiro, Pedro,...Continuar leitura
Museu da Pessoa – Conte sua história
Histórias de Esperança – 29 anos do Projeto Criança Esperança
Depoimento de Pedro Coelho Massela
Entrevistado por Tereza Ruiz
Osasco, 18/12/2014
Realização Museu da Pessoa
Entrevista HECE_HV_40
Transcrito por Liliane Custódio
P/1 – Primeiro, Pedro, fala pra gente então o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Pedro Coelho Massela, nasci em 17 de julho de 1987, na região da Vila Leopoldina, Lapa ali, e assim me criei por muitos anos aqui na região.
P/1 – São Paulo?
R – São Paulo.
P/1 – Agora a data e... O nome completo primeiro, depois a data e local de nascimento da sua mãe e do seu pai. Se você souber, senão só o nome completo.
R – Pedro Coelho Massela, a data exata eu não sei, nem do meu pai, nem da minha mãe, mas minha mãe nasceu em Santos, tem seus 60 anos, 57 anos, na verdade, exatamente, e o meu pai nasceu em Sorocaba, tem 50 anos.
P/1 – E o nome da sua mãe?
R – Minha mãe é Maria Luísa Curado Coelho e o meu pai é Afonso Massela Júnior.
P/1 – Fala pra gente o que seus pais fazem profissionalmente.
R – Meu pai é engenheiro eletricista, essa é a formação dele. Antes de ser engenheiro eletricista, ele foi jogador de futsal profissional, futebol de salão. Era goleiro, chegou a jogar profissionalmente, foi pra seleção paulista. Aí como meu avô era bravo, meu avô falou: “Não, vai estudar, menino”. Ele foi fazer Engenharia Elétrica, trabalhou por muito tempo montando peças de pintura eletrostática de fábrica, trabalhou em importação dessas peças. Hoje em dia ele é dono de uma pizzaria. (risos) Não tem nada a ver. Fez bastante coisa. A minha mãe se formou arquiteta, trabalha como arquiteta até hoje, mas, além disso, ela é profunda amante das bioconstruções, gosta muito de construção com bambu, o sonho dela é fazer uma casinha de taipa de pilão. Ela trabalhou com feng shui também, com harmonização da casa, e também é taróloga, tira o tarô e tal, então é uma pessoa bem holística. Os dois, eu acho muito legal que os dois fizeram parte da minha formação, o lado mais prático e pragmático do meu pai de falar: “Não, espera aí, vamos parar de viajar, e qual vai ser o próximo passo?”. E a minha mãe sempre foi esse lado mais: “Não, sente o que está acontecendo por onde você vai andar”. E de me ensinar mais a intuição. Então acho que foi um complemento bem legal esse balanço aí dos dois.
P/1 – Fala um pouquinho mais sobre como eles são como pessoa. Acho que você falou, já deu uma... Mas temperamento, personalidade, o jeito deles.
R – O meu pai, apesar de ser ariano, uma pessoa bem de personalidade forte e única, ele é super na dele. Ele é uma pessoa que... uma coisa que eu aprendi com ele de quando eu era muito pequeno ainda é a questão da contemplação, de eu chegar: “Pai, o que a gente vai fazer depois e tal?”. Ele: “Não, agora o que a gente está fazendo?”. Eu lembro que a gente ia pra um sítio em Minas, quando eu era pequeno, a gente sentava numa pedra, ele ficava olhando para o nada, eu falava: “Pai, o que você está fazendo?”. Ele falava: “Nada”. E continuava lá. “Mas o que você está fazendo?” “Nada.” Hoje em dia eu sinto essa necessidade de ficar olhando para o horizonte, só. Então ele também passou muito isso, essa coisa de ser o sossego, de curtir a coisa boa da vida, aproveitar, sentar a hora de comer, aproveitar o comer. Desde pequeno também vou com ele para o futebol, com os amigos dele, essa coisa de muitos amigos, esse mundo masculino do futebol, ele é super... Muito legal essa experiência aí. E superprático. Meu pai é uma pessoa que fica em silêncio numa conversa, todo mundo falando, falando, falando, de repente ele dá a palavra final, fala em três palavras e resume. O que estava aquela falação toda, ele resume em três palavras, então fala: “É isso”. E a minha mãe é o contrário. A minha mãe fala milhões de palavras que ela poderia falar em uma, mas não seria ela, porque tem toda... É uma fala muito mais holística, é uma coisa de falar sobre... A atmosfera que envolve o assunto e não só por um ponto na conversa, é uma coisa de estar falando e tal. Superemoção. Minha mãe é canceriana, assim como eu, então tem essa coisa, emoção de ter que falar, explicar. E o caminho de raciocínio é o caminho do sentimento. A fala vem através do sentimento, não tem nada a ver com razão. Então ela é muito emocional, muito coruja. Sempre tive muito carinho dela, tanto de acolher, quanto de empurrar do ninho e falar: “Vai lá, menino, vai experimentar que vai dar certo, tem tudo pra dar certo”. E até hoje muito coruja a minha mãe. Uma pessoa superemoção, superdetalhista, supercuidadosa na coisa de fazer um arranjinho, embrulho do presente fazer por ela mesma. Os presentes que ela dá, eu acho lindo que é uma forma de arte e transformação. A minha mãe em muitas fases de crises dela, ela faz arte, ela começa a produzir presente pra família e tal. Na maioria das vezes ela produz, ela não compra. Ela vê um negócio na rua, um colar, uma arte, ela já pega o caderninho dela, desenha, e faz mais bonito do que ela viu, sabe assim, uma coisa... É supercriativa, um ser artístico lindo.
P/1 – Você sabe qual a história do seu nome, Pedro? Quem escolheu? Por que você tem esse nome?
R – Sei. Quando a minha mãe estava grávida de mim, meu pai e minha mãe viajaram pra Europa e foram conhecer vários lugares, Barcelona, Itália. E quando ela estava na Catedral de São Pedro, ela viu um grupo de cegos tateando as esculturas e tal, e nesse momento, aqueles momentos de epifania, que dá um negócio assim, aí ela ouviu meu nome. Estava lá vendo aquilo na Catedral de São Pedro e falou: “É Pedro”. Então virou isso. E ainda tem um resto dessa história, que depois ela foi a Barcelona, numa igreja, Nossa Senhora del Mar, e pediu para o filho ter uma alma livre. E eu sinto que esse pedido foi concedido, porque eu me sinto... Até sofro às vezes de tão livre que é a minha alma, aceito as possibilidades do mundo, aceito tudo, acho tudo legal. Então acho que o pedido dela foi atendido, sou amante do mar desde pequenininho, surfista, então acho que foi atendido o pedido dela aí.
P/1 – E você sabe de onde vieram seus antepassados?
R – Cada um de um canto, como todo paulistano. Da parte do meu pai, a minha bisavó é alemã e o resto da família é italiana, inclusive a parte do meu pai, o meu avô e minha avó são nonno e nonna, chamo até hoje de nonno e nonna, tem aquela casa na Lapa com a parreira cheia de uva, que a gente come embaixo. Então é bem tradicional mesmo, família bem italiana, que tem essa parte alemã também. E a parte da minha mãe é uma mistura bonita de ver, que tem português, tem espanhol, até índio no meio. O meu avô, pai da minha mãe, era de Lins, interior de São Paulo, e nasceu em fazenda, era caçador, criava cachorro perdigueiro, tinha uma oficina de ferramentas incríveis de bem “eiro” famosos “eiros”, marceneiro, jardineiro, fazedor de... Fazedor mesmo. E a minha avó, que casou com ele, era uma grande jardineira. Eu tenho a honra de continuar a linhagem aí dos jardineiros da família, que a minha era uma grande jardineira e era uma jardinagem bem tropical que ela fazia. Eu lembro que na casa dela era uma floresta em volta da casa, tanto pequenas, médias, grandes, tudo misturada, juntinha. E esse lado da família é essa mistura aí de português com índio, com espanhol, que foi formando essa... O lado da minha mãe, a família tem um senso comunitário muito legal, uma criação bem diferente do tradicional de respeitar a individualidade e ao mesmo o coletivo, os dois juntos. Muito legal essa coisa. Minha mãe conta muita história que às vezes minha avó chegava com um presente, minha mãe tem cinco irmãos, chegava com um presente pra um, falava: “Não, o presente é pra ele, não tenho pra dar pra todo mundo. Eu só tinha dinheiro pra dar pra ele, eu achei que o presente era pra ele. Esse presente é pra essa pessoa, não tenho que dar pra todo mundo”. Então tem essa coisa comunitária superlegal de respeitar o momento de cada um, da minha mãe, que é a filha mais velha, estar ajudando na criação dos irmãos, ser a segunda mãe. E tem toda essa história aí.
P/1 – Você tem irmãos?
R – Tenho um irmão, mais novo que eu.
P/1 – Como ele se chama?
R – Chama Leonardo.
P/1 – Conta um pouquinho pra gente como era a casa onde você passou a infância. Descreve mesmo a casa, o bairro.
R – Então, eu nasci na Vila Leopoldina e era um bairro bem industrial na época, era subúrbio na cidade, ali do lado do Ceagesp. Então era um bairro de galpões, de armazenamento. Era longe do eixo da moradia em geral. E era um bairro bem tranquilo por causa disso. Fora os caminhões que passavam um pra lá, um pra cá, era um bairro supertranquilo. Então além de eu morar num prédio que tinha muita criança e tinha uma área grande embaixo, que estava sempre correndo, polícia e ladrão, briga, futebol, fogueira, era muito legal. E, além disso, a gente podia viver muito na rua, porque era tranquilo, então era muito portas abertas o prédio. E a gente investigava mesmo, às vezes até invadia umas fábricas abandonadas, porque tinha muita coisa pra criança olhar tudo. Então a infância foi muito no chão mesmo, na rua, na terra. Tem muita área verde na região que eu nasci. Tem muita árvore, muito mato, tinha muito terreno baldio. E graças a Deus, eu acho que tive essa oportunidade de estar me machucando, de estar mexendo nas coisas e podendo experimentar, porque faz toda diferença. Como educador hoje, eu vejo o tanto que a infância faz diferença nessa coisa de estar dando a cara pra bater junto com o ambiente, de estar participando do ambiente. Nossa, minha infância foi muito legal mesmo! Depois de criança, depois de toda essa brincadeira de criança, comecei a andar de skate cedo, com nove anos. E aí a gangue do bairro ali andava por tudo quanto é canto. Já começa a mapear a cidade de outro jeito, começa a enxergar os nichos da cidade: “Olha, aqui tem uma escada, ali tem um corrimão, ali tem um chão que é liso”. Então acho que isso aguçou, foi mais um elemento que aguçou a minha percepção ambiental, de estar mapeando a cidade, de estar olhando e reparando nos detalhes da cidade. E esses meus amigos que eu cresci junto, até hoje são, irmãos, primos aí. Apesar de cada um ter ido pra um lado, em áreas diferentes, concepções diferentes, são diferentes dos amigos que eu fiz mais velho, que às vezes tem uma filosofia mais paralela, e esses às vezes nem tanto, mas não muda nada até hoje por ter crescido junto. E graças a Deus eu cresci junto de um monte de gente. São, nossa, família, muito família ainda.
P/1 – Você falou de futebol várias vezes. O seu pai foi jogador, você contou que era uma das brincadeiras da infância. Você torce pra quê time?
R – Então, eu torço pelo Palmeiras, mas hoje em dia eu já não sou fanático até por ideologia mesmo, de achar que não tenho que sofrer por um time que o pessoal está ganhando milhões pra chutar a bola. Mas eu sofro por um time, o time que eu jogo, não pelo Palmeiras. Hoje em dia eu jogo no time da Biologia da USP, e esse time eu sofro, me ralo, como grama ali pra jogar. Eu já fui fanático, já quebrei sofá quando o Palmeiras foi campeão da Libertadores e tal. No prédio era muito futebol, inclusive teve alguns jogadores profissionais que saíram, que são meus amigos, de futebol de salão, que estão na Itália jogando hoje, tal. Mas eu gosto muito de futebol, de jogar futebol mesmo, de sofrer por um time não faz parte do meu ser assim.
P/1 – Você lembra quando você se tornou palmeirense? Se teve um momento de decisão?
R – Não. Não tive escolha (risos). Quando eu nasci, já estava lá na maternidade, na porta da maternidade ali o uniforme do Palmeiras, família italiana, e “dá-lhe porco”, e é isso aí. O meu pai sempre disse que lá em casa é liberdade total, pode escolher sexo, crença, mas time já está decidido (risos).
P/1 – E você lembra quando você era criança, Pedro, o que você queria ser quando crescesse? Assim, a primeira ideia, sabe, essa coisa de criança mesmo?
R – Eu lembro que a minha primeira ideia era trabalhar num zoológico. Quando eu era muito pequeno, eu falava que eu queria trabalhar num zoológico. Queria estar com a natureza, os animais. Eu lembro um pouco, mas minha mãe conta que desde pequeno eu... Eu lembro que eu era fascinado por dinossauros, logo pequenininho, isso eu lembro. Mas ela conta que além disso, eu fazia cenários, montava cenários para os dinossauros, essa coisa do ambiente sempre me pegou. E às vezes ela colocava um dinossauro no lugar errado, eu falava: “Não, esse aí não é desse ambiente. Ele é carnívoro, ele não é herbívoro, ele não pode ficar junto com esse”. Então eu sempre já tive essa paixão pela natureza, pelo meio ambiente, pelos animais. Eu fui crescendo e fui vendo que os animais não eram muito a minha. Quando eu entrei na Biologia e fui trabalhar com lagarto, e meio medroso pra lidar com bicho, cachorro eu nunca tive segurança, sabe? Eu vi que meu negócio eram as plantas mesmo. Mas a primeira coisa era essa do zoológico. Acho que eu já quis ser jogador de futebol, como todo menino brasileiro também.
P/1 – Você queria terminar alguma coisa em relação à profissão?
R – É. Não, acho que pode ser. Que aí foi se transformando dessa de querer trabalhar em zoológico, fui crescendo, comecei a ser jogador de futebol, comecei a andar de skate, queria ser skatista profissional, andar por vários lugares aí. Comecei a surfar, queria ser surfista, principalmente pela questão de viajar o mundo inteiro. Tive por muito tempo esse sonho. Até alguns anos atrás me acompanhava esse sonho de viajar o mundo inteiro. E nessa história de viajar o mundo inteiro, quando eu estava na sétima série, eu fui pra Ilha do Cardoso com a escola, foi uma coisa que bateu um estalo na minha cabeça, falou: “É isso”. E aí eu conheci a figura do monitor ambiental, que é esse educador que leva gente pra passear, pra mostrar que as ferramentas didáticas deles são o meio ambiente, elas já estão lá, ele só leva a gente. Então quando eu conheci essa figura, que inclusive eu lembro o nome dele, é Rafael, também conhecido como bolinho, que eu não esqueço. E quando eu vi, eu falei: “O que você é?”. Ele falou: “Biólogo”. Eu falei: “Então é isso que eu quero ser. Eu quero ser que nem você, viajar” – continua a história do viajar – “Viajar pra um monte de lugar levando a criançada e tal”. E pegou isso, eu falei: “Não, eu vou ser biólogo”. Achei o nome pra essa coisa de amante da natureza, tal. Achei esse nome, fui atrás, entrei na Biologia. Comecei a ver que não era bem a Biologia que eu queria, mas tinha alguma coisa além. Tem a ver com a natureza, mas não era exatamente a coisa acadêmica, cientificista, da minúcia, de separar as coisas em caixinhas. Eu comecei a ver: “Não, mas não é isso ainda”. Trabalhei muito como monitor ambiental logo no começo da faculdade, de ir pra excursão, de trabalhar pra estudo do meio. Participei de projetos muito legais também como monitor ambiental de ambientes marinhos, um projeto chamado Trilha Subaquática, que a gente levava o pessoal pra mergulhar e tal. E foi nesse projeto que me deu esse estalo de que a educação e a percepção ambiental, elas não estão baseadas na informação, a informação é parte, mas que o eixo principal é o afeto, é a criação do afeto com o ambiente, que é a noção do pertencimento. E que esse link de pertencimento com o ambiente, acho que ele se faz através do afeto, da emoção, aí só depois a pessoa tá preparada pra informação. E foi nessa hora que deu essa mudança de caminho, que eu comecei a achar a minha área, comecei a...
P/1 – Você já estava na faculdade nesse momento?
R – Estava na faculdade. De começar a achar essa coisa dos quintais, que eu...
P/1 – Posso te interromper e voltar?
R – Claro.
P/1 – Porque a gente vai chegar aí daqui a um...
R – Com certeza.
P/1 – Só porque eu vou querer que você conte com mais detalhe essa... Eu vou voltar pra infância.
R – Falou.
P/1 – Antes eu queria saber, quais são as primeiras lembranças que você tem da escola?
R – Primeiras lembranças da escola. Pô, a minha escola, eu dou muitas graças, sou muito grato por ter estudado nessa escola, porque foi uma escola muito legal, uma escola construtivista, que sempre estimulou o pensamento crítico, bombardeou a gente com referências, estéticas teóricas, históricas, uma coisa super...
P/1 – Como era essa escola? Conta um pouquinho pra gente.
R – Essa escola... Assim como?
P/1 – Assim, do que você se lembra do espaço, da sensação de estar lá.
R – Eu lembro uma história que quando eu me mudei, a primeira... Assim, eu estudei primeiro numa escola chamada Panterinha, que era perto da minha casa, que também era super um quintalzão, tinha árvore. A imagem que eu mais me lembro dessa escola de criança era eu comendo formiga (risos). Eu sentava no quintal lá e ficava vendo as coisas, vendo as formigas, de vez em quando eu experimentava uma, tinha um gostinho de ferro. E esse é o que eu mais lembro. E lembrar mais... Música, tinha muita música nessa escola infantil. Muita música, marcha... Aquela marcha no dia do soldado, a gente fechava a rua e fazia uma apresentação, vivia fantasiado. Já fui o Jordy, já fui Chitãozinho & Xororó. Depois que eu saí dessa escola, eu fui procurar uma escola pra começar o ensino fundamental, e aí minha mãe me levou numa escola, ela estava quase me colocando lá, eu falei: “Não, mãe, mas não tem uma árvore nessa escola”. Aí ela foi procurar outra escola que tivesse uma árvore. Então eu me lembro dessa escola que eu estudei, que foi o Vera Cruz ali. Chegando à escola e vendo essa árvore, esse um canto que tinha um bambuzal aqui, eu falei pra minha mãe: “Ah, legal. Aqui pode ser”. E era muita... Era uma bagunça legal, uma bagunça organizada. Eu lembro muito de aulas de Educação Física, que eu adorava essa coisa mais dinâmica, aulas de Artes, que tinha teatro também. Então, nossa, eu adorava essas coisas. Porque na cadeira, a minha lembrança não é muito boa, não. Na sala de aula, eu estava sempre procurando o que fazer, porque meu perfil não era pra ficar silencioso e paciente. Não consigo, até por isso fui buscar outro modelo de educação. Mas eu lembro que eu estava sempre impaciente na cadeira, arranjando o que fazer, picando papelzinho pra colocar no cabelo do cara da frente, ou tacando borrachinha na professora, ou fazendo desenho, caricatura de alguém. Sempre procurando alguma coisa. Até às vezes, não sei se era consciente, mas eu era muito expulso da sala. Eu acho que eu procurava ser expulso mesmo, porque eu não aguentava ficar na sala. Agora eu lembrei até de uma vez que eu enfiei um clips na tomada, aí deu um curto-circuito, apagou a luz do andar inteiro da escola (risos). Mas acabava que eu sempre me safava, porque a professora falava: “Ninguém vai sair daqui enquanto não falar quem foi”. Eu falava: “Professora, fiquei tranquila, fui eu, não precisa...”. Então eu acabava sempre me safando, porque eu não tentava falar: “Não, foi ele”. Eu falava: “Fui eu, tal, tal. Não sei por que eu fiz isso” (risos). E elas entendiam, porque eu tinha muita energia, não conseguia ficar parado, precisava agir. Até por isso eu gostava muito da Educação Física, da aula de Teatro, que eu podia me mexer, não precisava ficar sentado lá, paciente. E porque essa coisa do afeto pra mim pega muito. Eu aprendo pelo afeto, não adianta a informação. Se a coisa não está me afetando, eu posso colocar um palitinho no olho, que mesmo assim eu não vou conseguir prestar atenção. É uma questão de vias de captação.
P/1 – Você teve algum professor marcante no ensino básico?
R – Nossa, muitas. Tive muitos professores marcantes. Deixe-me ver por onde eu começo aqui. Ah, pra começar, bem criancinha mesmo, eu tinha uma professora Neuza, a professora de música, parecia a Maria Bethânia, os cabelões, e ela era muito legal, cara. Muito legal mesmo. Botava a criançada pra cantar, tocar. Eu lembro muito de uma energia gostosa. Ainda nessa escola infantil, eu tive o professor Wilson, que era um professor de Educação Física, um grandão, gigante, jogava basquete. E marcou muito, porque eu sempre gostei de me mexer, e ele me botava pra mexer, fazer as coisas. E apesar de ser grandão, aquela cara de machão, era um doce de pessoa. Então acho que foi uma coisa que marcou, esse grandão carinhoso. Marcou-me muito. Marcaram-me muito as professoras bravas, porque como eu aprontava, elas brigavam muito comigo e tinham toda razão. Acho que esse que não é professor, é monitor, me marcou muito, esse monitor ambiental, Rafael, que mudou meu rumo, me fez achar o nome para o que eu queria ser, essa pessoa assim. Eu tenho muitas figuras marcantes que me ensinaram fora do ambiente escolar, sabe, que andando na rua, parei pra conversar um dia e me deu... Eu guardo muito essas figuras em viagens.
P/1 – Você se lembra de alguém em especial agora, além desse monitor ambiental?
R – Ah, me veio na cabeça o seu Alô Alô, que eu conheci um dia na beira do Rio São Francisco, que eu estava andando, procurando um lugar pra tomar um café de manhã, pedido café pra alguém. Porque lá o povo é supersimples, receptivo, ali entre Alagoas e Sergipe. E eu estava andando com minha mochila, fiquei oito meses andando na Bahia, essa região, aí o cara saiu de casa já com tudo pronto, eu não sei como, sabe? Tem gente que tem uma intuição. O cara já saiu de casa com um café, uma margarina e uma faca, e eu tinha um pão na mochila. Sabe? Então o cara já saiu: “Ô, meu amigo, vem, senta aqui, não sei o quê”. Eu falei: “Não, beleza, sentar, o cara deve ter um comércio”. Daqui a pouco ele sentou comigo, ficou conversando ali, falando da vida, superfeliz da vida. E falei: “Quanto eu te devo?” “Não. Não deve nada, não. Que a gente nunca sabe o dia de amanhã”. E isso me marcou muito essa figura que nem me conhecia e de repente me recebeu. E pela energia dele eu fiquei superfeliz, contagiou. Aquele pessoal alto astral, muito... E entre outras figuras muito marcantes que eu conheci. Mas professores também têm. Tem o professor Roberto, de Matemática, que eu nunca gostei de Matemática, mas foi por aí que eu comecei a entender as coisas da emoção. O cara falava com tanto amor da Matemática, que eu comecei a falar: “Nossa, acho que Matemática não é tão chato”. Tirou a gente da sala, pra ensinar trigonometria, ele foi até o prédio do Correios, que é do lado do Ceagesp, é um prédio gigante, e com um maquininha, tirou o ângulo dali pra mostrar pra gente que não era só número, que tinha utilidade. Então foi marcante também de sair da sala, do amor que ele falava das coisas e mostrar que era útil também, não era só teoria. Os professores de Biologia me marcaram muito, porque eu gostava muito. Tinha um professor de Teatro incrível, que era o Saliba, nossa, é incrível, botou a gente pra se mexer, pra tirar a timidez.
P/1 – Você ficou no Vera até o final do ensino básico?
R – Até o final do ensino médio. Fiz o ensino médio lá.
P/1 – Fez tudo lá então?
R – Tudo lá.
P/1 – E eu queria saber da mudança da infância pra adolescência, Pedro, o que mudou na sua vida? Em termos de cabeça, interesses, amigos? Quando você pensa hoje, quais foram as transformações mais fortes da infância pra adolescência?
R – É engraçado, porque eu como um ser de água, eu me vejo muito como um ser de água aí nas emoções e tal, eu não vi muito essa transição, porque eu me sinto muito criança até hoje, sabe? De estar até com as crianças todo dia quase. Eu me sinto muito criança até hoje. Então eu não sei se teve uma transição ou se só houve soma. Sabe? Se só foi somando mais coisas, fui aprendendo outras coisas sem deixar o que tava pra trás. Assim como a água, a água vai andando e vai levando tudo que está no caminho dela, vai dissolvendo e vai levando junto. Eu acho que teve muito isso, essa coisa de só somar. Mas, claro, tem algumas coisas que mudam, aquela coisa de quando a gente é criança, de ter que chamar atenção, de ser querido na escola por causa da popularidade, estar sempre buscando. E acho que eu sempre fugi disso, eu sempre tentei ficar no meu canto, passava por todos os grupos, mas acabava não sendo de nenhuma panela, sempre fugindo dessa disputa, quando criança. E quando adolescente, acho que mudou bastante, que a disputa meio que acabou, de sair da escola e entrar na faculdade. A faculdade que eu fiz ali, Biologia ali na USP, o pessoal é muito braços abertos, muito acolhedor, respeita muito a diversidade de como cada um é. Então acho que essa foi uma grande transição. Um ponto de transição, acho que pode ter sido esse pela questão de não precisar mais entrar e mostrar que eu sou alguém, porque do jeito que eu era, já estava aceito.
P/1 – E pensando em passeio, você saía nessa fase de adolescente? Isso antes da faculdade, não sei, se ia à festa. O que você tinha de lazer no seu cotidiano, além da escola? Quais eram seus interesses? Qual era o lazer?
R – Desde criança, até adolescência, o meu lazer muito era sair por aí, andar de skate. Então a gente saía muito pela cidade andando, ia em pista de um lado da cidade a outro. Era muito andar com amigos, sair por aí, e muito mais diurnas as diversões, de conhecer lugar e viajar. Com uns 15, 16 anos, eu conheci o caminho da rodoviária, e aí não parava mais em casa. Minha paixão por praias começou a... Sou apaixonado por praia e pela vegetação litorânea por aqueles morrões. Então desde pequeno eu sempre arranjava um jeito de ir viajar com alguém, com algum amigo, ou indo sozinho mesmo, gosto muito de viajar sozinho, de ir buscando esses cantinhos à beira-mar.
P/1 – Quando você começou a surfar?
R – Eu comecei a surfar com uns 14 anos, mais ou menos. A gente ia bastante pra Florianópolis com a família. Tenho família em Curitiba, Florianópolis, e todo verão a gente ia pra lá. Aí comecei. Já andava de skate, já nadava, desde pequeno eu nado, fazia natação desde pequeno, gosto muito de nadar, e comecei a surfar aos pouquinhos, primeiro com a pranchinha de bug bug. Bug bug, desde os dez eu já surfava, eu ia até a areia com ele. Mas era isso. Festas, eu não era muito de festa na época da escola, até por essa coisa das panelas, eu nunca me senti muito à vontade na escola, pra falar a verdade, com essa ostentação, vamos dizer, pode-se dizer um pouco assim. Ia algumas vezes, mas não me sentia muito à vontade, até por um recolhimento. Até hoje eu sou meio assim pra ir a festas, essas coisas, sou meio recolhido. Às vezes eu gosto também, quando tem uma festa de amigos muito queridos, mas tem que ser bem selecionado o ambiente. O ambiente é muito pra mim, me toca muito. Então às vezes eu chego, não me sinto muito bem, já me recolho (risos).
P/1 – E a coisa do biólogo, a ideia de biólogo, você contou um pouquinho pra gente que surgiu nesse momento na Ilha do Cardoso. Eu queria que você falasse um pouquinho mais sobre isso. Como foi essa experiência nessa Ilha do Cardoso, se você se lembra de algum episódio, um momento mesmo, uma cena que tenha ficado forte pra você?
R – Eu lembro muito aquela ilha. A Ilha do Cardoso é um lugar que até hoje eu tenho uma paixão incrível por aquele lugar. É um dos lugares em São Paulo, região do litoral, é um dos lugares mais selvagens que eu conheço em questões de cultura tradicional e questão de mata mesmo, da qualidade de vegetação. E, nossa, é um lugar, uma paz, que essas coisas selvagens têm uma energia que reverbera assim no ar, essa coisa hummm hummm, essa coisa que reverbera. Desde que eu cheguei lá, eu já fiquei meio me sentindo num paraíso. E essa figura do monitor ambiental começou: “Ah, vamos, deixe-me mostrar pra vocês a floresta” – fomos lá à floresta – “e as bromélias, e olha isso aqui”. De repente o cara via um sapinho minúsculo, eu falava: “Caramba! Que olho. Como você consegue ver essas coisas? Eu estou andando e não vi”. E de mostrar do micro ao macro as coisas. A gente andou na praia, andou no mangue, entrou de lama até aqui no mangue, sabe? E andar com lama e se sujar e passar a lama na cara. Tive a oportunidade de experimentar jogar uma rede, aquela rede de sarrafo que os caiçaras usam, que segura com a boca, pega com a mão, tem toda uma manha, e jogar a rede, foi muito marcante jogar a rede. Acho que inclusive foi na hora que eu estava jogando a rede que senti essa coisa forte de falar “É isso que eu quero”. Porque o mental estava contemplando pra saber o nome do monitor ambiental, o corpo estava em movimento, entrando em contato com a coisa da cultura tradicional, então estavam vários eixos contemplados, e nesse momento eu falei: “Nossa, é isso então, eu quero ser monitor ambiental. Vou atrás de fazer Biologia”. E nessa ilha incrível de... E a gente teve que entrar, não só passear. A gente teve que entrar no mangue e descrever o que a gente viu. Entrar na floresta e conversar sobre a dinâmica. Teve toda uma reflexão em cima desse passeio. Foi um estudo do meio muito bem bolado e que foi a partir desse momento que eu descobri o nome do caminho que eu tinha que tomar. Nesse momento. Depois o caminho muda, mas nesse momento eu falei: “Ah, então é...”. Eu estava na sétima série, deve ser 13 anos. Treze anos. É. Já sabia, é Biologia, desde os 13 anos. Com 17, 18, quando eu comecei a prestar faculdade, começaram a vir outros nomes: Psicologia, veio Educação Física, porque eu sempre gostei muito de esporte, de me mexer, Ciências da Terra também, Geologia, me vieram essas coisas. Oceanografia também foi uma coisa que eu prestei por gostar muito do mar. Mas eu descobri que a Biologia englobava tudo isso aí e mais um pouco, a vida toda. Eu falava: “Desde os 13 anos, vai ser isso aí mesmo, Biologia, e pronto”. Teve até um episódio, que na segunda vez que eu tava prestando vestibular, que eu prestei três vezes vestibular pra entrar, a segunda vez eu queria Biologia, mas a Cenografia era mais fácil, a nota de corte, eu fiquei: “Ah, mãe, não sei qual dos dois eu presto”. A gente escreveu em dois papeizinhos: Biologia e Cenografia. Chacoalhou, escolheu, saiu Biologia. Eu falei: “Pronto”. Prestei e deu certo.
P/1 – E como foi a entrada na faculdade pra você? Como foi a experiência de faculdade, a impressão, a vivência? Conta um pouco.
R – Nossa, pra mim foi... Como desde pequeno, desde os 13 anos eu já sonhava com essa coisa da Biologia, no momento que eu entrei foi meio que uma chegada ao céu, de “Pronto, agora resolveu a vida, já conseguiu chegar aonde eu queria”. Até descobrir os outros sonhos. Mas nesse momento foi o momento que eu me senti realizado, me senti capaz. Falei: “Nossa, estou no meu caminho, eu consigo ir atrás do que eu quero e...”. Que talvez até esse momento eu não soubesse dessa minha capacidade de falar “Eu quero isso, eu vou atrás, vou conseguir”. E o ambiente da cidade universitária, nossa, é um oásis dentro de São Paulo. Apesar de ser perto da Vila Leopoldina, onde eu nasci, cresci, eu não conhecia. E quando eu entrei lá, a Biologia é na Rua do Matão, e a Rua do Matão é no meio de duas reservas naturais. E eu sentava num banquinho, virado de costas pra passagem, olhando pra mata, e ficava horas sentado no banquinho olhando assim, falando: “Nossa, olha onde eu estudo, onde eu vou passar meu dia a dia, que bênção, pertinho da minha casa”. E foi incrível. Senti-me realizado por algum tempo, até eu descobrir que eu queria mais, e aí eu comecei a ver também que não era tudo aquilo que eu sonhava, que não era um negócio estanque, que eu cheguei aqui, pronto, está resolvido, é só fazer Biologia que eu vou me dar bem na vida. Até porque eu não ia ser feliz se eu fosse um biólogo tradicional, de laboratório, com todo respeito aos que são, mas não é a minha. Cada vez mais eu vejo que não é a minha, meu perfil.
P/1 – E essas experiências de estágio, de trabalho, você começou a ter depois de entrar na faculdade? Conta um pouquinho pra gente o que você fez dentro da faculdade. Quando eu te interrompi, você estava um pouco nesse ponto, né? Quais foram as experiências e como você foi chegando à questão dos quintais? Então se você puder retomar, contar um pouco.
R – Posso sim. Deixe-me pensar qual foi o primeiro... Assim, o primeiro, eu entrei na faculdade, a primeira coisa, eu comecei a gostar de festa. A festa diurna, que todo dia tem um centro acadêmico que é no meio do mato, que é meio que autogerido, meio que não tem regra, cada um faz o que está a fim de fazer até o ponto de atropelar o outro, e o que foi atropelado vai chegar e conversar: “Olha, então, você me atropelou”. Então um espaço muito livre, festa diurna, começa à luz do dia, o pessoal sempre lá. E é muito legal, eu gosto muito, porque eu acho que aprendi muito nesse centro acadêmico por ser uma pessoa que tem mais facilidade com a oralidade. Então aprendi muito ali conversando, mais do que lendo os livros. Ou ia lá e perguntava: “Ou, e aquele livro lá que era pra ler”. A pessoa me contava o livro inteiro e pra mim eu aprendia e conseguia interagir com as matérias pelas conversar que tinham nesse epicentro de conversa, de conhecimento. O meu primeiro estágio, o primeiro trabalho que me chamaram pra fazer era pra eu pesar lagartos vivos (risos). Então eram uns lagartos que o pessoal pego no Nordeste, eram fêmeas grávidas que eles estavam pesquisando a consistência da casca do ovo. Então eu ficava o dia inteiro lá brincando de dar o bote. Entrava estava num lugar, tchum, tinha que pegar o lagarto com a mão, por dentro de uma meia, por dentro de uma balança, tirar. Às vezes eles fugiam, eu ficava um tempão pra conseguir pegar de volta. E foi muito engraçado. Até que acabou a pesquisa, a doutora que me pediu pra fazer a pesquisa falou: “Ah, obrigada e tal, agora eu vou matar todos eles” (risos). Eu falei: “Ah, não. Vai matar todos eles? Deixa que eu solto”. Eu não sabia, porque é a questão da praga. Não pode soltar, que ele pode se proliferar. Eu falei: “Mas você não pode ir lá ao Nordeste e devolver?”. Ela: “Não, muito recurso e tal”. Aí começou a minha indignação com a ciências, pô, eu fiquei tanto tampo com essas lagartinhas, e ela foi lá e passou a tesoura no pescoço das lagartas e jogou no lixo. Eu falei: “Que isso? Não, isso não é pra mim”. E já fui procurar outra coisa. Em paralelo da faculdade, eu comecei a ir com empresas de estudo do meio, inclusive com esse Rafael, que foi que me influenciou muito, eu entrei em contato com ele depois e ele me chamou pra ir com um colégio, inclusive eu fui com a minha escola, certa vez, na Serra da Cantareira, com os pequenininhos, levá-los e tal.
P/1 – Você começou a trabalhar como monitor então em paralelo?
R – Com monitor, como monitor ambiental. E achava muito legal. Aí apareceu esse projeto que chama Trilha Subaquática, que é do Instituto de Biociências, da USP, que ele trazia esse algo a mais além da informação. Além de levar o pessoal pra trilha, para o mar, tinha o mergulho, trilhas na mata, trilhas virtuais, que eram os painéis e tal, ele começou a tocar nessa questão do afeto, muito na questão do afeto, e isso, nossa, me pegou muito de que o afeto valia mais que mil palavras. Eu comecei a me encantar por isso. Nessa mesma época eu estava tentando começar a minha iniciação científica, entrei num laboratório de restauração florestal, e na Ilha do Cardoso. De novo a Ilha do Cardoso na minha vida, era um laboratório que trabalhava lá. E eu comecei ajudar, ajudar no campo, mateiro ali, de carregar mochila, a ir à frente com o facão abrindo a trilha e ajudar em muitas... E adorava, fiquei por muito tempo só ajudando, o professor chegava: “Está na hora de você começar escrever seu trabalho”. Eu: “Não, não, eu estou bem aqui de ajudante. Eu adoro ir para o mato, carregar coisa, medir planta e tal”. E nessa eu comecei um pouco a experimentar a ciência, mas começou a me incomodar essa coisa de pra falar o que eu achava, eu teria que procurar alguém que já tinha dito pra por referência, e isso começou a me travar, aí eu desisti do laboratório e continuei só com a coisa de monitorias. Trabalhei muito tempo como monitor de mergulho livre no Trilha Subaquática, levando o pessoal pra mergulhar. Gente que nem sabia nadar às vezes ia mergulhar com a gente. E aí eu via como transformava instantaneamente o humor da pessoa, a energia. Alguns tiravam a cabeça da água e falavam: “Nossa, eu não sabia que tinha tanta vida aqui embaixo, nessa piscina”.
P/1 – Nessa coisa da Trilha Subaquática, você se lembra de um episódio, ou de um momento?
R – Nossa, eu me lembro de muitos episódios. Lembro-me de um episódio de um cara que chegou, um grandão, todo pá, chegou e no final estava: “Ai que lindas essas coisas e tal”. Lembro-me de uma menina de uns 15 anos, rebelde, estava com o tio: “Não, não quero ir nesse negócio”. Toda mal-humorada. E na hora que ela... A gente vai com uma balsa, que ela soltou da balsa, me deu a mão, a gente foi até o costão olhar o costão, passou uma arraia bem pertinho da gente, uma arraia toda pintada. Ela já tirou a cabeça da água com um sorriso, sabe? Depois na hora de sair me deu um abraço, falou: “Ai, que legal, vou fazer Biologia”. Sabe? De tanto que às vezes é um atalho. A natureza está ali pra ajudar a gente a criar esse vínculo, e essa arraia que passou valeu mais do que toda a escola dela, que não conseguiu criar essa sensibilização dela com o meio ambiente. Até os 15 anos ela não tinha se sensibilizado, de repente, alguns segundos que passou uma arraia ali, que ela entrou na água e alguém segurando a mão dela, e foi carinhoso, e foi hospitaleiro, de repente ela se transformou. Não sei se depois voltou ao que era, mas pelo menos naquele momento uma semente foi plantada. E aí eu comecei a entender o poder desses pequenos momentos de interação com o meio ambiente, de estar trabalhando pra cada vez mais criar esses espaço aí.
P/1 – Esse trabalho, esses estágios e as pesquisas, e as Trilhas Subaquáticas, eram trabalhos remunerados. Eram estágios remunerados?
R – Não.
P/1 – Não?
R – Não eram remunerados?
P/1 – Todos eram...
R – Todos eles eram voluntários. Todos voluntários. E nesse meio termo, justamente por isso até, de ser voluntário, eu trabalhei... Agora acho que já está igualando, mas eu trabalhei mais tempo como garçom do que como biólogo. Eu fui garçom por muitos anos. E minha família tem restaurante, eu trabalhei de cumim, garçom, barman, até brincar de pizzaiolo eu já brinquei. E depois de sair de lá, fui pra uns restaurantes, uns bons restaurantes em São Paulo, trabalhar como garçom. E foi uma coisa que eu gostava de fazer, porque tem a ver com essa interação com as pessoas. Aprendi tanto da coisa do não contagiar, não deixar o outro decidir seu estado de espírito. Você está servindo a pessoa, ela chega mal-humorada, mas é ela que está mal-humorada, não é você. Então você respirar e tratá-la bem. Ela te trata mal, você trata bem, ela te trata mal, você trata bem, daqui a pouco ela fala: “Putz, mas por que... O cara me trata bem, eu o trato mal”. Só por essa emanação já acaba... E também pelo dinamismo de trabalhar num restaurante, essa coisa de cada viagem você ter que aproveitar. Tem muita permacultura nisso também, de a cada viagem você já está com um cardápio de uma mesa aqui, a comanda da outra, o sal pendurado na orelha e já indo falar dando a resposta do prato que está na cozinha pra outra, já volta com um pedido e com os pratos sujos. Então tem muito esse dinamismo de estar sempre em movimento, de tratar bem as pessoas, saber acelerar e saber diminuir o ritmo, e no meio de uma coisa muito acelerada você conseguir respirar e voltar para o acelero. Então, nossa, eu gosto muito. Inclusive, esse trabalho como garçom diz muito como hoje em dia acontecem as minhas atividades, porque é uma coisa muito de servir as crianças. Eu falo: “Estão aqui os ingredientes, as sementes, as ferramentas, e ok”. Daqui a pouco: “Eu quero mais semente, me ajuda aqui, não sei o quê” “Só um minuto. Já vou. Vou atender”. Então tem muito essa coisa, esse dinamismo aí do garçom, acho que ajudou muito nessa coisa da oralidade, de explicar e de conseguir administrar várias coisas acontecendo ao mesmo tempo.
P/1 – Que idade você tinha quando você começou a trabalhar como garçom?
R – Eu tinha uns 20 anos. Uns 20 anos. Até os 25, 26, eu ainda fiz uns bicos aí de garçom.
P/1 – Com sua família um tempo, depois em outros lugares.
R – É. Em outros restaurantes de São Paulo eu trabalhei também.
P/1 – E aí você recebia?
R – Recebia. Foi o que começou a me sustentar. Nessa época que eu comecei a trabalhar de garçom, eu comecei a criar essa autonomia financeira.
P/1 – Você lembra se com os seus primeiros salários você comprou alguma coisa que você queria? Como você usou esse dinheiro?
R – Nossa, meus primeiros salários, todos eles eram destinados pra viagens. Eu estava sempre... Porque ainda tinha estrutura familiar, tudo bonitinho, de não precisar ajudar. Então os primeiros foram tudo... Eu estava sempre trabalhando e pensando numa viagem, juntando dinheiro pra ir pra algum lugar, pra um intercâmbio. Inclusive o meu intercâmbio foi pra Bahia (risos). Eu estava pesando em um monte de lugar no mundo, de repente a Bahia chamou, eu fiquei oito meses lá.
P/1 – Como foi esse momento? Conta pra gente. Como surgiu a ideia? Que idade? Em quê momento você estava e como foi essa experiência?
R – Eu tinha 21 anos, estava trabalhando no restaurante da minha família, juntando dinheiro pra ir pra Austrália. E aí a Austrália, eu fiquei pensando, falando: “Nossa, é muito legal, mas tem tubarão” (risos). E outras coisas que eu pensava eram: “Mas tem um monte de gente indo pra lá e voltando, eu já sei meio como é, eu vou voltar bronzeadão, pulando altas ondas, e o que mais?”. E um grande amigo meu, o Felipe, um superparceiro de ideologias, que a gente se ajudou a achar nosso caminho, ele virou marceneiro e eu virei jardineiro. Ele chegou e contou de um lugar, que era no sertão da Bahia, que é um centro de permacultura chamado Marizá. E no que ele falou, aquela velha intuição que a minha mãe me ajudou a acreditar nela bateu, falou: “É isso, Marizá. Vamos? Quando? O mês que vem? Pronto. Vamos”. E fomos, foi mais uma vez que minha mãe falou: “Meu, vai”. Empurrou-me do ninho. Eu falei: “Mãe, mas eu vou trancar a faculdade, tal?”. Ela: “Não, tem que ir, cara, isso aí também é estudo, é aprendizado”. E me empurrou, falou: “Vai. Se você não gostar, você volta”. E, nossa, foi lá que eu renasci. Eu costumo brincar muito com o pessoal aí que eu nasci em São Paulo e renasci na Bahia. Porque lá foi um lugar que foi um portal de abrir a minha percepção pra esse meio de pegar na enxada, da terra, da nossa real pegada ecológica, o quanto a gente gasta pra estar aqui vivendo nesse mundo, de como dá trabalho viver da terra, de estar plantando, cuidando da casa, construindo a casa, cuidando da água, captando a água e lavando a roupa. E pensando em todo esse sistema, foi muito legal. E Marizá é um lugar com uma energia sutil muito forte. Então os meus canais de energéticos começaram a se abrir, de um tanto que eu até me assustei, meus 21 anos ali, de repente eu comecei a sentir um monte de coisa que eu nunca tinha sentido antes, comunicar com o invisível. E começou a ficar muito forte. E eu sempre tive essa intuição, e lá aguçou muito, e foi aí que começou essa paixão com as plantas, com a terra, de usar essa intuição de conseguir conversar com as plantas, conversar num nível de conviver. Às vezes a gente fala “conversar com a planta”, não é aquela coisa da avó, que fica “oi, plantinha”, mas é essa conversar de perceber como ela está, o que ela precisa, de olhar uma que nasceu naquele cantinho e falar: “Ah, então você gosta de lugar que nem esse?”. Dessa conversa de convivência mesmo com as plantas.
P/1 – Eu queria que você contasse um pouquinho mais em detalhe pra gente como foi essa viagem até a Bahia, como foi chegar lá, a sua primeira impressão dos lugares. Você fez essa viagem de avião?
R – Fiz. É, um pouquinho. Pra chegar a Marizá, precisa ir de avião até Salvador e de Salvador pegar um ônibus até Tucano, que são seis horas de ônibus em direção ao noroeste de Salvador, é bem sertãozão mesmo. É perto de Canudos esse lugar. E chegando a Tucano, você chega a Tucano, você saiu do ônibus, os caras já: “Marizá. Marizá”. Porque olham pra nossa cara e já sabem pra onde vai. Porque não é um lugar turístico, Tucano. Aí vem, como eles dizem, um galego descendo do ônibus: “Ô galego, é Marizá?”. Aí você pega uma moto, ou um carro de frete, que eles chamam lá, que é um táxi que vai entrando quando estiverem na frente, seis atrás, dois na frente, vai entrando, o volante amarrado com fita crepe, uma coisa bem... E pegamos uma estrada de areia, aí eu já comecei a arregaçar os olhos, olhar aqueles cactos, aquele lugar seco e lindo. Seco e lindo, não seco como ruim, seco porque é assim que é mesmo. E começar me encantar e de repente estar me vendo em outro mundo, passando por um portal, estar em outro mundo. Eu queria ir pra Austrália, não fui, mas eu fui pra outro país, porque lá é outro país. São Paulo é um mundo, a hora que você sai, vai para o sertão da Bahia, é outro país com toda certeza. Sorte que ainda é a mesma língua, mais ou menos, né? Que às vezes: “Ah, fazer um negocinho aqui”, que você não consegue entender (risos). Mas é muito engraçado. E nessa conversa com esse cara que me levou, eu cheguei junto com o Felipe, a gente foi junto, esse cara que nos levou da cidade de Tucano até esse vilarejo chamado Marizá, que é um vilarejo que deve morar um pouco mais de cem pessoas, levando, já começou a sentir aquela brisa diferente no ar. E aí o cara falou uma coisa pra gente que a gente nunca esqueceu, que ele falou: “Pressa pra quê se o tempo passa a gente não vê?”. Essa coisa já começou, já foi para o caderninho, o diário de bordo. E chegando lá, parecia que eu estava flutuando. Sentia-me muito flutuando, arrepio, o tempo inteiro arrepiado. Até de falar emociona, porque o Felipe, meu amigo, chegou e ficou dois dias chorando só, deitado no chão, chorando. E eu chorava, mas andava, ia jogar bola. Muitas emoções, sabe? Acho que passa esse processo de purificação. Esse lugar é um centro de permacultura e um centro de espiritualidade também, de busca desse ser, de qual é meu talento, por que eu estou aqui nesse mundo, qual o sentido das coisas. E é um lugar que bate forte isso. Nossa, e o que a gente chorou quando a gente chegou lá não foi brincadeira. E o tempo que um dia lá parecia um ano. De repente acordava cinco e meia da manhã, e no fim da tarde já parecia que eu estava há um mês lá. E de repente passou um mês e pareceu que era um dia só. E foi um lugar muito legal, de mudar totalmente, de sair de São Paulo, essa vida urbana, nascido e criado na cidade, de repente eu acordava cinco e meia da manhã pra ir buscar comida para as galinhas, aí sete e meia sentava pra tomar um café da manhã que era de omelete com mandioca e feijão, pra já comer daquele jeito. Deliciosas as comidas de lá. E voltava para o trabalho, pra meio-dia sem falta estar sentado pra almoçar, porque meio-dia também não dava mais trabalhar também naquele sol.
P/1 – Vocês ficaram trabalhando na terra?
R – Na terra. Era um trabalho muito na terra. A época que eu fui era fevereiro, era muito quente, muito seco, a gente não estava plantando, a gente estava só preparando pra quando a chuva chegasse. Então era um trabalho muito de buscar folha seca dos cajueiros do vizinho e juntar. E buscar fibra de coco e voltar para o sítio. E buscar madeira. E fui a um matadouro de vaca buscar osso, um monte de arcada de osso, pra fazer farelo de osso, que é um adubo bom. E nesse lugar também que eu tive umas epifanias, que eu estava lá nesse lugar, aí as crianças dessa fazenda chamaram, falaram: “Ah, vamos lá comer manga”. E eu nem gostava de manga lá em São Paulo. De repente eu fui correndo, me vi correndo com eles no pasto, com a criançada ali. Chegamos ao pomar, era uma mangueira gigantesca, que os braços dela já estavam dançando, já tinha atingido a água, já estava daquele jeito. Aquelas árvores mães, né? Avós, na verdade, que já estão instauradas. E chegavam quase até o chão os galhos dela. E cheio de manga, carregado de manga. Eu falei: “Mas pode comer?”. Os meninos já estavam comendo já: “Pode. Pode”. Nossa, aí eu sentei num desses galhos que quase chegavam ao chão, que balançavam, e não precisava nem me mexer, estava cheio de manga. Comecei a comer que nem um bicho. Tinha até uns micos na árvore. E comecei a comer que nem um bicho, comer com a casca, comia uma, jogava, comi umas cinco mangas nesse dia. E me deu essa coisa que acho que todo ser urbano a primeira vez que colhe um negócio fala: “Posso mesmo? É de graça? É só pegar? Nasceu sozinho? E só comer e jogar aqui, que não é lixo? Porque vai nascer de novo, vai virar adubo, né?”. Então de repente eu estava me vendo muito mais num contexto que me fazia mais sentido. Essa coisa de estar ligado com o meio ambiente, de estar nesse fluxo de nasceu, estou sentado na árvore, eu comi da própria árvore e joguei no pé dela, que já vai fazer bem pra ela mesma. E os macaquinhos estavam ali junto com a gente, e as crianças. E nesse dia eu andei a cavalo também, eu pedi pra andar no cavalo deles no pasto. Sei lá vieram umas lembranças de outras vidas, eu acho que... Falei: “Nossa, estou de volta. Estou em casa de novo. Aqui é meu lugar”.
P/1 – Vocês ficaram num sítio, numa fazenda, como foi isso da hospedagem e o trabalho?
R – Esse Marizá é um centro de permacultura e a agroecologia fundado pela Marsha Hanzi, que é uma americana maravilhosa, que mora no Brasil já há quase 50 anos, e superbrasileira na verdade. E é um centro pra receber pessoas interessadas em estudar permacultura mesmo. Então tem uma casa para os estagiários, um alojamento, e você troca o seu trabalho pela estadia lá. Tem até uma taxazinha, porque o conhecimento que eles passam pra gente é valiosíssimo e é juntado ao longo de milhares de anos de estudos e de vivências. Mas essa é a troca principal, você trabalha meio período e pode ficar lá dormindo e comendo, e tal. E o outro meio período tem uma biblioteca incrível, que vai de manejo ecológico do solo...
P/1 – Se puder retomar da biblioteca.
R – Não, a biblioteca é incrível, que vai de livros técnicos de manejo ecológico do solo, à espiritualidade e poesias, e filmes educativos de tudo quanto iniciativa semelhantes, filmes normais mesmo. Então é um lugar, nossa, incrível! É um lugar que mexeu muito com... eu renasci mesmo. Foi um lugar onde houve um grande renascimento. Um lugar que tem um labirinto mágico, que você entra, ele é desenhado pra você desligar um pouco a razão e conseguir andar. Porque você anda nele, ele não faz sentido, mas no fim você sai. Você não consegue entender como ele faz o caminho, mas você está andando ali... E é um lugar que eu tive muitos vislumbres e incompreensões sobre a vida nesse labirinto. E mesmo em Marizá, eu sentia que era uma energia antiga de você estar em cima de uma montanha, e lá de cima da montanha estar olhando lá embaixo: “Olha o pessoal lá em São Paulo o que eles estão fazendo lá embaixo”. Eu senti muito isso lá. De ser um lugar mais ancião, que as informações estão mais à disposição, até pelo silêncio, porque o silêncio de lá era um silêncio absoluto, e ele começou a me fazer ouvir os meus ruídos mais internos com esse silêncio, aquela coisa da mosquinha no ar, o calor, zuuuu. Então muito silêncio. Eu comecei a entender, comecei a escrever. Esse ano eu comecei a escrever muita coisa sobre mim mesmo, coisas da vida. Guardo até hoje esse caderninho, claro. Porque eu comecei, nossa, a entender muita coisa, a sentir muita coisa. Principalmente sentir.
P/1 – Como você descobriu a permacultura? Qual foi o seu primeiro contato?
R – Eu não sei direito quando eu descobri. Porque a permacultura, na verdade, ela sempre existiu nos povos tradicionais. Foi só uma palavra que foi usada pra juntar uma série de princípios, que já existem na natureza, na verdade. A permacultura é a cópia da natureza, uma cópia formal da natureza. Mas a minha mãe, ela já tinha ido também... Antes de eu ir pra Bahia, ela já tinha ido pra Tibá, que é um centro muito legal de bioconstrução, e falou que eu ia adorar, que era a minha cara, tal, mas sentimos que não era a hora ainda de ir atrás disso. E foi muito legal, porque essa história de o Felipe chegar e me falar: “Ah, tem um lugar na Bahia, Marizá”. E eu na hora já arrepiou, eu falei: “Nossa, é esse lugar”. Que é na pura intuição, que é como eu ando na minha vida, na verdade, pela intuição. Uma coisa que vai shuu, tateando, fu fu sentindo o cheiro. E de repente eu estou no lugar certo, eu falo: “Nossa, como eu cheguei aqui?”. Eu não sei direito, é sempre escorrendo. Então eu não lembro exatamente o momento que foi permacultura. Eu comecei a entender o que era permacultura quando eu fui morar em Marizá. Mas não foi atrás da permacultura que eu fui lá pra Marizá, foi atrás de mim mesmo, atrás de aprender mais prático, que eu estava cansado de teoria da faculdade. Já tinha feito um monte de matéria de botânica e não sabia cuidar das minhas plantas. E eu fui lá aprender com quem sabia.
P/1 – Fala um pouquinho pra gente o que é a permacultura do seu ponto de vista.
R – Acho que a permacultura é uma forma de a gente descobrir a felicidade das coisas. A cadeira não é feliz se ninguém sentar nela, se ela não estiver posicionada num lugar pra poder ser usada. Assim como se a gente não descobrir qual é a nossa felicidade/função/papel, que acho que está tudo junto: felicidade, função e papel, estando bem encaixados. Então acho que tem muito a ver com essa descoberta de qual é o papel e a felicidade de cada coisa, e colocar essas coisas num rearranjo que elas se maximizem. Que elas vão se maximizar e essa junção das partes vai gerar um todo... Que não é soma, são multiplicações exponenciais explosivas. Que é como na natureza, uma floresta, a árvore tem múltiplas funções, ela tem a função de estar ali segurando a água, ela tem a função de dar o fruto para o passarinho, tem a função de cair as folhas e gerar o adubo, e o fruto que o passarinho come, ele vai levar pra outro lugar, então ele vai estar dispersando. O esterco dele já vai adubar, ele também participa da polinização. Então é essa coisa, na natureza, nenhum elemento tem uma função só, tem um papel só. Nenhum elemento é: eu sou cozinheiro, eu sou jardineiro. Não tem essa na natureza, todo mundo é tudo. Então a permacultura traz essa coisa de quando você for desenhar um sistema, seja a sua horta, seja a sua casa em si, você pensar em tudo, pensar em como maximizar as coisas pra elas estarem ligadas, como você não gastar energia à toa. Um lugar que você tem que ir todo dia não pode ser longe da sua casa, tem que estar ali do lado. Então ela é muito um design de como gerar um sistema cíclico, um sistema na verdade espiral e infinito. Uma coisa bem de curvas. Tem a ver com curvas, eu acho, que vai contra o linear que a gente vem vivendo. A gente tira da natureza, transforma na fábrica, transporta, vende, usa e joga fora. Aí começa de novo. Então acho que ela vem pra trazer essa coisa. Aqui no campo já existe, né? O sertanejo já pega na planta que nasce lá e dá pra galinha comer, e a galinha dá conta do resto da comida, e isso vai virar adubo pra ele plantar a comida dele. E a comida dele também já serve de semente pra ele plantar a próxima. E ele come, e também vende. Então ela já está implícita nessa maneira mais tradicional de ver. Os índios são os maiores permacultores que existem. Eles pegam o que têm na mão deles, o recurso que eles têm, pra fazer o que eles precisam. Então eles não vão precisar buscar, inventar uma coisa... Quer dizer, inventa muita coisa, mas não precisa inventar o plástico, eles têm o que tem ali. O bambu já virou a casa. A palha que sobrou, depois que essa casa caiu, essa palha já vai pra horta, já virou adubo também. Então é bem essa coisa cíclica e que sempre existiu. É que chegou o Bill Mollison, um Australiano, que é o inventor da permacultura, na verdade o formalizador desse sistema de conhecimento, e que formalizou em alguns princípios básicos, que um elemento não pode ter só uma função, que é separado em zonas cada propriedade de acordo com o uso e tal. Tem vários princípios, mas ela sempre existiu. Eu como um grande amante da simplicidade, eu acho que sempre busquei essa coisa de reutilizar. Roupa nova, eu acho que eu nunca comprei uma roupa nova, sempre ganhei, ou o amigo ia dar, eu falei: “Ou, adorei aquilo. Pra mim é nova. Pra você é velha, pra mim é nova”. Skate, reformava o shape, tal, em vez de trocar. Sempre gostei muito dessa coisa da simplicidade e de trabalhar com o que tem. A gente até brinca que o permacultor é preguiçoso, porque ele trabalha com o que não vai andar muito longe pra buscar. “Ah, não tem palha, tem aqui esse negócio aqui, vou pegar esse aqui, vou usar já. Vou cortar esse capim, usar de corda”. Então tem essa coisa do gambiarreiro profissional.
P/1 – Quanto tempo você ficou na Bahia, Pedro?
R – Eu fiquei oito meses.
P/1 – Mas nesse mesmo lugar os oito meses?
R – Não. Eu fui fazer um teste se eu gostava, eu gostei muito. E aí foi a primeira lição das grandes lições que eu tive na Bahia, que é o “cada um no seu tempo”. Porque esse meu amigo que foi comigo ficou um mês, e foi o bastante pra ele e já voltou e já começou a mexer, movimentar aqui em São Paulo as coisas que a gente entrou em contato lá. E eu como um ser mais profundo e mais lento, precisei ficar mais sete meses além do que ele foi embora ali. E foi a primeira lição. Qual foi a pergunta mesmo?
P/1 – Se você tinha ficado no mesmo lugar, esses oito meses no mesmo lugar.
R – Isso. Eu acabei ficando três meses lá em Marizá, inclusive uma época eu saí, fui pra Canudos visitar Canudos. Nossa, uma energia superforte, sofri um pouco até, pesado. Eu fui visitar o Vale da Morte, onde foram as guerras de Canudos, tal. Uma época que tava muito seco, eu fui para o litoral pra dar uma respirada, uma molhadinha, voltei. Até que deu meu tempo lá, eu já estava ficando fraco, acho que naquele lugar seco, hostil, o sol. Não tinha muito trabalho, porque não chovia. A gente já tinha preparado a terra e não chovia. E aí a Marsha chegou, essa grande mestra aí, chegou pra mim um dia e falou: “Obrigada. Acho que já deu o seu tempo aqui. Quando você chegou, você trabalhava que nem um touro, agora estou vendo que você está minando. E eu tenho uma amiga que tem um sítio de permacultura na região da mata, no litoral, perto de Salvador, eu vou te mandar pra lá”. Eu falei: “Fechado. Eu vou”. E só fiquei mais umas duas semanas, porque minha mãe foi lá me visitar, uma mãe coruja e amante da natureza e da permacultura também. Ela foi lá me visitar. E assim que finalizou. Choveu antes de eu ir embora, foi lindo de ver o sertão chover. O pessoal tem medo da chuva, é engraçado. O primeiro toró que deu, eu fiquei deitado tomando chuva, o pessoal: “Sai daí, você vai ficar doente. É a primeira chuva, deixa de cama”. É o que dizem lá (risos). É muito engraçada essa coisa das culturas. E eu me senti um gringo lá, foi muito engraçado. Por isso que é outro país. Na Bahia eu era gringo. Até que eu comecei a sintonizar na estação daquele outro contexto, aquele outro país.
P/1 – E como foi a decisão de voltar e a volta pra São Paulo?
R – Eu passei muito por lá, passei por Marizá, aí fui lá pra região da mata, era um sítio que... De lá que não chovia, eu fui pra um sítio na região da floresta atlântica, já que choveu uma semana sem parar e inundou a plantação inteira, perdeu coisa, destruiu. Foi uma chuva daquelas, de uma questão de 300 quilômetros de distância, num lugar não chovia nada, no outro choveu em uma semana o que chove em três anos lá no sertão. Até teve alguma pessoa que me falou, falou: “E engraçado, água às vezes é que nem dinheiro, tem lugar que tem tanto, e lugar que tem tão pouco”. E os dois extremos acabam estragando a dinâmica natural. E foi muito legal. E depois ainda de Marizá, de Mangará, que era esse outro lugar perto de Salvador, eu ainda fiz uma viagem pra conhecer a foz do Rio São Francisco, eu fui pra Alagoas. E foi muito legal essa viagem pra questão da fé. Da fé de que o caminho quando você está decidido que você quer andar, o que você quer, está resolvido com você mesmo, você vai andando e as coisas vão se encaixando. Você chega na hora que o barco está saindo, e hora que sai do barco, você já encontra a pessoa certa, que te fala de tal lugar. Essa coisa de viajar sozinho, você acaba sendo um barco à deriva, qualquer um que passa, que você se sente bem, você vai. E acabei ficando na casa de gente que eu nem conhecia, que eu conheci na rua. Eu estava procurando um quarto, a pessoa: “Ah, aqui em casa tem. Quer ficar aqui?”. Eu: “Quero, tal”. Eu ia ficar quatro, acabei ficando dez dias, a pessoa nem quis cobrar nada, sabe? Uma coisa muito dessa hospitalidade, que talvez eu não acreditasse nela por ter nascido em São Paulo, que todo mundo é meio medroso, cuidar do espaço individual, é muito forte o meu espaço individual. Acho que até esse atrito que a gente tem com os cariocas é porque São Paulo e Rio é bem no limite do espaço individual e do espaço coletivo. E no Nordeste mais ainda, essa coisa que você chega, a pessoa já te pega pelo braço, fala: “Venha cá, me dê licença que eu estou chegando”. E estamos tudo junto, é tudo nosso. Então eu acho que foi o grande essa coisa do: “Nossa, que legal, o pessoal abrindo a casa, e eu tão encolha”. O cara abrindo a casa foi um grande marco. Ainda tive uma passagem pela Chapada Diamantina, fui conhecer uma comunidade muito antiga chamada Campina, uma comunidade que vive há muitos anos na autossuficiência ali, nessa coisa do... E na verdade, autossuficiência eu vi que é uma utopia um pouco, as coisas que eu vi nessa viagem, porque ninguém vive sem dinheiro. Tipo, eles mesmos produziam as coisas, mas eles iam vender na feira, ou compravam goiaba e faziam goiabada. Pra também conseguir chegar a um nível de maturidade já além do que eu estava, de acreditar nessa comunidade isolada do sistema, autossuficiente. E entender que dá pra estar um pouquinho mais distante, mas isolar completamente eu não achei o caminho ainda. Talvez tenham pessoas aí que a gente não conhece que estão isoladas mesmo. Mas esse caminho de... Assim como a floresta, estar lidando com vários elementos, tem que saber lidar também com o sistema capitalista, é saber lidar com a roça e misturar tudo. É a questão da permacultura, pegar o melhor de cada, vários elementos, e fazer um sistema que se maximize. Então acho que lá na Chapada eu aprendi isso, essa coisa do...
P/1 – E quando você decidiu que você ia retornar e como foi esse regresso?
R – Então, esse regresso, ele foi... Eu estava ficando, fui ficando, como a boa água, fui encostando, achando as curvas do rio. Eu já estava jogando no time do Vale do Capão ali de futebol. Inclusive eu vi o tanto que o futebol é uma ferramenta antropológica, às vezes chegava ali, galego, onde todo mundo olhava, aí tive uma experiência incrível, que eu joguei num time em Areias, que eu era o único branco do time. No começo ninguém me tratava muito bem, até que eu fiz um gol, que a gente ganhou o jogo por causa do gol que eu fiz. E aí eu virei o rei da vila. No dia seguinte eu fui ali tomar uma cerveja, os caras: “Não, ele não vai pagar, não. Não deixa o galego pagar a cerveja, não”. E eu vi o tanto o tanto que é uma ferramenta antropológica, o futebol, de chegar a um lugar e jogar e já ser parte da comunidade. E foi muito legal. Numa dessas, eu estava num treino do time do Vale do Capão, já estava me sentindo à vontade até demais, fazendo graça ali, tomei uma pancada, jogou minhas pernas pra cima e eu quebrei a mão. Cai, quebrei a mão bem no... E foi no momento que eu estava pensando ir pra comunidade de Campina, me juntar a eles por um tempo. E o trabalho, a gente troca pela estadia nesses lugares. E eu quebrei a mão direita, a mão do facão, que eu estava apaixonado pelo facão nessa época. E até fui lá conhecer, conversei com eles, eles falaram: “Não, pode ficar aí, mesmo sem trabalhar, porque você está com a mão...”. Mas nesse momento eu falei: “Ah, não, acho que já está na hora de voltar, voltar pra faculdade”. Teve vários outros momentos desses que eu me machuquei nessa viagem, que aconteceram coisas de falar: “Não, não vai ainda pra esse lugar que você quer ir”. Entrou uma farpa nas minhas costas quando eu estava indo pra Chapada. Fui escorregar num escorregador em Salvador de madeira, entrou uma farpa que ficou dentro das minhas costas, teve que ir ao hospital tirar. Eu: “Não, mas eu vou mesmo, tal”. Eu já estava meio que insistindo, sabe? As mensagens do ambiente falando: “Não, cara, está na hora, calma, se recolhe, não vai se jogar”. E eu já estava daquele jeito, barbudo, cabeludo, andando com um chinelo de cada cor (risos). Já estava me entregando pra sociedade alternativa, até que eu como um amante dos sinais na vida, quebrei a mão direita e falei: “Não, acho que é hora de voltar”. E foi na semana do meu aniversário que eu quebrei a mão. Eu falei: “Ah, eu vou voltar, inclusive vou amanhã. Vou embora, vou passar o aniversário com a minha família, meus amigos”. Foi muito legal esse retorno. Eu retornei, a gente fez um churrasco de aniversário, e nesse churrasco eu já vi que eu já tinha mudado, que eu já era outra pessoa. Que eu cheguei com o meu jeitão, eu sempre fui meio assim, o mais diferente dos amigos, o mais excêntrico. Mas foi legal nisso aí. Mas sempre super-respeitado, sem julgamento. E eu trouxe a coisa da permacultura, trouxe um papel gigante, pus no meio da mesa do churrasco, e falei: “Agora a gente vai desenhar aqui a ilha dos sonhos”. Vamos desenhar uma ilha do jeito que a gente... Estão nos nossos sonhos essa ilha. E aí cada um desenhou um pouco. Teve um amigo que fez uma caricatura minha cabeludo e barbudo, deitado no chão (risos).
P/1 – Então retomando, você estava falando do seu retorno, do seu churrasco de aniversário, dessa mesa com papel e a ilha dos sonhos.
R – É. E foi muito legal também, porque foi acho que o primeiro momento que eu tive coragem, eu como um ser meio recluso, de chamar amigos de tudo quanto é canto pra estarem todos no mesmo lugar. Que eu sempre fico meio sem jeito quando está muita gente junta. E foi muito legal, sabe? Chamei família, amigos da faculdade, os que cresceram comigo, primos, amigos que eu conheci em tudo quanto é canto. E juntou todos nesse lugar e a gente fez esse desenho do... Acho que foi bem aí que começou falar: “Eu sou assim mesmo. Esse sou eu, eu não vou mais fingir, e vamos então construir um sonho coletivo, brincar de construir esse sonho coletivo”. Que foi nesse desenho que a gente pôs cartolina e cada um fez o que achava que tinha que ter nessa ilha, na dreamland, que a gente chamou. E foi muito legal, um símbolo de que começou outra fase da minha existência, de sonhar e trabalhar pra realizar esses sonhos, de assumir que eu sou sonhador mesmo, e qual o problema de ser sonhador? E essa busca de ser um sonhador profissional mesmo, de trabalhar, de ser profissionalmente um sonhador e trabalhar com os sonhos das pessoas, principalmente esses sonhos ligados ao retorno pra simplicidade, retorno pra terra.
P/1 – Conta um pouquinho pra gente, a partir desse momento então, como vai se encaminhando, você vai se encaminhando pra essa questão mesmo da jardinagem e dos quintais, até você chegar aqui ao Quintal Mágico. Como foi esse percurso?
R – Então, começou assim, eu voltei da Bahia com uma energia que até hoje eu não sei de onde veio, de estar emanando compreensão sobre a vida, compreensão sobre mim mesmo, intuição sobre as coisas. Eu estava com os sentidos aguçados de um jeito assim, que eu estava conversando com você, e aí de repente passava um pss atrás de você, eu já me desconcentrava. Você estava conversando comigo, se tivesse muito movimento em volta, eu não conseguia... Eu voltei meio que um bicho, por estar tanto tempo no silêncio, com os sentidos superaguçados. Até dei uma bagunçada a hora que eu cheguei à cidade de novo. Mas a partir daí, essa coisa emanando esse sonho, e com a fé nesse sonho que eu estava super... Eu comecei a buscar maneiras de por em prática tudo aquilo que eu tinha vivenciado lá, tanto no meu cotidiano, como no jeito de tratar as pessoas, essa coisa mais coletiva da Bahia, de vir cá e abraçar mesmo quem tiver vontade de abraçar, e fazer as coisas. E aí faltava uma terrinha pra plantar, porque eu morava em apartamento. Então estava, arranjava um monte de vasos. E de repente o Felipe, que é esse grande irmão, que caminhou comigo por tanto tempo, caminha ainda, ele começou a cuidar de um canteiro central de uma avenida, a Avenida Semaneiros, ali no Alto de Pinheiros. O canteiro central. Começou a plantar uma coisinha, eu comecei a plantar com ele também, aí já batizou de Crianteiro esse lugar. E ele começou a achar madeiras na rua, e fazer uns banquinhos, e eu ali com as plantas, introduzindo plantas. Fizemos uma hortinha, plantamos umas frutíferas. Fizemos uma fogueira de pedras superbonita, começamos a reunir os amigos ali, em vez de se encontrar num bar, se encontrava ali. No canteiro central da avenida, não é nem uma praça. O pessoal passava, olhava, falavam: “Nossa, eu estou vendo isso mesmo? Uma fogueira em São Paulo, no canteiro central?”. E a gente começou adorar essa coisa dessa vitrine. Além de a gente estar fazendo o que a gente acredita, a gente está mostrando que existe outro jeito. Você não precisa passar só pelos lugares, a hora que você coloca um banco, esse lugar vira uma curva, não é mais uma passagem. Você senta, e hora que você senta, você começa a olhar para as coisas. E aí que começou essa ideologia do espaço educador, de que a linguagem de educação não precisa ser... De educação, e de conversa, e de consciência, e de vivência, não precisam ser o verbo, só. O espaço fala. Quando você transforma o espaço, a transformação do espaço gera transformação em costumes, transformação em cotidiano, transformação de crenças, de percepções. Essa coisa de a hora que você coloca um banquinho num lugar que era passagem, deixa de ser só passagem. Na hora que você coloca uma fogueira, um banquinho e umas plantas em volta, vira um ritual. Um ritual de encontro dos amigos pra acender a fogueira e partilhar. E o que está sendo partilhado nessa fogueira com certeza é diferente do que você ia partilhar num boteco, sabe? Sem juízo de valor, sem que um é melhor que o outro, mas é diferente a conversa que a gente tem nesse espaço, é diferente na conversa do espaço que é diferente. E a gente começou a reparar o tanto que o espaço falava. Inclusive o Felipe fez um trabalho incrível de conclusão de curso, Gestão Ambiental, que é a formação de um espaço público de potência. As consequências na formação de um espaço público de potência, falou muito sobre essa coisa do poder local, de começar a se juntar com os vigias da rua, começaram a resgatar, viam o que a gente estava fazendo, começavam a resgatar o conhecimento deles no Nordeste, Minas, e ver que era valioso aquilo que eles sabiam. Porque de repente eles falavam pra gente: “Ah, mas é assim que planta”. A gente arregalava os olhos: “Nossa, que legal. É assim que planta?”. Ele falava: “Vocês estão interessados nisso que eu estou falando?”. A gente: “Muito. Estamos muito interessados”. E de ver que estava se perdendo, que é um espaço pra trazer para o desenvolvimento, mostrar para o desenvolvimento que a gente está buscando, que talvez não esteja lá na frente o que a gente precisa saber, que a gente já vivenciou o que a gente está precisando saber. Acho que está na hora de olhar pra trás e aprender com o que está lá atrás, não precisa achar nada novo. Talvez o arranjo seja novo, mas os elementos já existem, já estão aí a nossa disposição. E nessa história do espaço educador, enquanto eu estava lá, eu já comecei a rever os meus conceitos de educação ambiental, dessa coisa de estar na trilha, falando: “Esta é uma embaúba, da família das Cecropiaceae”. E a criança tava uorrr uorrr, porque era o que eu ouvia. Eu me lembro disso quando eu era pequeno, o professor falando e eu uorrr, o ouvindo falando, com a mão na terra ali, passando o olho na terra, olhando alguma coisa menos abstrata. Que cada vez mais, com o acelero, a gente está com dificuldade de abstração, de coisa abstrata, então é só coisa concreta. E eu comecei a reparar nisso, essa coisa já que aquele Projeto Trilha Sub já trouxe do afeto, e pensar nesse espaço como um espaço de educação, até que chegou a Cidinha, que era tia do Felipe, uma educadora incrível, trabalha com ONGs, fez trabalhos na África já com a criançada, era contadora de histórias, ela falou: “Então, vocês não querem fazer isso que vocês estão fazendo no canteiro lá na Cáritas com as crianças?”. E eu como já era educador, “crianceiro” desde pequeno, como diz minha mãe, desde pequeno já via criança, já abraçava, já queria cuidar. Eu falei: “Vamos”. Aí a gente sentou, eu, o Felipe, mais o Michel, um amigo nosso, e a gente criou o Projeto Quintal, que vem acontecendo há uns três anos já, desde 2010 a gente começou o Projeto Quintal.
P/1 – Num espaço específico, ou vocês levam o projeto...
R – É o espaço na Cáritas, em Santa Suzana. É uma ONG no Morumbi que já recebe as crianças no contraturno da escola e elas estão lá todo dia, têm aulas complementares de Kumon, inglês, tinha capoeira. E a gente sentou pra pensar nesse jardim, como seria esse jardim. Pensamos muito no jardim. E aí a gente parou pra conversar, pegou uma cartolina nesse dia, o primeiro encontro, eu falei: “Como vai ser esse espaço aí?”. E eu lembro que a gente muito moleque, falou: “Não, então eu acho que a primeira regra é que tudo pode. Pode tudo nesse espaço”. Então essa foi a primeira regra do Projeto Quintal, que era que tudo pode, e não tem regra. Uma coisa assim: vamos ser feliz, vamos tocar violão, plantar, correr, brincar. Que era uma coisa que por intuição me fazia muito mais sentido, e pra eles também. Por vivência mesmo, não é porque a gente estudou e viu que era realmente o que o Paulo Freire dizia, e depois a gente foi ver e era o que ele dizia, mas é porque a gente vivenciou, a gente lembrava como era ser criança. A gente ainda é criança, um lado nosso. E a gente se lembrava da gente na escola, o professor falando, aquela coisa maçante, que ia travando. E a gente falou: “Não queremos nada disso. A gente quer uma coisa onde tudo pode”. Uma coisa bem de criança cuidando de criança. E aos poucos a gente foi vendo que não é bem assim, não é “tudo pode”. Mas a gente começou a trabalhar com essas crianças a questão da transformação de espaço, introduzindo jardinagem, marcenaria, mosaico. Às vezes a gente levava skate, andava de skate com eles, às vezes a gente levava o violão, tocava. E trabalhando muito nessa coisa de aguçar os sentidos, de: “Ah, vamos fechar o olho, usar o ouvido um pouco, usar o nariz e tal, que a gente tem vários sentidos”. E foi muito legal. E no Quintal começou a profissionalizar e entender como é esse Terceiro Setor. Mais uma vez eu estava buscando o meu caminho em paralelo com a faculdade, de novo eu saí de lá. Eu nunca consegui seguir lá dentro, é um lugar como todos os outros grupos, desde criança, eu passo pelo grupo, mas eu não sou do grupo. E aí eu comecei a achar o meu grupo, nesse momento do espaço educador, de estar com a galera do Quintal, o pessoal que gostava de jardinagem, gostava da simplicidade. Lá na Bahia também achamos alguns permacultores, uma galera, comecei achar o meu grupo. Que antes eu era sempre... Passava por todos e não fixava. E nesse momento eu comecei achar o que vinha mais pé no chão, profissionalizar o meu sonho.
P/1 – Você está nesse grupo ainda? Vocês estão nesse projeto?
R – Estamos. Hoje em dia o Quintal virou Quintal Skate, por influência dos amigos, que desde pequeno eu ando de skate junto. E aí a gente conseguiu... É, Terceiro Setor é que nem vírus, atua onde dá. Onde dá pra atuar, a gente está atuando. O espaço abriu, a gente ocupa. Então veio essa lei do incentivo ao esporte, a gente conseguiu viabilizar um projeto de skate, veio a lei do incentivo ao esporte, mas a gente continuou com a parceria de marcenaria e jardinagem, inclusive chegando o recurso, a gente partilhou o recurso. E a gente trabalhava em três, a gente está em dez agora, com marceneiros incríveis, uma galera que trampa com reaproveitamento de madeiras, de recursos. Continua a jardinagem, continua a marcenaria e ainda tem o skate, que acho muito legal assim. Esse projeto ainda continua ao mais anárquico, vamos dizer, dos projetos que eu trabalho. É o extremo do não planejamento, meio que chegar, um olha pra cara do outro: “E aí, como vamos fazer hoje? Crianças, o que vocês estão a fim de fazer? Ah, eu vou andar de skate. Ah, eu vou pra marcenaria. Ah, não, eu estou a fim de ir lá ao jardim”. Então como somos vários educadores, então dá pra fazer isso. Acho que é o modelo também, que um educador pra 30 crianças não existe. Então a gente está sempre em três ou quatro, então dá pra fazer isso, um vai com as crianças andar de skate, outro vai pra marcenaria, outro vai... Ainda tem uma que se deu crise nela, que precisar só de cafuné, essa pessoa vai lá fazer cafuné nessa criança que está precisando, vai ver que ela às vezes só precisa escutá-la, ela quer falar, quer ser escutada, vamos escutá-la. Que às vezes em um a gente acaba matando essa necessidade da criança de atenção: “Ah, você quer chamar atenção? Quer?”. E só isso que ela quer: atenção. E a gente conseguiu nessa... E aos poucos foi um tentando profissionalizar essa coisa dos quintais, ser educador de quintal. Começaram a aparecer outras oportunidades de chamar, daí eu acabei indo trabalhar no Viver Escola, junto com o Bruno Helvécio, que foi um grande mestre. Eu digo “foi” porque se eu falar que ele é mestre, ele fica bravo, que ele é muito humilde. Então ele é meu grande amigo e me ensinou muito dessa coisa da ludicidade e da coisa do planejamento. Foi quando eu comecei a ver que o planejamento também era necessário. E estou aprendendo. E o Bruno Helvécio é companheiro da Amanda, Amanda Frug, e que me ensinou muito também essa coisa do planejamento. Esses tempos ela me falou uma coisa que fez total sentido e mudou meu jeito de trabalhar, que é o planejamento se faz a lápis, de uma maneira linear, mas a execução do planejamento que a gente trabalha é espiral. A gente planeja linear pra ter as cartas na manga, mas de repente choveu, fez sol, a criança estava com vontade de fazer a coisa que estava programa para o outro dia, mas tudo bem, a gente faz naquele também, junto com a que já estava planejada. Então de saber trabalhar com o... Que não dá pra planejar. É um espaço educador, num quintal, trabalhando com o meio ambiente, com a floresta, com a horta, não tem como você planejar exatamente. Você planejou regar, mas de repente você chega lá, está cheio de flor, cheio de semente, um monte de insetos, você vai falar sobre o que está acontecendo, você não vai falar sobre o que está no papel, no planejamento. Eu acho que faz parte justamente da percepção do ambiente. Você está ali, percebeu que tá acontecendo e participar desse fluxo que já está rolando.
P/1 – E, Pedro, fala um pouquinho pra gente como você a partir desse momento chega aqui ao Quintal Mágico. Como surge esse convite, ou essa proposta? E qual o trabalho que você faz aqui hoje?
R – E aí justamente trabalhando com o Bruno, nossa, incrível a parceria com ele, nesse Viver Escola, e ele com a Amanda, e a Amanda já estava aqui trabalhando pra tirar as crianças da sala, pra ter uma floresta de novo. Porque o Quintal Mágico, ele era numa sede superarborizada, aí de repente tiveram que vir pra cá, uma coisa mais árida, e aí eles conseguiram viabilizar o projeto e estavam precisando de jardineiro educador. Alguém que fosse jardineiro e educador ao mesmo tempo. E a Amanda conversando com o Bruno, falando: “Pô, Bruno, mas o único jardineiro educador que eu conheço é você, e você já não tem tempo”. Ele falou: “Não, mas tem o Pedro. O Pedro também é jardineiro educador”. E nessa vim aqui conhecer, já me encantei muito com a possibilidade de trabalhar profissionalmente nessa coisa dos quintais, de estar metade do tempo me aprimorando como jardineiro, outra metade do tempo me aprimorando como educador. E metade eu digo, mas não é separado, está tudo espiral nessa coisa da... Misturado. Porque de repente estou lá trabalhando com a enxada, uma criança chega: “Deixe-me ver?” “Deixo. Por favor, venha ver, eu quero que você veja mesmo o que eu estou fazendo”. De trabalhar mesmo nesse... Como um personagem. Porque quando eu fui convidado pra trabalhar no Floresta, nesse projeto, Uma Floresta em Meu Quintal, me veio a imagem de um duende tocando violão no meio de umas plantas. Esse era o personagem que eu ia ter que encarar aqui, esse ser mitológico que anda pelo quintal disseminando fertilidade.
P/1 – E qual é seu trabalho aqui? Conta um pouquinho do cotidiano de trabalho e da relação com as crianças e com o espaço.
R – Acho que o meu trabalho aqui, ele vem muito de fazer girar a roda do Sistema Quintal, desse lugar. E o Sistema Quintal aqui é composto por plantas, crianças, adultos, galinhas, ratos, coelhos, passarinhos, corujas, então é um lugar muito legal, muita diversidade de coisas. E o meu papel é como jardineiro mesmo, preparar o espaço de forma que esse espaço abrace as crianças, de forma como a hora que elas cheguem ao quintal, cada uma ache o seu canto, porque cada uma é de um jeito. E isso é tudo que a escola não permite que a gente aceite, às vezes não permite nem que a gente seja do jeito que a gente nasceu, de descobrir. Que vem muito uma coisa que eu aprendi lá em Marizá, que as crianças já nascem sabendo quais são os talentos delas, a gente só não pode atrapalhá-las pra descobrir, ficar falando: “Não, você tem que ser isso, tem que ser aquilo”. Às vezes a gente atrapalha, acaba não descobrindo. Então acho que tem a ver com preparar esse espaço de potência, que abrace, que cada uma chegue e uma vai para o cantinho da sombra, outra vai para o alto do morro, outra vai pra horta, outra vai brincar com as galinhas. De estar preparando e de estar promovendo a interação e de estar preparando as crianças pra conseguirem interagir com esse espaço também. Porque no começo, eu brinco que as crianças são feito formigas, aparece uma planta nova no deserto, vão todas: “A planta nova”. Então no começo era tudo novo pra eles, e aos poucos começou a ter muita planta, aí a formigada começou a acalmar, arranca uma, mas sobram dez. Então preparar muito eles pra também conseguir respeitar, conseguir perceber esse espaço, conseguir interagir, conseguir ser feliz nesse espaço. Conseguir os adultos e as crianças serem felizes ao mesmo tempo, de forma a não precisar toda hora ficar dando bronca, toda hora ficar barrando o fluxo das crianças. Então nessa interação. E o desafio que existiu aqui, que antes eu nunca tinha passado por isso, foi de trabalhar com criança pequena mesmo, criança de dois a quatro anos. Eu sempre trabalhei mais com crianças mais velhas. E pra mim foi incrível isso pela questão do verbo de novo, o verbo não funciona aqui, assim como no Espaço Educador. Aí foi um momento que de repente Deus chegou pra mim e falou: “Agora então eu quero ver você testar essa coisa que o espaço fala, porque não vai adiantar mais você ficar falando com as crianças”. Então vai ter que preparar o espaço mesmo e conseguir trabalhar com elas de uma forma, uma comunicação que não seja só verbal. Claro que um pouquinho elas entendem. Mas que não seja só verbal, que seja corporal, que seja de estado de espírito. Porque criança pequena, ela te imita. Ela te imita e tenta ser o que você é e não o que você fala. Então tem muito a questão do exemplo também, às vezes eu estou trabalhando, eu tento fazer com que elas olhem pra mim trabalhando.
P/1 – Você se lembra de um episódio de interação com as crianças aqui que tenha...
R – Nossa, eu lembro vários. Mas esses dias teve um episódio que foi um resultado, e falando na real, eu acho que o trabalho realmente está fazendo diferença. Que o Anderson, que é um menino que tem três anos, é o terror da sala dele, acelerado igual eu era, acelerado, e correndo, sempre bagunçando, aí ele estava correndo, correndo e correndo, não sei o quê, eu fui falar um negócio pra ele, aí eu comecei a falar, ele parou, ficou pasmo, fez uma cara de... Deu um sorriso, apontou, falou: “Olha lá”. Eu falei: “O quê?”. Ele falou: “O girassol”. E o girassol tinha aberto. E eu nem tinha visto ainda, ele tinha aberto, nesse dia mesmo ele tinha aberto. Então um girassol desse tamanho e ele viu do andar de baixo o girassol aberto lá no andar de cima, e ficou com uma cara assim de: “Nossa, que incrível”. Eu falei: “Incrível mesmo. Que legal que você está percebendo as mudanças. De ontem pra hoje você viu que o girassol abriu, então você olhou ontem e você olhou hoje, e viu que estava diferente, e percebeu, e parou pra perceber isso”. Então eu fiquei, nossa, esse dia foi um resultado. E mesmo o episódio... Assim, não sei se tem muitos episódios, eu junto tudo no mesmo bolo, mas a questão de quando eu chego, as crianças vêm com aquele sorriso de querer abraçar e tal, de gostar mesmo. E eu dou liberdade pra isso, porque eu também gosto de abraçar, de bagunça, adoro bagunça. Mas foi incrível. E a construção aqui do jardim, ela é linda. Eu até tenho uma teoria de que as crianças são adubo para as plantas, porque muitos dos cantos elas ajudaram mesmo a fazer. Que eu acho que a gente está esterilizando um pouco a infância das crianças no sentido de dar um tablet pra ela e falar: “Fica quieta aí e não me enche o saco”. E elas estão perdendo a coisa antes de brincar de ser adulto, a coisa de... Que antigamente, eu vejo lá na Bahia, as crianças brincam de ser marceneiro, brincam de ser pedreiro e ficam o mais feliz possível ajudando o pai a construir um telhado, de subir na escada, de brincar de ser adulto, de pegar nas ferramentas. E os pais não têm medo de deixar, se machucar, machucou. E sabem que não vai machucar, porque está do lado ali de olho. Se ela for pegar um facão também, você fala: “Não, esse aqui não. Esse aqui ainda não está na hora”. Então a gente está junto, a gente está servindo mesmo. E aqui o processo foi muito esse, de colocar as crianças pra fazer o que tinha pra ser feito mesmo, não ficar matutando mil anos sobre... É claro que a gente fez teatrinhos, a gente fez dinâmicas pra elas aprenderem como interagir com as plantas, ensiná-las a fazer carinho nas plantas. Essa foi a grande sacada, que elas pegavam, arrancavam folhas, e a gente em vez de falar: “Não faça isso”. A gente falou: “Faça isso, carinho, olha. Pega nela assim, cheira, passe-a na cara”. Trabalhar com os sentidos assim. “Vocês podem interagir, podem encostar nas plantas, mas com carinho. Faz um cafuné. Vocês não gostam de cafuné?” “Gosto.” “Então, as plantas também gostam.” E as crianças acreditam nisso, não é que nem o adulto que fica: “Ah, planta não tem cérebro, ela não...”. E aí começa essa coisa dessa interação. Mas é muito de fazer o que está precisando fazer. Eu to precisando regar, eu vou chamar o batalhão, o mutirão mirim aí, vamos todo mundo, cada um pega um potinho, vamos regar. To precisando tirar capim, vamos: “Pessoal, esse aqui é o capim, nós temos que tirar”. Um monte de pedra que eu preciso levar lá pra cima: “Vamos levar pedra lá pra cima?” “Vamos”. Então assim, uma coisa que eu to vendo, o potencial das crianças também de mutirão. Que elas se divertem e elas podem... Ando até sonhando com jardim de crianças assim, sabe? Um jardim que seja um dia, quem sabe, um sonho que anda vindo, um jardim que seja manejado por crianças, seja delas, que elas façam do jeito delas, e que seja manejado por elas. Porque tem tantas funções de um jardim que elas fazem tão bem, que é regar, semear. Semear é uma coisa que a crianças mais faz bem, que é a dispersão. Semear tem a ver com dispersão, e criança é dispersão por essência. Então você pegar um saquinho de semente e falar: “Planta onde você quiser”. É o que elas mais gostam, sair por aí semeando. O transporte: “Agora todo mundo pega palha, vamos colocar nas plantas, cobri-las com um cobertorzinho de palha”. Então elas adoram essas coisas, essa coisa de brincar de ser adulto, de brincar de qualquer coisa. Elas precisam de movimento, precisam de condução pra trazer. Elas querem fazer qualquer coisa, só que a gente precisa conduzi-las pra umas coisas que sejam interessante, não pra coisas que as anestesiem e elas parem de dar trabalho.
P/1 – E, Pedro, qual você acha... Você falou um pouquinho isso, mas queria que você desenvolvesse um pouco mais, que é a importância... Pra formação das crianças, qual é a importância desse contato com o quintal, com as plantas?
R – Assim, eu sempre procurei... Tenho três questões essenciais assim como educador, que são: como construir a formação da consciência, a formação da percepção, a percepção é uma palavra que pra mim anda comigo, percepção, e como fazer as pessoas conseguirem lidar com o complexo que é a vida. A vida é um complexo lindo, e como lidar com esse complexo sem linearizá-lo, sem colocá-lo em caixinha, e sempre precisar de respostas estanques assim. E aí me vem essa coisa assim, a consciência e a percepção, como se trabalha isso? Através de... Em minha opinião, através de aguçar os sentidos. Aguçando os sentidos todos, o faro, o olfato, a audição, a visão, a intuição principalmente, que acho que é o que junta todos os sentidos e dá a resposta rápida, que junta a razão com todos os sentidos físicos que a gente tem, com sentimentos, e com toda a memória que a gente tem, e dá uma resposta rápida, essa é a intuição, é o lado do cérebro que não trabalha com a razão, que a escola trabalha só esse lado da razão. A música trabalha o outro lado. Então de trabalhar esse lado assim da consciência, a percepção, acho que vêm através de aguçar os sentidos, de mostrar pra elas que existem vários caminhos. E aqui no Quintal é muito isso de falar. A conversa com as crianças é assim, é nesse nível de: “Pega aqui, sente a textura dessa folhinha, o cheiro, deita aqui na grama. Fecha o olho um pouquinho, vê como você está se sentindo dentro. Olha o sol batendo na folha, a folha está se alimentando de sol”. Então essa coisa das histórias, do lúdico, essa coisa da fantasia mesmo. Que a gente vê o mundo segundo a nossa realidade, não existe uma realidade comum para todo mundo. Então acho que nessa hora da infância é muito importante a gente criar essa fantasia de mostrar pra ela que o mundo pode ser o que ela quer que seja. Que na verdade o mundo vai ser o que ela quer que seja, pra ela pensar muito bem, sentir muito bem o que ela vai mentalizar para o mundo. E a gente precisa bombardeá-las de referências, senão elas não vão ter referências, vão ter... Assim, vou estereotipar aqui, mas vão ter aí o futebol, o funk e não sei o quê. De novo, sem fazer juízo de valor dessas coisas, inclusive eu gosto de todas elas, mas sei lá, futebol e funk são só duas coisas. E não são dois caminhos, duas referências. Então enxergar o mundo inteiro através de duas referências é um crime sobre a diversidade, sobre a cultura. Então eu acho que a gente tem que bombardear. Eu sou um bombardeador de referências. Em todos os lugares que eu trabalho com as crianças, às vezes não tenho nem uma linha mestre entre elas. A linha mestre é o espaço, mas é bombardeio mesmo: “Olha isso aqui, olha aquilo ali, sente o cheiro, olha o som, escuta, e tal, e pula num pé só, percebe o seu corpo”. Acho que para as crianças pequenas tem muita motricidade. Mesmo pra aprender escrever, elas precisam aprender a motricidade fina antes de aprender a ler e escrever, isso aí é comprovado cientificamente. E aqui elas estão muito nisso, arrancando graminha, cuidando da planta aprendendo a controlar a força, aprendendo a andar no barranco, que a gente trabalha num barranco, se equilibrar, andar nas pedras, um lugar que é perigoso e ter que tomar cuidado. Que às vezes a gente fica protegendo-a numa redoma, aí hora que ela sai, ela se machuca. Agora se ela está sempre ali caindo e levantando, caindo e levantando, ela aprende a ela cuidar dela mesma, e não precisar toda hora ficar recorrendo a um adulto. Então esse quintal é um bombardeio de referências, um bombardeio no sentido delas de aguçar essa percepção. Eu acho que a consciência, ela só se forma se a pessoa tem a percepção bem aguçada. Se na infância ela foi cortada, às vezes não tem volta. Eu muitas vezes já chorei vendo crianças mais velhas e achando que elas já estavam estragadas, sabe? Falo, já estragou, não sei se tem volta mais, já não sei se tem volta. Mas acho que essa primeira infância é essencial na formação das ferramentas que as crianças têm pra encarar o mundo que elas formar. Que elas vão formar o mundo, né? Então se a gente dá um monte de ferramenta legal pra elas, elas vão formar um mundo legal. Se elas não tem nenhuma ferramenta, elas vão formar o mundo com o lixo que está por aí, que é o que mais tem, lixo nas cidades lineares aí, que arranca, transforma e joga no lixo. Então acho que tem muito a ver com isso. E a terceira pergunta, de como fazer as pessoas lidarem com a complexidade, eu acho que tem a ver com a gente fazer uma educação que não se baseia nas respostas verdades, nas respostas prontas, nas respostas estanques, no certo e errado, no bom e no mau. Que eu vejo muitas crianças aprisionadas nesse sistema do certo e errado, no bom e ruim, principalmente os mais velhos, eles faziam uns desenhos, cara, que eu arrepio de ver o bom e o mau, aí tem o anjinho ajoelhado e o diabinho, sabe, sendo coisas separadas. Acho que faz parte da nossa missão como educadores aí da percepção do ambiente, de geradores de riqueza de espírito, de reencantamento humano também. Outra coisa que eu gosto é de falar que eu trabalho com reencantamento humano. E faz parte de a gente não dar essas respostas prontas, e sim dar reflexão, dar mais pergunta. De não dar medida. “Quanto eu coloco de terra aqui?” “Ah, mais ou menos assim, mede por mão.” Vai pegando na sua mão e vendo quando você acha que tem que colocar. Esse aqui é um temperinho é pouco que coloca. Esse é muito. Trabalhar até com as polaridades, mas não dar: são três colheres de sopa. Eu acho que isso é um crime pra formação da intuição das crianças. De dar as respostas: “Não, isso está errado. Isso é certo”. Aí crescem uns adultos travados com aquele juízo interno que não a deixa ser feliz, que não os deixa por pra fora o talento que veio com eles, porque falaram pra eles que tinha uma lista de coisas certas e uma lista de coisas erradas. E isso faz com que sejam pessoas lineares, que construam casas retas, caminhos retos, e andem sempre por um único caminho certo, enquanto existe uma complexidade de caminhos lindos aí, que as pessoas podem percorrer.
P/1 – Eu queria perguntar um pouquinho pra você agora da relação com o Criança Esperança. Primeiro, o que você sabe sobre o Criança Esperança? É bem pessoal mesmo, do seu conhecimento. E como você conheceu o Criança Esperança? Acho que a gente pode começar com isso, daí a gente...
R – Ah, acho que o Criança Esperança todo mundo conhece pela telinha, Globo ali, vendo desde pequeno. E pra mim sempre foi uma coisa muito distante o Criança Esperança, aquela coisa, lá no Rio de Janeiro, na Globo e tal. E sempre achei uma coisa superligado à cultura, à dança, a personagens, que sempre colocam personagens no meio, da Disney, tal. Usar a coisa dos famosos. E nunca achei que um dia ia chegar até mim isso. Não imaginei que existia uma seleção de projetos, achava que eram umas coisas, iniciativas... Que eu não entendia como funcionava o Terceiro Setor também, essa coisa de escrever um projeto e pedir recurso, que a pessoa que está dando o recurso não é a pessoa que está fazendo o projeto. E de repente eu me vi aqui: “Criança Esperança?” “É. Criança Esperança” “Nossa, aqui ajudando a gente no que a gente já está fazendo? Pô, superlegal”. Pensando nessa história de agir como vírus, de usar os espaços que estão sendo abertos pra bombardear esse reencantamento humano, acho que eles têm um papel muito legal, o Criança Esperança, do reencanto, de trazer cor, trazer música, trazer movimento pra gente que tá nessa coisa de um caminho linear. E, putz, joia, estamos juntos, mais um parceiro nessa rede de reencantamento humano.
P/1 – Qual você acha que é a importância do recurso do Criança Esperança pra vocês, para o projeto de vocês? Desse apoio, né? Não só o recurso, mas o apoio, de uma maneira geral?
R – Eu acho que o recurso do Criança Esperança foi uma coisa que realmente possibilitou de a gente continuar profissionalizando o nosso sonho. O nosso sonho e nossa, como um todo, como humanidade, nossa necessidade, que é parar um pouco de andar pelo único caminho que existe e olhar pra trás e ver os caminhos que já existiram, tanto com a terra, da simplicidade, de estar no quintal, a coisa do quintal. Então acho que eles foram os possibilitadores, o pai, o pai como aquela figura que provém e permite que a gente sobreviva, tenha alimento, tenha recurso, tenha roupa e tenha ferramentas pra trabalhar, tenha semente, tenha terra. Posso comprar esterco de vaca, quero uma muda de jabuticabeira, de poder sonhar alto. O Criança Esperança permitiu que a gente sonhasse alto. No Quintal, eu fui voluntário por muito tempo, e muitas vezes eu tirei do meu bolso o recurso para o meu... Eu estou trabalhando e pagando ainda. E o Criança Esperança permitiu muito essa inversão de: não, eu estou sendo pago pra fazer o que eu faço, com muito carinho, por que não? Por que não eu fazer o meu trabalho com muito carinho? Porque o pessoal também separa essa coisa. O trabalho é uma coisa que você faz, e hora que dá a sua hora, você sai e vai descansar, porque o trabalho te cansa e te consome, e está esperando chegar o fim de semana. Eu não, às vezes eu saio daqui e, tipo, falo: “O que eu vou fazer agora? O que eu mais gosto de fazer é o que eu estava fazendo. Eu tava com as crianças plantando, cuidando. Plantando uma semente na terra e uma semente nas crianças”. E isso que eu to a fim de fazer, então eu saio daqui e não sei o que fazer às vezes. E ele permitiu essa concretização, dar esse chão pra gente, inclusive de sonhar alto: “Pô, precisamos de uma estrutura pra horta, fazer uma estrutura bonita. Vamos precisar comprar umas coisas, ou contratar alguém”. Que a gente tem um grande mestre, que é o Peter Webb. Grande mestre, incrível. Mestre e amigo nosso, um ser incrível. Ele conversa mesmo com as plantas, você consegue perceber as minúcias, é australiano, foi aluno do Bill Mollison, que é o introdutor da permacultura. E essas coisas possibilitam essa coisa numa escala maior ainda de atuação do que se fosse ainda naquela coisa do voluntário, de recurso pra contratar esse cara que é muito bom, e bombardear essa creche. Às vezes a gente acha que uma coisa muito boa tem que ser pra uma coisa maior, num evento político, mas não, a gente está fazendo política aqui, política local, criando um epicentro de encantamento, de informação, de conhecimento, de um monte de coisa, de mudas. Que agora esse lugar virou um banco de germoplasma, um banco de diversidade. Tem muita semente, tem muita muda pra tirar aqui. Pela minha vida inteira eu acho que eu vou, estando aqui ou não, eu vou passar aqui: “Pô, eu estou querendo uma muda de não sei o quê” “Lá no Quintal Mágico tem”. Aqui tem muita coisa, inclusive fica aí a... Querendo muda de alguma coisa, pode vir ao Quintal Mágico pedir, porque está cheio. Muito graças ao Criança Esperança, e ao nosso trabalho também de buscar essa diversidade de trazer a floresta aqui pra dentro. Então esse recurso foi muito bem utilizado, em minha opinião, e muito bem escolhido por eles pra quem dar também. Porque a gente, meu, está fazendo de coração, o pessoal aqui está levando a sério essa missão de tentar tirar o estereótipo de quem faz esse tipo de trabalho, aqueles excêntricos que estão ali na horta. Não, a gente é profissional, esse é o nosso trabalho mesmo. E é isso que gente está fazendo. E a gente sabe que isso é importante. E agora cada vez mais trabalhos vindos da ciência, e pensadores falando sobre isso, falando da importância dessa potencialização do quintais, do local, da coisa da terra, da simplicidade. Que isso tem um reflexo político muito grande, não é só pedagógico. O pedagógico e o político estão unidos. O pedagógico de hoje é o político de amanhã.
P/1 – Tá certo, Pedro. Muito obrigada. Não, ficou superclaro. Eu vou encaminhar para o final porque a gente precisa encerrar. São duas perguntas de fechamento. Tudo bem?
R – Tudo.
P/1 – E a primeira é: quais são seus sonhos?
R – Meus sonhos? (risos) Essa é difícil, porque eu estou num momento de uma crise pessoal, porque eu atingi um pouco do meu sonho já, assim de chegar e falar: “Ah, isso está além do que eu sonhei ainda”. Na época que eu estava na Ilha do Cardoso, resolvi ser biólogo, monitor ambiental, e ainda fui além. Comecei no movimento com uma galera que está num movimento de uma educação nova, uma educação diferente, que não só critica a antiga, mas pega aspectos da antiga e propõe uma alternativa nova. Está dando sugestões, não é só crítica. E se profissionalizando nisso. E meio que esse é o meu sonho, eu estou dentro do meu sonho já. O meu sonho está andando debaixo dos meus pés. E aí sempre a gente quer mais. Acho que agora, o sonho que eu ando tendo é de conseguir criar método pra isso que a gente está fazendo, sabe? Conseguir ter um método, conseguir explicar para as pessoas que ainda não entendem, pra conseguir popularizar o movimento de agricultura urbana, de reencantamento humano, de potencialização de quintais, de articulação de redes de trabalho. De trabalhar em rede, deixar essa história de hierarquia pra lá, que acho que não faz mais sentido pra nossa geração. E estar trabalhando mais junto com a galera que está fazendo políticas públicas também. Eu acho que ser diplomata não é muito o meu papel, eu estou mais para o poeta do quintal aí, mas que está andando junto com os diplomatas pra conversar e trocar as peças. E eu sonho em ter uma... Da minha passagem no mundo aí, ter uma influência muito grande na humanidade, acho que como todo sonhador. De não só passar, mas deixar um legado, um legado que tenha... Não pra ficar meu nome numa estátua, mas um legado pra ter feito diferença pra humanidade caminhar pra um lugar melhor. E eu já entendi que o meu jeito de mudar o mundo não é a coisa de mudar o mundo, é mudar o quintal. O meu quintal. Revolução umbilical. Mudando o meu quintal, o vizinho já muda o dele, aí o outro, uma coisa que vai se mudando, de repente aqui tá crescendo, aqui junta com a nossa, essa coisa da rede. E a informação hoje em dia está circulando com liberdade total, então acho que isso tem a ver com o meu sonho. Ah, e tenho um sonho, aquele sonho parnasiano, de um dia morar num centro de cultura, numa terra mesmo, num sítio, perto da floresta, de preferência perto do mar também, na montanha, eu preciso da montanha, do horizonte pra viver, eu preciso do horizonte. E tenho esse sonho parnasiano de morar numa casinha que eu construí com a minha mãe ali de taipa de pilão, de ter a minha rocinha, os coelhos, criação de coelho, as galinhas, recebendo sempre pessoas, e cultura. Um centro que seja de culinária, de construção, de agricultura, de teatro e arte. De estar no campo, mas trazendo umas coisas da cidade, a coisa da arte. Não precisa voltar a ser exatamente aquele matuto, mas estar na casa na árvore com o laptop ali. E ter um teatro feito de bambu no centro. Então tenho esse sonho também.
P/1 – E, por fim, como foi contar a sua história?
R – Nossa, demais (risos). É como se fosse uma terapia. Uma terapia muito louca, porque a gente vai contando e vai lembrando, e vai tendo vislumbres e compreensões dessa trajetória. Enquanto está entrevistando aqui, eu estou nessa terapia, juntando as peças. Até é muito louco, porque eu ando pensando muito sobre essa coisa de que eu sempre fui turista. Sempre fui turista, e passando pelos lugares. E eu estou começando a achar o meu quintal. Começando a não ser turista, porque no meu quintal eu não sou turista, pô. Então muito legal essa entrevista. Agradeço aí de coração pra vocês.
P/1 – A gente que agradece, Pedro.
R – Valeu mesmo aí.
P/1 – A gente encerra então aqui. Muito obrigada.
R – Opa!
FINAL DA ENTREVISTARecolher