Museu da Pessoa – Conte sua história
Histórias de Esperança – 29 anos do Projeto Criança Esperança
Depoimento de Amanda Frug
Entrevistada por Tereza Ruiz
Osasco 09/12/2014
Realização Museu da Pessoa
Entrevista HECE_HV_33
Transcrito por Liliane Custódio
P/1 – Então primeiro, Amanda, f...Continuar leitura
Museu da Pessoa – Conte sua história
Histórias de Esperança – 29 anos do Projeto Criança Esperança
Depoimento de Amanda Frug
Entrevistada por Tereza Ruiz
Osasco 09/12/2014
Realização Museu da Pessoa
Entrevista HECE_HV_33
Transcrito por Liliane Custódio
P/1 – Então primeiro, Amanda, fala pra gente seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Amanda Frug, nasci em 10 de dezembro de 1979, em São Paulo, capital.
P/1 – Agora o nome completo do seu pai e da sua mãe, e data e local de nascimento se você souber.
R – Meu pai é Sérgio Frug, nasceu no Rio de Janeiro, em 14 de junho de 1948 ou 1949. Minha mãe é Alejandra Conci, nasceu em Buenos Aires, nasceu em 4 de novembro de 1954.
P/1 – O que seus pais faziam ou fazem profissionalmente?
R – Meu pai é astrólogo e terapeuta, minha mãe é artista plástica ceramista durante muitos anos, mas hoje em dia, de uns anos pra cá ela se dedica a fazer joias de prata e alumínio.
P/1 – Conta um pouco pra gente como eles são de personalidade, como é o temperamento deles.
R – Bom, meu pai é um cara super nova era, um cara muito à frente do seu tempo, um cara muito de vanguarda. Eu brinco com ele que às vezes ele fica meio incomodado de as pessoas não compreenderem muito bem o que ele traz, mas é que é tão à frente que realmente precisa de um tempo pra compreender. Ele foi engenheiro durante muito tempo na vida dele, quando eu tinha sete anos ele largou tudo. Ele já estudava astrologia, largou toda a engenharia e todo o conforto material que ele tinha com a engenharia pra seguir essa vida de astrólogo e de trabalhar cuidando das pessoas. Então ele é um figura, um cara simpático, que todo mundo curte, bem figurão mesmo. Minha mãe é muito artista mesmo, acho que artista define bem o comportamento, temperamento dela, porque é aquela pessoa supercriativa, mas pouco organizada. Muito prática em pegar e fazer as coisas, resolver as coisas, é uma pessoa que não tem drama com a vida, acho que talvez essa seja a maior que a minha mãe me dá, é: meu, sem drama, vamos resolver. O que tem que fazer, vamos fazer, tal. E também super cabeça aberta, super conversadora, de filosofar a respeito da vida, de parar pra pensar nessas coisas. Mas é uma pessoa um pouco difícil na convivência íntima, que ela é bem... Não sei direito qual seria a palavra, mas chega a se passar por autoritária, rígida, tipo, dona da verdade, pá pá pá. Mas, enfim, aprendendo a conviver, ela tem inúmeras qualidades, bem bacana.
P/1 – Você sabe qual a origem da sua família, tanto para o lado materno, quanto paterno?
R – Sei até determinado momento. É bem misturado. Do lado paterno, o Frug vem de um bisavô meu, avô do meu pai, que se chamava Miguel Frug, um judeu ucraniano que veio para o Brasil com 14, 15 anos. Eu não sei direito se era época de guerra, ou se lá tava muito difícil a vida, enfim, eu sei que ele veio meio fugido pra tentar a vida num novo país. Aí ele chegou aqui e casou com uma mulher local, a gente não sabe muito bem a origem dela, porque família judia, então ela teve que ser convertida para o judaísmo, então acho que a família não quis muito saber das origens. Mas pelas fotos, a gente vê o tom de pele superescuro, então ou ela era uma mestiça de negros, ou de índios, enfim, uma caboclona brasileira que esse Miguel Frug se apaixonou por ela. Diz a lenda que ele passou... Ele era caixeiro viajante, daí conta que ele a viu na janela numa cidade do interior de São Paulo e falou: “Eu ainda volto pra me casar com você. Você me espere”. Essa era a Rita, minha bisavó. E aí ele voltou mesmo, casou com a Rita. Ele converteu a Rita, que é outra história que eu acho muito legal, porque diz que ele mesmo converteu, ele não levou à sinagoga. Então eu fico imaginando que ele chegou: “Ai está bom, tem que converter, eu te converto, a gente casa, resolvido”. Pra ele poder casar com a caboclona brasileira. Então vem dessa mistura. Bom, desse casal nasceu o meu avô, que é o Jaime Frug, que casou com a minha avó Pegi, que é Wagner de nascimento, ela virou Pegi Frug depois que casou. A minha avó já é filha de uma austríaca com um brasileiro. Então a minha bisavó austríaca veio da Áustria para o Paraná, se casou com um brasileiro, teve acho que oito filhos, enfim, é uma família imensa. Então já tem Áustria, Rússia, Brasil, isso por parte de pai. Por parte de mãe, minha mãe é Argentina, veio pra cá com oito anos. Os meus avós são argentinos, mas são filhos de argentinos com espanhol e argentino com italiano. O meu avô, eu não tenho certeza se ele é filho de italiano, ou neto de italiano, mas tem essa mistura: Espanha, Argentina, Itália, Rússia, Áustria e Brasil.
P/1 – Você sabe por que seus avós maternos vieram para o Brasil, da Argentina para o Brasil?
R – Sei. Também por dificuldades de trabalho, financeiras. Eu não agora exatamente que ano foi, já tem acho que uns 40 anos, minha mãe tinha oito na época. O meu avô é... Eu não conheço o meu avô por parte de pai, que ele morreu antes de eu nascer. Mas o meu avô por parte de mãe, que está vivo até hoje, graças a Deus, ele é pra mim um exemplo absurdo de pessoa empreendedora, batalhadora, trabalhadora. Porque eu fico meio passada, eu vejo essas histórias dos imigrantes, é muito tocante pra mim, eu falo: “Gente, que gente corajosa”. Então ele veio sozinho, estava sofrendo lá sem trabalho, sem comida direito, enfim, veio sozinho numa proposta que fizeram pra ele. Ele veio primeiro sozinho, fez uma sociedade lá, ele já era... Como é a profissão dele? É uma profissão que hoje em dia o computador já substituiu. Torneiro mecânico. Ele desenhava peças ainda na mão, desenvolvia peças para as empresas, para as indústrias. E no Brasil tinha pouco essa profissão. Então ele ficou sabendo disso, fez uns contatos, veio, parece que arrumou um emprego, voltou pra buscar a família. Vieram de navio, sei lá quantos dias de navio, minha mãe conta que só vomitava a viagem toda, venderam móveis, venderam tudo, trouxeram o que dava. Enfim, é uma coisa de louco. A família conta cenas dando tchau no porto de Buenos Aires. Chegaram aqui, deram pra trás com a proposta que tinham feito pra ele. Então ele chegou aqui na promessa de um emprego e não tinha um emprego. Bom, é um cara que batalhou demais, chegou a trabalhar em três turnos, de manhã, de tarde e de noite, mas a primeira graninha que ele tinha, ele já comprou uma maquininha de fazer balde, botou na garagem. Então ele é extremamente empreendedor. Ele nunca quis ser empregado na vida, então desde muito cedo ele varava a noite, não importa, e ele estava lá empreendendo. Então hoje essa família tem uma pequena indústria de embalagens plásticas, que graças a Deus os sustenta e eles vivem bem, meus avós, por conta disso. Meu tio, irmão da minha mãe, que cuida hoje da fábrica, meu avô trabalha até hoje na fábrica, com 93 anos. E foi isso. Então eles passaram bastante necessidade no começo, hoje graças a Deus vivem muito bem. E toda vez que eu acho que eu estou mal de dinheiro ou que está me faltando algo, eu me lembro do meu avô e falo: “Não, filha, você está bem, vai que você vai conseguir tudo”. Sabe, um grande exemplo mesmo. É bem bacana.
P/1 – Você sabe como seus pais se conheceram?
R – Sei. Foi na Contrap, que é uma empresa que meu pai trabalhava como engenheiro, e minha mãe deve ter feito um bico lá, porque eu não consigo imaginar a minha mãe trabalhando de secretária, nada a ver com ela, mas a história é que ela trabalhou lá de secretária um tempo e eles se conheceram lá nessa empresa. Minha mãe saiu logo, meu pai ficou bastante tempo lá. Ele só saiu de fato quando ele resolveu largar a engenharia.
P/1 – E o seu nome, você sabe por que você tem esse nome, quem escolheu, por que Amanda?
R – É, o que me contaram, eu acho que foi meu pai que escolheu. Acho que ele leu num livro que tinha uma personagem com esse nome. E também coincidiu que na época tinha uma música da Mercedes Sosa que toca muito na rádio, que é: “Te recuerdo, Amanda, em la calle mojada, donde trabajaba Manuel”. E aí meu pai falou: “Ah, li esse nome num livro, achei tão bonito”. É um nome que na minha geração não tem muitas Amandas, tem poucas, hoje em dia é mais comum. E aí acho que veio dele então. E coincidiu com a música, que era uma música da época que a minha mãe tava grávida também tocava. E eles gostaram e ficou. E é engraçado...
P/1 – Você tem... Não, desculpa, pode fechar. Pode fechar.
R – Que a decisão deles era Amanda, ou Pedro pra menino, aí um ano depois nasceu o Pedro meu primo e ganhou o nome de Pedro, que é o nome também de um, sei lá se tataravô nosso, uma coisa assim. Então ambos os nomes foram contemplados na família. Pode falar.
P/1 – Você tem irmãos?
R – Não. Sou filha única. Meus pais se separaram muito rápido, acho que eu tinha uns dois anos. Eles ficaram uns quatro anos só juntos, contando namoro e casamento, aí não deu tempo de ter irmão. Eu quis muito, muito, muito, os enchi muito, pedi muito, mas não rolou.
P/1 – Conta um pouquinho como era a casa em que você passou a infância aqui em São Paulo. Descreve mesmo pra gente.
R – Então, a minha infância, até uns dois anos e meio, até esse momento em que eles se separaram, eu morei em casa mesmo. Eu tenho uns flashes de lembrança, bem flashes, mas cheguei a confirmar com a minha mãe: “Mãe, a casa era assim, tal?”. Desenhei a planta da casa: “Aqui tinha a cozinha?”. Ela falou: “Era isso mesmo”. Então eu lembro mesmo bem pouquinho desse quintal, desse espaço, que acho que deve ter sido a última casa que a gente morou antes de eles se separarem. Depois eu fui pra um apartamento no Itaim, que era chato. É uma época da minha vida dos três aos nove anos, que eu me divertia horrores na escola, amava a escola que eu estudava, que chamava Novo Horizonte, era uma escola construtivista ali em Pinheiros, que não existe mais, mas estudei dez anos lá e foi maravilhoso. E me divertia muito no fim de semana com primos, porque como eu não tinha irmãos, sempre fui muito de estar com os primos de ambos os lados da família. Mas essa época no Itaim pra mim eu só me lembro do Bozo, sabe? Então é triste quando eu me lembro das minhas tardes, porque minha mãe trabalhava, eu ficava com uma pessoa que trabalhava em casa pra cuidar de mim, mas não era uma pessoa que brincava comigo. Não conseguia fazer amizade lá no Itaim, embora eu seja uma pessoa supersocial, eu travava a amizade lá, entendeu? Uma vez que eu fiz uma amizade com uma menina, eu fui jantar na casa dela e os pais dela me perguntaram onde eu tinha sido batizada. Eu não fui batizada, porque eu sou filha de um judeu com uma católica, que superlibertários decidiram não me botar religião nenhuma. Quando eu falei isso, o pessoal ficou horrorizado (risos), falou: “Nossa, mas então...”. Sei lá o que eles falaram, eu sei que eu levantei, saí correndo chorando, desci a escada, cheguei a casa: “Eu não existo mais, eu vou para o inferno”. Fiquei traumatizada. Não sei se era o bairro, eu não sei o que rolava no Itaim que eu não conseguia ter amigo, então eu ficava muito assim, fazia dança, fazia natação, essas coisas de criança paulistana e ficava vendo TV, sabe? Quando eu mudei pra Vila Madalena, com nove anos, minha vida se transformou completamente. Mudei com a minha mãe, continuei num apartamento, mas era perto da escola, que eu amava a escola, então muitos amigos meus moravam naquele bairro. A Vila Madalena, aquele espírito totalmente diferente do Itaim, o Itaim já era trânsito, tal, que agora a Vila Madalena também, mas naquela época ainda dava pra jogar vôlei, andar de skate, brincar de taco ali na rua, então curti muito a rua mesmo. Fiz amigos do quarteirão e ficava na praça, fiz amigo com a rua inteira. Acho que encontrei a minha tribo, sabe? E foi bom demais. Mas quando eu já estava na adolescência, já começou a me dar essa coisa de, tipo, meu, não quero São Paulo. Não sei muito bem de onde vem isso, talvez de meus pais sempre terem me levado pra natureza, eu sempre fui de ir pra muita praia, praia ainda deserta, ou com pouca gente, cachoeira, montanha, rio. Reclamava um pouco, quando era pequena, de fazer caminhada, “ai, ter que andar”. Mas hoje em dia eu sou muito grata, porque acho que isso é o comecinho de porque eu fui tomar as decisões que eu tomei depois, de procurar uma vida mais natural, mas saudável, de trabalhar com o que eu trabalho. Mas quando eu estava na adolescência, no Colégio Equipe, que também é um colégio que eu amo muito, foi fantástico estudar lá, eu já tava: “Meu, não quero mais esse negócio de São Paulo, não”. Porque se divertir em São Paulo era tomar cerveja, sabe? Meus amigos faziam isso pra se divertir. Eu pra mim, eu falava: “Gente, mas não pode ser só tomar cerveja o que a gente tem pra fazer na vida”. Sabe? Acho que eu tinha muitas questões que eu precisava conseguir responder e eu achava que eu tinha que ir pra mais perto da natureza. Foi quando chegou na época de fazer vestibular, eu falei: “Não quero ficar em São Paulo, eu quero vestibular no interior”. Meu pai falou: “Beleza”. Nisso eu já morava... Com 14 anos eu fui morar com o meu pai. Ele falou: “Beleza, então você entra numa escola pública, porque eu não vou pagar tudo: faculdade, aluguel, república”. Eu falei: “Tá bom”. Mas agora eu já estou na adolescência, eu não sei... (risos).
P/1 – Não, vamos voltar. Vamos voltar.
R – Então volta (risos).
P/1 – Eu estava esperando você dar uma respiradinha.
R – Não, vai indo, né?
P/1 – Não, mas a gente vai voltar nisso tudo. É legal você dar um...
R – Não, tranquilo. Tranquilo.
P/1 – Ainda na infância, você citou um pouquinho as brincadeiras, tal, eu queria que você falasse um pouco mais do que você brincava e com quem você brincava.
R – Então, essas bênçãos que eu tive. Essa escola Novo Horizonte, ela tinha um quintal imenso, e várias vezes quando me perguntam sobre meu trabalho e tal, eu remeto a esse quintal. Que eu acho que hoje eu trabalho com quintais por causa do quintal que tinha na minha escola. Eu até fico emocionada de lembrar. Então foi um quintal onde eu conheci o que era uma jabuticabeira, um abacateiro, uma mangueira, uma goiabeira, amoreira. Como eu estudei dez anos na escola, eu plantei uma mudinha de amora. Seis, sete anos depois eu subia naquela amora pra colher amora. Criei girino, soltei girino, aí daqui a pouco estavam os sapos lá: “Olha o sapo do girino que a gente criou”. Então eu tive muito essa educação fora da sala de aula. Dentro da sala também, mas, lógico, as maiores lembranças são fora.
E isso é uma pergunta que eu faço hoje dando formação de educadores. Às vezes eu falo, peço para as professoras: “Parem um pouquinho, tentem se lembrar de algum dia muito especial na escola, lembranças especiais que vocês tenham na escola”. Sempre é fora da sala de aula. Raramente alguém traz uma lembrança de dentro da sala. E comigo não é diferente. E eu morava em apartamento, então se não fosse esse quintal dessa escola e essas viagens que eu fazia com os meus pais, acho que eu seria uma criança blindada de natureza e que é o que justamente eu tento lutar contra hoje em dia. Eu tento trabalhar a favor de uma infância com a natureza. E, putz, eu brincava de tudo, descalça, corria, sempre fui muito moleca, nunca fui muito menina de Barbie, de delicadinha, sempre fui mais de correr, de brincar com os meninos, de subir em árvore, cavar, pular. A gente construiu parede de pau a pique nessa escola, enfim, era delicioso. E no fim de semana com os primos, com os moleques. Então o Pedro e o Gabriel eram os meus irmãozãos. Como eu não tinha irmão, cara, eu não via a hora de chegar fim de semana, ir pra casa do meu tio Ivan, ficar com os moleques. Meu tio Ivan, cara, ele deixava tudo. Meu pai brigava comigo, eu falava: “Não, eu quero ser filha do tio Ivan. Errei de pai” (risos). E por parte da minha mãe tinha as minhas primas também, que era maravilhoso também ir pra casa da minha avó. E minha avó, meu, liberava geral, a gente fazia altas cabanas, e morava na frente de uma praça. Então mesmo em São Paulo eu tive essas oportunidades de estar com a natureza, com o pé no chão, que o meu negócio é esse. E era bom demais.
P/1 – Nessa fase de infância, você lembra o que você queria ser quando crescesse? A primeira vez que veio essa ideia na sua cabeça, o que era?
R – Artista de teatro. Meu pai falava: “Não, o certo é atriz”. Que eu não conseguia nem falar ainda, mas eu queria ser atriz.
P/1 – E por quê? Você lembra?
R – Ah, eu gosto muito de palco até hoje. Eu sinto falta. Eu fiz teatro amador muito tempo, até a adolescência, fiz dança, fiz um monte de expressões corporais. Tudo amador, mas cheguei a me apresentar nos grupos amadores e tal. E eu gosto assim. Hoje em dia eu penso que eu sou muito entusiasmada com muita coisa. Então hoje eu já tenho... Eu vou fazer 35 amanhã, e eu vejo que não vai dar tempo essa vida pra tudo que eu gostaria. Então eu já estou assim, o que eu vou fazer nessa vida e o que eu vou deixar pra outra. Por exemplo, eu morro de saudade de palco, e num determinado momento eu acabei desistindo de fazer a carreira de atriz, as outras coisas começaram a falar mais alto, quando chegou no vestibular, eu já nem queria mais prestar Teatro, já estava em outra história. Mas até hoje eu sinto saudade dessa coisa de... Desse tipo de expressão artística. Se eu conseguisse encaixar na minha vida hoje me faria muito bem. Acho que tem um pedaço de mim que sente falta disso, mas não dá pra fazer tudo, né? Então...
P/1 – Você lembra se teve alguma referência, uma coisa... Eu não sei se você tem lembrança disso, uma pessoa que você viu atuando. Qual era a referência pra você ter essa ideia, ou pra você desejar isso?
R – Eu acho que começou na escola. Eu tinha aula de teatro lá no Novo Horizonte, tinha uma professora que chamava Carlota, não lembro o sobrenome dela, deve estar até hoje com teatro, com certeza, gostava muito dela, gostava das aulas dela. Peguei muitos papeis principais na escola, porque não era todo mundo que gostava, então como eu amava aquilo, eu acabava assumindo mais “responsa” mesmo, todo ano a gente montava uma peça. Aí fui fazer teatro no Ventoforte, que também era um estilo maravilhoso, que eu gostava muito, tanto de assistir às peças, quanto às aulas que eu fiz lá por um tempo. Depois, mais velha, que eu fui assistir Antunes Filho, e outros, que agora nem lembro mais os nomes, porque infelizmente essa vida... Hoje em dia eu estou muito no sítio, e essa coisa da... É uma coisa que eu fico falando com os meus amigos artistas, eles dependem muito do urbano. E eu estou na roça, mas eu sinto falta dessa arte lá, então eu acabo ficando meio desconectado, desatualizada do que está rolando. Mas eu acho que eu me apaixonei fazendo mesmo. Eu acho que foi isso (risos).
P/1 – Na época de escola, você teve algum ou alguns professores marcantes? No ensino básico?
R – Olha, no ensino básico eu não vou lembrar, talvez eu não lembre muito dos nomes, não. A Carlota acho que é a única eu... Ah, o Fernando, de Educação Física. E era incrível, porque eu era péssima de esportes, mas eu era boa de quadrilha, então eu não via a hora de ensaiar quadrilha. E o Fernando era um querido, que super me dava uma força moral, porque realmente eu era muito ruim (risos). Acho que só de handball que eu conseguia ser um pouquinho melhor, porque meu tamanho ajudava. Então você vai meio na cavalaria, atropela todo mundo. Eu não vou lembrar nome de outros do primário que me marcaram.
P/1 – Mas pode ser depois, fundamental, ou ginásio.
R – Então, do fundamental, eu lembro muito da Carlota e do Fernando. Lembro vagamente de uma professora de Ciências, de uma professora de Matemática, mas não lembro o nome delas. Acho que mudava muito de professor lá também, enfim, não ficou nada muito marcante. Agora, já no colegial, sim, o Antônio Carlos, professor de Geografia no Equipe, maravilhoso, a Noemi, professora de Literatura, Gilson Rampazzo, de Redação, a Eliane, de História do Brasil. Se eu começar a fuçar, tem mais. O Equipe foi também muito bacana estudar lá, tive professores maravilhosos lá, que me marcaram muito. Acho que principalmente o Antônio Carlos, foi um cara que até hoje eu me lembro dele. Eu ainda penso que eu quero chamá-lo pra fazer alguma coisa junto.
P/1 – E por que você acha que ele te marcou em especial?
R – Eu acho que principalmente na época em que a gente trabalhou Geopolítica. O Equipe tem, espero que tenha até hoje, uma preocupação em formar o senso crítico do aluno, então o Antônio botou a gente pra fazer um trabalho em grupo que era de analisar a propaganda, e perceber que a propagando, o que ela quer? Vender a qualquer preço, nem se você for, sei lá, um favelado, você vai dar um jeito de comprar um Nike, uma TV de plasma, um celular de não sei o quê. E isso mexeu comigo de um jeito, porque eu já era, desde criança eu sempre fui muito incomodada com a desigualdade social. Hoje eu dou esse nome, mas quando eu era pequena e via gente pobre na rua, me doía muito. E eu perguntava: “Meu, por que ele é pobre?”. Eu, sei lá, eu me lembro de eu perguntar pra minha mãe, minha mãe tentar explicar. E vai explicar como? E me doía muito, me dói até hoje. E com o Antônio Carlos eu comecei a ter noção de que de repente a pobreza foi criada de propósito, ela não é por acaso. Teve gente poderosa que pensou em criar a pobreza pra poder ficar mais rico. E aí isso foi... Porque é até uma coisa delicada de a gente falar, não se fala isso abertamente. E lá no Equipe a gente pôde discutir e pôde perceber. E junto com isso tinha a História do Brasil com a professora Eliana rolando, e que ela fazia umas rodas pra discutir, por exemplo, o fim da abolição no Brasil. Lembro-me até hoje dessas rodas, que “ai que lindo, acabou a escravidão”, que lindo o caramba. Os caras, meu, foram marcados, foram queimados pra mostrar que eram escravos, não receberam nada, nenhuma terra nem nada. Em outros países, todos os escravos receberam, aqui nada. Então era uma escola que fazia questão de mostrar esses lados. Então isso pra mim, como pessoa, para o meu desenvolvimento humano mesmo, eu já saí do colegial com uma visão crítica e com uma vontade, meu, eu quero trabalhar pra mudar essa realidade, sabe? Então inesquecível, né? (risos).
P/1 – Nessa mudança da infância pra adolescência, a gente falou um pouco da sua infância, do Novo Horizonte, das brincadeiras e tal. Quando tem essa virada da infância pra adolescência, o que muda na sua vida? Eu queria saber em termos de amigos, de hábitos, o que você fazia de lazer. Que mudanças expressivas tiveram?
R – Então, eu fiquei até a oitava série lá no Novo. Com nove, com essa mudança pra Vila Madalena, já começou a mudar um pouco a minha vida, porque eu já comecei a poder ir mais pra rua, minha mãe ficar mais tranquila de me deixar brincar ali na calçada. Então sair da televisão foi uma bênção, porque eu assistia muito televisão no Itaim. Não tinha o que fazer, estava lá sozinha, por isso que eu me lembro muito do Bozo (risos). Que horror. Tenho medo. Mas, enfim, aí daqui a pouco estava na oitava série, indo para o colegial. Nessa mudança de ir para o colegial, acho que eu estava 13, 14, foi quando eu fui pra casa do meu pai. Eles moravam perto, meu pai morava ali na Vila Beatriz, dava pra ir a pé. E eu estava numa adolescência, naquelas crises de adolescente, eu brigava muito com a minha mãe. Enfim, duas mulheres sozinhas dentro do apartamento. Hoje eu entendo que eu devia ser uma chata e minha mãe, enfim, com as questões dela, saía muita briga. Com 13 eu comecei a namorar o meu primeiro namorado, que foi o primeiro grande amor da minha vida, que eu fiquei cinco anos com ele, que foi o André, que eu conheci na rua, morava lá na Rua Girassol, onde eu morei, bem nessa época de começar a ir pra rua, ele era da turminha da rua. E o André que começou a me dar um toque, falou: “Pô, você está brigando tanto com a sua mãe, de repente, por que você não experimenta ir lá pra casa do seu pai?”. E até era um projeto meio antigo meu, eu sempre falei: “Ah, quero morar com o meu pai, quero morar com o meu pai”. Nesse momento eu tomei coragem e fui. O que foi mudando? Acho que essa coisa de poder ir mais pra rua e aos poucos a brincadeira começou a virar a baladinha. A baladinha começou a ficar ali à noite em rodinha de amigo conversando, daqui a pouco é ir até um barzinho, daqui a pouco é entrar na madrugada, tomar uma cervejinha, não sei que, não sei que lá. E eu já namorava. Eu comecei a namorar muito cedo, eu acho, pra mim, penso hoje. Foi maravilhoso, porque foi um grande amor, superimportante na minha vida, tal, mas ao mesmo tempo tinha uma demanda de querer curtir algumas coisas sozinha, nem de paquerar eu falo, mas de sair com as amigas, porque esse compromisso já tão sério bem nessa época, porque geralmente as pessoas ficam mais livres. Então era meio eu brigava e voltava muitas vezes com o André, era meio confuso, meio dramático esse relacionamento, mas, enfim, foi legal. E acho que é isso, a Vila Madalena foi... A baladinha de adolescência era lá, do lado de casa, eu ia a pé, voltava a pé, raramente fazia outra coisa que não fosse barzinho da Vila. Até que eu enchi o saco disso, que veio, enfim, a próxima etapa.
P/1 – E essa virada de pensamento, você já contextualizou um pouco “ah só tomar cerveja e tal”, e a decisão do quê cursar na faculdade, a entrada na faculdade, como foi isso? Quando você começou a pensar nisso?
R – Então, depois do teatro, eu queria fazer Jornalismo. Queria fazer Jornalismo porque eu gostava de escrever, gosto até hoje. Até que eu assisti a uma palestra de um jornalista lá no Equipe numa semana de orientação profissional que eles organizavam, e aí o cara me desiludiu totalmente. Era um jornalista do Estadão e ele trouxe muito esse lado competitivo do Jornalismo e esse lado de você ter que estar muito antenado em tudo que está rodando no mundo diariamente, então não tem hora pra sair da redação, não sei que. Aí eu comecei a fazer umas perguntas pra ele, eu sei que ele virou pra mim uma hora e falou: “Mas você quer fazer Jornalismo pra quê?”. Eu falei: “Porque eu gosto de escrever”. Ele falou: “Pra isso você não precisa fazer Jornalismo. Se essa rotina, tal, não sei que, te incomoda, de repente não sei é Jornalismo, você pode escrever em qualquer área”. Eu prestei Jornalismo a primeira vez, porque eu tinha que prestar alguma coisa. Eu estava terminando o colegial, eu tinha que fazer vestibular pra algo, eu falei: “Ah, vou fazer Jornalismo”. Mas eu já sabia que não era mais aquilo que eu queria, então prestei por prestar. E nisso eu já devia estar com, sei lá, 17 anos, mas um pouco antes, com uns 15, eu conheci o xamanismo, que acho que foi outra coisa importante. Então, eu não tenho nenhuma religião definida, mas eu sempre tive uma religiosidade forte, tanto que essa ausência de batizado, de religião, ainda muito pequena, acho que com seis anos, eu cheguei pra minha mãe, falei: “Mãe, me ensina a rezar, pelo amor de Deus, que eu preciso falar com Deus”. Ela: “Nossa, não, está bom. Ah, vou te ensinar ao Pai Nosso”. (risos) O que eu sei pra te ensinar, né? Ensinou-me o Pai Nosso e falou: “Olha, mas falar com Deus, você pode falar de qualquer jeito que Deus te escuta, é só você querer falar com ele que ele vai te escutar”. Nossa, me deu uma alívio isso, gente, que eu lembro até hoje desse dia: “Ai, graças a Deus, então quer dizer que Deus me escuta”. Então acho que essa iniciativa bacana deles de me deixar livre pra escolher foi legal, ao mesmo tempo eu percebo que eu tive uma ausência dessa coisa espiritual ainda muito pequena e aí...
P/1 – Então só pra retomar, você tava falando dessa questão da necessidade de uma religiosidade desde menina.
R – Isso. Isso. Eu percebo que acho que pelo fato de eu me lembrar desse dia, esse dia eu era muito pequena e ficou marcado, esse dia que eu pedi pra minha mãe me ensinar a rezar. Só de lembrar, eu consigo sentir um pouco do que eu senti na hora, que era um preenchimento de um vazio e um alívio de saber que Deus ia me ouvir, sabe? E aí eu comecei a rezar todo dia. Antes de dormir eu ficava trocando ideia, sabe? (risos) Porque eu sempre fui muito tagarela, sempre fui conversadeira pra caramba, então ficava lá, pedia. Minha mãe insistia na gratidão: “Olha, mas sempre tem que começar agradecendo. Antes de pedir, agradece a sua casa, a sua coberta, a sua comida, tal”. E isso eu carrego até hoje. Hoje em dia eu rezo com os meus filhos e falo isso: “Vamos primeiro agradecer”. Mas eu fiquei carregando isso. Na adolescência, eu encontrei com o xamanismo, com um grupo que fazia uma prática da sauna sagrada, que é um dos elementos da medicina dos índios norte-americanos. E também preencheu um mega vazio dentro de mim aquilo.
P/1 – Mas como é isso? Conta um pouco pra gente como você encontrou com esse grupo, como foi esse encontro. Você teve uma experiência em específico mais forte?
R – Tive. Bom, tive várias, mas a primeira foi numa viagem Chapada Diamantina, na Bahia, quando eu estava no primeiro ano do Equipe, tinha 14 anos, e meu pai tava num grupo, que era o Rio Aberto, que também é superimportante na minha vida, mas um pouco depois disso, que é um grupo de terapia corporal, que inclusive nasceu na Argentina, tem em vários lugares do mundo, tem no Brasil, meu pai era terapeuta do Rio Aberto. E eu frequentava algumas aulas de trabalho corporal em grupo, gostava, mas não sabia muito o que era aquilo, mas curtia, ia, tal. Meu pai montou um grupo de astrologia para adolescentes nessa época, foi super bacana, fui eu e minhas amigas todas aprender astrologia com ele lá no Rio Aberto, ele dava aula lá dentro, foi bem legal a experiência também. E aí o pessoal do Rio Aberto organizou uma viagem lá pra Chapada, pra uma comunidade que tinha um italiano também do Rio Aberto que morava nessa comunidade. Então o pessoal do Rio Aberto tinha contato com esse cara por causa do Rio Aberto Mundo, sei lá, e o cara: “Pô, estou morando aqui na comunidade, vamos organizar uma viagem pra cá, vamos fazer uma vivência de uma semana do Rio Aberto aqui”. E aí fomos. Bom, quem tinha filho levou os filhos, então foram adolescentes, foram crianças, os filhos dos “rioabertenses” lá. Bom, essa viagem mudou a minha vida pra caramba: primeiro que eu percebo que eu aceitei muito meu pai nessa viagem. Porque eu sempre fui superfã do meu pai, superamiga do meu pai, meu herói absoluto, mas eu não curti muito essa coisa de largar a engenharia e ficar duro, sabe? Porque a gente tinha casa de praia, convenhamos, que criança quer abrir mão de uma casa de praia? Sabe? Então eu falei: “Pô, meu pai também tinha que aprontar essa comigo? Não dava pra ficar bonitinho lá ganhando dinheirinho? Daqui a pouco eu ia pra Disney, sabe?”. Aí, puf, acabou tudo (risos), durão (risos). Eu fiquei naquele papo cósmico, eu chamava de papo cósmico na época, eu falava: “Ai, não me venha com papo cósmico”. E pra mim era a única pessoa que eu conhecia. Quando a gente foi pra lá, eu percebi que ele pertencia a uma tribo e que ele não era o único maluco. De repente tudo aquilo fez muito sentido, inclusive pra mim, e eu comecei a perceber que eu também sou dessa tribo. Então começou daí. Eu olhei e falei: “Cara, meu pai não é tão doido, até que ele é meio normal, olha só a galera que ele frequenta”. E lá na Chapada, bom, mil cachoeiras, e conheci a galerinha de lá, fiz amizade. Foi lindo, lindo, lindo, e uma das coisas que aconteceu foi essa sauna sagrada, essa vivência mesmo. A primeira sauna que eu fiz foi lá. E eu curti, tal. Quando a gente veio pra São Paulo, passaram uns meses, meu pai falou: “Olha, tem um grupo fazendo sauna, estou indo, em Cotia, tal”. A gente morava em São Paulo ainda, aqui perto, em Cotia, tal. Eu falei: “Pô, que legal, eu também quero ir”. E aí beleza. Lançou um livro naquela época que é Cartas do Caminho Sagrado, que é tipo um tarô, é lindo esse livro. Cada carta é um ensinamento dessa medicina dos índios norte-americanos, e meu pai me deu de presente. E lembro que eu adorei, mas ele conta que eu devorei o livro. Que ele falou que ele nunca me deu um presente que ele sentisse que fazia tanto sentido pra mim. Tanto que uns anos depois ele veio me contar que na verdade eu que o levei para o xamanismo. Que ele experimentou, mas eu entrei tanto que ele falou: “Pô, vou entrar também”. Então quando eu fiquei sabendo que ele estava indo à sauna, eu falei: “Meu, também quero”. Ele e mais outro amigo lá, que também era um astrólogo, eles se conheciam já da astrologia, mas se encontraram lá, pediram para o cara que estava facilitando as vivências montar um grupo para os adolescentes, que eles queriam mandar as filhas. Bom, aí eu comecei a fazer sauna em Cotia, que foi o primeiro lugar, e não parei de fazer sauna. Quer dizer, recentemente tenho feito pouco até por conta de estar com as crianças, mas frequento o xamanismo até hoje, tal. Mas fiz sauna a adolescência inteira. E aí eu acho que juntou essa coisa, que eu já estava com essa coisa de religiosidade mais formada, e o xamanismo é muito baseado na natureza, então ele explica tudo por meio da natureza, as direções, o vento, o reino vegetal, o sol, a lua, tudo tem muito significado e muito ensinamento. Então só reforçou essa coisa que já tinha dentro de mim de querer ir por esse caminho. Aí eu nem lembro mais a sua pergunta (risos). O que eu estou contando mais?
P/1 – Não, está super dentro, mas o que é a sauna sagrada?
R – Ah, então, a sauna sagrada é uma cerimônia onde se faz uma cabana com... A madeira original é o salgueiro, que é uma árvore bem flexível, então ela enverga fácil. E aí tem uma analogia com a flexibilidade que a gente precisa aprender a ter na vida, pra não ser muito rígido, tal. Só que hoje em dia, às vezes a gente faz com bambu, nem sempre tem um salgueiro perto, tal. E ela é uma cabaninha feita de madeira, tem toda uma geometria sagrada, cada vara, cada posição tem um significado, e você invoca ali toda a natureza, tanto física, quanto espiritual, que aí, bom, são muitos detalhes, acho que não daria pra entrar agora, mas tem muito significado. Cobre cobertores. A porta dessa cabana é virada para o leste, e numa distância tem a fogueira. A fogueira fica no leste, que a direção do fogo. Cada direção no xamanismo tem também muito significado. O fogo é no leste. E fica uma pessoa cuidando do fogo, que é o guardião do fogo, dentro da sauna tem um buraco no meio, que onde as pedras entram, e o facilitador, o condutor da cerimônia, joga água nas pedras, e aí sobe o vapor, esquenta. E aí tem todo um protocolo, que dependendo da linhagem da medicina, tem várias tribos que têm essa cerimônia, então difere um pouquinho de tribo pra tribo. No México tem também, que chamam de temazcal, essa que eu faço o nome indígena é inipi. Então o facilitador tem coisas pra dizer lá dentro e que são propostas de você se trabalhar. Então você fica no escuro, muito quente, suando muito, tem um mega desafio físico, que meio que te obriga a tentar desligar um pouco a mente, que a sua mente fica: “Você está com calor, você vai morrer, você vai desmaiar, você vai não sei o quê, nã nã nã”. Mas se você consegue dar uma bloqueada na mente e conseguir vivenciar o que o facilitador está trazendo pra você vivenciar, é aí que o trabalho acontece. Então ele é muito purificador fisicamente por conta do suor, tal, tal, e espiritualmente é uma mega limpeza também. Eu me apaixonei, eu fazia sauna direto e adorava fazer sauna, e frequentei os grupos de sauna muito tempo, até que esses primeiros, o Zé Duarte, a Silvi, que era um casal, depois se separaram, a Silvi continuou, pararam de vir pra São Paulo, e aí foi que parou um pouco o meu ritmo de sauna. Nisso eu já tinha o meu primeiro filho, foi bem mais pra frente. Mas durante muitos anos eu fiz e hoje eventualmente vou ainda, tal.
P/1 – Você tinha voltado um pouco nisso pra poder explicar a escolha que você faz profissionalmente, essa coisa com a natureza, a ligação com a natureza.
R – É, o xamanismo só reforçou. Só reforçou aquela coisa do quintal do Novo Horizonte, do passeio, daquela coisa adolescente de, tipo, meu, tem um vazio aqui dentro que não é só essa baladinha que vai preencher, tem algo a mais. Ah, então, você estava perguntando como eu escolhi minha faculdade. Eu falei do Jornalismo, não rolou. Numa sauna lá em Cotia, nesse grupo de adolescentes, me aparece um ser queridíssimo chamado Luís Coelho, que era amigo já de um amigo meu, que o levou à sauna, e ele fala... Eu estava bem nessa época, estava fazendo cursinho e precisando decidir o que eu ia prestar. E aí ele falou que fazia Ecologia. Eu estava saindo do Equipe, ia fazer cursinho ainda. E aí eu falei: “Eu faço Ecologia”. Eu falei: “Nossa, mas existe isso” “Ah, existe na Unesp de Rio Claro” “Ah, é pública?” “É”. Eu falei: “Poxa!”. Aí com aquele projeto de sair da cidade, eu já estava afim, e meu pai tinha falado “Só se você entrar numa pública”, eu falei: “Meu, acho que é negócio que eu vou fazer”. E aí comecei... E, olha, bom, eu fiz Humanas no Equipe, que o colegial, o terceiro ano era dividido: Humanas, Exatas e Biológicas. Eu fui pra Humanas, porque eu me considero uma pessoa de humanas total. Se tiver que compartimentar, me considero bem mais humanas do que qualquer outra coisa. Mas essa ligação com a natureza me fez querer estudar mais a natureza cientificamente, entender mais como funciona, tal. E quando o cara falou, meu, Ecologia em Rio Claro, pública, eu falei: “Cara é isso”. Nem perguntei mais o que era, entendeu? Eu falei: “Nossa, eu vou prestar isso daí”. E assim foi. Então, o conheci numa sauna lá em Cotia, então tudo isso pra mim é muito significativo. E aquela viagem da Chapada, eu simplesmente comecei a ir todo ano pra Chapada. Só parei de ir pra Chapada quando engravidei, quando tive que virar adulta. Porque esse negócio de virar adulta, até hoje eu estou lutando com isso, mas tem que virar. Aí comecei a virar adulta, não dava mais tempo. Mas eu fui acho que sete, oito, dez anos seguidos. Férias, eu ia pra Chapada, ia pra Chapada. E essa coisa de fazer aniversário em dezembro ajuda, porque eu falava pra galera: “Quem quiser me dar presente, me dê em dinheiro, porque eu não quero nada de objeto, eu quero poder ir pra Bahia”. Daí eu pegava a graninha, com 15 anos já... Eu fui com 14 com o meu pai, aí no ano seguinte eu já fui sozinha vários anos seguidos. E lá na Chapada, meu, fazia cocô no mato, não tinha eletricidade, não tinha banheiro, era cozinhar à lenha, sabe? Dormir ou no casebrezinho, ou na barraca. Putz, eu era muito feliz com isso (risos). E aí vamos fazer Ecologia, lógico, vamos estudar tudo isso. E quando eu descobri que eu passei, eu estava lá na Chapada, era férias, meu pai ligou lá no povoado, que só tinha um telefone, e falou: “Olha, avisa a Amanda” – todo mundo sabia quem era Amanda de São Paulo, porque o lugar era minúsculo – “que ela entrou na faculdade”. Aí vieram me procurar, o povoado lá: “Ê, Amanda, você entrou”. E eu dou de cara com o Luís, cara, lá, voltando de uma caminhada, eu falo: “Meu, você está aqui?”. Daí ele: “Estou”. Eu falei: “Cara, eu entrei”. Ele: “É? Você vai fazer mesmo?”. Eu falei: “Pô...”. Ele já estava acho que no terceiro ano, já numa crise se ele ficava ou não. “Lógico que eu vou, não sei que.” Daí ele: “Ah, mas é tanta estatística”. Eu: “Estatística?”. Acho que eu nunca imaginei que ia ter estatística. “Tudo bem. Tudo bem. Eu vou. Eu vou.” Então eu acho que tudo isso foi se juntando. E a Ecologia apareceu por acaso. Nada é por acaso, mas conheci o cara, fazia Ecologia, eu decidi: “Então é isso que eu vou fazer”. Eu passei, aí eu fui fazer.
P/1 – E como foi essa mudança pra Rio Claro e a experiência de faculdade?
R – Foi muito boa. Nossa, gente, eu não posso reclamar da vida, viu? Então, essa mudança foi muito legal. Foi forte por um lado. Meus amigos de balada, a gente tinha um grupinho no Equipe de umas meninas superdescoladas, populares, e que abusavam muito disso, sabe? A gente chegava a ponto de chegar e falar: “Levanta que eu quero sentar nesse banco”. E nego levantava. O pior é que obedeciam, isso que é o pior de tudo. Então, nossa, que horror, só de lembrar eu fico com vergonha, mas a gente gostava de ser as descoladas. Aí tinha uns meninos que chamavam a gente de as bads, as más. Então por um lado eu tinha essa coisa social que era muito fácil pra eu ser popular, digamos, e entrar nessas ondinhas de tirar onda com todo mundo, de ser poderosa, de chegar podendo e não sei o quê. Ao mesmo tempo, algumas coisas eu não curtia, tipo, umas manias de: “Ah, minha amiga está afim dele, então eu vou lá e fico com ele primeiro”. Eu já namorava o André, então isso me salvava um pouco. Eu não entrava nessa disputa pelos meninos porque eu tinha um relacionamento seríssimo, que eu amava muito e tudo. Então eu estava e não estava, sabe? Era uma coisa meio contraditória dentro de mim. Quando eu fui pra Rio Claro, eu assumi total que eu não estava. Minhas amigas falaram: “Meu, você sumiu”. E eu sumi, gente. Eu fui pra Rio Claro. Naquela época não tinha e-mail, celular, nada. Eu não tinha nem telefone fixo na minha casa, eu não sei como meus pais faziam pra falar comigo, sei lá. Naquela época não tinha nada ainda, foi 98 que eu entrei pra faculdade. Mudei pra Rio Claro, cortei total relações com a galera de São Paulo. Mas não por não gostar, eu amava, amo até hoje, sinto maior amor por essa turma, mas porque eu me encontrei lá com outro negócio que eu estava precisando, que era essa coisa de andar de chinelo, ir a pé pra facu, deitar na grama e encontrar um povo interiorano que curte muito mais o mato mesmo e não é aquela coisa tão urbana tipo São Paulo, que vai pra praia e tem que ir para o bar. Eu queria ir pra praia pra ficar na praia. Não, vai pra praia tem que ir para o bar. Eu falava: “Gente, alguma coisa está errada”. Então ficou essa... Ah, tudo de bom ir pra lá, sair de casa, morar em república, construir amigos que até hoje são amiguíssimos, eu moro com um deles hoje ainda, a gente mora numa chácara em Embu que são três casas. A gente alugou em três pessoas de Rio Claro, na verdade eu e meu esposo, que não somos de Rio Claro, mas o Du, que é esse cara que é vizinho até hoje, e outro casal também de Rio Claro, então como essa coisa rio-clarense.
P/1 – Então só pra gente retomar, você estava falando que Rio Claro rendeu inclusive esse sítio que divide com mais dois amigos, não é isso? Essa história.
R – Isso. É. Hoje em dia. É. Que é uma história muito presente. Mas, enfim, acho que muito essa coisa de não ter telefone ajudava, porque pra falar com as pessoas, você tinha que ir a casa, não tinha como ligar. E-mail estava começando. Demorei muito tempo pra ter um e-mail, até porque eu demorei muito pra me aproximar do computador. Hoje já uso pra caramba, não tem jeito, mas eu negava bastante a tecnologia, eu queria a coisa mais natural possível, tal, até que não teve jeito, teve que criar um e-mail. Eu estava já no meio da faculdade quando eu fui ter o primeiro e-mail, isso eu acho que era 2001, 2002, por aí. Então a gente criou uma família mesmo, muito unida, e amigos que eu vou levar pra sempre, muito queridos, que se falam até hoje. Hoje está um em cada canto do mundo, mas se falando sempre. E por ninguém ter pai e mãe lá, então alguém fica doente, é o amigo que cuida, é uma coisa maravilhosa. Então foi muito bom. E ao mesmo tempo eu estava estudando a tal natureza que eu queria estudar, que foi maravilhoso por um lado, por outro lado foi decepcionante porque não tinha nada de Humanas. Acho que hoje o curso mudou um pouco, até porque os alunos mesmo batalharam pra mudar um pouco. Mas a visão da faculdade de Ecologia na época era muito conservacionista, no sentido de que a conservação da natureza só de dá se o ser humano não interferir. E aí isso passa por questões superdelicadas como, por exemplo, as comunidades tradicionais dentro das unidades de conservação, que a política sempre foi de tirar. Então, imagina, um caiçara que está lá há cem gerações, sei lá há quanto tempo o cara está lá, e aí vem o governo, dá uma graninha pra ele pra ele se virar na cidade. Pô, não existe isso. Isso é um etnocídio, sabe? Então essa era muito a visão. Tentando resumir a história, porque não dá... A Ecologia formava pesquisadores pra trabalhar com conservação nessa visão da conservação a natureza intocada. Eu estava entendendo isso daquela faculdade, eu falava: “Meu, não é isso que eu quero. O ser humano está aqui pra alguma coisa. Se alguém pode essa história, é o ser humano”. Entendeu? Então não dá. Então eu tive essa briga interna com a faculdade, mas fiz a faculdade de boa porque eu gostava de estudar a natureza.
P/1 – Você fez estágio durante a faculdade?
R – Fiz. Inventei o meu estágio. Porque aí que está, durante a faculdade, bom, cheguei a Rio Claro, eu fazia teatro, cheguei a Rio Claro, entrei num grupo de teatro da cidade, fiquei um ano, mas não me identifiquei muito. Cheguei a montar uma peça com eles, tal, mas não me identifiquei muito. E aí tinha um grupo de danças populares, que o apelido do grupo é Boi, Grupo do Boi, porque trabalhava com o Bumba meu boi, mas não só com o Bumba meu boi, outras danças também. Então tinha duas meninas que lideravam esse grupo, duas artistas maravilhosas, que viraram muito amigas, e eu frequentei esse grupo durante os seis anos que eu morei em Rio Claro, então também me apresentava, dançava, era dança e teatro de rua ao mesmo tempo, porque no meio da dança tem falas, tem personagens. Realizei-me muito fazendo o Boi, brinco que minha faculdade foi mais Boi do que Ecologia, mas foram os dois. E pude ter esse lado meu mais artístico também contemplado durante toda a faculdade, o que meu fez muito bem. O que você perguntou mesmo? (risos).
P/1 – Do estágio. Se você estagiou durante a faculdade.
R – Aí, bom, deixei o estágio para o final, até porque eu não conseguia encontrar um estágio que fosse do meu interesse. Porque ou eu tinha que trabalhar só com bicho, ou só com planta, ou só no laboratório, não tinha muitos estágios de... De educação ambiental até tinha, mas longe, sei lá, não fazia muito sentido. E aí o que aconteceu? Eu estava num grupo de capoeira Angola, que eu também adorava, e o pessoal da capoeira tinha um trabalho com umas crianças de um bairro lá, de um bairro de periferia ali perto da faculdade, que tinha uma associação de amigos de bairro, e as crianças meio que ficavam por lá no núcleo da associação, tinha uma menina que fazia umas atividades. E aí o pessoal da capoeira começou a levar as crianças pra capoeira. Eram umas crianças que meio assim, mãe está trabalhando, não pode ficar, então eles ficavam ali brincando. O pessoal da capoeira: “Pô, vamos incluir, vamos fazer um trabalho com essa moçadinha, vamos levar lá pra jogar capoeira”. E eu juntei tudo isso na minha cabeça, falei: “Meu, quer saber? Eu vou tentar fazer um estágio aqui”. Porque eu já queria trabalhar com criança. Na verdade, no meu primeiro ano de Rio Claro, eu já fui ser voluntária num orfanato, que foi legal por um lado, por outro lado foi punk, saí de lá porque não aguentei emocionalmente. Nunca tinha chegado tão perto dessa realidade de criança abandonada. Eu cresci classe média, burguesinha, né? Meu marido me zoa, porque ele é “perifa” total, burguesinha total. Nunca fui rica, mas cresci assim. Então nunca tinha chegado tão perto dessa realidade.
P/1 – Conta um pouco dessa experiência no orfanato, ou de uma situação, um episódio, uma coisa que tenha te marcado.
R – Putz, cara, me chocou demais ouvir... As crianças, elas não mostravam tanto, ou eu na época, imatura também, eu tinha 19 anos, eu não percebia. Então eu brincava com elas, plantava, corria, ficava lá brincando. Mas a assistente social vinha me contar o que cada criança tinha passado, e aí tinha de tudo: abandono, abuso. Eu me lembro de uma criança, um menino que ficava sempre olhando o meu decote, sempre, sabe? E ele tinha uns sete anos. E eu falava: “Gente, ele é novo ainda pra ter esse tipo de...”. Eu fui falar pra ela, falei: “Meu, ele só olha para o meu peito. O que está pegando?”. Ela falava: “Meu, ele foi afastado da família porque os pais transavam na frente dele”. Então eu voltava pra casa chorando, porque a criança apanhou, a criança foi abusada, a criança foi abandonada, a criança foi roubada... Fiquei um ano lá, não aguentei emocionalmente mesmo. Eu falei: “Cara, eu não vou, não dou conta de continuar”. Porque daí eu tinha muito dó. Eu não tava preparada emocionalmente pra encarar mesmo. E você não pode ter dó, você não pode estar com a criança com pena dela, isso não faz bem pra criança. Então eu me sentia mal de estar lá com pena, enfim. Eu comecei a frequentar a horta desse espaço, trabalhar mais com os jardineiros, até porque eu já estava querendo aprender a plantar, não sabia plantar ainda. E tinha muito interesse pelas plantas medicinais, os carinhas lá manjavam um pouco, fiquei menos com as crianças e aos poucos parei de ir. Enfim, era muito nova também, tinha outros interesses.
P/1 – Voltando ao estágio, você...
R – Aí o estágio. É. Que isso foi no começo da faculdade. Ao longo da faculdade eu não achava estágio pra fazer. Já no final da faculdade, o tempo tava terminando, preciso cumprir meu estágio, tinha essa oportunidade aí da capoeira, dessa galera. Aí eu fiz uma manobra, eu fui conversar com uma mulher da Educação Física, que dava uma disciplina na pós-graduação, que era de atividades lúdicas. Esse nome eu adorei, né? Falei: “Nossa, atividades lúdicas, acho que isso tem a ver comigo”. Eu fui lá fazer a disciplina. A mulher mais faltava do que ia. Bom, tudo bem, só de ela assinar que eu vim está bom pra mim, que eu estou precisando disso. Como eu estava me formando em Ecologia, mas eu já sabia que eu queria trabalhar com criança e com educação, eu precisava de currículo. Precisava de alguma coisa no meu currículo que não fosse só Ecologia. Precisava de alguma experiência iniciática nesse campo da educação. E eu conversei com ela, falei que eu queria fazer um estágio assim, assado. Eu inventei meu estágio: “Olha, eu quero ir duas vezes por semana lá nessa comunidade, nesse espaço, desenvolver atividades de educação ambiental e brincadeiras. Como? Eu vou plantar, vou brincar, vou fazer um boizinho com eles”. Eu já estava no Boi, então minhas amigas do Boi toparam me ajudar a montar um boi com as crianças, tal. Eu ia misturar tudo que eu amava na vida: natureza, teatro, dança, brincadeira. Era isso que eu queria fazer. Como eu sempre recebi isso e me senti muito abençoada, eu queria passar. E plantar ali no quintal, tudo. E ela falou: “Ah, tudo bem”. E ela assinou os papéis, ela não me orientou, ela era uma professora bem ausente. Então eu brinco que quem me orientou foi a Emília, que era uma do boi. Que eu falei que eram duas meninas que lideravam o boi, a Emília é uma... Emília Rosa Chimichaque, ela chama, é uma artista incrível, tanto corporal... Porque de formação, ela é educadora física, ela fez Educação Física, mas ela toca, compõe, canta, dança. É maravilhosa. E ela que me orientava. Então eu ia lá toda semana, falar: “Emília, semana que vem eu pensei de fazer isso”. Ela tem uma mega experiência com criança, a Emília me orientou informalmente, não podia assinar papel nenhum, a Carmem lá assinou e deu tudo certo, cumpri meu estágio. Quase não aceitaram o estágio na faculdade. Quase não aceitaram o meu trabalho de formatura também. Graças a Deus que eu tinha amigos que estavam no conselho lá. Que tinha um conselho que definia isso, que uma parte do conselho era composto de alunos, representantes dos alunos. E os alunos brigaram muito, me contaram depois, pra passar, porque não parecia coisa de ecólogo, parecia coisa de louco. Mas tudo bem, passou. Então meu estágio foi uma mega iniciação pra mim.
P/1 – E o seu trabalho de conclusão?
R – Aí foi outra viagem. Bom, no meio da faculdade uns amigos meus de sauna foram morar em Florianópolis e eu comecei a ir também pra Florianópolis. Fui algumas vezes lá visitá-los ficar na casa deles, conheci aquele lugar divino, maravilhoso também. E num determinado momento, eles se envolveram com o candomblé, e eu conheci o candomblé, que eu não conhecia ainda. E achei lindo, porque eu já curtia muito essa coisa das plantas medicinais, tal. E o reino vegetal dentro do candomblé e da umbanda também, ele é muito sagrado, muito cheio de significados. Aí casou. Bem no momento que eu precisava decidir o que eu ia fazer de trabalho de formatura, porque também estava acabando o tempo e eu tinha decidido nada, eu conheci o candomblé. Eu falei: “Meu, quer saber? Eu vou pesquisar as ervas que usam no candomblé, e lindo”. Porque o meu pai fala uma coisa de mim, ele fala que o meu principal critério de escolha é fazer o que é mais gostoso. Quando ele me falou isso, ele me falou em tom de crítica: “É, você sempre escolhe pelo que é mais gostoso”. Eu olhei, falei: “Nossa, que bom, cara. Pô, eu sou superinteligente, velho”. Porque, meu, o que adianta a vida se não for gostosa? Então tudo bem, eu tenho que ganhar dinheiro, eu tenho que pagar escola dos meus filhos, eu tenho que... Tenho, tenho, tenho. Mas dá pra fazer tudo isso sendo gostoso também. Essa é a minha meta na minha vida, sabe? Se não for gostoso, não vai rolar. Então acho que eu sempre fui meio que decidindo o que era mais gostoso. Então eu estou superafim de estudar o candomblé, porque eu fiquei fascinada pelo candomblé, tenho que fazer o trabalho de formação, tem planta, planta é ecologia, já fiz o link, pronto. E pra achar orientador também foi meio difícil, procurei lá em Rio Claro, não tinha ninguém, mas tinha uma professora da Ecologia que trabalha com etnobotânica, ela não quis orientar, porque o trabalho era numa outra linha, mas ela me indicou pessoas que pesquisavam nessa área. Eu fiz os meus contatos, acabei achando uma pessoa ligada à USP que me orientou, Maria Tereza Arruda, uma fofa. O trabalho dela mais na linha de farmácia, ela estudava os... Como chama? Os princípios ativos, tal. E eu como tava na Ecologia, queria estudar mais a diversidade mesmo, a riqueza de espécies, e o relacionamento dessas comunidades com a própria floresta, com a mata, tal. E aí foi superbacana. Mas, lógico, que na hora de aprovar parecia trabalho de Antropologia e não de Ecologia, então foi meio difícil aprovar. Mas aprovaram e tudo certo, consegui me formar. E aí foi linda a experiência com os pais de santo, com os chefes de santo lá de Rio Claro. Aí eu tive que achar essas casas em Rio Claro, então saí procurando, perguntando, já conhecia uma de umbanda, então tinha candomblé, tinha umbanda, acabei fazendo com as duas religiões em Rio Claro pra poder pegar mais casas de santo. E as duas usam planta, então tava perfeito.
P/1 – Teve alguma história nesse processo dessa aproximação que tenha te marcado? Uma experiência, um episódio?
R – Então, o primeiro pai de santo que eu conheci lá em Floripa é uma pessoa muito especial pra mim. Hoje em dia falo com ele raramente, às vezes Facebook, mas foi tipo um desses pais que a gente encontra na vida. Jogou búzios pra mim, fez uma leitura incrível de coisas que foi muito bom ouvir, me adotou uns dias lá. No meu jogo de búzios saiu lá uns banhos que eu tinha que tomar, eu nem estava pensando ainda no trabalho de formatura. O meu primeiro contato com o candomblé foi na casa dele, com os meus amigos que me levaram pra cerimônia, eu achei lindo ver santo dançando na terra, falei: “Meu, que coisa linda que é isso”. E aí queria mais, queria saber mais. E aí: “Ah, então você devia jogar búzios. Joga búzios lá com o Cana” – que é esse pai de santo. “Vou jogar búzios com o Cana.” Fui lá, aí saiu um banho de ervas. Ele falou: “Ah, você vai ficar aqui até quando?” “Tal dia” “Então eu vou colher, tal dia você vem fazer o banho”. Eu falei: “Você vai colher? Eu vou colher com você” “Você quer?” “Eu quero” “Não, mas tem que entrar no mato, tem cobra” “Meu, e daí? Eu ponho bota, sou ecóloga” (risos). Sabe? Eu sei andar no mato, aquelas coisas. Então ele falou: “Então beleza, você quer colher comigo, vamos”. Nossa, foi lindo, porque a gente foi colher na praia, foi colher na serra, diferentes ambientes. Então eu que estava estudando mata atlântica, restinga, não sei que, fui lá com o pai de santo, naquela espiritualidade toda. Eu acho que eu sempre gostei dessa coisa holística, interdisciplinar, então não é só ir lá e estudar a floresta, é muito mais que isso, sabe? Então foram experiências muito incríveis. Daí a gente fez o banho, tomei o banho, dormi lá na casa dele essa noite, ele ficou me contando história de orixá até de madrugada. E dormimos, tal, foi tudo maravilhoso, cuidou de mim como um pai mesmo. E continuamos amigos, frequentei a casa dele um tempo, depois parei de ir pra Floripa também, essa coisa de virar adulto. Você vê, eu me lembro dessa época como se eu ainda fosse adolescente, mas eu já tinha mais de 20 anos. Mas eu acho que pra mim, adulta é quando veio o meu filho, mais pra frente, que aí pesa, o negócio muda. Mas nessa época ainda dava pra curtir bastante e juntar a responsabilidade com a coisa prazerosa e fazer junto. Bom, em Rio Claro também, eu conheci chefes religiosos incríveis, que me sensibilizaram muito, que me ensinaram muito de vida mesmo, não só das plantas. Ia colher planta com as mulheres e com os homens, um pai de santo específico saiu do meio do mato comigo e falou: “Meu, você é louca, menina, você não pode fazer isso na sua vida”. Eu falei: “Por quê?”. Ele falou: “Você prestou atenção que você ficou quase um dia inteiro dentro do mato com um homem com um facão?”. Ele estava com um facão porque ele tava colhendo planta. Eu olhei pra ele, imagina, nunca que eu ia imaginar nada assim, não tinha medo nenhum de me enfiar no meio do mato com o cara. Mas quando ele me falou isso, eu falei: “É, Amanda, talvez você tenha que tomar mais cuidado, porque acho que não é assim”. Enfim, também foram experiências bem bacanas nessas casas todas.
P/1 – E quando você se formou em Rio Claro, fechou, então o que você foi fazer profissionalmente? Como você encaminhou?
R – Então, teve um pequeno vácuo aí. Na verdade, eu saí de Rio Claro, eu já estava com o Rodrigo, que foi o meu segundo companheiro de... Teve o André, que foi aquele primeiro namoro, que terminou. Duraram cinco anos de namoro, terminou quando eu fui pra Rio Claro. Ele, ao contrário de mim, um cara bem urbanão, o sonho dele era ter uma Ferrari, daí, sabe, começou a ficar diferente demais, e aí a gente é superamigo até hoje, mas terminou aí. No meio da faculdade eu conheci o Rodrigo, que foi o segundo grande amor. A gente já estava junto, ele se formou primeiro, eu me formei logo em seguida, e ele conseguiu um emprego em Botucatu. Então eu fui com ele pra Botucatu sem nenhuma perspectiva, fui porque ele arrumou um trampo lá. E lá em Botucatu, eu não lembro se eu consegui trabalhar, eu lembro que a gente montou um Boi também lá, mas não era remunerado. Fiz um trabalho ali, fui dar aula na Escola Waldorf lá de Botucatu, eu fiz dois trabalhos de montar dança com as crianças na escola, mas freela, coisa de montar dança pra festa junina. Produzi acho que meu primeiro curso de permacultura que eu produzi profissionalmente, ganhando pra produzir. Porque eu já tinha produzido alguns em semana de estudos da ecologia dentro da faculdade, aí eu não pensava em cobrar, fazia ali dentro da faculdade. Foi também nesse ano, 2004. Então eu tive umas pequenas experiências profissionais, aí eu engravidei. E aí deu uma pausa de trabalho, porque daí mudou muito. A gente não tinha planejado a gravidez, lógico, eu fiquei mega feliz, porque eu sempre me vi com um menino no colo. Desde criança que eu sei que o meu primeiro filho ia ser menino, sempre me vi com um moleque no meu colo, então eu sabia que ele estava pra chegar e eu já tava com muita vontade de ser mãe. Mas aquela coisa, não dá, não tem dinheiro, não é a hora, não sei que, então a gente evitava filho, mas o... Nem lembro o que a gente fazia pra evitar, falhou o método e aí engravidei. E fiquei superfeliz, falei: “Então é agora, tal”. O Rodrigo não ficou tão feliz. Primeiro ele falou: “Nossa, não, não dá. Não dá”. Então foi supertenso. Eu lembro que o meu casamento com ele começou a terminar aí, que eu virei, falei: “Meu, se você não quiser, você não tem, mas eu vou ter”. Aquela coisa, a gente não faz ideia do que é mãe solteira nessas épocas, então acha que pode tudo. Mas ele ficou meio inconformado, mas acabou se conformando e falou: “Não, imagina, não vou deixar vocês, então vamos aí”. Mas acho que essa foi uma das épocas mais difíceis, acho que a mais difícil da minha vida, começou aí com a notícia da gravidez. Por mais que eu estivesse muito feliz, eu não tinha trabalho, eu não tinha dinheiro, o Rodrigo queria sair da escola que ele tava. Ele tinha entrado no mestrado da USP, queria ir fazer mestrado, sem nenhuma perspectiva de bolsa, então a gente vai viver do quê? Resumindo, voltei pra casa da minha mãe, de barriga, com o marido, uma merda (risos). Adoro a minha mãe, mas morar com ela não era mais o que eu queria pra minha vida, sabe? Teve que ser. Enfim...
P/1 – Como foi a gravidez, durante a gravidez? Como foi esse processo?
R – Olha, a gravidez em si foi uma delícia. Eu tenho dois filhos hoje, e a gravidez é um estado que pra mim é divino. Adoro estar grávida, graças a Deus minhas duas foram com muita saúde, nunca tive nenhum problema de gravidez, então curti muito. Uma gravidez superativa, super me movimentando, supersaudável. E sentir o bebê dentro da barriga, sei lá, essa plenitude que a gravidez traz. É um estado divino mesmo, que eu sinto saudade. Gosto muito de estar grávida. Então foi muito gostoso. E acho que eu tenho um mecanismo, eu sou uma pessoa muito esperançosa e por isso até iludida. Meus amigos brincam: “Ah, essas utopias, essas ilusões”. E hoje em dia eu faço questão de cultuar, de manter, porque eu acho que é isso que me dá força pra continuar. Se eu não tiver um pouco de esperança, eu paro. O meu trabalho é mesmo de acreditar que outra realidade é possível, então tem que ser meio iludida mesmo pra isso. Então acho que eu tenho uns mecanismos de conseguir não olhar tanto pra tragédia ali instaurada, sabe? E conseguir mesmo no meio disso enxergar coisas boas. Por conta disso, eu acho que acabei insistindo demais com esse parceiro. Hoje eu lembro, acho que eu já teria terminado bem antes com ele, sabe assim? Mas não, o Miguel precisava nascer, era importante para o Miguel, que é meu primeiro filho, o Rodrigo, pai dele, estar ali, por mais que o clima dentro de casa era péssimo. A minha mãe e ele nem conversavam, nem se falavam, era horrível. O Rodrigo travou, entrou em depressão, sei lá o que aconteceu com ele, não ia procurar trabalho, não nada. Então eu me sentia totalmente incapaz, parecia que a minha vida ia terminar ali, porque pra ir arrumar um emprego, eu precisava de alguém ficar com o Miguel, pra alguém ficar com o Miguel, eu precisava de dinheiro, pra ter dinheiro, eu precisava arrumar um emprego, então não fechava o ciclo, sabe? Eu não consigo sair dessa. E o Rodrigo lá, meu, tocando violão. Eu achava maravilhoso que ele tocava violão. Nessa época, eu queria pegar o violão e dar na cabeça dele, porque ele só tocava violão, o dia inteiro. Sabe? Eu falava: “Meu, e aí?” “Não, eu entreguei um currículo não sei onde”. Eu: “Cara, pelo amor de Deus, eu vou parir”. Daí o filho nasceu, sabe? Fiquei dois anos nessa. Dois anos na casa da minha mãe. Quando o Miguel tinha um ano e meio, eu terminei com o Rodrigo. Mas eu fiquei muito tempo nessa: “Amigo, não quero morar na minha mãe pra sempre. E aí? Não posso procurar emprego, eu estou grávida, estou amamentando, estou não sei o quê”. E aí eu ficava muito mal também, eu tinha crises de tristeza profunda mesmo, de chorar muito, de achar que não ia ter mais jeito minha vida aqui, sabe? Ferrou. Acabou. Mas graças a Deus passou. E minha família superapoiando, eu terminei com o Rodrigo, ele voltou pra Piracicaba. Meu pai tinha um apartamento que a gente estava tentando vender, e finalmente conseguimos vender, então a gente comprou uma casinha ali perto da minha mãe. E eu: “Ai, não acredito”. Bom, quando o Miguel tinha um ano e meio, dois anos, eu consegui a pegar um... Comecei lá na Toca da Raposa, que era um lugar que recebia escolas pra fazer projetos de educação ambiental também. Era um freela fixo. Tipo, era freela, mas eu ia toda semana. Então eu comecei a respirar e falar: “Cara, eu acho que eu vou conseguir trabalhar”. Sabe? “Eu vou criar meu filho.” Nossa, não acreditava. E eu já estava tão desiludida, porque eu já tinha mandado tanto currículo. E na entrevista: “Ah, o que você vai fazer com o seu filho?” “Ah, não, vou botá-lo na creche” “Ah, mas ele é tão pequeno” “Então eu contrato uma babá”. Eu não sabia responder essa pergunta direito, daí já miava a entrevista, já: “Ai não, acho que não está na hora, seu filho tem que crescer um pouco”. Eu: “Ah, meu Deus”. Fiz entrevista em algumas ONGs nessa época, e tudo ia por água abaixo. Eu falava: “Gente, não vou conseguir”. Bom, lá na Toca, por incrível que pareça, eu mandei meu currículo já pensando: “Não vão me chamar”. Aí me chamaram pra um treinamento. Que tinha uma primeira seleção currículo, segunda seleção era o treinamento. Fui para o treinamento, falei: “Nossa, que legal”. Dois dias lá de treinamento. Terminou o treinamento, eu já: “Bom...”. Tinha 60 pessoas no treinamento, eu falei: “Meu, não vão me escolher. Lógico que não”. Já tava assim totalmente desiludida. No fim do treinamento me chamaram e falaram: “Então, você é uma das primeiras que a gente quer que trabalhe aqui. Você topa? É assim, ganha tanto” “Quero”. Eu não queria nem saber quanto eles iam pagar, eu quero, pelo amor de Deus. E aí foi aos poucos. Então eu comecei a trabalhar na Toca, nessa mesma época vendemos a casa, conseguimos comprar essa casinha, eu consegui sair da casa da minha mãe, que foi muito bom. Pouco tempo depois eu fui chamada pra dar aula no Grupo Oficina. Quer dizer, primeiro eu fiz uns trabalhos pontuais também de contação de história, gincanas, brincadeiras ecológicas lá no Grupo Oficina. Aí vagou uma vaga de professor para o período integral, então não precisava ter Pedagogia, que eu não tenho, e era um esquema de ficar com as crianças... As crianças que ficavam período integral tinha um professor que ficava com elas à tarde. E era perfeito pra mim, porque não tinha compromisso de alfabetizar de nada, podia fazer o que eu quisesse. Então foi ótimo. Fui pra lá, daí o Miguel teve bolsa de estudo lá, porque fui contratada lá, então o Miguel começou a estudar lá no Grupo Oficina comigo. Então já consegui ter uma pessoa que me ajudasse em casa, que é a Lia, que está comigo hoje, uma santa, dividia com a minha mãe, ela ficava uns dias na casa da minha mãe, uns dias na minha casa pra gente conseguir pagar. Aos poucos comecei a ir trabalhando e ver que é possível, sabe? Mas foi duro.
P/1 – Deixe-me voltar um pouco no nascimento do Miguel. Eu queria saber como foi seu parto.
R – Então, eu queria ter parto em casa, mas ninguém me apoiava. Nem o Rodrigo queria, imagina, eu morava com a minha mãe, minha mãe não podia ouvir falar de parto em casa. Eu estava com uma médica muito legal, que a minha médica até hoje, que é a Betina, que é uma médica que faz parto humanizado, faz parto em casa também, trabalha como parteira também. E aí ela me falou: “Olha, Amanda, eu acho que nesse contexto você vai forçar a barra, vai brigar com a família inteira, vai teimar igual menina birrenta que quer ter parto em casa?”. Típica filha única burguesinha (risos). “Não faz sentido. Vamos fazer no hospital. Pô, tem plano de saúde, tem tudo, vamos fazer no hospital e a gente faz parto natural no hospital, mas pelo menos sua família fica tranquila e você também, você não tem que brigar com meio mundo pra fazer lá.” E aí foi no Santa Catarina. Acabei não conseguindo ter meu filho totalmente naturalmente, mas tive todo o trabalho de parto. Só na hora de ele descer mesmo, ele não encaixou, e aí o trabalho de parto começou a acabar, não tinha mais contração, o batimento cardíaco dele começou a diminuir, aí mecônio, aí a Betina falou: “Meu, acho que vai ter que ser cesárea, não dá mais pra esperar”. Eu falei: “Bom, então está”. Já tava, putz, já tinha sentido tanta dor que eu já tava entregue: “Meu, faz o que você quiser, me deixe viva e o meu filho vivo”. Quando fui pra sala de anestesia, aquela correria, não sei que, tomei a anestesia pra cesárea, ela falou: “Deixe-me só olhar de novo, porque às vezes na anestesia ele desce”. Desceu. Aí a gente fez com fórceps só pra encaixar. E foi. Lógico, eu também era muito nova. Então eu vejo essa coisa do parto humanizado hoje, as mulheres ficam tão fixadas no parto, que eu acho maravilhoso ter um parto natural, mas ter um filho é tão mais do que parir que a gente tem que aceitar o parto do jeito que ele vem. Então eu fiquei muito decepcionada de não ter podido ter parto natural. E hoje em dia eu olho e falo: “Ai que besteira ficar decepcionada”. Porque, meu, o Miguel está vivo, com saúde, maravilhoso, a gente tem que aceitar o que vem. E aí é quando a medicina entra pra fazer o papel dela. É diferente daquela cesárea obrigatória, poderia ser natural e não é. Então eu fiquei meio “deprê”, mas superei. Estava tão feliz também com ele, de ter o Miguel e tudo, que, enfim, passou. Foi isso no parto.
P/1 – E seu segundo filho vem quanto tempo depois?
R – Então, aí sete anos depois. Minha vida mudou bastante, eu separei do Rodrigo, na Toca da Raposa eu conheci o Bruno, meu atual marido, e a gente se deu muito bem trabalhando, eu sempre o admirei muito. Eu o conheci trabalhando, não sabia nem o nome do cara, falei: “Meu, esse cara trabalha muito. Olha o que ele faz com as crianças”. Ele fala, tipo, cem crianças param pra escutar. Eu falei: “Meu, é incrível o que ele faz”. Então eu já comecei a admirá-lo aí, eu ainda estava casada. E a gente começou a trabalhar junto e se dava muito bem trabalhando junto. E eu vivendo um processo inferno de casamento, separei. Cheguei um dia à Toca mais cedo, fui pegar meu material, estava meio tristonha, ele falou: “O que você tem?”. Eu falei: “Pô, estou separando”. Ele: “Jura?” (risos). Eu falei: “É”. Ele falou: “Jura? Nossa, vou entrar na fila”. Eu falei: “Ai, Bruno, nem brinca”. Choco era o apelido dele lá. Falei: “Ai, Choco, nem brinca, que não quero homem na minha vida agora, eu quero dar um tempo, sabe?”. Imagina, mãe solteira, cara, tudo que você quer é um marido, pelo amor de Deus! (risos) Mas, enfim, eu não sabia disso, eu não tinha vivido ainda isso. “Não, eu vou ficar sozinha com o meu filho, eu não quero saber de relacionamento.” “Não, tudo bem, eu tenho paciência, daqui a pouco a gente conversa de novo.” E eu não sabia se ele estava brincando, se ele estava falando sério. Mas eu sei que passou um tempo, ele veio falar comigo de novo, ele falou: “E aí, você separou mesmo?”. Eu falei: “Separei” “E como você está?”. Conversamos, tal. Ele falou: “Meu, eu estava falando sério, viu? Quando você tiver disponível...”. Não lembro o que ele falou, mas ele meio que se declarou. Eu falei: “Está. Legal. Mas não dá ainda”. Tudo bem. Ah, mas aí começou a rolar uma paquera, sei lá, acho que uns seis meses depois. Eu separei acho que na Páscoa, eu lembro, e aí em dezembro do mesmo ano a gente começou a ficar junto. Antes da gente começar a ficar junto, ele conheceu o Miguel e, putz, o Miguel se apaixonou por ele. Porque o Bruno com criança, ele tem uma química fantástica, então lógico que não foi diferente com o Miguel. E eu comecei a olhar e eu tava meio que fazendo testes. Antes de ficar com ele, eu tava... Meu, o cara é um mochileiro, mais novo que eu, eu não botava muita fé. Eu falava: “Meu, quando ele entender o que é a minha vida, o que é ter um filho de um ano e meio, ele... Sabe, eu sou toda regradinha, eu faço conta, eu quero ganhar tanto por mês, eu quero pagar isso, isso e isso. São coisas que na vida dele, meu, ele ganha aqui, paga a cerveja ali e está de boa, não vai querer encarar essa seriedade toda”. Mas não, ele foi me mostrando que não, ele estava justamente a fim de ter algum motivo na vida pra aposentar a mochila e começar a pensar em planejar uma família, em planejar um futuro. E aí, enfim, ele foi me conquistando e aí a gente começou a ficar junto e foi crescendo esse amor, daí a gente casou. Bom, sei lá, é pra falar isso agora?
P/1 – Sim. Pode falar. Quando vocês decidiram morar juntos?
R – Eu não queria morar junto tão rápido, não, até porque eu tinha acabado de me separar. E eu também percebia que o Rodrigo, a gente foi morar junto muito por obra do acaso. A gente começou a namorar, a gente estava na faculdade, ele morava na moradia estudantil e eu morava numa república. Aí ele se formou, e a menina que morava comigo, na verdade eu morava numa casinha só eu e mais uma amiga, a menina que morava comigo também ia sair de Rio Claro. Então casou a necessidade de ele se mudar e eu precisar de alguém pra dividir casa comigo. Por isso a gente resolveu morar junto. Não foi uma coisa tipo, que o nosso relacionamento chegou a essa decisão. Foi, tipo, “Vamos nos virar”, entendeu? “Ah, então a gente mora junto e beleza.” Eu lembro que meu pai na época falou: “Nossa, mas ninguém nem pediu minha bênção. Senti falta de alguém pedir minha bênção, poxa”. Daí: “Ai, está bom, pai”. Nem ligava pra isso, achava besteira. E já com o Bruno eu falava: “Meu, eu quero fazer diferente. Eu quero morar junto a hora que a gente tiver muito a fim de morar junto, tipo, cara, queremos muito morar junto. Uma coisa que seja pela paixão mesmo, pelo amor, não pra resolver uma conta de aluguel”. Então na acelerei nem um pouco e falei pra ele. Ele falou: “Não, mas...”. Ele ainda morava com o tio, depois ele foi morar não sei aonde. A gente namorou, ele passou por várias casas, tal, até ele ter a casinha dele mesmo, poder pagar um aluguelzinho pra ele. E a gente curtiu muito essa casinha, que era no mesmo sítio que o meu pai mora, que também é um sítio de várias casas, então era bacana para o meu pai estar perto da gente, a gente perto dele. Meu pai também, eu namorei acho que um ano, sei lá, porque meu pai falou: “Não quero mais saber de genro, tal”. Sofreu com a minha separação pra caramba. Sei lá, porque talvez eu estava repetindo a história dele e ele não queria ver aquilo de novo, de se separar cedo, e talvez também porque ele não queria me ver mãe solteira. Então ele sofreu muito. Então ele já conhecia o meu amigo Bruno, mas eu demorei pra falar: “Olha, estamos juntos”. Porque ele não queria saber de genro. Então a gente ficou curtindo esse namorinho até meio escondido, uma coisa meio adolescente, foi legal. Daí a gente assumiu, pôde contar pra família inteira, que bom. Eu acho que a gente já tinha talvez uns três, quatro anos de namoro, quando a gente decidiu que a gente queria ter filho. Quer dizer, a gente sempre falou de ter filho, mas chegou um momento que a gente falou: “Meu, estamos trabalhando, está bonitinho”. Lógico, a gente podia ganhar mais, mas se a gente ficar esperando ganhar mais também, não vai ganhar nunca, então, pô, vamos começar a se arriscar um pouco. E eu também, eu não queria ter filho muito tarde, sabe? Eu falava pra ele: “Meu, eu quero ter filho com no máximo 30”. Eu já tinha 30. “Meu, eu quero ter filho logo, senão também não estou a fim de ter filho muito mais velha que isso, não.” Então tá. Aí eu precisava ter uma cerimônia, não quero casar de novo do jeito que eu casei, junta os trapos e acabou. Quero uma cerimônia, quero um marco, que mostre esse momento espiritual, inclusive, dessa decisão que a gente está tomando, porque eu quero que seja pra sempre agora, não quero mais brincar de namorar, sabe? E aí a gente então pediu para o Du, que é esse amigo que é meu vizinho lá de Rio Claro, que fez toda essa trajetória junto comigo, inclusive se formou facilitador de sauna, hoje ele é um condutor de sauna e outras cerimônias xamânicas. E a gente fazia sauna com ele nessa época, e a gente falou: “Du, faz o nosso casamento”. E foi lindo, a gente fez uma cerimônia nesse sítio que o Bruno morou, que meu pai mora até hoje, que é o sítio onde eu fiz as minhas primeiras saunas, aquele sítio em Cotia, é o mesmo, então é um sítio mega importante pra mim. Quando eu estava em Botucatu, meu pai me ligou e falou: “Estou indo morar no Anhangá. Estou saindo de São Paulo, vagou uma casa no Anhangá, vou vender meu apartamento aqui, vou alugar a casa lá”. Eu falei: “Nossa, que demais”. Então esse sítio Anhangá é superespecial pra mim também, várias coisas aconteceram: eu descobri a faculdade de Ecologia lá, minha sauna é lá, o Bruno morou lá, meu pai, casei lá, e sou muito amiga da Rose, que é a dona de lá, até hoje, meu pai mora lá até hoje.
P/1 – Como foi a cerimônia de casamento de vocês?
R – Ah, foi muito linda. Agora não tem mais, mas tinha um bambuzal que fazia um salão. Então o bambu fechava em cima, você entrava dentro e tinha aquele redondo ali do bambu. A gente falou: “Meu, vamos casar aqui dentro do bambuzal”. Pedimos para o Du montar essa cerimônia. Outra amiga minha, amiga nossa, que é culinarista, fez a comida, então foi superespecial, porque foram pessoas, que a gente amava muito, que preparam a comida. Foi supersimples e lindo. A gente não tinha grana pra fazer um negoção, então, sei lá, foi a família e alguns melhores amigos. Acho que tinha umas 50, 60 pessoas. Não dava pra convidar mais do que isso, porque não tinha como pagar. A Márcia e a Emília lá do Boi de Rio Claro vieram tocar. E foi muito maravilhoso, tanto que hoje, cara, toda vez que a gente briga, ou que a gente está em crise, eu me lembro do casamento e isso me dá uma força incrível pra continuar e falar: “Não, a gente não pode separar”. E casamento é muito isso, o tempo todo você tem que abrir mão de coisas. Então tem hora que é muito difícil, que o seu orgulho não quer te deixar abrir mão, que eu falo: “Ah, não, eu já cedi demais, meu. Agora ou ele muda ou acabou, entendeu? Não aguento mais”. Aí eu lembro, falo: “Putz, cara, é tão lindo tudo isso. Não, meu vou ceder mais um pouquinho”. Daí você busca uma força sei lá da onde e vai. Então eu acho que essa cerimônia ajudou demais nisso. E o fato de a gente se amar muito ainda também. Porque com a minha experiência com o Rodrigo eu aprendi, tinha hora que eu me perguntava, falava: “Meu, o que você admira nele?”. E não achava nada. Não admiro mais nada, acabou, morreu. Tudo que eu admirava não tem mais. “Ah, você o ama ainda? Nossa, não. Não. Putz, meu, não, não.” Então serviu muito pra essa minha experiência com o Bruno cultuar isso, e até de falar mesmo pra ele. Nossa, ele me pegou insuportável, cara. Eu acho que eu o amo muito por isso também, porque ele começou a me namorar, eu já comecei a botar um monte de regra: porque a gente tem que se falar sempre a verdade, porque não pode acumular nada, porque se fica acumulando, um dia a gente estoura, aí o relacionamento acaba aí, porque eu guardei muito com o Rodrigo.
Ficava falando do Rodrigo, imagina. Nenhum homem gosta (risos). Então o Bruno teve uma paciência de Jó e a gente foi construindo isso muito às claras. Olha, precisa ter coisas que gente admire um no outro, a gente precisa manter essas coisas, falar o que é e mantê-las vivas, sabe? Não sei que, tal. E eu acho que está funcionando até hoje. A gente casou faz acho que três anos agora. Está fazendo três anos, esse ano fez três anos em junho e fomos morar junto. Então bem bonitinho, decididinho.
P/1 – E o seu segundo filho... É filho ou é filha?
R – É filho também. O segundo eu já pensava numa menina, porque eu também não pensava em ter o terceiro, então eu falava: “Pô, vai ser legal ter um casal”. Mas veio um menino, o Vicente.
P/1 – Como foi essa segunda gravidez?
R – Já foi bonitinha também, planejei (risos). Então a gente casou, aí depois de casar, parei de evitar. A gente casou em junho, eu engravidei em agosto. Foi bem rápido até. Eu lembro que a médica falava: “Olha, calma que você pode demorar dois anos pra engravidar, não entra nessa neura, que você vai ter gravidez psicológica”. Mas engravidei super-rápido. E foi o quê? 2011 que eu engravidei, em agosto. Aí tava tudo indo super bem, até que a gente perdeu o emprego, eu e o Bruno. Porque a gente trabalhava no mesmo projeto. Em 2012, virou o ano, a gente recebeu a notícia que o patrocinador não tinha depositado nada. Era uma ONG também, era bancada por patrocínio. Era um cara que patrocinava, um grupo de pessoas, na verdade, mas o cara era o líder, tipo, ele falava para o grupo dele onde ia mandar o dinheiro e tudo mundo ia atrás. Por conta de uma série de brigas políticas no Embu em 2011, ele se desentendeu com o prefeito, e a ONG que eu trabalhava muito de frente com o prefeito, porque o prefeito estava liderando lá um movimento no... Como chama? Na revisão do plano diretor da cidade de acabar com as últimas florestas que a cidade tem, a ONG que a gente trabalhava era muito ambientalista, então a diretoria bateu de frente mesmo, aí a prefeitura fez o que pôde também pra quebrar a ONG, e quebrou. E a gente quebrou junto. E aí foi uma segunda fase difícil. Meus filhos vieram com a fase difícil, é incrível. Eles são tudo de bom, a maior bênção na vida é poder ser mãe dos dois, mas eles sempre me vieram com altos desafios ao mesmo tempo. Pra mim isso é uma coisa de me fazer crescer, então pra cada filho que você tem, você tem que crescer um tanto. O Miguel, eu brinco que ele me fez amadurecer. Ser mãe do Miguel, eu ter tido um filho nessa época que eu estava me fez amadurecer meio que na porrada, tipo, olha, não amadureceu até agora, você já está com 25, você ainda é filhinha de papai, então o que ficou de filhinha de papai vai acabar agora, pá pá pá, vai, sabe? E até eu converso com alguns amigos que são filhos únicos, que ser mãe quando você é filha única é mais difícil ainda. Ser mãe já é difícil pra maioria das mulheres. Não que a gente fique: ai como é difícil ser mãe. Mas a gente sabe que tem suas dificuldades, pra umas mais, pra outras menos. Quando você é filha única, o primeiro filho, eu acho que ainda agrava mais, porque a gente é muito o centro das atenções. Então dividir esse centro com o filho, deixar de ser o centro e ainda servir àquele novo centro, por mais que você ame o seu filho, é desafiador, você perde muito o seu posto. Então eu brincava que, meu, não agora eu vou deixar de ser filhinha de papai na marra. E o Rodrigo brigava comigo e me falava: “Você é maior filhinha de papai, não sei que”. E eu ficava muito magoada com aquilo. Mas com o Miguel, eu percebi que os meus pais não me mimaram, sabe? Acho que eles me educaram muito bem, mas só de ser filha única, cara, você já é meio mimada, não tem jeito, é muito tudo pra você. Então você não aprende a dividir desde cedo, você vai aprender a dividir mais velha. Irmão, você aprende a dividir todo dia. Pra educação de uma criança, acho que o irmão garante 50% da educação de uma criança, sabe? Ser filho único é difícil nesse ponto, eu acho. Mas, enfim, com o Vicente eu também tinha que crescer mais ainda, não sei definir exatamente o quê, talvez desapegar, a gente estava meio acomodado naquele trampo. Tinha uma situação muito chata, que eu era coordenadora do Bruno. E o Bruno tinha uma posição perante a ONG que era pouco pra ele. Ele tinha muito mais potencial do que onde ele tava, mas pelo fato de ele ser mais novo, não ter terminado a faculdade ainda, ele acabou ficando lá. E eu como já tinha me formado, era mais velha, não sei que, fui ser coordenadora. O meu perfil é mais de coordenação, e o dele não é de coordenação. Mas, imagina, marido e mulher, por mais que a gente seja nova era, não existe, é difícil. É difícil ser coordenado pela esposa, é difícil coordenar marido. E a gente estava acomodado lá, porque era um salário, era perto de casa. Era um projeto maravilhoso, a gente ganhou prêmio do Itaú, virou livro, eu escrevi um livro a respeito desse projeto, tem um vídeo muito bacana, que até hoje dá retorno pra gente, que está lá no YouTube, vira e mexe alguém vê e comenta, virou muito trabalho pra gente também depois do vídeo.
P/1 – Tem um nome o projeto? Só pra...
R – Fonte Escola. Programa Fonte Escola. E foi onde a gente começou a trabalhar com horta escolar de fato, com formação de educadores. Então para o meu desenvolvimento profissional, o Fonte Escola deu um super up. Porque eu entrei como educadora, um ano depois eu virei coordenadora. Nessa época tinha só receber crianças lá na fonte, a fonte era o espaço que a gente trabalhava, que chamava a fonte dos jesuítas, chama, até hoje está lá o espaço, e que era desse patrocinador que cedeu o espaço e bancava o projeto. Então tinha uma trilha, tinha uma cachoeira, e a gente montou umas vivências pra fazer com as crianças das escolas públicas lá, de graça pra escola. A gente era patrocinado, então a gente oferecia o serviço de graça. Foi fantástico, foi lindo. A equipe que a gente tinha era uma equipe muito bacana, de educadores também superafim de mudar o mundo, essa ideologia toda. E a gente se experimentava o tempo todo, ninguém tinha muita experiência profissional. Então a gente criava uma metodologia, testava no dia seguinte, avaliava, criava de novo, ia adaptando, porque não tinha nada já pronto, nenhuma receita pronta. Tinha: o que a gente acredita que vai fazer sentido? Vamos testar. E foi lindo. Depois veio o Hortas Escolares, que é a formação de educadores, dentro do mesmo programa a gente começou a trabalhar com os educadores e começou a acompanhar iniciativas de horta nas escolas que queriam, com assistência técnica, com apoio pedagógico. Cresci muito profissionalmente nesse período, foram quatro anos. E nisso, a Humanaterra, que é a ONG que eu sou fundadora hoje, que foi fundada em 2014, esse ano, ela já existia desde que eu comecei a fazer alguns trabalhos com o Bruno lá no Grupo Oficina, ainda em 2006. Essa escola que eu dei aula em 2006, o Grupo Oficina, os primeiros trabalhos que eu fiz lá foi em dupla com o Bruno, quando a gente tava ainda começando a namorar, a gente fez umas contações de histórias, brincadeiras ecológicas lá. E aí surgia essa necessidade. A gente conversava muito sobre trabalho, aliás, o assunto que a gente mais fala até hoje é trabalho, porque a gente se identifica muito trabalhando, a gente sentia essa necessidade de dar um nome para o que a gente faz. Porque o que a gente faz é diferente de tudo que a gente vê. Tem algumas pessoas que fazem semelhantes, mas não é igual, nunca é. Então a gente precisava dar um nome para o nosso, pra ele ir construindo essa identidade. E daí o Bruno se lembrou de uma música da Emília, lá de Rio Claro, que tinha esse nome Humanaterra. Ele falou: “Meu, aquela música é tão linda, Humana Terra. Aquela palavra é tão bonita até que tem na música”. Eu falei: “Pô, pode crer”. E ficou Humanaterra. A gente estava lá na SEAE, que a é a ONG de Embu, no Fonte Escola, o Humanaterra estava sendo alimentada em paralelo, então eu continuei produzindo cursos de permacultura. Teve o jeito que a permacultura apareceu na minha vida também que eu não contei ainda, mas, enfim, também foi muito importante. Comecei a trabalhar com permacultura e fazer essas produções de cursos, então a gente botava o logozinho da Humanaterra lá, tal. Quando veio essa coisa, estava grávida do Vicente, o projeto acabou, a gente já tinha toda essa experiência, essa bagagem de vida profissional, a gente já tinha mais segurança, e falou: “Bom, agora, meu, é agora ou nunca, vamos lançar a Humanaterra, ela tem que nascer com força total e ela vai sustentar a gente”. Então a gente decidiu isso. E eu grávida, eu falei: “Olha, eu não vou mais procurar emprego, não faz mais sentido, eu quero trabalhar, fazer meu horário, quero virar empreendedora, então vai procurar emprego você, e vou parir, tal”. E foi muito bacana. Foram seis meses ganhando cesta básica dos amigos, punk. A gente tinha uns amigos agricultores de orgânico, ali da região de Cotia e Ibiúna, então a gente vendia verdura deles na escola do Miguel, e com isso a gente comia muito bem, porque eles davam um chorinho, sabe? Foi uma época assim, não tinha nada de dinheiro, mas a gente comida tudo orgânico. Muito mais orgânico do que eu como hoje, que eu não consigo comprar tanto orgânico. Então foi bem bacana essa solidariedade toda. E foi muito punk, muito medo. Pô, eu vou ter filho, eu estou sem dinheiro de novo, tal. Mas foi uma fase mais curta do que a fase do Miguel, a do Miguel durou mais, e eu não ia separar do meu marido, então isso era um conforto a mais. Porque com o Miguel ainda estava o casamento em crise, daí era muita crise demais. Depois de seis meses realmente o Bruno conseguiu um trampo, que ele está até hoje, num projeto, plantando com as crianças, super dentro do que ele gosta de fazer. Era supernecessário eu deixar de ser coordenadora dele e ele ganhar essa... Como fala? Ele ir para o mundo profissional sozinho, porque a gente sempre estava muito em dupla. E como ele é mais tímido... Ele é um cara que trabalha direto com a terra e com as crianças, entendeu? Esse negócio de fazer reunião, diplomacia, não é com ele. Então eu sempre ia abrindo esses caminhos, só que acontecia que ele ficava sempre meio nessa sombra. Então ele precisava também ele mesmo amadurecer nesse sentido, de ir lá e fazer reunião com o chefe, com o patrocinador, com o caramba a quatro, porque ele tem que... Você não gosta de fazer, sinto muito, mas tem que fazer. Então foi, ganhou toda essa experiência e isso ajudou a gente a fazer a Humanaterra nascer. Então o Vicente nasceu dentro dessa crise, mas eu estava muito feliz, porque eu sonhava demais em ter o segundo filho e não sabia se eu ia ter. Durante esses anos todos eu ficava: “Será que vai dar? Será que não vai dar?”. Então quando ele estava no meu braço ali, eu falei: “Meu, tive”. Ele é lindo, é perfeito, é saudável, está show de bola, daqui a pouco o dinheiro vai chegar.
P/1 – Que ano ele nasceu, o Vicente?
R – 2012. 2012, em maio. O Miguel é de abril, o Vicente é de maio. E foi bem nesse período, a gente perdeu o emprego em janeiro e o Bruno conseguiu o emprego novo em agosto. O Vicente nasceu em maio desse período, então foi o período punk. Mas também o fato de o Bruno não estar trabalhando o fez ficar em casa, sabe? Então, poxa, tem coisas que acontecem também, a gente acha que a gente está ferrado, mas na verdade a gente está tendo uma oportunidade de ficar lá, sabe, com a cria junto, a família junto. Hoje em dia a gente está vivendo essa coisa do pai que vai trabalhar todo dia, volta só à noite. O Vicente é desesperado por ele. Quando vê o Bruno, gruda nele que não quer mais saber de ninguém. E estamos batalhando um pouco pra mudar desse caminho, desse modelo. E também, nesse período eu já estava acho que em contato com ao Ju daqui da escola, daqui da creche. A Ju, a gente se conheceu... Pode ir falando, gente?
P/1 – Pode.
R – Não vou parar nunca mais.
P/1 – Não, eu ia te perguntar...
R – (risos) Falo pra caramba.
P/1 – Deixe-me só fechar uma coisa antes.
R – Fala.
P/1 – É exatamente o próximo passo, perguntar como você começou a sua relação aqui com o pessoal do Quintal, tal. Eu só queria que você contasse a história de como você se aproximou da permacultura, que acho que é muito importante para o seu trabalho, né?
R – É. Não, super.
P/1 – Se puder explicar essa história sua com a permacultura e depois, se você quiser, já pode emendar com como começou a sua relação aqui com...
R – Aqui no Quintal.
P/1 – No Quintal.
R – Bom, então, a permacultura foi 98, quando eu entrei na faculdade. Lá em Rio Claro as casas... Não sei se até hoje tem isso lá, mas tinha uns quintaizões de terra. Então eu fui morar numa república que tinha um quintal de terra e tudo que eu queria era plantar no quintal. Mas eu não sabia, então eu ficava dando enxadada naquela terra dura, vermelha, argilosa, achando que eu ia torná-la uma terra fofa um dia. Jamais conseguiria. E nessas, eu comentei com o meu pai numa conversa: “Poxa, eu quero plantar no quintal, não consigo, tal”. E meu pai falou: “Pô, porque você não fala com o Pete?”. O Pete era um amigo do meu pai que eu conhecia também, inclusive amigo das saunas, já tinha feito algumas saunas junto, e o Pete entende muito de planta. Eu falei: “Ah, legal”. Acho que eu liguei para o Pete, não sei direito o que eu fiz, e ele falou: “Pô, eu vou dar um minicurso agora em Piracicaba”, que é do lado de Rio Claro. Na semana de Agroecologia, do pessoal da Esalq, tal. Eu falei: “Meu, demorou, eu vou lá”. Bom, entrei na sala, o Pete começou a falar, eu já fiquei encantada. Ele começou a apresentar permacultura, eu falei: “Nossa, que negócio da hora”. Fiz uma oficina de um dia com ele, plantei uns canteiros, tal. Cheguei nele, falei: “Meu, vem dar curso em Rio Claro. Você vem na semana de estudos da Ecologia?”. O Pete, ele tinha acabado de voltar do Matutu. Bom, quem é o Pete? Acho que é importante contar isso. Ele é um australiano, permacultor, que estudou lá com os caras que criaram a permacultura, o Bill Mollison e o outro cara lá que eu sempre esqueço o nome, enfim. E estudou com esses caras na década de 60, 70, que foi quando a permacultura surgiu na Austrália, então ele estava lá bem nesse berço da permacultura, e ele é um cara super do reino vegetal. Ele é um mago das plantas, o duende das plantas, trabalha incrivelmente bem com as plantas e com esse manejo ecológico dos espaços, o desenho, o design mesmo dos espaços pra aproveitar o máximo. Aproveitar o máximo da natureza, mas indo a favor dela. E todos esses princípios que a permacultura traz. Então eu tive a bênção também de conhecer a permacultura pelo Pete. E depois eu viria saber que ele é uma das maiores referências de permacultura que a gente tem no Brasil, e não duvido no mundo também, porque ele é um mega permacultor, fantástico. Hoje em dia virou celebridade já da permacultura. E eu o tinha ali do meu lado, pô. E ele era um bicho do mato essa época, porque ele veio para o Brasil, morou na Bahia um tempo, foi para o Matutu, em Minas Gerais, ficou 15 anos lá, ele e a mulher dele, vivendo de modo autossustentável. Ele plantou de tudo, colheu de tudo, construiu a casa dele. Essa era a viagem dele na época, ele queria testar isso: como eu posso viver só do meu trabalho? E num determinado momento, depois de muita experiência nisso, ele falou: “Meu, não dá mais pra ficar aqui, preciso de contato com as pessoas, preciso ensinar o que eu sei. Isso tudo que eu aprendi não pode ficar só pra mim”. Ele começou a sentir isso. E aí ele veio pra São Paulo com a esposa dele, que acho que já era de São Paulo, uma brasileira. Era. Não é mais esposa dele até hoje, mas na época era uma brasileira que estava com ele. E nessa época que ele conheceu o grupo de sauna, que eu o conheci, fui pra Piracicaba, tal, falei: “Vem dar curso”. E ele ficou meio assim: “Ah, tá, vamos lá”. Ele ainda estava se acostumando com essa coisa de dar curso. E ele ainda falava, cara, um negócio que era uma mistura do sotaque australiano com mineiro, sabe? Que você nem entendia direito o que ele falava. Ele falava português bem, só que tinha tanto sotaque misturado. Figura. Foi pra Rio Claro, deu um curso, no ano seguinte falei: “Meu, vem de novo”. E a gente começou a trabalhar com essa coisa de quintais da república. Ele deu um curso específico disso: os quintais da república, o que a gente pode fazer nos quintais. E nisso foi montando um grupo em Rio Claro de estudar mais a permacultura, de plantar nos quintais, fazer mutirão nos quintais. E eu fui estudando com esse grupo e mantive o vínculo com o Pete, a gente virou grandes amigos, até hoje a gente é. Amigão. Um amigo e mestre, porque eu aprendo demais com ele e tenho uma amizade deliciosa com ele. Depois que eu saí de Rio Claro teve esse intervalo de ter... Não, eu ainda produzi um curso dele lá em Parati em 2004, aí eu tive o Miguel, aí eu fiquei um período meio afastado, porque essa coisa de nascer filho, de eu ter que trabalhar, tal, a gente ficou um tempo sem se falar. Quando começou o Fonte Escola, essa coisa de plantar em escola, tal, eu retomei o contato com ele, falei: “Meu, eu estou precisando de você de novo. Vem aqui me ajudar”. E aí ele foi lá, deu aula para as professoras, escreveu o livro junto comigo, a gente voltou a fazer curso junto e ele é fundador da Humanaterra. Eu trouxe pra ele toda essa história: “Olha, está nascendo uma história, que é o Humanaterra, que é a nossa história”. E ele entrou de cabeça junto, falou: “Vamos lá”. Ele é superfã do nosso trabalho também, a gente dele. A gente faz uma ponte de toda essa sabedoria dele, a gente faz chegar às escolas, chegar às creches, chegar às crianças, então pra ele, isso é uma honra, porque ele não consegue estar em tudo ao mesmo tempo, mas ele adora a ideia de que isso está chegando. Então foi assim que eu conheci a permacultura. E falo que existe a permacultura e existe a permacultura do Pete. O Pete é um caso à parte, único, totalmente único. Não existe nada parecido com o Pete, é só ele, só conhecendo pra entender. Então eu sou muito grata de tê-lo como amigo, como mestre. O cara é incrível. E dentro da faculdade de Ecologia, quando eu descobri a permacultura também me deu um alívio no sentido assim: essa é a ecologia que eu vou trabalhar, não é essa acadêmica. É de agricultura urbana, produzir alimento onde a gente acha que não dá pra produzir, essa saúde dos ambientes, é com a permacultura, ficou claro pra mim. E um dos tripés da permacultura é cuidar das pessoas. Eu falei: “Opa!”. É cuidar da terra, cuidar das plantas, cuidar das pessoas. Então eu via o ser humano integrado na ideia, coisa que na faculdade de Ecologia ele não estava integrado, ele era o grande vilão da história, e pra mim ele era o agente de mudança. Então na permacultura fez sentido. E aí eu nunca mais larguei a permacultura, fiquei nela. Até hoje a carrego como minha principal ferramenta de trabalho, inspiração, visão de mundo. Estou o tempo todo aplicando. Aí, bom, aí o Quintal Mágico, né?
P/1 – Isso. Como começa essa história do Quintal Mágico? Então retomando, você tava contando como começou a sua relação com o Quintal, né?
R – É. Então, aí... Deixe-me só voltar um pouquinho na coisa da permacultura pra trazer uma coisa que acho que é importante. Lá atrás eu comentei essa coisa de querer fazer... Esse sentimento de querer fazer alguma coisa pra mudar a realidade. Desde criança essa coisa me incomodava, ver a pobreza, ver essas desigualdades, tal. Então eu sempre carreguei isso. Quando eu conheci a permacultura, eu senti que era essa ferramenta. Que até então eu não tinha clareza de quais seriam as ferramentas, como eu ia fazer isso, como eu podia me dedicar pra isso. E com a permacultura eu vi que era muito mais simples plantar em diversos espaços, então que dava para as pessoas comerem melhor, que dava pra diminuir a pobreza, que dava pra contemplar diversos públicos, e que dava pra aproximar as pessoas da natureza, que aquilo que eu sabia que fazia tão bem, porque eu sempre vivi tão bem em contato com a natureza, então dava pra fazer essa aproximação. E aí foi que eu fui usando a permacultura cada vez mais na minha vida profissional, no desenvolvimento lá do Horta Escolar, lá dentro do programa Fonte Escola, plantando nas escolas, revitalizando espaços. O Pete sempre ajudando, sempre contribuindo. Bom, depois que já tinha terminado, o projeto acho que foi 2012, o Vicente tinha nascido, finalzinho de 2012, eu acho, que a Ju mandou um e-mail pra mim por conta de outra história, que é a escola que o Miguel estuda. Ela queria conhecer a escola e é uma coisa Waldorf, chama Escola Aguaí, que foi fundada pelos pais. Existia o jardim, e as crianças terminavam o jardim e iam pra outra escola, iam pra Micael. Só que a Micael começou a ficar longe, o trânsito. Continua no mesmo lugar, mas muito trânsito, começou a ficar cara demais e cada vez menos vagas, superdifícil conseguir vaga. E aí uma turminha lá da escola... Um pai primeiro falou: “Gente, porque a gente não pensa em dar continuidade aqui? E se a gente criasse essa escola, essa continuidade?”. A principal professora lá do jardim, que é uma pessoa de bastante experiência na educação Waldorf, tal, topou trazer esse eixo pedagógico, a gente precisava de alguém do pedagógico, e uma turma de pais malucos: “Vamos fazer a escola dos nossos filhos”. Eu inclusive. E estamos lá até hoje. Estamos no terceiro ano, indo para o quarto ano. E o Miguel é dessa turma. A Ju mandou um e-mail querendo conhecer a escola para o filho mais velho dela. E eu que estava nessa frente de receber os pais novos. Eu troquei uns e-mails com ela, ela veio conhecer a escola. Não fui eu que a recebi, foi outra pessoa. E ela viu na assinatura do meu e-mail, acho que ela viu lá “permacultura e natureza”, “educação com a natureza”, alguma coisa que chamou a atenção dela. E ela começou a fuçar a Humanaterra, viu o site, e ela me escreveu e falou... Não só isso, ela descobriu que a gente tinha alguns encontros. A Ju fez estágio lá no Novo Horizonte, e ela fez estágio lá quando ela tava na Pedagogia, ou no magistério, na época que eu estudei lá. E ela passou em todas as salas, então com certeza ela entrou na minha sala. Então uma coisa superbacana. E ela foi descobrindo isso. Ela também deu aula no Grupo Oficina, na escola que eu dei aula. Então ela me mandou um e-mail: “Pendências do destino. Olha, a gente precisa se conhecer, porque eu fiz estágio na escola que você estudou, eu também dei aula no Grupo Oficina, e eu preciso do seu trabalho aqui. O seu trabalho aqui é tudo que a gente está precisando agora”. Porque essa escola de horta escolar, pra ela era o que ela tava querendo. Porque a história daqui da creche como é? Eles ficaram, sei lá, desde a fundação, que foi em 98, 99, se eu não me engano, na outra chácara, alugada, aqui perto, que tinha um quintal imenso e farto e uma casinha bem simplesinha, e era plano. Então as crianças viviam nas sombras das árvores, era o principal espaço de escola, a identidade da escola era isso, era pé na terra e ficar lá embaixo das árvores. Pouco se ficava dentro da casa, até porque a casa era apertada. Tem professoras que até contam que nos dias quentes botavam os colchõezinhos deles tudo embaixo da sombra da árvore, eles dormiam lá depois do almoço, sabe? Uma delícia. Aí, bom, ganharam esse prédio, que é superbacana de estrutura, maravilhoso, muito melhor do que a casinha. É uma sede própria, é deles, não é alugada, tudo isso é maravilhoso, mas o quintal era, ainda é, superacidentado o relevo e estava totalmente degradado, tinha muito entulho, muito lixo, muito pedrisco, não crescia nada. A dona Maria, que é a mãe da Ju, já tava plantando umas mudinhas quando eu cheguei, que ela adora planta, tal, mas as professoras não conseguiam ir para o quintal com as crianças. Então as crianças estavam enclausuradas dentro da casa o dia inteiro. As crianças ficam o dia inteiro na escola, das sete às 17, então era muito tempo. E a Ju estava sofrendo muito por causa disso. Porque ela falou: “Gente, chama Quintal Mágico, não dá pra ficar dentro da sala, pô”. O que tinha de maravilhoso na outra escola, e que, no meu modo de entender a coisa, no meu diagnóstico, eu diria que a principal identidade... Essa é a identidade da escola: o contato com a natureza e as crianças ao ar livre. Com a mudança pra esse prédio aqui, perdeu isso. Perdeu esse quintal. Então ficou como se... Assim, sem identidade, sabe? Quem sou eu mesmo? A escola estava meio assim: o que a gente faz mesmo? Estava todo mundo meio perdido aqui dentro. Então quando ela viu que eu trabalhava com isso, ela super se interessou. Aí me chamou, a gente conversou. E começamos. Não tinha verba para o projeto naquela época, que foi no começo do ano passado isso, e ela falou: “Olha, vou ter que escrever projeto, tal”. Como eu estava precisando muito trabalhar, primeiro, precisava do dinheiro, segundo porque eu estava naquela coisa pós-recém-nascido, sabe? Bebê de quase um ano? Então já, tipo, não quero mais só ficar só com bebê, porque sempre gostei muito de trabalhar, então pra minha realização pessoal, profissional também, eu estava doida pra pegar alguma coisa nova, pra empreender, pra pensar, pra não sei o quê. Estava tocando a Humanaterra, só que a Humanaterra, até ela virar um dinheiro que vá nos sustentar mesmo, ainda estamos trilhando esse caminho, ainda não vira. Então a gente ainda depende de prestar serviços em outros espaços. Então me pareceu uma superoportunidade de fazer o que eu amava fazer, num lugar que relativamente é perto da minha casa, tal, e aí eu falei pra ela, falei: “Olha, você precisa escrever projeto, eu sei escrever projeto, eu posso te ajudar com isso pra fazer a grana chegar”. Ela: “Você sabe escrever projeto? Não, para tudo. Não, espera aí”. Bom, ela montou um esquema, ela pagava uma carga horária pra mim por semana, menor do que a que eu tenho hoje, pra eu escrever com ela. Então a gente trocava ideia, decidia as coisas, eu ia botando no papel e a gente ia mandando pra vários lugares. E nessas a gente conseguiu, em 2013 ainda, alguns apoios menores, e pra 2014, a gente conseguiu o Criança Esperança. Ainda em 2013, em agosto a gente já começou o projeto na carga horária que ele tem hoje, com a equipe que ele tem hoje, que ele funciona... A equipe trabalha de terça e quinta, a equipe sou eu e o Pedro, que é jardineiro educador. O Pedro não veio hoje, mas ele trabalhava de terça e quinta junto comigo. Então a gente já conseguiu captar um recurso no ano passado super-rápido, pra em agosto já contratar o Pedro. Eu já aumentei a minha carga horária, o projeto começou e pra 2014 ele só cresceu com o apoio do Criança Esperança. Foi assim.
P/1 – E o que é o projeto, exatamente?
R – Então, o projeto chama Uma floresta em nosso quintal. Por que uma floresta em nosso quintal? Justamente porque era isso que a escola estava querendo. Então o projeto chama Uma floresta em nosso quintal. Porque era isso que a gente tava precisando, a gente tinha um quintal árido, com um solo empobrecido, muito sol, não tinha sombra, crescia uma grama, grama esmeralda que a gente chama, que é uma grama resistente, mas ela não é muito agradável ao tato, pra você sentar na grama, pisar. Não é aquela graminha gostosa. E muito entulho ainda, muito pedregulho e tal. E a gente sonhava em ter uma floresta pra ter árvores que deem sombra, que possa brincar embaixo delas e também pra ter uma produção de alimentos. Então a gente chamou de floresta, mas na verdade é uma mistura de floresta, com jardim, com horta, com pomar e tal. E floresta também porque o sonho era vê-lo todo povoado de plantas e ambientes gostosos criados pelas plantas para as crianças poderem usar bastante, ficar bastante lá fora. Então o que a gente precisava pra isso? Eu precisava de uma ação no quintal, de revitalização do espaço mesmo, cuidar do solo, trazer plantas, trazer sombra, tirar entulho, tirar lixo, permanentemente. E precisava de uma ação com as educadoras, que estavam com medo de levar as crianças lá fora, porque era um ambiente muito hostil. Vai cair, vai machucar, vai cortar, aqui dento da sala é mais seguro, é mais tranquilo, eu dou conta, eu tenho controle aqui. Lá fora eu tenho medo que aconteça alguma coisa eu não veja, são muitas crianças. Então estava difícil mesmo. Então eu desenhei o projeto com esses dois eixos acontecendo em paralelo e eles se encontram. Então pra revitalizar o quintal, a gente precisava de um planejamento mínimo, de alguém que manjasse desse design mesmo, tipo, que plantas que vão melhor, aonde, como a gente pode compor esse ambiente paisagisticamente, mas também pensando em produção de alimentos, em plantas de ciclo curto, que as crianças vão poder plantar e colher num espaço curto de tempo, ver o fruto. Cruzar essas informações de o espaço ser pedagógico e ele funcionar bem biologicamente falando, ele ter uma dinâmica bacana de manutenção, não precisar de muita manutenção, tal. Então pra isso, claro que o Pete precisava vir pra ajudar. Então o Pete, ele faz visitas periódicas no projeto, ele nos ajuda muito a desenhar o quintal e fazer esse planejamento, o que a gente vai botar no quê. E como ele se envolve super com o projeto, ele doa mudas, ele traz árvores lá do sítio dele, olha pra árvore, se lembra do quintal, fala: “Nossa, essa vai ficar super bem lá. “Essa me contou que queria vir pra cá”. Ele fala assim, sabe? Então é muito bacana. E precisava de uma pessoa que... No começo a gente tinha uma equipe que era mais gente, era um educador lúdico pra trabalhar com as professoras e com as crianças, porque as professoras, a gente precisava então fazer esse trabalho no quintal e em paralelo encorajá-las, motivá-las a irem para o quintal, e pra isso a gente ia ter que ir junto. É dar a mão mesmo para o educador, falar: “Vamos junto, que a gente consegue, que não vai acontecer nada, vai ficar tudo legal. Então vamos devagar, mas vamos junto”. E também conscientizar um pouco a respeito do porquê a gente está plantando, porque é importante a gente ter sombra, a gente ter um clima melhor, essa consciência ambiental também, que o grupo não tinha ainda, não tem ainda, estamos construindo. Então precisava desse trabalho com as educadoras, com as crianças, e em paralelo esse trabalho direto no quintal mesmo. E aí começou assim. Então veio o Pedro, no começo a gente tinha pensado de ter um educador pra fazer esse papel de levar as professoras com as crianças pra fora e de ter um jardineiro. Mas pensando bem, eu não lembro se foi o fator limitante da verba, acho que em 2013, a grana que a gente conseguiu não dava pra ter tudo isso. E eu conversando com o Bruno, meu marido, que também trabalha na mesma área, então ele participa muito aqui, não fisicamente, mas eu levo as questões pra ele, ele traz as questões do trabalho dele também, é muito rico, ele falou, ele falou: “Meu, por que vocês não pegam uma pessoa só que dê conta? Uma pessoa que dê conta de ser o jardineiro e de ser o educador”. Eu olhei pra ele, falei: “Além de você, eu não conheço mais nenhum. Que eu saiba, você já está com a sua carga horária lotada”. Ele falou: “Pô, tem o Pedro”. O Pedro já trabalhava com ele. Aí um parêntese, essa profissão, digamos, do jardineiro-educador é uma profissão que a gente está criando. Não só a gente Humanaterra, a gente também, eu acho que tem outros espaços que estão percebendo a riqueza a demanda, necessidade de ter pessoas que trabalham bem com as plantas, e com as pessoas, e com as crianças também. Porque essas são as melhores pessoas que vão poder aproximar esses dois: pessoas e natureza; crianças e plantas. Eu tenho que entender as plantas e tenho que entender de criança, pelo menos um pouquinho de cada um, e me sentir bem com as plantas e também me sentir bem com as crianças. Então a gente começou a falar: “Meu, jardineiro educador”. Não dá para o cara ser só jardineiro, nem dá pra ele ser só educador. O Ideal seria a gente ter isso somado. Então aos poucos estão surgindo cada vez mais essas espécies de seres maravilhosos, que são os jardineiros educadores, o Bruno é um deles, e o Pedro também. O Pedro tesava começando a trabalhar com o Bruno, o Bruno falou: “Olha, ele está começando lá comigo, mas eu acho que ele tem um superpotencial, é só a gente ajudá-lo a crescer que ele deslancha. Ele não tem experiência com essa faixa etária, só com crianças maiores de sete anos, é muito diferente, mas você o ajuda, você gosta, tal”. Eu e o Bruno, a gente brinca também que a minha faixa etária que eu gosto mais de trabalhar é essa pitoquinho, até seis anos. E o Bruno curte os manos a partir de sete. De sete a 14 é onde ele se diverte. E eu gosto muito do conto de fadas, tal, não sei que. Então ele falou: “Pô, você trabalha maior bem, você vai dar conta de passar pra ele o que falta pra ele em relação à faixa etária”. Então deu supercerto. O Pedro veio, no começo ele precisou de uma formação também, mais por conta das crianças do que do Quintal, e eu o ajudei bastante no começo. Hoje em dia ele está totalmente autônomo, sabe? Ele faz o planejamento sozinho. Que eu sou coordenadora do projeto, mas eu também trabalho na captação de recurso, porque, por exemplo, para o ano que vem a gente não tem verba ainda, então eu não poderia ficar só focada nas atividades do projeto, eu tinha que dedicar um pouco pra também pensar no futuro. Então eu continuo escrevendo projetos, continuo ajudando a Ju nessa busca. E centralizo isso mesmo, porque a Ju está mega ocupada com outras coisas, então troco umas figuras com ela, ela me aponta uns caminhos e eu toco o barco. E o Pedro, ele foi se formando também aqui dentro, foi se formando com as professoras, de elas acostumarem com essa figura do jardineiro educador, ele se acostumar com essa faixa etária, então as professoras também mostrar pra ele: “Olha, não adianta você dar discurso de biólogo, eles são muito pequenos, eles não entendem”. O Pedro é biólogo. Biólogo adora ficar contando desde que germina a semente, nome técnico. As crianças têm três anos, não vai dar, elas não vão entender, elas não sabem. “Ah, o que tem na primavera?” Elas não sabem o que é primavera ainda, sabe? Então foi muito aprendizado no começo. Eu fazia as atividades junto com ele, pra ele ir pegando o esquema e pra ele ir simplificando a linguagem. Porque adulto, de modo geral, já tem dificuldade, a maioria, de falar com uma criança. É difícil essa simplificação da linguagem, a gente fica falando igual adulto e trazendo muita informação pra criança. A criança não precisa de tanta informação, porque ela já enxerga muito mais coisa do que o adulto enxerga. Então a gente não precisa trazer informação, porque já tem muito conteúdo ali. Essa coisa do educador, eu vejo isso como um desafio para o educador, que é o simplificar. Simplificar. Simplificar. E se você vai trabalhar com um ano, dois anos, três anos, meu, você tem que simplificar demais. Eu acho que você não precisa nem falar, na verdade, você tem que estar com a criança e para a criança, e aí ela te mostra o que ela precisa e o que ela quer. Mas a gente vem muito cheio de conteúdo e querendo dar aula. E, meu, vamos parar. E foi linda essa construção. Está sendo linda. Ela não está terminada, mas hoje em dia o Pedro está super bem formado, já superautônomo no sentido de ir tocando o barco sozinho. Eu vou compartilhando o planejamento com ele, o Pete vem, dá uns toques, a gente faz umas reuniões pra, tipo, entender o que cada um está fazendo, aí eu mergulho nos projetos, de onde a gente vai tirar grana. E ele vai, vai tocando o Quintal, o Quintal está lindo cada vez mais. As crianças já plantaram, já colheram muito. As crianças vão todo dia para o quintal, as professoras não têm mais medo de ir para o quintal. Então os resultados são incríveis. Visíveis, incríveis, mas é só o começo ainda, então a gente não quer nem pensar no projeto acabar. Quando a gente ficou sabendo que o Criança Esperança não ia renovar, porque no começo do ano eles falaram que tinha uma chance de renovação. Eles falaram: “A gente renova projetos”. No final do ano eles falaram: “A gente não vai renovar nenhum. A gente decidiu que a gente vai investir em outros projetos”. É, bacana, superjusto, mas foi um mega balde de água fria, porque a gente está começando a ter resultado. Se morrer agora, vai morrer de vez. Ainda não está no ponto de a escola estar bem... Ainda não está no ponto de isso virar a cultura da escola, no sentido de eu o Pedro, se a gente não vem mais, continua. Esse é o nosso sonho. Essa é a meta. Que a coisa esteja tão dentro da rotina da escola, da cultura da escola, todo mundo tenha se apropriado tão bem disso, que não depende mais da Amanda e do Pedro. Lá no Fonte Escola, quando eu fui escrever o livro, dois anos depois que o projeto tinha acabado, eu fui procurar as escolas. Então mais de 50 escolas passaram pela formação de educadores, as aulas, as atividades, na nã nã. Dessas, três tinham horta, só. Mas já é ótimo. Eu falei: “Pô, vou lá ver como eles estão conseguindo”. E foi maravilhoso. Eu fui lá ter aula. Eu dei aula pra eles, três anos depois eu estava lá tendo aula. Por quê? Porque eu fui aprender como as escolas públicas se viram pra fazer hora. Não é fácil. É muita burocracia pra você conseguir uma enxada, uma torneira, é um... Nossa senhora, muito difícil. Então no livro eu trouxe isso. Eu entrevistei muitas professoras, diretoras, dessas escolas que estão superautônomas, estão plantando e colhendo muito, e comendo, e levando pra casa, e os pais vêm plantar junto. Então se um dia eu sair daqui do Quintal Mágico, ou se eu tiver que sair desse projeto, Uma floresta em nosso quintal, eu quero sair nesse ponto, que eu tiver certeza que a gente vai sair, mas o negócio vai continuar. E a gente ainda não está nesse ponto, então estamos batalhando aí pra, meu, se Deus quiser, alguma resposta boa de tudo que a gente tá tentando vai sair para o ano que vem a gente ter continuidade.
P/1 – Eu queria que você falasse um pouquinho qual foi a importância do recurso do Criança Esperança para o projeto? E como ele foi utilizado? Então de uma maneira geral, qual foi a importância e no que ele ajudou concretamente? Como ele foi utilizado?
R – Então, ele ajudou muito... O projeto existiu em 2014 por conta do Criança Esperança. Se não fosse o Criança Esperança, talvez tivesse tido alguma outra fonte, talvez ele não tivesse existido, ou não com esse peso que ele pôde ter, com essa equipe, que sou eu, o Pedro, o Pete, com as saídas que as meninas fizeram de formação, de visitar outros espaços, as alimentações que a gente pôde ter nos encontros de formação, que foram riquíssimas, todos os insumos, planta, adubo, ferramenta... Então toda essa parte pra revitalizar o quintal mesmo, todas as ferramentas, os materiais necessários, muitos materiais pedagógicos também, que nem pazinhas, baldes, enfim, diversidade de coisas que a gente tem que usar no quintal pra plantar, pra cuidar e também pra envolver as crianças nesse plantio. Então tudo isso está sendo pago com o recurso do Criança Esperança. Então se não fosse isso, o projeto ou não teria existido, ou teria existido menorzinho, ou teria encontrado outra fonte, mas a gente não teve nenhuma outra resposta pra 2014, então a gente... Quando saiu a resposta do Criança Esperança, a gente também parou de procurar, falamos: “Não, agora vamos focar no projeto”. Como a equipe é a mesma, tipo, eu estou fazendo projeto, mas ao mesmo tempo eu estou captando recurso, então nesse começo de projeto eu esqueci um pouco a captação, mergulhei no projeto pra fazê-lo engrenar. E engrenou super bem, graças a Deus. Então foi importantíssimo nesse sentido. Em 2013, que a gente não tinha o recurso, o projeto já tinha começado, mas eram verbas menores, então a gente conseguia pagar os profissionais, mas os recursos como ferramenta, insumo, tal, eram bem difíceis, a gente conseguiu de pouquinho em pouquinho, tal. Com o Criança Esperança, a gente conseguiu pegar bastante muda, fazer uma revitalização do solo bem forte mesmo, plantar bem, tal, então deu muita diferença, então foi fundamental.
P/1 – E qual você acha que é a importância de um projeto como esse pra comunidade da creche aqui, especificamente. Aí eu falo para as crianças, mas também dos educadores, também da equipe de uma maneira geral, os outros funcionários. Qual a importância de um projeto dessa natureza?
R – Eu vejo muito os benefícios, muitas áreas de importância. Primeiro, nessa parte de educação mesmo, a criança tem um vínculo com a natureza natural. É até redundante falar. Mas criança pequena, você pega um bebê, você põe um bebê na terra, geralmente ele vai gostar. Essa coisa de aflição, de nojo, de não sei que, começa a vir mais velho, porque já pegou isso de um adulto. Geralmente eu não conheço exceções, talvez tenham exceções, mas a maioria das crianças pequenininhas, elas adoram estar com a terra. Elas vão perdendo esse gosto por causa de os adultos que estão com elas não cultivarem isso, a escola e a família não tornarem isso constante na vida dela. E aí ela vai deixando de desenvolver uma série de habilidades que é com a natureza que você desenvolve. Você poder experimentar essa diversidade de texturas, numa faixa etária que os sentidos são importantíssimos, a educação deles é totalmente sensorial, não é intelectual ainda. É a educação dos sentidos, então poder tocar, pisar, subir, descer, rolar, essa exploração também do corpo, esse desenvolvimento da motricidade. Então a natureza, você tem diferenças de altura, você tem uma raiz que passa ali no meio, você tem a grama mais fofa, a terra mais dura. É um ambiente gostoso, saudável, com ar puro, com clima ameno, e que te oferece muitos recursos, visuais, texturiais. Então muitas cores, diversidade de forma. É tudo que você precisa numa educação infantil. Se você pegar uma cartilha de educação infantil, você vai ver. Diversidade de forma, as cores, sentido, não sei o quê. Você tem um quintal farto, resolveu, não precisa mais nada. Tenha um quintal farto, deixa a criança lá, acompanhe, lógico, esteja junto e tenha elementos pra favorecer o imaginário dela, que é enriquecer e valorizar o brincar. Então você poder ter alguns objetos, que hoje em dia estão saindo vários filmes a respeito. Que bom que as pessoas estão podendo valorizar mais isso, os objetos não estruturados, ou de largo alcance, que falam, o nome técnico que se dá. Mas que são rolos, caixas, tampinhas, coisa que você olha e não dá o menor valor, na mão da criança vira um avião, no outro dia vira uma piscina, no outro dia vira um barco e tal. E poder ter isso no quintal, eu acho que já é uma preparação pra primeira infância, já é tudo que a criança precisa, sabe? Além disso, é afeto, cuidado, carinho. E a criança vai crescer acostumada a estar perto da natureza, então isso começa a virar um hábito. Talvez ela saia daqui, vá pra outra escola, e já leve essa vontade de plantar, essa vontade de, tipo: “Poxa, mas aqui não tem horta?”. Meu sonho é que em todas as escolas tenham esses quintais fartos, mas pode ser que ela vá pra uma escola que não tenha, e talvez ela seja esse agente de levar, de começar a cutucar um professor. E ela leva isso pra casa. O retorno é muito imediato, os pais vivem comentando: “Poxa, meu filho comeu rabanete. Mas o que é rabanete?”. A gente teve um pai que não sabia o que era rabanete, e foi descobrir aqui. “Mas eles não comem salada. Eles estão comendo?” Eu estava falando da educação, aí eu vou pra saúde. Eles começam a comer muito bem e estão comendo um alimento orgânico, e estão aprendendo o que é um alimento orgânico. A gente não traz isso pra criança nessa idade: “Ah, você está comendo orgânico sem agrotóxico”. Nada disso faz sentido, são muito pequenos. Mas eles plantaram, então essa vivência fica dentro deles. O que ele botou na terra? Cocô de vaca, cocô de minhoca. Ele não vai esquecer nunca que é cocô de vaca e cocô de minhoca que põe. Se algum dia ele vir um veneno lá, uma caixinha com aquela caveirinha, ele vai olhar, vai falar: “Não, mas isso não precisa, é cocô de vaca, cocô de minhoca, cobre com palha, rega, está pronto”. Sabe? Eles lembram porque eles vivenciaram. Peneiraram a terra, montaram, participaram de todo o processo, desde aquela terra pedregulhosa, cheia de entulho, eles iam lá, adoravam tirar entulho. Mão de obra, gente, super (risos). Adoravam ir lá e trabalhar mesmo na terra, pra eles eram divertido. Tiram entulho, colocam tudo ali, tinha o cantinho o entulho. Peneiraram a terra pra deixar bem peneiradinha, daí mistura com adubo, cobre de palha, e hoje vamos plantar, e vamos regar. “Nossa, já está na hora de colher. Vamos colher, vamos fazer uma salada.” Então estão comendo muito melhor. Os mais velhos ensinam para os mais novos, então aproximam as faixas etárias, traz uma coisa de solidariedade, de responsabilidade pelo grupo. Sabe? As plantas, elas fazem um bem para todos nós, então eu estou vendo o bebê ali, a criança mais velha vê um bebê quebrando a plantinha, ela vai lá, conversa, tal, ela valoriza essa coisa do coletivo. Que a planta não é minha, a planta é do quintal da escola, é de todo mundo e todo mundo precisa cuidar. Então passa por uma coisa também de desenvolvimento humano nesse âmbito da cooperação, que a gente está precisando demais nesse mundo que tá extremamente individualista. E esse individualismo está deixando a gente doente, cheio de problema. Então a gente precisa retomar um pouco essa cooperação que existe no modelo tribal, por exemplo, trazer um pouco para o nosso dia a dia cada vez mais pra gente encontrar soluções pra garantir o nosso futuro. Eu acredito nisso, se não tiver cooperação, não vai. Elas estão vivenciando a cooperação, elas não precisam ter aula de cooperação, elas já estão num ambiente cooperativo. Então é uma semente que leva. E os pais, quando eles vêm aos mutirões, eles percebem que dá pra plantar em casa. Então nesse contexto, já desse movimento da agricultura urbana, que tem se fortalecido cada vez mais, ainda bem, e a Humanaterra tá muito ligada com isso, com a agricultura urbana, de a gente desenvolver técnicas pra plantar em qualquer espaço, independente do tamanho, se é de concreto, se não é. Então como a agricultura pode invadir o ambiente urbano. E os pais vêm, eles veem as nossas práticas aqui com pneu, com caixote, coisa, sabe, simples, barata, que você encontra no lixo, e fala: “Poxa, pelo menos o temperinho ali do feijão poderia fazer ali no quintal”. E eles gostaram muito disso. E as crianças estão felizes, eles chegam a casa felizes, porque estiveram na horta, e falam do Pedro, e da Amanda, e não sei o quê. E os pais chegam: “Mas quem é? Nossa, meu filho está querendo comer salada. Meu filho comeu romã. O que é romã?”. Então todas essas importâncias. A paisagem quando você olha, ela é totalmente diferente. Você está ali fora no quintal, ele é alto, então você vê em volta o tipo de ocupação que a gente tem desse bairro, que é muito adensada e é aquele monte de casinha grudadinha, aqueles morros dominados, que começam por invasões, depois vêm os projetos de urbanização, de não sei que. Então começa aquele monte de casinha, não tem uma árvore, todo mundo apertadinho, tal. E aí você vê o Quintal, sabe? Você tira uma foto, é um contraste absurdo aquele quintal verde naquele morro cinza, todo mundo superapertado ali. Então é um exemplo pra essa região de que dá pra ser assim, de que não depende de tanto dinheiro. A gente fez uma parceria com a Secretaria de Meio Ambiente e ela doou muita muda pra gente. E a gente descobriu que, pô, é fácil eles doarem muda. E a gente começou a falar para os pais: “Gente, não precisa gastar dinheiro, não. Sabe? Terra e adubo tem aqui, vocês podem pegar um pouco daqui. Arruma um caixote, um galão, vai ali no viveiro municipal, pede uma doação, troca pelo seu lixo reciclável”. Não está tão difícil a gente melhorar nossa qualidade de vida, depende de a gente querer um pouco, as soluções estão aí. Isso melhora o clima, melhora o ar. Então tem esses benefícios, né? Já falei de educação, saúde, paisagístico, climático, ambiental, social, por aí afora.
P/1 – Muita coisa. Muito bacana.
R – É (risos). Com certeza.
P/1 – Tá certo, Amanda. Eu vou encaminhando agora para o final.
R – Tá bom.
P/1 – Tem duas perguntas que são sempre as perguntas de encerramento. Antes eu queria saber se tem alguma coisa que eu não tenha perguntado que você gostaria de deixar registrada. Qualquer coisa.
R – Então, eu acho que faz parte também do projeto e desse movimento que a gente está inserido, que é um movimento que vai muito além do projeto. Existem muitas iniciativas e cada vez mais iniciativas nessa linha, muitos parceiros trabalhando nessa linha, que são educadores e plantadores que percebem essa importância, porque a gente precisa levar pra outros espaços. Então a gente sonha muito que isso possa virar política pública um dia. Então a gente trabalha muito... Botando em prática, pra ter exemplos vividos e avaliados, você poder ao longo de um período “foi bom, não foi, o que precisa mudar, nã nã nã nã nã”, pra você poder propor pra umas escalas maiores. Então se tudo der certo, o ano que vem a gente vai fazer um evento em parceria com a Secretaria do Meio Ambiente pra compartilhar essas experiências do Quintal Mágico a fim de estimular o município a pensar em políticas públicas que favoreçam as horas escolares no município. Então a gente está em rede com muitos outros grupos, não é uma experiência isolada, é uma experiência que está numa rede de movimentos bem importante pra fazer essa mudança na educação e no modo de vida mesmo e de visão de mundo do ser humano.
P/1 – Bacana. Penúltima pergunta então, pra gente ir encerrando, quais são seus sonhos?
R – Nossa! Bom, acho que um dos meus sonhos é esse, que a educação possa ser feita 100%... Acho que 100% da educação possam ser feitos em contato com a natureza. Doem-me muito as crianças afastadas da natureza, porque eu acho que é fundamental ela estar próxima. Então dependendo do lugar onde a escola está vai ser mais ou menos, mas não tem limite pra isso, mesmo nas escolas urbanas, particulares, isso dá pra ser feito, depende dos educadores valorizarem isso. Então esse é um sonho que eu tenho, de que seja uma coisa óbvia na nossa cabeça, sabe? Como, por exemplo, escovar o dente com a pasta de dente. Educação é com a natureza. Não que tem que ser o tempo todo lá e não pode nunca ir pra sala de aula, mas tem que ter a natureza, tem que ter esse contato. Pra mim, isso é a base de tudo. Então eu sonho muito com isso. E, bom, tenho sonhos bem utópicos, de conseguir alcançar sociedades mais justas mesmo, com menos desigualdade social, sem tanta pobreza, sem pobreza, né? Que ao mesmo tempo eu falo isso, parece tão difícil, por isso eu falo que são sonhos meio utópicos. Mas se eu não sonhar, também não adianta nem eu levantar pra trabalhar. Então eu acho que mesmo que eu vá trabalhar a vida inteira e talvez eu não veja isso ser possível, porque talvez uma vida seja pouco, porque esse sistema que está instituído na nossa sociedade, ele promove a desigualdade ainda. Então a gente já está começando a virar, mas até virar mesmo, sei lá se vai ser possível. Mas, enfim, vou lutar pra isso sempre, porque não sei fazer outra coisa também. E o meu trabalho é um trabalho de formiga, então cada vez... Eu não sou uma pessoa militante, ativista no sentido de fazer barulho, sabe? De bater de frente, de levantar bandeira. Eu não acredito muito. Não é que eu não acredite, eu não sei fazer muito desse jeito. Então eu acho importante que façam, vários parceiros fazem, e apoio, mas eu não sou essa que vai brigar, ainda mais que eu não posso correr riscos, eu tenho dois filhos pra criar, então eu prefiro ficar num trabalho mais de formiga. Então cada pessoa que eu percebo que algo que eu fiz, ou que a nossa equipe fez, que sensibilizou, cada pai que entra aqui e sai diferente, cada criança que no começo do ano pisava nas plantas e agora está fazendo carinho em todas elas e ensinando a fazer carinho, já é um pedaço do meu sonho realizado, já é um sentimento, uma força pra eu continuar. Então eu acho que pra resumir, o meu sonho é ver o ser humano num contato mais harmonioso com a natureza, sabe? E dentro disso tá a gente ter modos de vida mais sustentáveis mesmo, e que a gente consiga não acabar com a água. Tudo isso está dentro.
P/1 – E, por fim, como foi contar a sua história?
R – Ai foi muito bom. Agradeço (risos). Foi bom. Foi bom pra eu valorizar mesmo tudo que eu recebi, sabe? Eu vejo que é uma história em que as bênçãos são muito maiores do que as dificuldades. Então eu acho que eu vou lembrar muito nos dias que eu tiver... Sabe aqueles dias que você está mal, achando que o mundo está contra você e que você não tem nada? Cara, eu vou me lembrar desse sentimento que eu estou, desde que a gente começou até agora, de, meu, olha que legal que foi isso. Nossa, que legal que foi isso. Nossa, isso também foi bem legal. Olha quantos presentes eu ganhei, eu tenho assim. Então foi um presente mesmo. Agradeço muito.
P/1 – A gente que agradece.
R – Imagina.
P/1 – Obrigada. A gente encerra aqui então.
FINAL DA ENTREVISTARecolher