P/1 – Lia, você pode falar o seu nome completo?
R – Posso. Lia Ancona de Faria.
P/1 – Local e data de nascimento.
R – São Paulo, 12 de julho de 1938. Eu sou de um ano antes da Segunda Guerra Mundial.
P/1 – E Lia, seus pais são de São Paulo?
R – De São Paulo também.
P/1 – Seu pai ...Continuar leitura
P/1 – Lia, você pode falar o seu nome completo?
R – Posso. Lia Ancona de Faria.
P/1 – Local e data de nascimento.
R – São Paulo, 12 de julho de 1938. Eu sou de um ano antes da Segunda Guerra Mundial.
P/1 – E Lia, seus pais são de São Paulo?
R – De São Paulo também.
P/1 – Seu pai e sua mãe.
R – Meu pai e minha mãe. São filhos de italianos.
P/1 – Como é o nome do seu pai?
R – Dante Ancona Lopez
P/1 – E da sua mãe?
R – Linda Ancona Lopez porque eles eram primos.
P/1 – Ah, primos?
R – Primos. Primos de segundo grau.
P/1 – É mesmo?
R – É.
P/1 – Então vamos começar, as famílias vão acabar se misturando. Qual é a origem do seu pai?
R – O meu avô paterno entrou numa revolução na Itália e falaram que ele tinha que sair correndo ou então ele seria preso, não sei exatamente o que era, que movimento era aquele. Ele era recém-casado, minha avó tinha 16 anos e eles tinham um filho de um ano, o tio Vicente. Ele resolveu ir pra Buenos Aires, o irmão dele veio junto. Quando o navio parou em Santos falaram que Buenos Aires não estava bom, sei lá pra que era, então eles desceram em Santos mesmo. Vieram pra cá onde meu avô teve mais nove filhos, foram 12, dois morreram logo que nasceram. O único que nasceu na Itália foi o mais velho, os outros, todos nasceram aqui. O meu avô escrevia pro Estadão, ele era redator do Estadão.
P/1 – Mas lá na Itália ele veio novo pra cá?
R – Ele tinha 18 ou 19 anos.
P/1 – E ele fez uma profissão aqui.
R – Aqui.
P/1 – Mas ele estudou Jornalismo ou ele era...
R – Não, jornalista naquela época acho que era mais fácil, não tinha que ter diploma, né? Ele era jornalista e o meu tio Vicente, o mais velho, também foi jornalista.
P/1 – Ele escrevia pro Estadão?
R – Pro Estadão, os dois escreviam pro Estadão. É incrível, a diferença de idade entre meu tio e minha avó era de 15 anos (risos). Hoje eles podiam ter casado (risos).
P/1 – E seu avô veio pra cá e foi morar onde?
R – Eu não sei. Eles moraram em muitas casas, uma sei que era na Vila Mariana. Eu tive um tio, o tio Lucilo, era um dos mais velhos, cada vez que ele queria apresentar uma namorada ele fazia a família inteira mudar de casa. Ele tinha mania de ser chique, então ele mandava todo mundo mudar de casa, arrumava a casa e tal, pronto, e nunca dava certo com a namorada. Tanto que ele não casou, só bem mais tarde que ele casou com a Zalinha, irmã do Scarpa, filha do Scarpa lá. E aí ele se realizou, porque ela tinha uma casa na Avenida Brasil, ele dava jantares na Avenida Brasil e ele determinava: “As crianças têm que ir vestidas assim, ou assado”. E a gente adorava porque tinha aquelas lavandas pra lavar as mãos, coisa que nas nossas casas não tinha. Então ele se realizou durante esse tempo. Mas depois ela tinha uma casa no Guarujá também. Uma vez que eles estavam no Guarujá ele simplesmente a botou pra fora de casa, ele era completamente doidão.
P/1 – E como é o nome do seu avô, do pai do seu pai?
R – Nicolau Ancona Lopez.
P/1 – E sobre o que o Nicolau escrevia?
R – Mais sobre política mesmo.
P/1 – E você conviveu com ele?
R – Não. Ele morreu no fim de junho e eu nasci 12 de julho. Estavam de luto, minha mãe estava de preto e tal quando eu nasci.
P/1 – E a sua mãe, os pais dela?
R – Vicente Ancona Lopez e Luzia, ela era Nicolau e Ana. O pai da minha mãe era sobrinho do pai do meu pai, era filho do tal irmão que veio junto.
P/1 – Da Itália.
R – É. Mas ele já tinha nascido também quando veio pra cá, era italiano. E havia uma diferença incrível entre eles. O pai do meu pai era socialista, não sei se era anarquista, mas era naquela época de todas aquelas lutas a favor dos operários. O pai da minha mãe, não sei de onde saiu isso também pra ele. Primeiro, ele era um homem muito bonito e muito elegante. E aí ele ficou muito aristocrático. Ele montou uma casa importadora e ganhou bastante dinheiro com isso. Ele era um cara aristocrático e mais tarde começaram a surgir problemas porque meu pai sempre foi de esquerda e esse meu avô apoiava o Mussolini, coisas assim. Então na minha infância eu tive um pouco, aliás a minha infância foi toda esquizofrênica, minha mãe era super religiosa, o meu pai dizia que Deus não existia; eu tive um avô fascista, o outro era praticamente comunista. Muito esquisito. Aliás, a minha vida foi muito assim, eu fui criada, não como uma dondoca porque meu pai não tinha muito dinheiro, mas como uma moça de família fina. Estudei piano, todas essas coisas. Minha mãe era muito dependente do meu pai, então ela se adaptou ao jeito dele, se bem que meu avô nunca se adaptou. Quando eu nasci nós morávamos numa casa que meu avô tinha dado pra minha mãe, vizinho da casa dele. Então tinha um portãozinho no quintal que a gente trançava por lá, ia e voltava.
P/1 – Em que bairro?
R – Era na Rua Santo Amaro. Um casarão. O casarão do meu avô era um negócio impressionante. Você subia uma escada logo que chegava, chegava num primeiro pátio. Subia uma escadaria enorme, chegava num segundo pátio. Entrava na casa e tinha mais um lance de escadas pra chegar na casa mesmo, que era em cima. Mas era altíssima. E meu avô tinha mania também que ele sofria do coração, ele era meio nervoso acho, ele tinha medo de que ia morrer do coração e vivia fazendo exame. O médico dizia: “Você não tem nada, Vicente”. Um dia ele foi ao médico e o médico falou: “Agora você tem. Você tem que mudar daquela casa, você não pode mais subir todas essas escadas”. Aí ele não acreditou e morreu do coração com 58 anos, mais ou menos.
P/1 – Lia, e seu pai e sua mãe se conheceram porque eles eram da mesma família, já eram primos.
R – Sim, eles eram primos. Meu pai diz que começou a namorar minha mãe no Jardim da Aclimação, onde eles tinham ido juntos, todos, fazer um piquenique, porque eles conviviam muito, né? Eram primos, faziam tudo juntos. Eles nadavam no Clube Esperia, remavam, faziam essas coisas, sempre a família inteira junto.
P/1 – Aí seu pai e sua mãe começaram a namorar.
R – É.
P/1 – E como é que a família encarou esse namoro?
R – Ninguém nunca me falou nada. Acho que acharam bom porque meu pai era meio atrapalhado, ele não guardava dinheiro, era meio aventureiro nas coisas e a minha mãe era uma pessoa tranquila. Acho que sempre se deram bem com a família. O meu avô materno que não sei se gostou muito do casamento.
P/1 – Eles casaram com quantos anos?
R – Minha mãe tinha 24 e meu pai 29.
P/1 – E o que seu pai fazia?
R – Meu pai fez muitas coisas. Ele trabalhava, ajudava meu tio Vicente levar anúncio de cá pra lá, de lá pra cá; ele foi diretor da rádio Cruzeiro do Sul; junto com um irmão dele, o Itálico, eles montaram uma firma de publicidade. E é engraçado, naquela época tudo era muito diferente, a publicidade chamava, se você puser um nome desses hoje a turma vai dar risada: Publicidade Sem Rival. Eles punham na maior boa, tudo era muito diferente. Era muito diferente no sentido que tinha alguém que tinha um cargo público, de repente arrumava pra família inteira. Isso mudou muito. Hoje é um escândalo, mas naquela época era comum. Depois ele começou com cinema, aí ele começou a se interessar por cinema e ele teve muito cartaz na área cinematográfica. Primeiro ele montou o Cine Coral, você já ouviu falar? O Cine Coral é na Rua Sete de Abril, que aliás era: “Cine Coral, sempre um filme sensacional” (risos), tudo que pudesse ser bem exclamativo, né? Mas ele começou a procurar, fez um cinema de arte. Passou filmes lá, por exemplo, ele passou o “Ano Passado em Marienbad”, ninguém tinha coragem de exibir; ele passou, não lembro como chama, um de um cara que vive sozinho, trancado num porão. Passou filmes difíceis lá. “Hiroshima mon amour”. Ele passou filmes bem difíceis. E aí ele ficou conhecido. Ele tinha sócios no cinema e de repente, não sei porque, não quiseram mais continuar, e ele trabalhou muito junto à Companhia Serrador, essa companhia que tinha o Belas Artes, agora não lembro como o rapaz chama. E ele começou a ter distribuidora de filmes, foi pra Rússia pegar filmes, viajou bastante. Ele tinha filmes muito bons, realmente. Quando o Coral começou a não dar mais ele ficou uns tempos só com a distribuidora, depois ele foi chamado pra arrumar a programação do Cine Trianon, na Consolação, que hoje é o Belas Artes. E foi ele que transformou o Trianon em Belas Artes, depois aumentaram, fizeram mais salas, tudo isso. Então ele realmente foi uma figura conhecida no meio cinematográfico. Nós tínhamos permanente para todos os cinemas, era uma delícia.
P/1 – E o Cine Elétrico?
R – O Elétrico também ele cuidou; também o Cine Arte, que agora é esse do Conjunto Nacional, como é que chama agora?
P/2 – Da Livraria Cultura.
R – Agora é Livraria Cultura, mas já foi Bombril, né? E o Sabesp aqui perto. Então ele cuidou, até ele morrer era o Bombril. E o Regência na Paulista também ele cuidou. O Picolino. Ele era presidente da Sociedade Amigos da Cinemateca, então ele era bem conhecido. Tanto que agora abriram de novo o Belas Artes, a gente sentiu falta, um pouco, de alguém, saíram muitas reportagens falando dele, mas sentimos falta um pouco, sei lá, pôr o nome dele no cinema, uma plaquinha, alguma coisa, porque ele foi muito importante.
P/1 – Como ele começou a se interessar por cinema? Quando ele casou com a sua mãe ele já tinha esse interesse?
R – Não, que eu saiba, de quando eu era criança não, ele fazia publicidade. Depois que ele começou a se interessar, mas eu não sei muito bem, porque e como ele começou a se interessar por cinema.
P/1 – Como ele era, quais eram as características, como ele era dentro de casa, como ele era com vocês?
R – Meu pai era assim, ele era do signo de Gêmeos e dizem que isso, Gêmeos é dois. Porque ele era completamente diferente numa coisa e na outra. Então ele era a favor, ele se dizia comunista, comunista mesmo ele nunca foi, mas ele foi simpatizante, ajudou muito o partido, não sei como que foi que ele ficou amigo do Prestes. Depois eu falo disso. Mas então, ele era cabeça aberta, mil coisas, mas pra dar um exemplo pra vocês. Eu estava na faculdade e um dia ele me telefonou, eu cheguei em casa e ele disse: “Sua mãe foi te buscar...”. Ah não, eu fui ao cinema, saí da faculdade e fui ao cinema, o Coral. Eu cheguei lá e ele disse: “Sua mãe veio te buscar pra te levar pro aeroporto porque telefonaram para você ir como representante feminina falar com o Juscelino”, não lembro, com alguém. Era um problema, algum problema que tinha de greves gerais. Então minha mãe pegou, foi comigo até o aeroporto, entrei no avião com cinco rapazes e fomos embora, na boa. Aí quando eu comecei a namorar o Cabeca eu falava assim: “Pai, eu vou ao cinema com o Cabeca” “Seu irmão tem que ir junto”. Quando era dentro da família dele era uma coisa muito louca, ele era bem tradicional nessa coisa. Me deu muito trabalho, eu também demorei pra declarar independência, e pra fora ele falava: “Vocês não precisam casar, se casar e não der certo separa, porque isso, por aquilo. Você precisa ter profissão, tem que ser independente de homem”. Na prática não podia fazer nada (risos), meu pai era assim. Mas então como eu estava dizendo, ele era muito amigo do Luís Carlos Prestes. Eu vivi desde criança com reuniões do Partido Comunista dentro de casa. E aquele bando de gente lá, o Câmara Ferreira ia lá que eu lembro, o Prestes sempre ia, às vezes não ia, mas um monte de gente lá, faziam aquelas reuniões. Eu fui criada mais ou menos no meio de reuniões políticas. O meu tio Líbero foi vereador, então também antes era coisa do tio Líbero ser vereador, mas ele era do partido do Adhemar de Barros, então meu tio não tinha nada a ver, era uma cara de esquerda e tal, mas não tinha nada a ver com o ideário do meu pai. Mas a gente fazia campanha, distribuía papelzinho, podia tudo naquela época, né?
P/1 – Vocês são em quantos irmãos? Quantos filhos seu pai teve com a sua mãe?
R – Cinco.
P/1 – Você é qual?
R – Eu sou a mais velha e tenho quatro irmãos.
P/1 – Você é a única mulher.
R – Única mulher. E meus irmãos, três pelo menos têm uma barba branca e adoram dizer: “A Lia é a mais velha”, eu digo: “Eu não tenho barba branca” (risos). O Fábio tem um ano só menos do que eu.
P/1 – E a sua mãe? Como ela era em casa, as características dela?
R – Minha mãe era uma pessoa bem do lar. Ela cozinhava, tocava piano muitíssimo bem. Aliás, ela tinha um concerto marcado, ela arrumou até roupa para ir nesse concerto, só que aí ela ficou noiva do meu pai e meu pai e meu avô proibiram, porque ela estava noiva, agora não podia ir pro concerto. Absurdo isso, ela tinha uma mágoa disso a vida inteira. Mas pra falar como era naquela época, pelo menos em famílias italianas assim era bem complicado.
P/1 – E essa infância, você com seus irmãos, qual era a primeira casa que você lembra que vocês moraram?
R – Nessa casa vizinha à casa do meu avô.
P/1 – Na Rua Santo Amaro.
R – Na Rua Santo Amaro.
P/1 – Como é que era a casa?
R – A casa era grande, não lembro quantos quartos, mas era uma casa que você subia...
P/1 – Mas vocês já eram os cinco lá?
R – Não, não. Lá éramos eu, o Fábio, talvez o Marcelo tenha nascido lá, eu não sei. Mas aí um dia acho que meu pai se encheu da vizinhança, pra falar bem a verdade acho que foi isso, resolveu vender a casa e comprou uma na Rua Augusta, perto da Rua Oscar Freire. Isso aí foi um suplício, um sofrimento, minha mãe chorava, meu avô gritava, porque ele ia morar longe, ia morar num descampado, era aquela coisa horrível. A Rua Oscar Freire não era calçada naquela época. Descia um bonde pela Rua Augusta, blem blem blem blem, passava o cara com cabras, realmente era meio longe. Aí foi muita tristeza do meu avô, da minha mãe, aquela coisa italiana, sabe? (risos) Mas aí nós moramos, essa casa da Rua Augusta era bem grande. Bem grande, mas antiga. Três quartos em cima bem grandes, não sei se tinha dois banheiros, com certeza tinha um lavabo embaixo, duas salas bem grandes e um quintalzão, a casa tinha dez por 60, o terreno era enorme. Lá no fundo a minha mãe tinha o galinheiro onde ela criava galinhas, era bem legal essa casa. Aí ficamos nessa casa...
P/1 – Você tinha quantos quando você morava lá?
R – Eu devo ter ido com uns quatro anos, talvez cinco, não sei.
P/1 – Viveu quanto tempo lá?
R – Até os 15 ou 16, uns dez anos. Aí nós mudamos pra Alameda Jaú, outra casa bem grande, mais bonita, uma casa com um certo estilo e tal. E da Alameda Jaú nós mudamos pra Rua Baronesa de Itu, primeira vez que eu morei em apartamento. Depois de um ano e pouco eu casei. Mas meu pai, na verdade, ele vendia as casas. Porque meu pai assim, ele ganhou muito dinheiro e ele perdeu muito dinheiro. Ele ganhava dinheiro, então ele queria viajar, ele vendia a casa. Carro nunca ele teve porque ele perdeu duas irmãs e um cunhado em um acidente e nunca quis ter carro. “Ah, quero dinheiro”, vendia a casa, viajava, gastava um monte de dinheiro, depois ia comprando outra. Enfim, meu pai, ninguém sabia, na família ele era o tio rico, mas o tio rico de vez em quando ficava o tio pobre. Agora, depois que ele foi... ele foi preso pelo DOI-Codi, naquele negócio de ser amigo do Prestes e tal.
P/1 – Quantos anos você tinha quando ele foi preso?
R – Eu já era casada.
P/1 – Ah, tá.
R – Foi em 75. Começaram a pegar todos os comunistas e acharam uma caderneta do Prestes com nomes e telefones. Eles estavam uma noite jogando baralho com a minha mãe, de paletó de pijama, eles jogavam buraco. Tocou a campainha. Só tinha o Paulo, meu irmão caçula, lá em casa ainda. Abriram a porta, tinha três homens de terno e falaram pra ele: “Seu Dante, o senhor tem que vir conosco pra reconhecer a sua carteira de identidade, porque nós pegamos um negro com a sua carteira de identidade”. Meu pai falou: “Minha carteira de identidade está aqui em casa” “Então o senhor precisa vir esclarecer o que é isso”. Ele já sabia o que era aquilo. Foi pro quarto, tirou dinheiro, tirou as coisas que podia do bolso. O Paulo quis descer junto com ele, não deixaram. Aí ele desceu, tinha uma daquelas C-14, um daqueles carrões lá, botaram ele no meio, atrás e os dois homens tinham armas, encostaram nele. Na frente tinha mais dois ou três. Levaram ele pra Rua Tutóia, lá onde era o DOI-Codi. Fizeram ele entrar, aí veio um cara falar com ele: “O senhor sabe por que está aqui?”, ele falou: “Não sei, falaram que era para eu ver a minha carteira de identidade”, aí o cara falou: “Não, olha pela janela”. Ele olhou pela janela, tinha um monte de gente de armas a mão. Ele falou: “Nós estamos em guerra e o senhor é nosso inimigo”. Aí tiraram tudo dele, cinto, aliança, sei lá o quê, subiram: “Agora vem com a gente”. Botaram um capuz nele, subiram a escada, abriram uma porta, botaram ele pra dentro. Botaram ele pra dentro, tinha várias pessoas lá, levantou um rapaz do fundo e falou: “Muito prazer, Paulo Bastos”, ele falou: “Prazer, Dante Ancona Lopez”, aí o Paulo falou: “Sou muito amigo da sua filha”. E foi muito bom. O Paulo Bastos era um arquiteto que até já morreu. E como ele era o mais velho, tinha 60 e tantos, ajudaram muito. Ele diz que ajudaram muito ele. Quando tinha uma cadeira davam pra ele sentar, ele falou que foi muito bem tratado lá pelo pessoal. Aí ele ficou sumido dez dias. No dia seguinte minha mãe e o Fábio, meu irmão, foram até o Segundo Exército, lá no Ibirapuera, e falaram: “Olha, nós trouxemos remédio pro coração de Dante Ancona Lopez”, ele não sofria do coração, “E vocês têm que fazer o remédio chegar a ele senão ele pode morrer” “Mas nós não sabemos onde ele está”. Todo dia eles iam, levavam algum remédio, falavam alguma coisa e eles diziam: “Nós não sabemos onde ele está”. Nessa época eu estava trabalhando com o meu pai na agência de publicidade, ele fazia publicidade de cinema nessa época, e eu fui trabalhar com ele. E aquilo era insuportável, as pessoas ligavam: “Por favor, eu quero falar com o Dante”. Aí nós começamos a dizer pra todo mundo que ele estava com pancreatite e tinha ido pra Botucatu, porque o Fábio era médico lá em Botucatu. E dava notícia: “Não, está melhor, está mais ou menos, ainda não vai voltar”. Aquela coisa era massacrante. Aí chegou um dia eu falei: “Eu não aguento mais”. Eu me vesti pra chamar a atenção, pra causar mesmo. Eu pus um conjunto de lese cor de rosa, uma calça justinha, uma jaqueta que
fechava assim, eu era bem magrinha na ocasião. Subi num salto e fui lá. Entrei na sala onde recebiam as famílias. Lá tinha monte de gente bem humilde, inclusive. E aí esperando, esperando, entrou um cara, abriu a porta, olhou assim em volta e falou: “A senhora, está fazendo o quê aqui?”, eu falei: “Eu quero notícias de Dante Ancona Lopez, meu pai” “A senhora entra”. Mandou entrar e fechou a porta. Quando nós entramos eu falei: “Por que o senhor me chamou? Só porque eu era melhor vestida? O senhor me chamou por isso? Querem limpar a barra de vocês?”, ele não respondeu nada e me falou assim: “Por que a senhora veio aqui?”, eu falei: “Porque com certeza vocês sabem onde está meu pai” “Mas qual é o seu medo, o que a senhora quer saber?” “Eu quero saber se ele está vivo porque vocês matam”. Aquela hora eu estava completamente atacada. Aí ele falou: “Não, não é bem assim”. Eu falei: “Olha, eu trabalho com meu pai, faz dez dias que ele sumiu, nós somos orientados a não procurar a imprensa, então a gente não procurou, mas eu vou dizer uma coisa: eu não aguento mais. Ou eu tenho uma notícia dele ou eu vou procurar a imprensa”. Ele falou: “Um momento”. Levantou, pegou um telefone interno, ligou pra não sei onde e falou assim: “Olha, é um caso delicado. Está aqui a filha do Dante Ancona Lopez. Sei. Sei”, desligou e falou assim: “Seu pai está bem e ele vai amanhã pro Dops”. Eu falei: “Obrigada”. Eu levantei pra ir embora e ele falou: “E eu não estava querendo limpar a minha imagem”, foi a última frase que ele falou. Eu fui embora, mas a hora que eu saí eu tremia tanto. Eu tinha um Fusca, entrei no carro, mas eu tremia, eu falei: “Eu fui uma louca, podia ter ficado”, sei lá (risos). Subi a Manuel da Nóbrega e fui pra casa de um tio do Cabé, que era delegado e que estava ajudando a gente nessas coisas, levava minha mãe e meu irmão e tal, entrei na casa do Lazinho, falei: “Lazinho, você não sabe onde eu fui”. Ele falou: “Onde?”, eu falei: “Estou vindo do DOI-CODI”. Ele falou: “Tá maluca?!”, parara parara parara. “Não aguentava mais. Agora diz que ele vai pro Dops amanhã”, ele falou: “Então no Dops eu tenho acesso”. Realmente ele foi pro Dops, ainda ficou uns cinco dias lá, mas lá minha mãe pôde vê-lo, o Fábio pôde vê-lo, eu não cheguei a ir lá. E aí chegou o dia que ele ia voltar pra casa. Foi uma coisa, foi uma emoção tão forte, foi uma coisa tão esquisita. Nós estávamos todos no apartamento deles olhando pela janela. Alguém falou: “Papai está aí embaixo, desceu do carro”. Eu fui pra cozinha beber água, não tinha condição de vê-lo, um negócio tão esquisito, tão forte. E da cozinha eu escutei ele falando, quando ele entrou: “Viva a liberdade!” A minha emoção era muito esquisita porque eu não chorei, eu não ri, eu não fiz nada, eu estava estatelada assim, parada, foi muito forte. Aí, ele teve uma série de problemas por causa disso. Por quê? A gente falava que ele estava com pancreatite em Botucatu, mas ninguém acreditava, porque isso as pessoas acabam sabendo, né? Porque alguém aqui de fora conhece os caras lá de dentro, tinha muita gente apoiando o Golpe, né, então muita gente sabia de tudo. E aí foi ruim pra ele, ele ficou com menos força pra fazer as coisas, sabe?
P/1 – Força, mas o quê, influenciou no trabalho dele?
R – No trabalho.
P/1 – O que aconteceu no trabalho?
R – Nem todo mundo já era assim, de se dar bem com ele, ele foi meio gelado. Ficou meio pra escanteio. Aí só o cara do, ai, quero tanto lembrar o nome dele, o Chiquinho. Não era o Serrador, era o outro. Esse ficou do lado do meu pai, aí sim que ele foi pro Conjunto Nacional, lá praquele cinema, ele continuava fazendo programação. Mas ele também ficou acabrunhado, sabe? Porque as pessoas já olhavam pra ele meio torto. Ele teve amigos sempre do lado de lá, né? Os amigos ricos dele, quem tinha condições, sempre eram pessoas que dificilmente concordariam com ele. Então aí ele ficou mais isolado. Enfim, foi isso.
P/1 – Vamos voltar um pouco pra sua casa da Rua Augusta com a Oscar Freire. E quais eram suas brincadeiras de infância na casa? Ou na vizinhança?
R – Na vizinhança não. A gente não saía de casa pra brincar. Ou os primos vinham, ou a gente ia, então brincava muito com meus irmãos; muito com meus irmãos não, com o Fábio e um pouco com o Marcelo. A gente dava comida pras galinhas, corria lá pelo quintal, fazia essas coisas. Uma vez tinha uma árvore bem no fundo, uma árvore que dá uma flor, super doce o cheiro dessa flor, eu não sei exatamente qual é. E um dia eu olhei lá, estava uma colmeia se formando. Ontem eu fiz um teste no Facebook que diz que eu tenho 85% a menos de parafusos na cabeça (risos), então eu não sei se é 85%, mas eu sempre fui esquisita. Eu olhei aquela colmeia lá, chamei o Fábio e o Marcelo, falei assim: “Olha, eu tenho uma ideia: a gente leva um pão cheio de mel pras abelhas, elas saem da colmeia, vêm no pão, nós pegamos a colmeia e corremos”. Dei o pão na mão deles, claro, não levei. E eles chegaram lá com aquele pão cheio de mel, as abelhas vieram todas em cima deles, ficaram eles inteirinhos. Minha mãe disse que estava na cozinha, escutava: “Ahhhh ahhhh”, aquela gritaria, um zum, aquelas abelhas todas atrás dos meninos. E eu assistindo (risos). Era divertido.
P/1 – E com quantos anos você entrou na escola?
R – Bom, acho que naquela época a gente entrava com seis. Eu entrei no jardim da infância numa escola que tinha atrás da escola chamada Externato Meira. Na Augusta... qual é a seguinte da Augusta? Haddock Lobo. Acho que não era na Haddock Lobo, era uma rua paralela à Augusta. Era uma escolinha, escolas daquela época. A hora do recreio você comia o lanche na carteira e aí mandavam você deitar a cabeça pra descansar (risos), era esse o recreio. Estudei lá até a quarta série, depois fui pro Dante Alighieri.
P/1 – Nessa época tem alguma professora que você lembra até hoje?
R – Nessa época não, eu não gostava da escola nessa época. Aí fui pro Dante Alighieri e já gostei bem mais. Mas como eu faço anos dia 12 de julho, naquela época quem fizesse 11 anos até fim de junho podia pular, ia já pro ginásio, quem fizesse depois de 30 de junho tinha que fazer um ano de admissão ao ginásio, você perdia um ano por besteira. Entrei no Dante pra fazer admissão ao ginásio. E terminei o colegial lá. Fiz ginásio e colegial lá. Eu nunca gostei muito do Dante, porque nesse ponto o Dante é uma escola muito metida, de italianos ricos. Eu achava os italianos uma coisa de nariz empinado, sabe? De se acharem melhores. Isso sempre me arrepia, eu sinto muito quando a pessoa é autoritária, eu percebo, quando é intransigente, quando é preconceituosa, eu percebo muito isso. E eu odeio. Tanto que quando eu acabei o colegial meus tios e minha avó estavam indo pra Itália, meu pai comprou... ah, eu prestei vestibular direto, sem fazer cursinho e fui barrada lá na FAU. Aí meu pai falou: “Te pago uma viagem pra Itália junto com os tios”. Eu não tinha a menor vontade de ir lá. Mas quando eu fui pra Itália realmente eu gostei, gostei da Itália, gostei dos italianos. Mas os italianos aqui no Brasil era uma coisa muito chata, se achando melhor, sabe? (risos) Não gostava muito.
P/1 – Lia, eu estou ainda na casa na Rua Augusta. E quem frequentava a sua casa naquela época?
R – Naquela época não tinha essas reuniões políticas; as reuniões políticas bastante mesmo foram mais na Alameda Jaú.
P/1 – Na outra casa.
R – Não, até tinha, mas tinha um pouco gente que fazia, colegas do tio Líbero que ele era vereador, era um pouco esse tipo de gente. E talvez tivesse também alguém do Partido Comunista, nessa época não sei. Não sei se isso pode ter sido, vamos dizer, eu com dez anos, 48. Em 48 quem era o presidente, era o Getúlio? Não tenho certeza. Era o Getúlio, né? Mas era Estado Novo? Não, né?
P/1 – Não.
R – Então talvez o partido estivesse até na legalidade, eu não sei. Porque quando ele ficou na ilegalidade que tinha essas reuniões lá em casa.
P/1 – E festas? Se comemorava festas, aniversário, Natal?
R – Sim, aniversário sempre, Natal também, era bem comemorado tudo. Lá na Augusta eu fiz 15 anos, exatamente. E a minha avó, a mãe da minha mãe, costurava muito bem, então ela fez uma roupa pra mim de 15 anos. Eu sei que tinha um coletinho e alguém enchia e dizia que eu tinha cara de porteiro de cinema. E nós fizemos o bailinho lá na sala. Mas era tudo bem família, luz acesa, essas coisas. Depois quando nós mudamos pra Alameda Jaú, aí meu pai estava melhor de dinheiro e a gente fazia festas, teve uma festa que foi muito boa, mas nessa eu fiz 23 anos. Porque a gente frequenta a UEE, a gente eu digo eu e meus irmãos, o Fábio e o Marcelo. E lá a gente conhecia todo o pessoal do Teatro de Arena, que era vizinho, então era aquela amizade, aquela coisa. Nesse aniversário, o Fábio faz dia 5 de julho, eu faço 12 de julho; a gente pegava o sábado intermediário e fazia uma festa só. Neste aniversário nós comemoramos muitos aniversários, da Aurora que era namorada do Marcelo, do Aloysio Corrêa de Azevedo, que era do Partidão; do Jonas Farias, meu e do Fábio, não sei se tinha mais alguém. Eu sei que deu pra pôr, somar as idades de todo mundo e pôr no bolo, ficaram muitas velas, provavelmente menos do que seria hoje se eu pusesse as minhas sozinhas (risos), ficaram muitas velas, ainda dava. Hoje, se fosse pra fazer isso tinha que fazer um bolo do tamanho da mesa, né? (risos) E nessa festa, aí nessa época meu pai estava melhor de grana, ele comprou uma caixa de garrafas de whisky, então correu bebida na festa, foi uma coisa. Todo mundo foi ficando de fogo. Mais tarde, quando acabou a peça lá no teatro vieram Juca de Oliveira, Ary Toledo, Gianfrancesco Guarnieri, foram todos lá pra casa. Era muito bom, a gente vivia muito nessa efervescência.
P/1 – Mas eles iam por causa do seu pai ou vocês que conheciam?
R – Não, não, a gente conhecia, mas eles também conheciam meu pai. Eles iam porque a gente conhecia. Veja, eu acho que quando uma pessoa chega aos 76 anos, qualquer que seja ela, tem muita coisa pra contar, são muitos anos. A menos que a pessoa tenha passado a vida dormindo, ela com certeza terá muita coisa pra contar. E eu acho que nós vivemos, a minha geração viveu numa época muito interessante. A gente nasceu era uma coisa, a gente foi pai e mãe foi outra coisa completamente diferente; agora então. Quer dizer, o mundo mudou muito nessa época, nós passamos por muitas fases. E a gente viu a história acontecendo. Então foi muito bom ter vivido nessa época, eu acho. A gente viu a transformação no Brasil, a gente viu o Golpe começando quando o Jânio renunciou, porque aí não queriam dar posse pro Jango. E nessa época, eu ainda estava no Mackenzie, a gente ia pra rua distribuir panfleto, pichar muro, era um negócio muito emocionante pra dizer a verdade, era bárbaro a gente trabalhar nisso. Mas nós íamos, às vezes três ou quatro moças, mocinhas, nós íamos em bairros afastados, entrávamos em uma carpintaria, qualquer coisa assim, ou loja de automóveis, e começávamos a fazer discurso político e distribuir papéis pra esses homens que nem sabiam o que a gente estava fazendo, essa era a verdade, era um negócio muito louco. Mas Adriana, minha filha, sempre diz isso: “Vocês tinham um ideal, então a vida era mais fácil para vocês, vocês tinham uma meta”. Eu acho que a gente tinha mesmo e depois foi ficando tudo muito solto, né? Mudou muito.
P/1 – Lia, e a sua mãe cozinhava?
R – Minha mãe cozinhava muito bem.
P/1 – Que pratos você lembra da infância?
R – O que eu mais adorava é o pão de torresmo que ela fazia. Eu vinha pela rua, estava frio, ela fazia no frio, eu vinha do Dante Aleghieri descendo a Jaú, chegava perto de casa, tinha aquele cheirinho de pão de torresmo, ela estava tocando piano. Eu lembro que um dia eu pensei: “Mas como é bom ter uma casa pra entrar, minha mãe tocando piano, pão de torresmo quentinho”. Esse dia me marcou muito. Mas ela fazia massa em casa, fazia macarrão, fazia molho muito bom. Ela cozinhava muito bem.
P/1 – E a sua mãe era religiosa e seu pai não. Como é que isso foi passado pra vocês?
R – Pois é, exatamente desse jeito. Eu fiz nove anos de terapia depois, porque realmente eu era esquizofrênica, eu não sabia com qual dos dois eu ficava. Minha mãe era religiosa. Quando chegava maio ela punha nós três, os três mais velhos, ajoelhados no chão de um quarto com uma vela acesa pra rezar o terço toda noite. Eu abominava aquilo, principalmente eu abominava a Salve Rainha, não sei se você conhece a Salve Rainha: “A vós bradamos os degredados filhos de Eva, a vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas”. Era um negócio horroroso! Eu tinha horror dessa oração. E tinha que rezar o terço inteiro. Realmente eu tinha horror. Bom, mas enfim, eu era o quê? Eu era religiosa nessa época, mas quando eu entrei na faculdade e os caras começaram a me angariar pro Partido Comunista, inclusive eles falavam: “Mas por quê? Esse negócio de religião, essa bobagem não existe”. De repente, do jeito que eu era religiosa, de repente eu tirei a religião como um saco pesado das costas. Tirei. E não senti falta nenhuma. Depois que eu casei e tive os filhos, eles estavam numa escola montessoriana, aí tinha festinhas, tinha primeiro comunhão, eles fizeram tudo isso; eu fiz encontro de casais que um amigo encaminhou a gente. De uma certa forma eu namorei a religião de novo. Mas não deu. Hoje, na verdade, eu posso te garantir que eu não tenho religião. Se eu tenho fé em alguma coisa? Eu nem discuto isso. Religião eu não tenho, nenhuma religião. Tem coisas que eu gosto de fazer. Eu acho bonito missa, algumas missas eu acho bonitas, aquele monte de gente cantando, cerimônias, eu acho bonito. Mas acho que não dá mais. E não foi por causa de política, não foi por causa de nada. Acho que no fim. Meu pai tanto falava que Deus não existe, de alguma forma isso ficou em mim, né?
P/1 – Seu pai, sua mãe, eles contavam histórias? Como eles eram no trato com vocês?
R – Minha mãe contava histórias. Mas eu sempre tive um certo problema com a minha mãe. Minha mãe, depois de mim ela teve mais quatro, certo? Mas eu sempre achei que ela era muito mais mãe dos meninos do que minha. Por que, o que ela fazia? Eu falei isso com ela, ela ficou muito triste o dia que eu falei. Eu falei depois que meu pai morreu, eu falei pra ela: “Você nunca foi minha mãe, você me pedia pra te ajudar, eu era uma sua ajudante. Qualquer coisa que acontecesse você dizia: ‘Ah, mas você é mulher, você é a mais velha, você tem que ceder’. Nunca eu me senti sua filha, eu era sua ajudante”. Depois que eu falei isso pra ela, nossa, meu pai já tinha morrido, isso foi de 2000 pra cá. Depois disso eu consegui sentir uma coisa melhor por ela, consegui ficar mais próxima dela. Quando ela morreu ela me fez muita falta, me faz muita falta até hoje. Mas eu tinha essa mágoa, essa coisa, foi muito bom eu ter falado. Porque eu achava ela muito boa mãe de criança pequena e muito do lado dos meninos, sempre achei isso. Vou te dizer uma coisa, quando meu pai morreu ela não tinha prática da vida, ela não tinha talão de cheques, sabe aquela mulher que sempre o marido cuidou de tudo. Aí, um dia ela falou assim: “Lia, eu vou”, sei lá, “no Extra fazer compras”. Eu falei: “Não vai mãe, você não vai aguentar”, ela já andava com uma certa dificuldade. “Você não vai aguentar percorrer o supermercado inteiro, deixa que eu faço as compras para você” “Não, eu vou lá que eu quero ver o que tem e o que não tem”. Não sei se tinha naquela época esses carrinhos pra andar, mas ela jamais sentaria num carrinho. Eu falei: “Acho que você vai se cansar” “Não, acho que não”. Passado algumas horas elas falou comigo ao telefone e disse: “Ah, eu desisti de ir no Extra, o Fábio falou que eu vou me cansar muito”. Era assim (risos). Eu não era absolutamente considerada por ela, era uma coisa. Eu era ajudante dela. Não sei como ela me via, uma coisa que eu sempre pensei muito, como será que ela me via? Quando eu falei isso pra ela, ela falou: “Não, mas é porque eu sempre te considerei muito, por isso que eu pedia pra você ser minha amiga, me ajudar”, eu falei: “Eu queria uma mãe”. Quando ela fez 90 anos, acho que foi no almoço de 90. Era num salão, aí falaram pras pessoas irem lá frente falar alguma coisa pra ela. Eu falei: “Oi mãe, na verdade eu sempre disse que em vez de duas mães eu tive duas sogras”, falei lá. Pra chegar a falar isso é porque isso realmente pesava muito pra mim. Porque ela tomava muito a defesa, sempre, do Cabé. Quando eu falei: “Mãe, eu tenho duas sogras” “Não”. Mas ela tinha medo, era moralista até. Ela tinha medo, se ela concordasse com algum defeito do Cabé, sei lá o que eu ia fazer. Ela tinha esses medos, tinha que ficar acertando tudo. É, estranho.
P/1 – Na infância, qual brincadeira você gostava mais?
R – De escolinha. Brincava de escolinha adoidado. Também era a mais velha das minhas primas, botava todo mundo pra escrever, eu era professora. Era a brincadeira que eu mais gostava.
P/1 – E você tinha um desejo assim: “Quando eu crescer quero ser tal coisa”?
R – Queria ser bailarina. Tinha. Eu tive um ano uma professora, acho que foi no Externato Meira mesmo, que deu balé. Eu queria ser bailarina, mas aí ela casou, foi embora e ficou vazio, não tinha mais. Eu queria muito ser bailarina, ficava imaginando eu nos palcos, dançando, assim um sonho, eu queria ser bailarina.
P/1 – Chegou a fazer aula de dança?
R – Só essa, enquanto a professora estava lá. Depois não me puseram em nenhuma aula de dança (risos). Mas dançar, sempre eu gostei muito.
P/1 – E vocês viajavam quando eram pequenos?
R – Nós íamos pra Santos normalmente. Passávamos férias lá.
P/1 – Aonde?
R – Ah, meu pai não tinha casa em Santos, ele alugava alguma casa. Às vezes com uma tia, outra tia, minha avó. Era aquela criançada. Era muito engraçado. Nós estávamos numa casa, porque nós somos cinco, os filhos do meu tio, irmão da minha mãe, também são cinco. Muitas vezes nós íamos todos juntos pra praia. E aí a minha avó, que morava com o meu tio, também ia. Uma mania, depois do almoço mandavam sempre a gente descansar (risos), não sei, e não era só na escolinha. Nós íamos pra praia, almoçávamos: “Agora vocês deitam por aí pra descansar”. E a gente estava lá e de repente minha avó, que também tinha ido descansar, essa casa eu lembro bem, ela descia a escada jogando balas pra todo mundo, aí eram dez crianças correndo atrás de bala, isso eu lembro muito bem. E lembro muito também dos natais na casa da minha avó porque ela fazia o seguinte, ela arrumava o presépio e deixava a caminha do menino Jesus vazia, até agora foi isso. E sempre uma criança levava o menino Jesus e punha no presépio. E aí acendia a luz da árvore, era a hora de falar Feliz Natal. Todos fizemos isto, eu, meus irmãos, minhas primas, as outras seis primas também, os meus filhos, os meus netos todos, a minha família, todos já fizeram isto, de levar o menino Jesus e pôr no presépio. Quando a minha avó morreu, meu tio morreu muito cedo, com 42 anos, e minha tia, que não é realmente minha tia, é casada com meu tio, ficou morando com a sogra, moraram juntas o resto da vida. Quando minha avó morreu a tia Liliana continuou fazendo esse Natal. No ano passado a tia Liliana morreu, morreu perto do fim do ano já, e não foi feito Natal. E as filhas dela, na verdade, não ficaram com muita vontade mais de fazer o Natal. Mas este ano as primas, a terceira geração resolveu que quer o Natal daquele jeito, então estão fazendo reuniões, estabelecendo quem faz o quê pra fazer de novo o Natal daquele jeito. Vai ser gostoso.
P/1 – Você ficou até 15 anos, na verdade, morando nessa rua.
R – Na Rua Augusta.
P/1 – Na Rua Augusta.
R – E dos 15 aos...
P/1 – Como é que era na época, como foi se transformando aquela região?
R – Olha, quando eu morei lá só tinha um empório, como chamava? Não chamava Empório Santa Luzia, a Casa Santa Luzia era na esquina da Oscar Freire com a Augusta, isso que virou essa potência que é hoje, acho que é Casa Santa Luzia ou Empório Santa Luzia. Aquela época uma coisa que eu lembro, porque a gente pegou a guerra, né? E apesar do Brasil ter entrado muito tarde na guerra aqui teve racionamento de muita coisa. Então tinha racionamento de farinha, eu lembro da minha mãe, tinha racionamento de pão. Eu lembro dela comprar macarrão, pôr o macarrão com água no fogo, ficar uma papa, pôr ovo e fazer pão. A gente fazia fila ali na rua Oscar Freire pra comprar alguma coisa sempre, lembro disto. E lembro do blackout. Sabe o que é blackout? Então, quando tinha o blackout minha avó tinha motorista, ele ia na nossa casa, punha papel preto em todas as janelas, meu pai só ouvia rádio, notícia da guerra o tempo inteiro, aí tinha que por o rádio baixinho, aí tocava uma sirene, as luzes eram apagadas, ficava só uma luzinha e você tinha que ficar naquele escuro. Não ia passar avião nenhum, era um ensaio, mas a gente morria de medo. Eu, pelo menos, como criança morria de medo. Depois tocava a sirene de novo, aí você podia acender as luzes e tal. Mas era meio apavorante pra criança. Você pensava: “De repente vem hoje aí um avião”. Como se você fazendo blackout o avião viesse (risos). Mas dava medo. Isso era na Rua Santo Amaro. Mas quando a guerra acabou eu já morava na Rua Augusta, porque eu lembro muito bem de muita gente na rua, festejando, e na casa em frente morava um alemão que morreu de infarto na hora que a guerra acabou. Tudo isso mexia muito com a cabeça da gente. Tanto que agora eu quis muito fazer um curso, eu queria estudar coisas da Primeira Grande Guerra, que agora fez aniversário, da Segunda Grande Guerra, sou muito interessada nessas coisas de guerra. Aí eu resolvi procurar um curso, sei lá que curso, eu fui ver na Faculdade de Sociologia e Política se tinha algum curso que eu fizesse fazer, me deu vontade de estudar de repente. Mas só tinha curso sábado de manhã; sábado de manhã, realmente, não me proponho a levantar cedinho pra estudar. E procurei muito onde arrumaria algum curso e eu descobri um curso na Casa do Saber. Eu não tinha muitas referências da Casa do Saber, eu sabia que era um negócio meio alta burguesia, mas sei lá. Tinha um curso que me interessava assim, chama “O Momento de Estratégia e Decisão”. E é um curso de nove aulas, das cinco às sete, às segundas-feiras. Eu me inscrevi. E na semana passada foi a primeira aula. Eu cheguei lá, olhei, tinha gente interessada na aula e tinha gente também pra ser vista, porque era badalado, coisa assim. Aí entrou o professor, na verdade era o segundo módulo do Estratégia e Decisão, porque o primeiro começava com o persas, não tinha me interessado muito, esse aqui começa com 29, me interessou mais, pega Juscelino, pega tudo. Mas muitos que estavam lá tinham feito o primeiro módulo, então o professor entrou e já era conhecido, já era aquela: “Ai professor, você viajou”, tal (risos). É um moço, ele falou que tem 51 anos, é um cara alto, magro, que veio de jeans, tênis, uma camisa super bacana e tal. Eu já achei um pouco chato o ambiente, aí ele começou a falar. A hora que ele começou a falar, se ele falasse a palavra corrupção ele dizia: “É, a gente sabe, a corrupção como está, como não está”, chegou uma hora que ele falou: “Se estivessem aqui gente que é do partido do PSOL e do PSTU, estariam balançando a cabeça”. Aquilo foi me irritando, foi me irritando. Aí tem o intervalo, depois de uma hora, pra tomar café. Ele sentou numa poltrona que estava lá e ficou lá. Não deu outra, fui lá e falei: “Olha, quero te dizer uma coisa, quando eu me inscrevi ninguém me avisou que tinha que ser do PSDB pra fazer curso na Casa do Saber”. Ele: “Não, mas por quê?”, eu falei: “Não, porque é demais, você exagerou”. E quando falou do PSTU e do PSOL você realmente foi muito errado, você não podia ter falado o que você falou. “Não, mas eu até votei no rapaz do PSOL, que é um professor lá da USP e eu acho que no Legislativo é importante ter alguém que batalhe, tal. Mas veja, o Suplicy, por exemplo, o que o Suplicy já fez na vida?”, eu falei: “Olha, não sei quantos projetos de lei ele fez, mas eu sei que cada evento, cada fato político que teve, o Suplicy estava junto, não dá pra falar que você não sabe o que o Suplicy fez” “Então na verdade eu não sou de esquerda, mas também não sou direita”, falou umas tantas coisas lá: “Eu votei no Lula quatro vezes”, ele me falou, “Mas agora eu quero que acabe em dois governos, o da Dilma e o do Alckmin”. Eu falei que: “O do Alckmin eu concordo plenamente com você”. Mas nisso veio um outro cara pra falar com ele. Eu falei: “Bom, eu vou tomar um café” e saí. Quando começou a segunda parte, a hora que ele falou a palavra corrupção, ele falou: “Porque corrupção tem em todos os partidos”. Ah, mas foi demais. Ainda tenho oito aulas, vamos ver como é que segue esse curso (risos).
P/1 – Lia, e nessa casa você ficou até ter 15 anos. Qual foi a sua primeira paixão que você lembra?
R – Minha primeira paixão? Eu tinha 15 anos exatamente. O rapaz jogava futebol. O nome dele era José Antônio, mas José Antônio não é nome que se fale, né? José Antônio, Zé Antônio, ninguém chamava ele disso, todo mundo chamava ele de 17, que era a camisa que ele usava no futebol. E ele foi o 17 a minha vida inteira, chamado de 17. Foi uma paixão, da parte dele também, a gente namorou dois anos. E a gente namorava muito no Trianon porque saía do Dante Alighieri e entrava no parque, namorava. Foi muito legal, mas eu namorava escondido porque o meu pai não podia saber que eu namorava, era o tal negócio. E ele passava em frente de casa, chamava o Fábio às vezes, meu pai cismou que “Esse cara é um cafajeste”, e era esse cara que eu namorava. Depois de dois anos ele resolveu jogar futebol profissional, entrou no Juventus. Aí eu falei: “Não vou encarar essa, jogador de futebol, meu pai”, também acho que eu já não estava tão interessada e briguei com ele, esse foi uma paixão louca.
P/1 – E na juventude, quais eram seus programas? O que vocês faziam pra se divertir?
R – Muito cinema e muito baile.
P/1 – Seu pai já estava trabalhando com cinema ou ainda não?
R – Estava, já estava. E muito baile. E festinhas, coisas assim que a gente ia. Eu tinha muitas amigas que iam lá em casa, ou ia à casa delas. A propósito, outro dia estava pensando nisso, que faz parte dos menos 85% de parafusos (risos), eu fui a um aniversário de uma amiga, mas era começo de ginásio, eu ainda era bem criança. E era uma festa, não era uma festa de crianças, era uma festa cheia de mesinhas, tudo arrumadinho. E aí veio uma pessoa perguntar: “Você quer canja ou creme de aspargos?”, ela começou a perguntar e todo mundo dizia: “Canja, canja, canja, canja”. Eu falei, não dá pra falar mais canja. Eu falei: “Creme de aspargos”. Eu não sabia nem o que era e eu detestei quando eu tomei, nunca esqueci isso, por que eu tinha que falar creme de aspargos se canja eu sabia o que era, só pra não falar igual (risos). Ah, muito engraçado.
P/1 – E essas festinhas, o que tocava, que músicas você ouvia que gostava?
R – Ah, mais tarde, né? Inclusive numa festinha tocava sempre samba-canção, bolero, essas coisas. Mas teve uma festinha que um rapaz veio falar que queria me namorar. Eu não tinha feito 15 anos ainda, eu tive a cara de pau de dizer: “Não, porque eu só vou namorar quando eu tiver 15 anos, eu ainda não fiz”. Eu era assim, muito decidida nessas coisas, pra namorar tem que ter 15 anos. Quando eu tinha 15 anos eu namorei escondido (risos). A gente tinha muitas regras, muita coisa.
P/1 – Você tinha uma música, um som que marcou a sua adolescência?
R – (canta) “Love Is a Many-Splendored Thing”. Essa e também a outra música do, aquelas músicas que a gente via nos filmes. E também tem uma música, naquela que o cara morre que vira um espírito? Qual é a música daquele filme? Que ele entra no corpo de uma negra que...
P/2 – Ghost.
R – Isso, do Ghost. Agora não me vem a música, mas aquela música foi demais, ela foi do começo do meu namoro. Mas os namoros naquela época eram bastante complicados, que aí eu tinha 15 anos. Quando eu tinha 18, que eu estava no terceiro colegial. Não, não, eu tinha mais, eu tinha 20, 21, eu estava na faculdade e aí eu namorei um rapaz que era judeu. Mas você vê como tudo era engraçado, eu estava na faculdade, ele estava na faculdade, eu estava no terceiro ano, ele estava no quinto e a turma do quinto ano um dia fez lá uma chopada no pátio, levou um elefante. E aquele elefante andava pra cima e pra baixo.
P/1 – Um elefante, elefante?
R – Um elefante. Elefante.
P/1 – Como que levaram?
R – Não sei, mas estava todo mundo lá fora vendo o elefante, tomando chope. E um amigo meu chegou e me falou: “Eu preciso falar com você” “O que foi?” “O Samuel pediu pra te perguntar se você quer namorar com ele” “Mas por que ele não me perguntou?” “Acho que ele ficou com vergonha, pediu para eu te perguntar”, o cara estava se formando em Arquitetura. Eu falei: “Manda ele falar comigo”. Nós começamos a namorar. E era um cara muito complicado. Eu tinha que ir ao IBGE uma vez e ele falou que então ia comigo. Foi logo no começo. Nós estávamos atravessando o viaduto do Chá, ele me falou assim: “Lia, eu não estou pegando na sua mão porque eu acho que as coisas têm que acontecer naturalmente, então eu não vou pegar na sua mão ainda” (risos). Bom, aí foi a formatura dele. Ele me falou assim: “Olha, tem a minha formatura, mas eu não posso te apresentar pros meus pais porque eles não aceitariam te conhecer, porque você não é judia. Então você me espera lá na saída” “Então tá”. Acabou, ele foi falar com os pais e tal, eu esperando do lado de cá, estavam o Fábio e a namorada também porque eles sempre tinham que andar junto comigo. Estava o Fábio Goldmann que era esse amigo que tinha pedido a minha mão pro Samuel (risos) e a mulher dele. Bom, nós fomos pra casa de um outro amigo dele, de um outro judeu, onde tinha uma festa. Olha como a coisa era, o pessoal vinha da cozinha com as bandejas, serviam o Fábio, serviam a namorada do Fábio, serviam os judeus. Eu e a Marlene que não éramos judias eles não serviam, eles faziam de conta que não viam. Era desse jeito. Bom, nós namoramos não foi muito, um ano e meio, por aí. Não, foi até menos, porque quando chegou o Natal eu ia passar o Natal na casa da minha avó com procissão e o escambau. Eu falei: “Não tenho condição de convidar o Samuel pra um Natal que tem procissão”. Ele não falou nada, eu não falei nada. No dia 26 ele ligou lá em casa. Eu falei: “Oi, tudo bom?”, ele falou: “Não, estou péssimo”, eu falei: “Por quê?” “Porque passei o Natal sozinho”. Eu falei: “Eu não ia te convidar para o Natal da minha avó, com procissão, com reza, não ia te convidar” “É, mas eu não gostei de passar sozinho”. Eu sei que à noite ele foi me buscar, nós saímos e ele brigou comigo (risos), por causa do Natal. Tudo era um pouco complicado.
P/1 – Você namorou com o 17 quanto tempo?
R – Dois anos.
P/1 – Foi seu primeiro namorado.
R – Foi.
P/1 – Dos 15 aos 17.
R – Foi. Meu primeiro namorado.
P/1 – E você passeava pela cidade, por São Paulo, você tinha essa relação de passear?
R – Passear pela cidade não. Mas por exemplo, a gente ia a bailes e voltava a pé pra casa, fazia essas coisas, porque você podia andar na madrugada livremente, pela ruas, não tinha perigo nenhum.
P/1 – E o Trianon, as pessoas frequentavam o Trianon?
R – As pessoas frequentavam, principalmente os namorados. Uma vez um guarda viu a gente se beijando, chegou lá e falou: “Para com isso”. Nesse dia eu fiquei bem mal, eu falei: “Só falta ele me levar pra algum lugar”, eu namorando escondido e o guarda vem achar ruim porque a gente está se beijando (risos). Era outro mundo, viu? Era bem outro mundo.
P/1 – Mas você tinha amigos no Dante?
R – Tinha amigas. E também fazia Atletismo, então duas vezes na semana a gente ia no Clube Pinheiros treinar Atletismo, eu gostava muito, era muito bom. Inclusive eu ganhei uma medalha de terceiro lugar de arremesso de disco no campeonato colegial.
P/1 – Você frequentava o Pinheiros?
R – Não, eu não era sócia do Pinheiros, eu ia com o pessoal do Dante pra treinar, a gente treinava lá. Aliás, nós morávamos muito perto do Paulistano. Eu tinha muita vontade de ser sócia do Paulista, pra ser sócia de um clube. Meu pai nunca deixou ser sócia do Paulistano, ele falou que não, que era um pessoal muito metido a besta e que não era pra ser sócio, ele nunca deixou. Meu pai e suas incongruências.
P/1 – Ele levava vocês pro cinema?
R – Ele não. A gente ia no cinema, primeiro com a empregada, quando nós éramos menores, depois íamos eu e o Fábio com algum amigo, alguma amiga, nunca ele levou. Ele levava sim, levava a teatro, levava viajar, levou a gente pro Rio, pra Buenos Aires. Mas o problema aí era o seguinte, eu tinha que 15 anos, o Paulo, meu irmão, tinha três, o caçula. E era um saco porque a gente fazia programa todo mundo junto. Eu estava morrendo de saudades do 17 lá em Buenos Aires e nós andando pela rua com o Paulo com três anos, outro com quatro e meio, era muito ruim. Mas a gente fazia coisas. Ia jantar fora, ia à restaurante, isso ia. Íamos tomar chá na Yara. Conheceu a Yara? Uma casa de chá na Rua Augusta. Mas era conhecidíssima, era chiquérrima a Yara. A gente ia lá pra tomar chá. Aliás, eu lembro muito bem do dia que inaugurou a loja do pão americano. Não tinha pão de forma até aquela época, era lá na Augusta, loja do pão americano. Foi minha mãe, minha prima, noiva do meu primo, que é bem mais velho, eu e um bando de gente comer pão americano (risos). Surgiram os supermercados, coisa também que não tinha antes, tinha empório, vendas, supermercado não tinha. Eu lembro bem de tudo isso, o primeiro que surgiu foi o Sirva-se e a Casa do Pão Americano, essas coisas.
P/1 – O Sirva-se ficava onde?
R – Tinha vários, mas foi a primeira rede de supermercado, Sirva-se. Porque antes não era isso, você tinha que ir lá e pedir pros caras as coisas. É como eu te falo, muita mudança. A gente foi criado de um jeito, criou os filhos de outro e vê o que os netos fazem agora é difícil. Difícil não, eu acho muito bom, eu acho que o mundo melhorou, não acho que o mundo piorou.
P/1 – E na adolescência? Você queria ser bailarina, depois quando foi ficando perto do vestibular tinha alguma coisa que você queria fazer?
R – Olha, eu queria ser psicóloga, eu acho que eu teria me dado muito bem como psicóloga. Mas aí foi uma campanha do meu pai, a Psicologia ainda não era uma carreira reconhecida. Aí foi uma campanha do meu pai: “Mas você não vai ganhar dinheiro com isso, Psicologia é uma bobagem, vai fazer Arquitetura”. Eu fui fazer Arquitetura. Na verdade nunca fui arquiteta, eu trabalhei com Urbanismo e adorei.
P/1 – Mas por que você escolheu arquitetura?
R – Acho que foi meu pai que escolheu pra mim, viu, pra falar a verdade.
P/1 – Mas você desenhava?
R – Não. Por isso que eu digo, eu nunca fui arquiteta, mas eu gostava muito de coisas de espaço. Eu fui urbanista, foi assim que eu trabalhei na prefeitura, como urbanista. Depois eu acabei coordenando a elaboração do Código de Obras, eu fiz coisas muito boas na prefeitura, tive trabalhos muito bons realmente.
P/1 – Mas aí vamos voltar pra essa época da faculdade aí. Foi chegando a época da faculdade, você fez era clássico?
R – Não, científico.
P/1 – Você fez o científico. E aí você fez cursinho preparatório?
R – Não. Eu prestei na FAU e não entrei, aí fui pra Itália com meus tios, com minha avó, nós ficamos três ou quatro meses fora, bastante; três meses com certeza. Aí eu cheguei em São Paulo em agosto, mas foi assim. Eu estava da cor de um carvão porque nós fomos de navio, 17 dias no Conte Grande, mais 17 pra voltar. Tomando sol no tombadilho no navio, 34 dias seguidos, fora o que a gente andou lá. Eu fui com uma prima da minha idade, foi o pai dela. Naquela época a gente punha o pé na rua, alguém gritava: “Le americane, le americane”, porque não tinha, as roupas eram muito diferentes, os sapatos, o jeito, dava pra reconhecer na hora que a gente não era italiana. E fomos muito paqueradas, inclusive, por conta disso. Uma vez nós entramos numa casa de sapatos, vieram dois rapazes, subiram e sentaram do nosso lado, na casa de sapatos. Consequência, não comprei sapato nenhum porque daí a pouco minha tias que vinham vindo, não comprei sapato, descemos, quando abriu a porta do elevador as tias falando em italiano com a gente e eles ó, fugindo. Uma outra noite em Veneza, estava 42 graus no sol, a gente não conseguia sair. À noite, em compensação, era muito bom porque isso foi, eu tinha 19 anos, olha quanto tempo faz. Não tinha o turismo que tem agora, era difícil, tanto era muito mais fácil, nós ficamos a um hotel em frente ao Canal Grande. Hoje alguém pode pagar isso? Mas naquela época dava. E aí nós vamos passear na praça em Veneza, todas as mesas fora, orquestras tocando, era outro mundo. E quando a gente estava voltando a maior lua no céu e tal, eu e a Ana Maria andando um pouco na frente dos tios. E dois caras atrás da gente. E falavam assim, perguntavam, o que será que a gente era, se nós éramos eslovacas, o que será que elas estão dizendo. Nós entendendo tudo, eles só falando italiano e nós entendendo tudo e falando português. Quando nós viramos e chegamos na porta do hotel, entramos correndo no hotel era no primeiro andar, tinha uma varanda, nós abrimos a janela e nos debruçamos na varanda, os dois estavam lá embaixo. O que eles fizeram? Entraram correndo no hotel. Nós entramos dentro da cama de roupa, nos cobrimos inteiras (risos), você já pensou se acontece alguma coisa, o meu tio aparece lá? Ia ser o caos, né? Então nós entramos de roupa e nos cobrimos.
P/1 – Você ficou esse tempo viajando.
R – Quando voltei, eu voltei em agosto. Era o tempo da gripe asiática em São Paulo. Eu não sei porque estava todo mundo doente aqui, nós chegamos, todos brancos, doentes e eu fui direto pro cursinho, pro Anglo Latino, que eu tinha começado, parei e fui lá. Com umas roupas italianas, como eu estou falando tinha muita diferença de roupa. Então eu cheguei negra, com roupas diferentes, eu chamei atenção de todo mundo no cursinho. Mas eu sentei no primeiro dia de aula eu comecei a cantarolar, o cara me mandou sair da classe, porque eu estava na sala cantarolando. Aí fiz o maior sucesso no cursinho e tal, mas aí...
P/1 – Você era popular?
R – Era, fiquei popular, porque eu apareci. Aí veio o primeiro, esses exames que fazem pra ver.
P/1 – Simulado.
R – Simulado. Tirei zero, em tudo. Isso já era agosto ou setembro. Eu falei: “Mas eu vou entrar porque eu não vou de novo ser reprovada”. Eu estudei tanto que eu entrei em sétimo lugar no Mackenzie, aí foi bom.
P/1 – E como foi o Mackenzie? Como foi essa entrada, como era o Mackenzie naquela época. Que ano que foi isso?
R – Eu saí em 62. 62, 61, 50, 59, 58. Foi 58, eu entrei em 58 no Mackenzie. Bom, uma classe, nós éramos 13 mulheres numa turma de 60, numa classe tinha dez, na minha tinha três, era por ordem alfabética, mas calhou, na minha só tinha três. Eu, a Maria Helena e a Sônia. A Sônia namorava o rapaz da engenharia, a Maria Helena namorava um colega nosso. Era eu contra a turma. Eu fiz uma turma de amigos lá muito grande, nós éramos cinco ou seis. Todos estudavam na minha casa. Nesse ponto a minha mãe era muito legal, fazia sanduíche, a gente combinava pra almoçar. E com eles meu pai deixava tudo, é o tal negócio, com eles eu podia tudo (risos). Nós fazíamos Senai à noite, no primeiro ano, no segundo, sei lá, acho que era Senai. Aprendia a pôr tijolo, a fazer cimento, aprendia essas coisas, diz que é pra depois aprender a ensinar. A gente tacava cimento com pá na parede, alisava, fazia tudo isso. E vinha sempre um deles me buscar, me levava, me trazia, na buena. Só não podia ir no cinema com o namorado.
P/1 – Mas você estava namorando nessa época?
R – Não, nessa época. Namorei muito, namorei muito dentro da faculdade. No primeiro e segundo ano não, no terceiro namorei o Samuel, o tal que era o judeu, aí quando eu estava no quarto ano quem entra na faculdade? O tal 17, entra lá. Aí ele ficou lá, deu em cima, deu em cima, um dia ele falou se eu queria uma carona eu falei que queria. Ele pegou a Alameda Jaú, parou em frente ao Parque Trianon, me tacou o maior beijo. Acabou de me beijar falou: “Eu estou noivo”. Falei: “Muito prazer, me leva pra casa”. E saiu da faculdade, ele entrou pra fazer isso comigo. Que depois ele se formou em Economia. Ele entrou na faculdade pra fazer isso, pra se vingar de mim. Ah bom, muito pouco tempo atrás eu já estava na Secretaria do Verde. Ele me ligou, falou: “Ah, consegui seu telefone com não sei quem. Vamos almoçar?”, eu falei: “Vamos”. Aí ele me pegou lá no Conjunto Nacional, que eu trabalhava lá, e nós fomos almoçar. E ele me falou um monte de coisas que eu não lembrava, que uma vez ele levou o pai dele lá na secretaria porque ele queria não sei que ajuda que eu não consegui dar. Não lembrava nada disso pra falar a verdade. Aí depois ele me levou de volta e falou: “Você foi a pessoa mais importante na minha vida naquela época”. Gostei de ouvir. Ah não, ele fez uma outra coisa muito boa pra mim. Eu tinha comprado um terreno em Maresias, porque o Fábio tem uma casa em Maresias e nós íamos passar todas as férias lá. Mas a casa começou a ficar muito cheia porque todo mundo passava todas as férias na casa do Fábio. Aí eu pensava: “Cabé, vamos comprar um terreno?”, e aí a gente comprou um terreno lá em Maresias também, que depois de um pouco mudou a lei do zoneamento, só dava pra acampar naquele terreno, não podia construir nada. Ou tinha que construir irregular, ia dar uma dor de cabeça, tal. Aí a Marília, minha prima, nos convidou pra ir pro chalé dela na Barra do Saí. O Cabé se apaixonou pelo chalé, me ligou na prefeitura e falou: “Comprei um chalé”. Eu falei: “Mas condomínio, não vou acostumar com condomínio”, ele falou: “Vou comprar um chalé”, eu falei: “Não vou acostumar com condomínio”. Ele falou: “Mas lá é tão bom, tem gente que limpa, que cuida”. Eu pensei rápido, eu falei, melhor ele comprar, se é o caso depois tem uma coisa pra vender, do que não comprar. Ele comprou, eu fiquei com aquele terreno micado em mãos. E o 17 conseguiu vender o terreno pra mim, pra imobiliária. Depois nunca mais o vi.
P/1 – E na faculdade que professores você teve? Que descobertas, o que você se identificou?
R – Tinha alguns poucos professores de quem eu gostei. A maioria, esses professores de fundações, de estruturas, o que eles fazem? Eles ensinam até um certo ponto. Porque aí você vai ser um profissional que vai precisar da firma dele. A maioria fazia isso, eles ensinam, eles mostram que eles sabem fazer, mas eles não te dão o pulo do gato. Aí na hora que você vai construir você precisa deles. Eles dão assessoria para um bando de gente. Não mais ou menos esse ambiente da faculdade eu vi depois no serviço público. Eu exerci cargos importantes, eu fui Chefe de Assessoria de uma comissão lá da Secretaria da Habitação e foi quando, inclusive, a Ermínia Maricato me nomeou pra ser coordenadora do Código de Obras. Mas era uma comissão assim, uma comissão por onde passam os problemas que não estão previstos em lei nenhuma. Então é uma comissão que analisa isso pra ver o que faz. Você já pensou o perigo e o poder dessa comissão? Vários que me antecederam compraram muitos tapetes persas, viajaram muito, só eu que não soube fazer nada disso, mas nem um whisky no fim do ano eu ganhei. Mas olha, aquilo lá era uma corrupção, não foi no tempo que eu estava e eu saí me dando mal de todos os trabalhos. Porque arrumei muito inimigo.
P/1 – Vamos voltar já pra comissão. Mas esse período da faculdade você tinha matérias de urbanismo já? Como era a grade curricular lá?
R – Não. Mackenzie não era uma boa faculdade no sentido que mais me interessasse. Tinha Projeto. Então por exemplo, você tem projeto de oito horas, você chegava às oito no Mackenzie, tinha que fazer um projeto e saía às quatro. Só que não tinha um bom professor de Projeto, não tinha. Eu sei que a FAU teria sido muito melhor. Era muito técnico o Mackenzie, dava muito cálculo, era muito técnico na verdade.
P/1 – Mas você passava, você conseguia ir bem nas matérias?
R – Passei, nunca peguei dependência, nem nada, passei direto.
P/1 – E você trabalhou junto na faculdade, fez estágio?
R – No último ano eu fiz um estágio. Meu pai me mandou num amigo dele que tinha um escritório de arquitetura, ele mandava desenhar tijolinho o dia inteiro nas fachadas dele. Eu falei não quero, saí. Depois eu fui fazer estágio no escritório do Badra. O Badra era meu colega de faculdade, o tio dele tinha um escritório de arquitetura onde ele trabalhava, aliás. Mas também eles não deixavam, não davam campo pra você crescer, tinha que ficar desenhando janelinha, tijolinho, essas coisas, queriam um ajudante pra fazer isso, mas você não crescia nada com isso. Isso foi mais ou menos, depois que eu me aposentei eu fui fazer um curso de desenho com o Rondino, lá perto de casa. Fui lá e ele dava o seguinte, pra começar era assim. Ele te dava um rosto de pessoa pra você desenhar e ele ensinou umas técnicas, você traçava coordenadas, aí você desenhava primeiro aquele pedacinho, depois o outro e tal. Eu me saí muito bem nessas cópias de desenho, inclusive ele falou que eu desenhava bem, eu falei: “Olha, eu sou arquiteta, mas tenho alguma facilidade a mais, provavelmente, do que os outros”. Mas aí chegou um dia que ele falou que ia dar desenho livre; deu lá uns elementos pra gente desenhar e ele falou que ia corrigir. Eu nunca vi corrigir desenho. Ele falou que ele ia corrigir, ele não concordou com o jeito que eu dispus alguma coisa e fez um negócio bem quadradinho. Aí eu saí do curso. Eu fui fazer um curso de pintura em cerâmica. A professora vendia a cerâmica já desenhada, não era o que eu queria. Fiquei lá uns dois anos, dois anos e meio, fiz um serviço de pratos, fiz vários presentes. Aí ela levou vidro pra fazer, vidro era muito legal porque o vidro não dá pra desenhar em vidro, então você pegava as cores e fazia do jeito que você queria, daí punha no forno e ficava lindo, isso aí eu gostei. Mas também não continuei, fiz dois anos e meio, eu falei: “Não, eu vou ficar desenhando coisa dos outros? Pintando o desenho dos outros?”, também parei. Eu nunca tive vontade de fazer um negócio muito quadrado.
P/1 – Na faculdade você fez esse estágio no amigo do seu pai?
R – Depois fui no Badra.
P/1 – No Badra.
R – Mas também não fiquei. Depois fui trabalhar com outro sim. A minha cunhada da época, ela trabalhava com um primo que era advogado e na mesma sala tinha um primo que era arquiteto, na sala ao lado. Então ela me arrumou pra ir trabalhar lá com esse rapaz. Eu não sei se eu era muito chata, mas eu também achei ele muito bitolado. E também não fiquei muito tempo lá. Quando eu me formei, eu com essa turma de amigos, resolvemos montar um escritorinho. Alugamos um imóvel lá perto do Mackenzie, compramos, eu tinha um estojo de compasso alemão, caríssimo, um papel vegetal alemão, pus tudo lá. Mas a gente não conseguia trabalho, na verdade. Ficamos lá esperando ver se entrava alguma coisa, não entrava nada, nisso eu casei. E fui pro Rio, fiquei um mês, 20 e tantos dias no Rio. Quando eu voltei eles tinham desmanchado o escritório, tinham sumido com meu compasso, com meu papel, com tudo. Aí foi bem mal isso daí, foi muito chato. E aí na verdade eu tinha, quando nós casamos o Cabé era muito duro e eu não estava trabalhando. E eu tive quatro filhos em cinco anos. Aí eu fiz de tudo, eu dei aula particular, aí eu fiz muita coisa nesse sentido de ganhar algum dinheiro.
P/1 – Vamos voltar um pouco. Quando você conheceu o Cabé, o seu marido?
R – O Cabé foi assim, eu era militante do PCB e ele também. Então teve uma reunião, do comitê universitário do PCB, nós éramos do comitê, teve uma reunião. E eu tinha ido lá, na verdade, ia encontrar um outro cara, chamado Nelson. Eu tinha que ir embora por alguma razão e o Nelson não tinha chegado. Eu falei: “Eu vou escrever um bilhete pro Nelsão, alguém entrega pra ele?”, o Cabé falou: “Eu entrego”. Aquele cara eu nunca tinha muito visto. Ele pegou o bilhete e começou a ler e todo mundo: “Ê, tá lendo o bilhete!” “Ah, desculpa”, ele fechou. Aí teve uma exposição de assuntos brasileiros, lá na UEE.
P/1 – O que é UEE?
R – União Estadual dos Estudantes. Era ali perto da Rua Santo Amaro, por aí. Ao lado do Teatro de Arena, então teve uma reunião lá. Nós estávamos fazendo cartazes. Estava tão calor que eu estava com um vestido de nylon de alcinha. E eu estava ajoelhada no chão colando, acabando os cartazes, colando coisas. De repente eu olhei pro lado, eu vi um capote que ia quase até o chão. Eu levantei os olhos e tinha uma pessoa dentro desse capote. Eu falei: “Você é do interior?”, só podia ser de outro mundo a pessoa. Ele falou: “Não, sou de São Paulo”. Eu falei: “E como você chama?” “Carlos Alberto”. Eu falei: “Hummm”. Ele falou: “Vamos tomar um café”. Nós fomos tomar um café e começamos a conversar. Aí foi o meu aniversário, aquele aniversário que foi um monte de gente. Ele foi ao meu aniversário e no dia seguinte ele me convidou pra ir ao cinema e nós começamos a namorar (risos). Levamos um ano e meio de namoro, noivado e casamento. Foi assim.
P/1 – Ele já era formado?
R – Que formado! Ele estava sempre no terceiro ano. E ele não contava pra mãe dele.
P/1 – E ele fazia o quê?
R – Engenharia, ele fez Engenharia na FEI. Mas ele fazia política, à noite ele ia pra esquina da Barão de Itapetininga com Ipiranga, ficavam lá discutindo até altas horas. Ele estava há três anos no terceiro ano. Ele falava pra mãe dele que ele ia se formar. Na minha formatura ela falou: “Logo é o Carlos Alberto”, eu falei: “Não é. Ele está levando a senhora na conversa, ele está no terceiro ano”. Aí eu fiz ele estudar de novo e ele voltou. O que eu desenhei de pontes rolantes, dava luz, tinha criança pequena, tinha que acordar cedo e à noite tinha que fazer os desenhos dele, que era o jeito. Eu tomava moderador de apetite à noite pra poder ficar acesa desenhando as pontes rolantes. Aí ele se formou (risos). Quando ele se formou eu estava grávida da Lelê.
P/1 – Mas ele trabalhava?
R – Trabalhava. Ele trabalhava no DAE, aliás ele se aposentou lá. DAE que virou Saec, que virou Sabesp.
P/1 – Ele era concursado?
R – Ele era, ele era concursado no serviço, era funcionário público estadual. Quando a Saec virou Sabesp eles pegaram funcionários estaduais e incorporaram no quadro da Sabesp, aí ele não é mais funcionário público, mas ele é funcionário da Sabesp.
P/1 – E vocês casaram e foram morar onde?
R – É assim.
P/1 – Vamos voltar. Como foi o dia que vocês resolveram casar, você lembra?
R – Bom, a gente estava namorando, o Fábio estava namorando e o Fábio queria casar. E começou a fazer a nossa cabeça: “Por que vocês não casam? Estão esperando o quê?” Eu tinha 24 anos, ele tinha 30. Um dia o Fábio me falou: “Você vai ter que morar com a sua sogra, ele é filho único. Vocês têm que casar e morar com ela”. Aí eu falei pro Cabé: “Vamos casar e morar com a sua mãe”, ele falou: “Ninguém mora com a minha mãe” “Mora, porque eu moro com a minha, por que eu não vou morar com a sua?”, ele falou: “Você não vai aguentar”. Eu pensei: “Alguma hora ele vai dizer: ‘Vamos morar com a minha mãe’”. Eu falei: “Então vamos fazer o seguinte, a gente casa e mora com a sua mãe, fica um ano lá. Se não der certo a gente já sabe que não dá certo e muda e nunca mais se fala em morar com a sua mãe”. Ele topou e a gente casou.
P/1 – Como foi o casamento?
R – Casamento foi uma baita festa, meu pai fez e tal. Mas quando nós voltamos do Rio, nós viemos de ônibus. Nós éramos bem duros naquela época. Bom, eu não estava trabalhando, ele era duro pra caramba. Quando nós chegamos na estação rodoviária, do lado de fora estavam a mãe dele e a tia dele, tinham ido nos buscar. E a minha mãe tinha dito: “Venham jantar aqui em casa”. Então a gente já tinha combinado que ia jantar na casa dos meus pais. Mas como eu morava na casa dele, nós já fomos pra casa dele. Fazia um calor, que eu não esqueço o calor. Aí eu fui pra cozinha, tinha um abacate madurinho, eu falei: “Vou fazer um creme de abacate”. Pus no liquidificador, bati o abacate e na hora de tirar o copo, a minha prática na cozinha era tanta que eu desenrosquei o copo. Desenrosquei o copo e levantei. Caiu todo abacate e a mãe dele: “Carlos Alberto! Vem ver o que a Lia fez!”, foi assim que começou a nossa vida. Aí nós fomos jantar na casa do meu pai, ela ficou quieta o tempo inteiro, foi um suplício. Voltamos pra casa, e ela tinha uma menina que estava criando, que até agora é a irmã do Cabé, a Márcia, que uma empregada largou lá, fugiu, ela ficou com a menina e depois ela adotou. Então quando chegamos em casa ela abriu a porta, pôs a Márcia pra frente, foi tum tum tum tum tum, batendo o pé, entrou no quarto dela e fechou a porta. Eu não acreditei. Eu cheguei e falei: “Cabé, que se sua mãe tivesse dito:
‘Seja bem-vinda’ já seria esperar muito dela. ‘A casa é sua’. Eu não achei que ela fosse falar nada disso. Mas bater a porta no quarto da gente sem ter dito ‘o papel higiênico fica em tal lugar’, eu achei demais”. Bom, aí foram três meses, dois meses e meio que a gente ficou lá. Infernais. Não sei se foi nessa noite ou na noite seguinte, ele tossiu à noite (tosse), ela bateu na porta: “Filho, você quer um chá?”, eu falei: “Tua mãe dorme em pé atrás da porta do nosso quarto?”. Bom, aí veio o carnaval e nós fomos pra Santos, pra casa de uns amigos. Quando nós voltamos eu abri a gaveta pra pegar uma camisola não tinha. Ela tinha arrumado todas as minhas gavetas, tinha mudado o lugar de tudo! Bom, realmente não deu. Aí ele alugou um apartamento na Lins de Vasconcelos e nós mudamos pra lá. Aliás, eu tive um aborto bem no começo. Eu tive um aborto e fui ao médico que disse que eu tinha o útero pequeno, invertido, e que provavelmente eu ia perder muitos antes de poder ter um filho. Aí nós mudamos. Eu estava grávida. E tive os quatro em cinco anos. Mas então assim, a gente mudou com a cara e a coragem. Depois que nasceu o Álvaro aí ela ia lá pra ver as crianças e tal e começou a melhorar. Mas uma noite nós queríamos ir numa festa e pedimos pra ela ficar lá, com o Álvaro e a Adriana, já tinha a Adriana, se ela ficava com as crianças. Ela falou que ficava, foi pra lá com a Márcia. Bom, eu era uma pessoa, os tais parafusos, eu era uma pessoa tão na boa que tinha uma mesinha na cozinha, eu arrumei lá pra ela e pra Márcia. Ela ficou tão ofendida que ela pegou a Márcia e foi embora. Porque eu tinha arrumado a mesa na cozinha. Era assim.
P/1 – O primeiro filho que você teve, qual é o nome dele?
R – Álvaro.
P/1 – Álvaro. O que mudou na sua vida depois que você teve o primeiro filho?
R – Ah, eu fui uma mãe apaixonada pelos filhos. Eu tinha muita vontade de ficar com os filhos mesmo. Tanto que até os quatro nascerem eu só cuidava deles. Só cuidava deles não é verdade, eu também arrumei uns trabalhos pra fazer. Ah sim, enquanto eu morava na Lins de Vasconcelos eu dava umas aulas particulares. Aí esvaziou um apartamento no prédio que meus pais moravam, lá na Baronesa de Itu. O deles era o andar inteiro e mais o terraço em cima, esse era metade do primeiro andar e nós marcamos pra mudar pra lá, pra minha mãe me ajudar um pouco porque eu já não sabia mais o que eu fazia. E no dia da mudança eu entrei no hospital pra dar a luz. Eu fui ao médico, era 13 de dezembro. Eu fui primeiro à Sears, sabe onde é agora...
P/1 – Shopping Paraíso.
R – Shopping Paulista. Eu fui lá acabar de comprar os presentes de Natal, o meu médico era na Cincinato Braga, fui ao médico, aquele monte de pacotes, ele falou: “Você está muito grande, acho que eu vou induzir o seu parto”, porque era pra nascer dia 24, 25 de dezembro. Eu falei: “Bom, pra que dia?”, ele falou: “Dia 21” “21 eu não quero porque é aniversário do meu irmão, eu não quero que meu filho nasça no mesmo dia que o meu irmão”. Besteira. Eu falei: “Então faça dia 22” “Dia 22 eu não posso, eu tenho seminário”. Ficamos discutindo dia, aí ele falou: “Vamos fazer o seguinte. Dona Palmira, põe a Lia na mesa para eu ver como é que está isso aí”. Me pôs na mesa e falou assim: “Você está com três dedos de dilatação. Dona Palmira, pega um táxi e leva todos esses pacotes pra ela. Vai na sua casa, pega uma camisola e vai pro hospital, liga pro Cabé e vai pro hospital”. As crianças tinham ficado com a minha sogra.
P/1 – Quem era esse que ia nascer?
R – Ia nascer a Lelê. Minhas crianças, Álvaro e Adriana, tinham ficado com a minha sogra. Eu fui lá e falei: “Olha, nós estamos indo pra maternidade”. Então, as crianças foram dormir com a minha sogra e a minha mãe ficou, a mudança estava marcada pro dia seguinte às oito da manhã. E o Cabé tinha um exame de fim de curso. Bom, eu dei a luz a uma e meia da manhã, fiquei sozinha na maternidade, o Cabé ficou mandando a mudança, minha mãe recebendo a mudança e as crianças na minha sogra. Naquela época a gente ficava três, quatro dias na maternidade, era um monte. Parto normal e tudo, os quatro foram normais. Aí as crianças foram pra lá, minha mãe e o Cabé mudaram pro apartamento novo, minha mãe estava lá no prédio, ficou lá com as crianças. E eu fui pra casa depois de quatro dias com um bebê no colo. A Adriana viu, eu tinha sumido quatro dias, eu chego com um bebê no colo, que chora, que eu dou de mamar. A menina pirou, ela teve febre, ela chorava feito louca e teve febre, tadinha. Então foi assim. Dez meses depois nasceu o Aloísio (risos). Bom, foi uma vida corrida. Aí eu mudei, não dava pra ficar com aquelas quatro crianças no apartamento, aí fui morar na Aclimação, você conheceu a minha casa na Aclimação, eu fui morar lá. Logo que eu mudei pra lá o Luli tinha um ano, na verdade. Eu tive um amigo na faculdade chamado Nedir, cuja irmã é Elenice e a mulher era a Marlene. O Nedir foi lá em casa com a Marlene dizendo que a Elenice e a Marlene, a Elenice tinha uma fábrica de brinquedos educativos com o primo dela, que era marcineiro, tinha vindo da Itália e fazia brinquedos educativos. Naquela época tinha brinquedos educativos famosos, da Astrid, conheceu ou não? Só tinha a fábrica dela. E elas estavam pensando em montar uma loja, mas como todos tinham filhos pequenos precisavam de mais uma pessoa, aí foram me convidar. Eu entrei nessa coisa dos brinquedos educativos, Faz de Conta chamava a loja. Era uma loja na Rocha Azevedo. Fez muito sucesso. E foi crescendo, foi crescendo. Aí teve uma ocasião que o José Olímpio se interessou, a editora, queria vender os brinquedos, mas queria uma produção maior e nós chegamos no seguinte impasse, ou aumenta a produção ou para, porque não tinha jeito, chega um ponto que você tem que crescer, não dá pra ficar parado em algumas coisas. Nesse momento o Nedir separou da Marlene; a Marlene e a Elenice brigaram, eu não podia comprar a parte delas, então desmanchou-se a Faz de Conta.
P/1 – Há quanto tempo existia a Faz de Conta?
R – Existia há uns três anos. Mas eu gostava muito dos brinquedos educativos.
P/1 – Você tem guardado até hoje alguns?
R – Não tenho. Mas aí a gente desenhava brinquedos, era muito bom. Eu fiz pras crianças, depois que os netos nasceram eu mandei fazer, porque as casinhas de brinquedo sempre foram uma coisa muito cara, aí eu mandei fazer com uma grade, quatro folhas assim, fechava, abria, mudava, uma parte tinha porta com janela, então eles aproveitaram pra caramba isso lá em casa. Foi muito bom, foi uma experiência muito boa.
P/1 – Aí o Cabé trabalhava fora...
R – Depois disso as crianças estavam na tal escola montessoriana e a diretora me convidou se eu queria dar aula de História para duas turmas. Então tinha que fazer uma frisa do tempo e dar aula de História pra eles, eu dei aula um ano lá. E uma professora, que era professora do Álvaro, me convidou. Ela ia abrir uma escola no Brooklin, ela falou: “Você não quer ir lá trabalhar comigo?”, eu falei: “Prestei concurso na prefeitura, estou esperando eles me chamarem” “Mas vá trabalhar comigo enquanto você espera te chamarem”. E eu fui lá. Eu trabalhei dois anos na parte da secretaria. No segundo ano, no segundo semestre a professora do terceiro ano saiu, ela falou: “Não tenho quem pôr, Lia, assume a classe”. Eu assumi uma classe de terceiro ano. Mas foi uma delícia, quando chegou o fim do ano tinha um menino que não falava, ele não era mudo, ele não falava. E ele falou comigo. Foi tão emocionante aquilo, a carta que essa mãe desse menino me escreveu foi emocionante. Quando chegou no fim do ano ela falou, fez reunião dos professores e falou: “A mais criativa de todas as professoras foi a Lia”, mas fui péssima em disciplina. Não pode ter disciplina e ser criativa? Não dá, as duas coisas não combinam muito. Aí quando foi a reunião de pais no ano seguinte quando eu saí, os pais de dois alunos que tinham lá falaram: “A tia Lia vai sair? A senhora sabe a sua responsabilidade de pôr alguém no lugar dela?”, foi um negócio fabuloso, foi uma experiência muito boa também. Mas aí eu fui trabalhar com o meu pai na publicidade de cinema. Aí meu pai tinha sido preso, foi aquele negócio.
P/1 – Mas aí você estava com as crianças pequenas?
R – Nessa época, 75, 76? Não eram mais tão pequenos. Dez anos, 11, 12.
P/1 – Aí que você foi trabalhar com ele na publicidade?
R – É, fui trabalhar com ele na publicidade. Aí eu estava saindo, eu e o Cabé íamos saindo uma manhã pra levar não sei quem, todos, pra escola, talvez dois ou três, sei lá, e vem subindo a escada o tio dele, o Lazinho, esse que era delegado. Veio subindo a escada, era cedinho, a gente parou e ele falou: “O Dante foi pego pela Oban”. Nunca senti uma sensação tão ruim. Ele foi preso e foi tudo isso.
P/1 – Aí você foi chamada pra esse concurso da prefeitura?
R – Eu fui chamada em 82 só. Só fui chamada em 82.
P/1 – E como era o cotidiano?
R – Eu estava fazendo laudos, porque tenho um amigo, é o Peluso, que hoje, aliás, a gente está em campos muito opostos, mas eles moravam na Aclimação, ele, a Lúcia e as crianças, quatro crianças também, um pouco mais novos que os nossos. Ele era juiz de uma Vara da Família e através das crianças, que eram muito amigas, nós acabamos ficando amigos, muito amigos. E aí chegou uma hora que ele me indicou pra ser perita dele. Bom, eu falei, eu não sei fazer perícia”. Ele falou: “Não, mas tem um amigo meu, ele é perito, ele concordou em você trabalhar no escritório dele, ele te ensina e você ajuda ele”. Fiz muitos anos de perícia, deu pra ganhar muito dinheiro, perícia é muito bom de fazer. Aí foi bom, eu ganhei bem nessa época e de repente me chamaram pra prefeitura. Depois que me chamaram pra prefeitura eu falei: “Peluso, como eu vou fazer? Eles estão querendo que eu pegue dedicação exclusiva pra ganhar mais”. Ele falou: “Pega, porque agora eu estou indo pro tribunal e não vai ser muito fácil te dar laudos”. E aí eu fiquei dedicação exclusiva na prefeitura.
P/1 – Que lugar da prefeitura você ingressou?
R – Na Secretaria da Habitação. Aí a gente trabalhou pra campanha do Fernando Henrique nessa época. O Madeira era o secretário e a gente trabalhou pra campanha do Fernando Henrique. O Fernando Henrique perdeu aí o Madeira falou: “Vai ficar complicado pra você aqui agora. Você quer ir trabalhar comigo na câmara?”, eu falei: “Quero”, fui pra lá. E era o ano da Constituinte. E eles tinham que se reeleger pra trabalhar na Constituinte. Deixa eu ver como foi. Tá, o Madeira queria se reeleger, eu estava no gabinete dele, mas ele não se reelegeu. Mas eu trabalhei na Câmara, mas eu não gostei do trabalho na Câmara, porque o trabalho lá é assim: “Ô Lia, Fulano apresentou um projeto pra fazer um hospital não sei onde, escreve aí algum projeto sobre algum assunto que inclua rim, por exemplo” “Sei lá, Madeira, não entendo nada de rim” “Liga para alguma médico e se vira”. Então os projetos eram feitos muito em cima do que Fulano apresentou, você tem que apresentar, tem que ser contra esse. Mas as alianças eram feitas com muitas pessoas. Nessa ocasião eu era muito purista, eu não aguentava os caras fazerem determinadas alianças. Fiquei dois anos lá. Abriram novos cargos lá na prefeitura e meu primo me telefonou, que ele trabalhava lá também: “Olha, estão abrindo novos cargos, eu se fosse você voltava pra cá porque você vai ganhar mais”, eu falei: “Então volto”. E voltei pra prefeitura. Na prefeitura, infelizmente, eu tive que acostumar a fazer acordo. Todo aquele purismo da Câmara acabou, porque na prefeitura não tem jeito, você precisa negociar, precisa fazer acordo senão você não faz nada. E foi um trabalho que num certo sentido me decepcionou também, mas decepcionou não, me botou o pé no chão.
P/1 – Mas você fazia o quê lá?
R – Eu era assistente nessa comissão que depois eu fui chefe de assessoria.
P/1 – Assistente?
R – Assistente técnica administrativa. Eu dava pareceres nessa tal comissão onde entram os projetos que não estão previstos em lei. E você tem que dar um parecer se pode ser aprovado, se não pode ser aprovado e dar toda a argumentação. Aí a chefe de assessoria entra na reunião com pessoas de fora, da sociedade, arquitetos, representantes de OAB, representantes do Sindicato de Arquitetos, representante do Secovi, tal. E esse grupo, a chefe de assessoria só apresenta o problema e esse grupo decide se coloca ou não coloca, se libera ou não libera. Nessa época eu era assistente, eu fazia os pareceres pra chefe de assessoria. Aí quando a Erundina ganhou eu estava na Ceuso e veio alguém me procurar e falou assim: “Lia, a Ermínia Maricato vem pra cá e ela está querendo falar com alguém, formar um grupo de estudos com alguém que seja da Ceuso e que tenha trabalhado no código do Madeira”. Ah, no tempo do Madeira a gente fez um código que não foi aprovado. “Então ela está querendo alguém que faça essas duas coisas. Você é que está nesse perfil”. Então comecei a frequentar as reuniões com a Ermínia e com aquela que é urbanista, a Raquel Rolnik. Foram feitas várias reuniões e chegou um dia que a Ermínia marcou no Sindicato dos Arquitetos uma reunião. Era véspera de Natal, pertíssimo do Natal, tanto que eu ia fazer o jantar de Natal pros meus filhos lá em casa, ainda não tinha netos, mas eu sempre fazia pros meus filhos antes porque Natal a gente ia na minha avó e tal. Bom, antes eu tinha marcado hora, às duas horas eu tinha marcado uma hora com uma astróloga. Conhece a Erani? Ela é ótima, ela é psicóloga e astróloga, mas é ótima astróloga! Amiga dos meus filhos, tal, eles iam muito lá, liguei e falei: “Erani, estou querendo uma consulta”, ela falou: “Então me dá seus dados que eu já faço o mapa astral, quando você chegar é mais rápido”. Eu fui lá. Eu entrei e ela falou assim: “Lia, estou aqui olhando seu mapa, estou muito contente por você. Porque você vai entrar numa mudança de vida, eu vejo você aqui com um trabalho, uma coisa muito impressionante, um sucesso, gente de todo lado, uma cidade inteira discutindo coisas que você vai fazer”, ela me falou tudo isso. “E você vai ter muito sucesso. Aliás, a sua vida particular vai ficar meio relegada porque você não vai ter tempo”. Aí falou outras coisas e tal, mas basicamente era isso. Eu saí de lá, fui às seis horas pra reunião com a Ermínia. A Ermínia falou: “Bom, vou tentar montar a minha equipe”. Eu tinha falado pro Lulinha, meu genro que é do PT, eu tinha falado que eu estava tendo reuniões com a Ermínia Maricato. Ele falou assim: “Bom, acho que não vale a pena eu dizer que sou seu genro”, eu falei: “Nem quero. Eu quero que as coisas aconteçam por mim e não por indicação de alguém”. Aí foi indo, foi indo, ela me convidou: “Eu quero que você seja Chefe de Assessoria da Ceuso e que coordene o Código de Obras”. Acabou a reunião eu falei: “Bom Ermínia, você me conheceu profissionalmente, agora eu quero que você me conheça pessoalmente. Eu sou sogra do Lulinha, mãe da Adriana”. Ah, aí foi aquela festa, foi super bom. E foi um tormento. Porque no tempo do Madeira eu trabalhei na comissão do código e depois fui trabalhar com o Madeira na Câmara. A Ermínia me convidou, mas desconfiou de mim o tempo inteiro. “Ah, você não sei o quê do Madeira”, mas desconfiou de mim o tempo inteiro, demorou pra ela ter confiança em mim. O Madeira me xingando porque eu tinha votado na Erundina e a Ermínia me xingando porque eu tinha trabalhado com o Madeira. Foi infernal. Mas a gente fez o código, foi o maior sucesso, foi o maior trabalho. Foi o único projeto daquela temporada que entrou na Câmara e foi aprovado.
P/1 – O que ele dizia, o que ele mudava em relação aos outros?
R – Ah, mudava muita coisa. O código anterior dava parâmetros. Por exemplo, um quarto tem que ter janela de tanto por tanto, uma sala tem que ter um círculo assim, assado, altura de não sei o quê, dava detalhes de projeto. E nesse código a gente tirou todos os detalhes de projeto partindo do princípio que você tem que ter um arquiteto pra construir. E a gente passou a dar parâmetros de desempenho. Então tem que ter uma iluminação correspondente a tanto e tal, você não falava mais em tamanho de janela. E regras muito rígidas pra segurança e vizinhança, aí a gente endureceu parâmetros de segurança e parâmetros de vizinhança. Agora, o que dependesse do projeto. Ah sim, e nós amolecemos também, abrimos mais pra habitação no interesse social. Então quando a gente começou esse tipo de discussão, apartamentos que a empresa privada faz, eles que se virem e o morador que reclame, não compre. Mas obras na periferia, auto construção, isso aí a gente tem que dar mais liberdade. E tinha sempre aqueles que falavam: “E o princípio de isonomia?”, tinha uma funcionária que falava o tempo inteiro: “E o princípio da isonomia?” “Bom, princípio da isonomia serve pra pessoas de realidades iguais, pessoas de realidades diferentes não têm princípio de isonomia”. Então a gente negociava com o Secov, com Federação do Comércio e das Indústrias etc: “Tá bom, a gente diminui esse parâmetro que você está querendo, mas você não se mete na habitação do interesse social”, e assim a gente foi negociando. Mas teve uma reunião que a gente exigia pelo menos um elevador que coubesse uma cadeira de rodas. E o cara falava: “Não, mas pra quê? A porcentagem de deficientes físicos é muito pequena”, mas nesse ponto eles não querem. Aí eu falei pra eles: “Inclusive, se você arrebentar a perna, sofrer um acidente, você passa a ser um deficiente físico e você não precisa entrar no elevador?” Mas uma guerra, você não acredita a guerra em cima de centímetros. Mas o código foi aprovado. Foi um trabalho muito bacana.
P/1 – Quanto tempo?
R – Quatro anos, foi aprovado no último ano. Ah, antes, quando o código estava pronto eu liguei pra Erani: “Erani, vê aí o que está acontecendo no meu mapa” “Pera um pouco. Olha, o que está acontecendo é que você vai colher o que você plantou”. Eu desliguei e falei: “O código vai ser aprovado”, e foi aprovado. Que tivesse sido só em termos de votos que ela tivesse feito deu muito certo, foi muito bom. Bom, aí entrou quem? Saiu a Erundina, entrou? Maluf ou Pitta?
P/1 – Maluf.
R – Maluf. Entrou Maluf. Aí eu tirei férias, pedi exoneração do cargo em dezembro e saí de férias. Voltei no fim de janeiro ou começo de fevereiro. Fui lá pra Ceuso, onde eu era alocada e falei pro novo chefe de assessoria: “Bom, o que eu faço?”, ele falou: “Olha, o pessoal não quer você aqui”, eu falei: “Imaginei, mas pra onde eu vou?” “Não, não querem você na Secretaria”. Eu falei: “Ótimo, vou ligar pra todos que trabalharam comigo no código pra dizer que agora vocês estão me expulsando da Secretaria. Vou ligar pra todos esses figurões que trabalharam comigo no código” “Não, então espera um pouco. Então deixa eu ver”. Foi até o gabinete, voltou e falou: “Olha, tem um lugar pra você ficar no Alnorm”. Alnorm era uma seção normativa, então onde os interessados iam lá fazer perguntas, você tinha que explicar o que podia, o que não podia e tal, então me mandaram pro Alnorm. Fui lá. Fui lá, comecei a trabalhar, eu sempre trabalhei com boa vontade, a verdade é essa. E aí depois de um pouco a assessora do gabinete veio dizer se eu não queria ser chefe do Alnorm. Mas eu estava cheia de toda aquela gente lá e eu liguei pro Madeira. “Madeira, você cansou de me convidar para ir trabalhar na Câmara com você, você tem lugar?” “Agora não tenho mais, mas o Werner fundou a Secretaria do Verde e do Meio Ambiente, ele vai fazer o Código Ambiental, então ele está precisando de gente, vou falar com ele”. Aí falou com ele e disse: “O Werner está te esperando lá”. Então saí da Sehab e fui pra Secretaria do Verde. Fui lá, o Werner falou para eu ficar lá na sala de assessorias, onde apareceu uma advogada e falou assim: “Ah, você veio da Sehab agora eu sei, mas vou te dizer uma coisa, eu vou coordenar o código e eu não preciso de técnicos”. Eu falei: “Bom, então o que eu estou fazendo aqui?” “Não, você pode ajudar, mas eu não preciso de técnicos pra fazer o Código Ambiental”. Eu falei: “Tá bom, vamos ver onde que o Werner vai me por porque agora eu estou aqui na Secretaria”. Aí o Werner fez uma reunião e começou a falar que eu tinha vindo, que eu ia trabalhar no código ambiental, que isso, que aquilo e a advogada repete: “Eu não preciso de técnicos”. O Werner falou: “Mas a Lia vai trabalhar como técnica”, ela falou: “Então eu passo pra ela o que ela tem que dizer e ela devolve pra mim, se eu gostar eu ponho, se eu não gostar eu não ponho”. Eu falei: “Doutor Werner, eu fui coordenadora do Código de Obras do município que foi aprovado. Não pode haver nada melhor pra mim em termos de currículo do que eu trabalhar no Código Ambiental. Mas eu não quero, eu não aceito, eu não estou aqui pra ser fritada”. Ele falou: “Aqui a gente não frita ninguém”. Eu falei: “Bom, não quero”. Aí ele virou pra um assessor dele: “Mario, então o código fica com você, você vai trabalhar na comissão do código”. Fui embora, aí a Fátima que era diretora de um departamento lá veio me falar: “Lia, o Mario pediu o seguinte, você não quer trabalhar na comissão você não trabalha, mas ele pediu para você dar todas as dicas pra ele que aí ele leva pra comissão em nome dele”. Eu falei: “Você é louca? Como você me pede um negócio desses? Eu vou dar a minha opinião pro Mário, o que eu sei eu passo pro Mário; o Mário põe lá como sendo coisa dele e aí na hora que der um pepino qualquer ele vai dizer que eu que fiz? Não vou” “Mas Lia, pensa bem, ele é o chefe de assessoria” “Não vou fazer, Fátima”. Então comecei na Secretaria do Verde meio torta. Aí eu fiquei num Departamento lá, Departamento de Educação Ambiental e Planejamento. Fiquei lá nesse Departamento que era muito esquisito, porque um Departamento ser Departamento de Planejamento, planejamento do quê? Planejamento da Secretaria. Mas o Departamento não pode planejar a Secretaria, o Planejamento tem que estar no gabinete, não pode ser o Departamento. “Não, mas aqui dá certo, aqui é pra ser do Departamento”. Bom, era um negócio muito esquisito. Aí eu comecei a ver que a Secretaria tinha sido formada uma panelinha, ela não tinha jeito de serviço público, aquilo ali era uma panelinha de amigos, um negócio meio estranho, e onde um falava mal do outro. Por exemplo, o tal do Mário que era muito amigo do Arlindo, que era o diretor desse departamento chegou um dia pra mim e falou: “Sabe que no carnaval o Arlindo se veste de mulher?”, coisas desse tipo! (risos). Bom, fiquei lá, fui trabalhando nisso e naquilo, chegou um dia. Ah, aí nós íamos fazer Agenda 21. Você chegou a ver ou saber o que é Agenda 21? Então é uma agenda com tudo o que seria necessário pra melhorar o meio ambiente do século 21. E ele montou uma comissão de Agenda 21, eu fazia parte do grupo que discutia o que era apresentado. Mas um dia o Arlindo me chamou na sala dele e falou assim: “Olha Lia, a Vânia e o Tarcísio, que são os coordenadores aqui da Agenda 21, são muito devagar. Você está na sala deles, por favor, faça com que, agiliza um pouco esse trabalho pra mim”. Tá bom. Cheguei lá e falei: “Vamos fazer uma reunião pra Agenda 21?”, ia ter uma reunião. Fizemos lá um monte de cadernos e convidamos uma porção de gente. Foi pouca gente, teve a reunião e eu falei pra eles: “Escuta o seguinte, quem não veio a gente vai mandar uma carta com o caderno dizendo: ‘Lamentamos a sua ausência, porém estamos encaminhando esse caderno para que você fique a par’”. Os dois fizeram uma cara muito feia, passados uns dias o Arlindo me chamou na sala de novo, os dois lá: “Olha Lia, a Vânia e o Tarcísio acham que você é muito rápida pra fazer as coisas, o seu ritmo é diferente do ritmo deles” “Você me mandou agilizar” “É, mas eles não estão se dando bem pra você porque o seu ritmo é diferente, então você fica fora da Agenda 21”. O Tarcísio e a Vânia saíram da sala, ele mandou eu ficar: “Você pode escrever textos pra gente publicar junto”, eu escrever e ele publicar, né? Eu falei: “Vamos ver”. Aí eu fui fazer um curso, uma pós-graduação de meio ambiente, isso era 95 já, fui fazer, foram dois anos na faculdade, ali na Doutor Arnaldo, não era na faculdade de Medicina, era na...
P/1 – Na Saúde Pública.
R – Na Saúde Pública. Fiz lá o curso. Bom, um belo dia eu estou lá super chateada com essa coisa do Arlindo, me telefonam do gabinete. Era a Gláucia, que era assessora do gabinete: “Lia, vem um pouco aqui conversar com a gente. É o seguinte, nós queremos que você seja Diretora do Depave, Departamento de Parques e Áreas Verdes” “Eu não sei nada de parques, como eu vou ser Diretora do Depave?” “Não, mas de parques o pessoal sabe, o que precisa é de alguém que saiba gerenciar, que saiba dirigir a coisa”. Eu falei: “Sei lá, não sei se eu tenho cacife pra isso” “Tem sim”. Aí me botaram como diretora do Depave. Então fizemos as coisas lá no Depave, aí o que aconteceu? Eu sei que depois eu fui diretora do Deapla.
P/1 – Mas o Depave você ficou quanto tempo?
R – Acho que uns dois, três anos. Aí mudou, o Werner saiu, o Werner morreu, entrou o Ricardo Ohtake, mudou o pessoal de lá e aí me puseram no gabinete. Do gabinete me puseram como diretora do Deapla. Aí foi interessante porque os meus amigos, a turma que tinha me chamado pra ser diretora do Depave, eu falei: “Vou ser diretora do Deapla”, aí eles falaram coisa do tipo: “Pra quê? O que você vai fazer no Deapla?”.
P/1 – O que é Deapla?
R – Departamento de Educação Ambiental e Planejamento. “O que você vai fazer lá? Departamento chato”. Eu falei: “Não acho, eu gosto do departamento”, mas tinha uma certa relutância de eu não pegar a diretoria do Deapla, mas eu peguei. Aí meu pai morreu, então foi 99. Meu pai morreu, eu faltei uma semana, quando eu voltei tinha tido uma coisa esquisita lá porque o pessoal de lá de dentro, do setor de educação ambiental tinha feito toda uma programação, mas alguém de fora pegou deles, foi um negócio todo atrapalhado. E eu tinha nomeado uma menina pra ser minha assessora, eu falei: “Me deixa ver o processo” “Não, não está comigo, está não sei onde”. Vários dias eu pedi: “Me deixa ver esse processo”. Um dia não teve jeito, ela me deu o processo. Era a maior sacanagem, tinham arrancado folhas do processo. Tinha a maior sacanagem lá dentro por quê? Pra favorecer gente que tinha firma de educação ambiental, tiraram os de lá de dentro, puseram a firma, estava a maior sacanagem. Com folhas arrancadas. Eu tive que exonerar imediatamente a Emi, que era amiga daquela turminha que não queria que eu fosse pro Deapla, exonerei a Emi e aí o que aconteceu? Aí o Régis, quem era Régis? Prefeito. Aí o que aconteceu? Caiu, eu nem lembro, tanta confusão. Aí caiu o Maluf, caiu o Pitta.
P/1 – Pitta.
R – Entrou por três dias um tal de Régis. Régis não lembro do quê, eu lembro da cara dele, mas não lembro do quê. A hora que ele caiu mudaram todos os diretores e aí o que foi ser secretário lá do verde me chamou: “Lia, me conta um pouco o que está acontecendo, isso, aquilo”. Contei pra ele o que estava acontecendo no Deapla, contei da sacanagem que tinham arrancado folhas de processo. Aí ele me falou assim: “Olha Lia, você já tem cargo incorporado”, porque depois de um tempo você incorpora o cargo, passa a ganhar sempre como se estivesse no cargo, “Você já tem cargo incorporado, eu estou precisando do seu cargo pra dar”, não sei pra quem ele tinha que dar, “então você não se importa, eu vou tirar o cargo de você”. Eu falei: “Não me importo, porque se a gente incorpora e tem que ficar no cargo acho isso uma sacanagem porque a gente já incorporou”. A hora que eu incorporei o cargo de chefe de assessoria eu me considero chefe de assessoria. Bom, me tirou, pôs a outra lá. Pôs a outra pra ficar de acordo com aquele negócio de educação ambiental, pra acertar, ele era um dos interessados. Eu não sabia, fui contar tudo pra ele. Bom, mas isso durou três dias, depois de três dias volta tudo ao que era. Voltei pra diretoria do Deapla. E aí era o Ricardo Ohtake que era o secretário. E aí tinha uma verba pra fazer educação ambiental, mas essa verba que tinha azarado com os colegas de educação ambiental. E eu como diretora do Deapla eu tinha que autorizar a usar essa verba. Eu falei: “Não autorizo. Sou contra o jeito como isso foi feito”. E aí o cara, o Zeca era meu colega do Mackenzie, morreu. Bateu a cabeça, escorregou no chuveiro, bateu a cabeça. Bem mais moço que eu. O Zeca era do gabinete do Ohtake. Ele me ligava todo dia: “Lia, tem que liberar aquela verba” “Zeca, eu não vou liberar, eu já falei por quê, já expliquei por quê, eu não vou liberar” “Mas nós temos que gastar a verba”, eu falei: “Não sei, eu não vou liberar”. Ele ligava de novo: “Lia, tem que liberar aquela verba”. Eu falei: “Zeca, façamos o seguinte. Eu não vou liberar a verba. Me tira do cargo e põe alguém que libere, eu não vou liberar” “Ah, mas quem?” “Quem eu não sei, põe quem você quiser”. Ele me tirou do cargo, pôs uma outra pessoa lá. Dias depois a Marta ganhou a eleição. Guardaram o processo, não fizeram nada (risos). Muitas aventuras. Ah, aí depois entrou o Geraldinho, né? Entrou a...
P/1 – Stela Goldestein.
R - Stela Goldestein como Secretária e chamou o Geraldinho como Chefe de Gabinete e ele me chamou pra ser assessora dele. Aí foi a melhor época que eu passei na prefeitura, foi maravilhoso. Foi muito bom trabalhar com essa turma. Quando a Stela saiu e entrou a Adriana Diogo, a Dri tinha me dito: “A Adriana Diogo não gosta nem de mim, nem do Lula”. Eu falei: “Sabe o quê? Vai mudar tudo de novo, eu vou ter que...” Porque o que aconteceu? Eu já tinha uma idade que eu era a tia da prefeitura, eu era a avó da prefeitura e cada vez entrava gente mais nova, mais nova, claro. E entrava os caras, entraram duas pessoas, um casalzinho lá no Depave, porque eu voltei pro Depave, porque quando muda você volta pro seu lugar de origem, eu estava no Depave. Eles me olhavam torto porque eu tinha exercido cargo no tempo do Pitta, porque eu tinha exercido cargo no tempo de não sei quem. Eles me olhavam torto e faziam só coisa assim, porque eu não era do PT. Um dia eu falei pra eles: “Escuta aqui, eu não era do PT porque quando eu comecei a fazer política o PT não existia, dá pra vocês entenderem isso? Eu era do Partidão, não era do PT. Depois também não vi necessidade para me filiar a partido, eu estou junto com o PT, mas não estou filiada. Mas vocês falam de uma coisa que vocês não sabem, eu fui pra rua apanhar, eu distribuí panfleto, eu pichei muro. Quer dizer, qual é a de vocês?” Bom, aí eu tinha que voltar pra lá, onde eram eles de novo, eu falei: “Ge, não aguento, vou me aposentar”. E aí esperei fazer 65 porque mudava não sei o quê lá no valor de qualquer coisa e me aposentei. Então é isso.
P/1 – E o que mudou na sua vida depois que você parou de trabalhar.
R – Depois que eu me aposentei?
P/1 – É.
R – Eu adorei me aposentar. Porque na prefeitura o trabalho em si foi bom, mas eu saí da Seabe um monte de gente me detestando; eu saí da Secretaria do Verde, um monte de gente me detestando. Porque se você pega a coisa, se você é honesta, se você não faz muita falcatrua, eu não lembro de ter feito nenhuma, mas as pessoas te olham feio. E eu estava cansada do clima do serviço público. Então eu saí e falei: “Agora eu vou fazer coisas que eu quis fazer a minha vida inteira e não fiz, não tive tempo”. Aí fui fazer isso, aula de desenho, aula de pintura em cerâmica, ginástica não sei como. Estudei um pouco de teclado, um pouco de piano. Depois fui fazer Pilates. Eu vim morar aqui perto dos meus netos, então toda quarta eles jantam na minha casa, começaram a me solicitar um pouco mais. Nunca me arrependi de ter me aposentado. Agora ultimamente, você leu um livro chamado "O Homem que Amava os Cachorros”? Quando eu acabei de ler esse livro eu falei: “Eu preciso estudar. Eu quero estudar Política”, por isso que eu fui ver a faculdade de sociologia política. Não deu, eu fiquei com muita vontade de estudar depois que eu li esse livro. E aí agora me inscrevi na Casa do Saber, faço Pilates, é isso.
P/1 – E o seu marido também se aposentou, como é a relação de vocês?
R – Ele se aposentou antes de mim. Quando ele falou que ele ia se aposentar eu estava fazendo terapia ainda. Eu falei pra minha terapeuta: “Ele está dizendo que vai se aposentar. Eu não vou aguentar esse homem em casa”. Ela falou: “Mas ele tem o direito de se aposentar. Ele trabalhou o número de anos suficientes que ele pode se aposentar, ele tem esse direito”. Eu falei: “Ai meu Deus, mas vai ser infernal ele lá em casa”. Mas não foi porque eu ainda trabalhava muito e ficava muito pouco em casa, eu ficava muito fora de casa. E o Cabé, a gente teve muitas diferenças na vida, mas a gente tem umas semelhanças que eu acho que são básicas, depois de muitos anos de casado. A gente gosta das mesmas pessoas, a gente gosta dos mesmos programas. E eu acho que agora nós somos dois aposentados, eu acho que está muito bom.
P/1 – Você adquiriu uma casa na praia, você acabou, como que era? Você comprou lá junto com a sua prima.
R – Não junto, ah sim, ao lado.
P/1 – No mesmo condomínio.
R – Então, a vida inteira eu tinha vontade de ter uma casa na praia porque eu amo praia. Aí o Cabé falou que ia comprar aquela, logo que ele se aposentou ele ia ter dinheiro pra isso. Ele comprou, aí eu adorei. Eu falei que eu não queria condomínio, mas achei tão bom. Eu ia pra lá pelo menos dois fins de semana por mês, quando não ia três. Mas isso nos aproximou muito, foi tão bom isso. Porque eu falava: “Cheguei na minha casa agora”. Porque em São Paulo a gente mora em casa alugada, nós nunca tivemos uma casa em São Paulo. E às vezes dá a louca nele e ele fala: “Mas a gente tem que ter uma casa, eu tenho que comprar uma casa”. Agora ele parou de falar, mas até um tempo atrás, quando ele falou: “Eu tenho que comprar uma casa” eu falei: “Não Cabé, você tem que comprar um túmulo, ninguém vai comprar uma casa nessa idade. Casa nós temos, está lá na praia, não precisa comprar uma casa em São Paulo. Não está ficando louco, nem nada”. Mas ele é aflito, ele é aflito com dinheiro, se ele não conseguir ganhar dinheiro. “E se acontecer alguma coisa?”, eu falo: “Se acontecer alguma coisa nós temos quatro filhos que estão bem e nós temos uma casa na praia que a gente vende. E temos o nosso salário. O meu não cresce desde 90, então cada ano eu ganho menos, mas o seu cresce todo ano. A gente não tem problema, Cabé”. Eu não consigo me preocupar. Tenho menos arruelas, mas não consigo me preocupar, ele gostaria que eu me preocupasse muito, que eu arrancasse os cabelos. Faz um ano e meio ou dois anos que nosso aluguel subiu de dois pra quatro, então ele fala: “O aluguel subiu muito, agora eu não posso guardar o dinheiro que eu guardava”. Eu falei: “Tá, vamos guardar menos”. Daí a pouco o aluguel subiu muito. Ontem à noite ele falou: “O aluguel subiu muito”, eu falei: “Cabé, subiu muito há dois anos. Você não consegue absorver isso?” “Não, eu quero mudar para um lugar mais barato”. Eu falei: “Eu mudo. Se você procurar sozinho, se você encontrar, mas faz a conta do condomínio, faz a conta de tudo. E se nós coubermos, a família inteira, numa sala, senão não mudo”. Então assim, a gente vai levando. Com o passar dos anos as coisas vão ficando mais fáceis, não mais difíceis, pelo menos pra mim. Você não tem mais tanta expectativa, aí você não se desilude, porque você não sei ilude mais. Você vai gostando das coisas do dia a dia, as coisas de pé no chão, você vai gostando mais dessas coisas. Mas ainda gosto muito do cinema, teatro que nós temos ido pouco. Ainda estou interessada em estudar, ainda estou bem (risos).
P/1 – E os netos? O que mudou, qual é a diferença de
ser mãe pra avó?
R – Olha, quando o Martin nasceu, vou te falar só isso, quando o Martin nasceu, se eu tivesse qualquer aborrecimento no trabalho, em casa, qualquer coisa, imediatamente eu pensava: “Não faz mal porque agora tem o Martin”. É muito, é um amor muito grande por netos. Adoro eles. E eles vão lá em casa, eles gostam, eles jantam. Às vezes o Martin liga, ele sai da USP e fala: “Vó, está um trânsito tão ruim, eu posso ir descansar na sua casa?” Vai lá, deita na cama, entra dentro da cama e faz a maior bagunça, depois quer sempre comer um ovo, come pra ir embora. A Marília às terças-feiras almoça lá também porque tem alguma coisa li perto. Esse ano as meninas não têm ido tanto porque estão estudando pro cursinho. Mas é muito bom. Domingo estavam todos lá, que eu fiz o lanche do Cabé. A Bia com o namorado, a Luísa com o namorado, todos muito à vontade, é bem do jeito que eu gostaria que fosse e foi. Bem legal.
P/1 – Lia, olhando a sua trajetória de vida tem muitas coisas que a gente deixou de falar porque a memória é seletiva, fica o convite pra você voltar quando você quiser. Você gostaria de deixar registrado algum assunto que a gente não tocou e você gostaria de dar uma entrada nele?
R – Olha, acho que basicamente nós tocamos em tudo. Tocamos na infância, tocamos na juventude, tocamos na parte política. E do trabalho. Quer dizer, basicamente acho que nós tocamos em tudo.
P/1 – Olhando a sua trajetória, teria alguma coisa que você faria de forma diferente?
R – Eu já pensei isso, mas eu acho que não. Eu me sinto realmente uma pessoa realizada, uma pessoa que, olha, acho que sempre a gente poderia ter feito alguma coisa diferente, isso não quer dizer que o diferente fosse melhor, você não sabe. Então eu fico com o que eu tive, acho que ficou bom.
P/1 – Quais são seus sonhos hoje?
R – Meus sonhos hoje? Ir pra Portugal, que não conheço. E ir pra Rússia, que eu não conheço. São os meus sonhos hoje. E se eu não for logo não vai dar pra ir. Eu gosto muito de viajar. Não tenho maiores sonhos, meu sonho é poder viajar. Agora a primeira viagem que eu quero fazer, e estou com muita saudade disso, é de ir ao Rio. Faz muito tempo que eu não vou e isso é um sonho possível, facilmente realizável. Tenho muita vontade de ir ao Rio passar três, quatro dias.
P/1 – Lia, o que você achou de contar sua história aqui pro Museu, registrar sua história?
R – Olha, eu acho que qualquer pessoa que passe dos 70 tem uma história pra contar. E se as pessoas se dispuserem a ouvir eu acho que é bom, sempre dá pra tirar alguma coisa. Eu acho que principalmente quem viveu épocas tão distintas como a gente viveu, muita diferença, muita mudança. Eu acho que é interessante, gostei.
P/1 – Queria agradecer a sua linda história, escutar.
R – Obrigada vocês.
P/1 – Obrigada.
R – Tá, tchau.
FINAL DA ENTREVISTARecolher