Plano Anual de Atividades 2013 – Pronac 128.976 Whirlpool
Depoimento de Espedita Saldanha dos Santos
Entrevistada por Marcia Trezza
Cordeirópolis, 16/04/2014
WHLP_HV008_Espedita Saldanha dos Santos
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Karina Medici Barrella
P/1 – Espedita, nós vamo...Continuar leitura
Plano Anual de Atividades 2013 – Pronac 128.976 Whirlpool
Depoimento de Espedita Saldanha dos Santos
Entrevistada por Marcia Trezza
Cordeirópolis, 16/04/2014
WHLP_HV008_Espedita Saldanha dos Santos
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Karina Medici Barrella
P/1 – Espedita, nós vamos começar a entrevista. Fala o seu nome completo.
R – Espedita Saldanha dos Santos.
P/1 – Onde você nasceu?
R – Missão Velha, Ceará.
P/1 – Que data você nasceu?
R – Primeiro de fevereiro de 63.
P/1 – Qual o nome dos seus pais?
R – José Domingo Saldanha da Silva. A mãe, Rosa Maria da Silva.
P/1 – Seu pai trabalhava em quê?
R – Meu pai era vaqueiro.
P/1 – Vaqueiro!
R – É. Que hoje é Peão, né? Lá no Nordeste chamava vaqueiro.
P/1 – E você lembra como do seu pai?
R – Eu lembro do meu pai, ele trabalhava, tirava o leite das vacas lá na fazenda, amansava cavalo e trabalhava na fazenda pra sustentar a família, né? Que eram dez irmãos, então a atividade dele era tirar o leite das vacas pra sobreviver.
P/1 – As vacas eram de vocês?
R – Não. A gente era meeiro, né? Aqui chama caseiro, lá é meeiro. Então, ele fazia essa atividade, cuidava do gado da fazenda.
P/1 – Vocês moravam nessa fazenda?
R – Morávamos.
P/1 – Como ra sua casa nessa fazenda?
R – Minha casa era de madeira, chama pau a pique, que é feita de barro com as varinhas. Minha casa era essa, o chão era de terra batida, não tinha piso que nem tem hoje azulejo, era chão batido.
P/1 – E vocês ficavam fazendo o quê na casa? Como que vocês ocupavam essa casa?
R – Era tudo simples, não tinha os móveis que têm hoje. Era cadeirinha de madeira, tamborete que falava. Na minha infância comecei também muito cedo a trabalhar na lavoura.
P/1 – Na lavoura?
R – Com oito anos de idade, morava com meus pais. Fiquei um tempo com meus pais, depois minha mãe teve um problema muito sério de doença, a gente ficou com os avós. Ficamos dois anos. O médico falou que minha mãe tinha uma doença, que ela era tuberculosa. E ela não era tuberculosa, mas os exames que ele falou, quando fez o laudo médico, falou que ela tinha um problema de saúde, então ela tinha que ir pra uma clínica em Fortaleza, que é perto do Ceará. Ela ficou dois anos fazendo tratamento nessa clínica e nós continuamos com os avós. Quando ela voltou, eu e meu irmão mais velho, não quisemos mais morar com a minha mãe, porque estávamos acostumados com o ritmo dos avós, né? Os outros seguiram o caminho com o pai e a mãe, e eu e meu irmão mais velho ficamos com os avós.
P/1 – Que idade você tinha nessa época?
R – Oito anos. E daí a gente pegou muito amor nos avós, então ficamos com os avós.
P/1 – Era perto da casa que sua mãe morava?
R – Era perto. Só que meu pai era muito viajante, viajava bastante, aí começou a arrumar indústria e meu pai continuou na lavoura, na mesma fazenda. O meu pai foi pra outra cidade, até hoje ele não mora lá, mora em Picos, no Piauí.
P/1 – Por que seu pai foi mudando de cidade?
R – Porque ele enjoou de ser vaqueiro. Meu avô sempre foi agricultor e continuou na agricultura, plantando milho, algodão, arroz, feijão. E meu pai foi procurar indústria, procurar firma. A Queiroz Galvão lá no Ceará, que tem aqui no Estado de São Paulo, a Queiroz fazia trecho de estrada, né? Entãoele apelou pra ser trabalhador, de ter registro, ter direito em carteira. E eu continuei com meus avós até casar.
P/1 – Até casar?
R – Até casar.
P/1 – Você disse que trabalhava na roça.
R – Trabalhava.
P/1 – E você continuou trabalhando na roça quando morava com seus avós?
R – Continuei. A gente plantava. Eu fiquei, aí não tive muito estudo porque na época não incentivava as pessoas em ter o estudo que tem hoje, então eu continuei “carpinando”, plantando, fiquei na lavoura.
P/1 – E você tem quantos irmãos?
R – Nós somos em dez irmãos.
P/1 – Dez irmãos. Alguns mudaram pra cá?
R – Não, só eu, a única.
P/1 – Só você veio pra cá.
R – Só. Todo os nove ficaram lá.
P/1 – E seu pai também conduzia o gado, ou não, ele só trabalhava com as vacas?
R – Conduzia. Ele tirava o leite, levava pro pasto pra pastar, cuidava de cavalo bravo, amansava também.
P/1 – E você tem alguma história, algum acontecimento junto de seu pai na época que ele tava amansando cavalo?
R – A história que eu sabia, que a turma falava era que ele era um vaqueiro muito bom, cuidadoso. Ele cuidava da vaca com carinho, do cavalo, ele amansava, não judiava do animal. Tinha um carinho pelos animais, cuidava muito bem.
P/1 – E sua mãe trabalhava?
R – Minha mãe é só do lar mesmo.
P/1 – Do lar, depois ficou doente, né?
R – Depois ficou doente e continuou. Assim mesmo era uma mulher muito sábia, bem estudada. Pela dificuldade que era, ela era muito estudada. Gostava muito de fazer novena.
P/1 – Ah, é?
R – Muito devota dos santos. Uma mulher sábia mesmo.
P/1 – E você aprendeu alguma coisa com ela?
R – O que eu aprendi muito com ela foi na parte de culinária, de comida.
P/1 – É mesmo?
R – Ela amava cozinhar, né? Então depois que eu me formei, casei, assim, me formei moça, casei, tudo, aí eu via ela na cozinha fazendo as comidas com o maior prazer, fazia um arroz bem feito, um feijão, uma salada, uma carne, uns doces caseiros muito bem feitos, caprichosa. Gostava das coisas dela no detalhe, limpinha, arrumadinho.
P/1 – Ela?
R – É.
P/1 – O que você aprendeu de culinária com ela?
R – Aprendi a fazer o frango caipira, polenta, bolo. Os doces não são iguais aos dela, mas eu tento fazer (risos).
P/1 – Que doce gostoso que você faz que aprendeu com ela?
R – O doce de banana dela não tinha pra ninguém, era muito bom. Doce de goiaba, ela fazia um doce delicioso, muito bom.
P/1 – Esses você aprendeu.
R – Aprendi. Não fica como os dela, mas... Eu acho que eu faço igual a ela as comidas.
P/1 – Ah, é?
R – As comidas que ela fazia eram muito boas. Todo mundo, até hoje, que nem aqui mesmo a gente faz e o povo elogia, fala que a comida tá boa, gostosa.
P/1 – Essa herança você trouxe.
R – É. Ela fazia uma comida muito bem feita, caprichosa. Era uma pessoa bem cuidadosa com o que fazia.
P/1 – E, Espedita, você foi morar com seus avós. Que lembranças você tem nessa época que você morou com eles?
R – Muito boa. A minha avó também, como era da roça, camponesa, não teve estudo, mas ela ensinava muito bem. Ela falava: “Olha minha filha, nunca pegue no que é dos outros”, que é roubar. “O que é dos outros é dos outros, a gente tem que trabalhar pra gente conseguir as coisas da gente. Nunca ser desonesto, não mentir e querer só aquilo que você suou”, isso é uma lembrança muito boa, aprendi muito, porque não estudei, mas tenho uma dignidade, o que é meu é meu, o que é dos outros é dos outros. Ela ensinava muito bem essa parte. Você viu, foi numa casa, tem um brinquedinho jogado lá: “Não pegue, não é seu, tem dono”. E se chegasse com qualquer coisinha, assim, que estava jogada no mato, ela fazia devolver. Eu lembro que eu era criança, eu passei longe numa casa, um desses talquinhos de bebês jogado longe numa casa, uns cinco, seis metros da casa. Cheguei com aquele talquinho, que já tava até enferrujando que era de lata, assim: “Onde você achou isso?” “Achei lá perto da casa do Fulano” “Você achou? Não é seu. Vai lá devolver” “Mas ninguém viu, tava jogado no lixo” “Mas não é seu, vá lá”. Tive que ir lá, devolver, tava longe da casa, ninguém nem viu, tava jogado, porque ninguém queria mesmo aquilo mesmo mais. Fez eu ir lá devolver aquele frasquinho de talco velho, enferrujado: “O que é seu é seu, o que é dos outros é dos outros. Não pega. Se você tá pegando a pessoa tá vendo”, ela não deixava.
P/1 – Espedita, você disse que você continuou trabalhando na roça, mesmo com seus avós. Como era o seu dia? Conta um pouco.
R – Era difícil, né?
P/1 – Conta a rotina.
R – A gente muito jovem ia pra roça “carpinar” lá, carpir; não, carpir é aqui, lá fala carpinar. Então, a gente saía cedo porque a roça era longe e ficava o dia inteiro.
P/1 – Você saía com quem?
R – Saía eu, minha vó, minhas tias, ficava o dia inteiro no roçado “carpinando”.
P/1 – E só trabalhava. Tinha alguma brincadeira quando vocês iam pra roça? Nada?
R – Sim, tinha. Aí na colheita do arroz, que era época da lavoura, a gente cantava, que chamava os versinhos, né? Pra colher o arroz cantando. Então ali passava o dia inteiro cantando.
P/1 – Você lembra alguma música?
R – Eu lembro.
P/1 – Canta pra gente!
R – “Chora bananeira, bananeira chora. Chora bananeira que amanhã eu vou embora” (cantando). E aí: “O anel que tu me deu sexta-feira da Paixão era flor chupa meu dedo e apertou meu coração” (risos). Tudo era assim pra passar o dia, né? Aí já era na colheita. A gente fazia esses versinhos que eram pra passar o dia. Tem mais, né? Tem a do papagaio louro e aí cantava.
P/1 – Canta só mais uma!
R – “Ô lê lê ô papagaio, ô lê lê ô, papagaio louro” (cantando). Ali a gente ficava feliz, né? Era o dia inteiro, cantava várias, várias. Tem muitas bonitas, que a gente cantava pra passar o dia e não ter tristeza porque às vezes a água dava no joelho, colhendo aquele arroz. O borrachudo picava as pernas. Então minha avó dizia: “Quem canta seus males espanta. Vamos cantar”. Então a gente cantava.
P/1 – E iam só as mulheres no arroz?
R – A maioria era, porque os homens eram pra baldear porque era pesado, né? Baldeava nas costas, quem não tinha burro fazia os balaios, né? Então as mulheres cortavam e os homens baldeavam. Quando era colheita de mulher; quando era de homem, cortava o arroz pelo pé, refazia o varal, torcia assim e pá, uma lona debaixo e daí os homens faziam aqueles feixãos e batiam no varal. Aí colhia, levava. Quando era no cacho não, era com uma faquinha, assim, e ia colhendo cachinho por cachinho, enchendo os balaios e os homens baldeando.
P/1 – Interessante, cada um colhia de um jeito.
R – É. Quem tinha mais mulher colhia cachinho por cachinho. Quem fazia mutirão de homem colhia pelo pé, cortava pelo pé embaixo, levava no varal e torcia, batia. Fazia um feixo, tacava, fazia um varalzinho assim, com as varinhas. Fechava com as lonas, forrava e batia o dia inteiro o arroz.
P/1 – Era trabalhoso.
R – Muito trabalhoso, mas era gostoso. O pessoal tudo inocente, não era que nem hoje. Hoje tá bom também, se o povo souber aproveitar as oportunidades que tem, né?
P/1 – Espedita, e as brincadeiras? Você tinha alguma brincadeira que você gostava?
R – Ué, a gente brincava muito pouco, porque trabalhava muito, chegava e tinha as outras atividades, era buscar água no rio, buscar lenha pra fazer a janta. Às vezes, quando ia nas novenas que brincava um pouquinho de “passa anel”, aquelas brincadeiras de roda, que cantava, andavam modo de moça e passava o anel, outra hora era brincadeira de roda. Cantava as musiquinhas que inventava, né? Moça e rapaz pra poder paquerar, assim, paquerava só de piscadinha porque não podia se aproximar, então: “Vamos brincar de anel!” “Vamos brincar de cair no poço!”
P/1 – Como é que é cair no poço?
R – Aí falava: “Caí no poço!” “Quem me tira?”, aí apontava o Fulano. “Ah, o Fulano é seu bem” “Não, não é esse”, a brincadeira já era pra poder se aproximar da pessoa que você tava gostando, mas era um gostar escondido.
P/1 – Mas aí dizia assim: “Esse não”, até chegar naquele que você queria.
R – É. Ia fazendo a brincadeira até chegar naquele que você tava a fim. Aí fazia pra trás: “Quem caiu no poço?”, aí o Fulano vinha tirar, que você tá no poço (risos).
P/1 – Aí te levantava.
R – Tirava do poço, né? Pegava nos braços e tirava do poço, que era a brincadeira. E tinha a de roda que eu não lembro muito, mas eu cheguei a brincar de roda.
P/1 – E aventura, Espedita? Teve alguma aventura quando você foi pegar água no rio, alguma coisa, algum acontecimento assim?
R – Ah, tinha muitos, né? A gente pegava o cavalo dos outros pra montar. Tinha medo de montar, mas montava dentro da água, porque dentro da água você não cai do cavalo e o cavalo também não anda muito. Então, a gente pegava o cavalo do vizinho pra montar dentro d’água (risos).
P/1 – E aconteceu alguma vez alguma história?
R – Ninguém nunca conseguiu nos pegar pegando o cavalo do vizinho (risos).
P/1 – E dava pra andar?
R – Dava. Juntava lá as mocinhas e ia andar de cavalo (risos).
P/1 – E depois, quando você foi ficando moça como é que foi?
R – Fui ficando moça, comecei a namorar.
P/1 – E o primeiro namorado, você lembra?
R – Meu primeiro namorado era negro, que ainda tava morando com minha avó, mas ela não queria. Minha vó era negra, mas racista: “Você não vai namorar com aquele pretinho lá!” “Ah, mas a senhora é pretinha” “Não, não quero”, não deixava de jeito nenhum. Aí namorei “uns par” de tempo escondida, uns seis meses.
P/1 – E ela dizia porque ela não queria?
R – Porque o rapaz era preto, era negro.
P/1 – Só isso.
R – É. “Não quero que namore com aquele negro.” Mas o rapaz tinha outros defeitos, né? Que diz que a mãe dele era viúva, e ele que sustentava a casa. Então, ele saía da casa dele, deixava tudo trancado, deixava só a conta de fazer. E minha avó tinha muita fartura dentro de casa, ela dizia: “Você vai passar por necessidade”. Ela botava que era por causa da cor, mas tinha isso também que falaram pra ela, que ele trancava os alimentos pra não mexer, só era a continha que ele ditava pra fazer. Se tirasse um quilo de arroz, era aquele que era pra fazer, nem mais, nem menos. Então ela dizia: “Não dá, chega a namorar, casar com uma pessoa que vai limitar o que você vai fazer?”, então ela pegou raiva e não deixou. Aí acabei desistindo. Ele soube também que ela não queria e falou: “Não, se sua avó não quer, eu também não quero”. Eu chorava, gostava dele.
P/1 – Você gostava dele.
R – Gostava. Chorava, chorei muito tempo. Depois fui esquecendo, ele casou primeiro do que eu. Fiquei solteira, ainda andei namorando.
P/1 – Agora pra se divertir quando vocês eram jovens?
R – Escondido.
P/1 – Escondido?! Conta como era.
R –A gente falava que ia na casa de alguma amiga (risos), que ia para uma reza que tinha o terço e falava: “Ó, nós vamos no terço, nós só voltamos amanhã”. Ia ter o terço, a moda de viola e tinha o reizado, né? A gente falava: “Ó, vai ter na casa da Fulana”. Tinha uma mulher chamada Morenita, ela era muito divertida. “Deixa as meninas irem, dona Ana” “Não, mas elas não podem sair de casa, moça tem que dormir em casa” “Não, não tem nada, não”. A gente ia. Só que a gente passava a noite era no baile dançando! Aí meu pai também sempre falava pra minha avó: “Filho meu que dançar eu quebro as pernas”. E nós dançamos muito! Por debaixo dos panos, quietinha.
P/1 – E ela nunca descobriu?
R – Veio descobrir depois que nós falamos. Depois que casamos, nós falamos: “Ih, nós dançamos muito” “Mas como, que vocês não saíam de casa?” “No terço, lá onde nós íamos rezar, nós íamos dançar” “Ah, mas se eu soubesse que vocês não iam, eu não deixava vocês irem num negócio de rezar”. Aí lá namorava, paquerava. Paquerava escondido.
P/1 – Que tipo de música que era?
R – Forró.
P/1 – Forró?!
R – Forrozão de pé de serra, que fala. Naquela época só era forró o que tinha. Forró, bolero, samba não era muito pegado na época, não. Era mais forró mesmo.
P/1 – E lá que você conheceu seu marido ou não?
R – Não. Meu marido eu conheci na porta da minha casa.
P/1 – E como foi?
R – Depois de adulta, eu fiquei um pouco com meus pais. Estava tendo uma festa na cidade minha, Missão Velha, e meu pai estava em outra cidade atrás das firmas que ele trabalhava. Aí eu falei pra minha mãe: “Eu vou lá na casa da minha avó hoje”, eu tiha uma tia doente, e eu ia fazer uma visita. “Ah não, não vai não” “Deixa eu ir, mamãe”, chamava mamãe. Até hoje é papai e mamãe, eu não tenho mais mãe, minha mãe é falecida. “Ah, mamãe, deixa eu ir” “Vai não. Ah, vai lá ver sua tia”. Cheguei lá, tava na casa da minha avó, meu marido ia saindo da casa que era vizinha e ia pra casa da mãe dele. Eu olhei e falei: “Nossa, que moço bonito!”, e tava noiva com um primo.
P/1 – Você?!
R – É.
P/1 – Noiva?!
R – Noiva de um primo.
P/1 – E aí?
R – Só que eu não gostava do primo. Eu tava noiva por estar mesmo, mas não gostava muito, não. Aí ele passou, eu fiquei olhando, ele me olhou também. Eu falei: “Hum, achei a minha tampa”. Eu falei: “Esse eu não tinha”. Entrou na casa da irmã dele e ficou de olho também, ele viu, trocamos olhares. E à noite eu falei: “Eu vou na casa da irmã dele”, que morava de frente. Cheguei lá, já tava me esperando lá, atrás da porta, que ele viu quando eu saí da casa da minha avó e entrei na porteira, ele viu e ficou escondido atrás da porta. Quando eu peguei na porta pra abrir, ele pegou na minha mão. E falou assim: “Ê moça bonita, quem é você?”. Eu falei: “Eu moro aqui”. Ele falou: “Eu tou sabendo”. Aí eu faleei: “Meu Deus”, a bem dizer tava quase noiva, tinha tirado a medida da aliança, só não tinha apanhado, mas a aliança tava fazendo. Aí eu fiquei: “E agora?”. Não voltei mais, só mandei recado pra minha mãe que eu não ia mais morar com ela, que ia ficar morando de novo com a avó.
P/1 – E o noivo?
R – Aí o noivo soube, procurou, procurou a outra cidade, não me achou. Quando veio me achar, eu já tava era casada, já. Mas falou um monte. “Mas como é que pode, a gente ia casar! E a aliança que eu mandei fazer?” “Dê pra outra, ora!”. Eu já tava era grávida, menina, dessa menina aí. Ficou bravo. “Nunca esperei”, eu digo: “Mas você também não queria, só queria me enrolar”. Tava noivo e também namorava escondido. Aí eu paguei com a mesma moeda. Aí achei esse rapaz, casamos, só alegria.
P/1 – É mesmo?
R – Tivemos seis filhos, estamos juntos até hoje.
P/1 – Como ele chama?
R – Antônio.
P/1 – E você tem meninos e meninas?
R – Eu tenho duas filhas e quatro filhos.
P/1 – Você disse que estudou só a primeira série.
R – Só.
P/1 – Como era essa época, Espedita?
R – Era na época que saiu o Mobral, que era difícil. Lá só estudava quem era filho de quem tinha dinheiro, fazendeiro, quem tinha uma boa carroça, um carro para levar pra cidade. Então, filho de pobre, morador, não estudava não porque era longe, difícil o acesso pra cidade.
P/1 – E o Mobral você já era mais velha?
R – No Mobral eu tinha 12, 13 anos.
P/1 – Lá mesmo.
R – Lá mesmo. Aí eu fiquei uns cinco, seis meses, mas não consegui aprender. Assim, aprendi a fazer o nome, conhecer as letras, mas não sei juntar... Tem palavra que eu leio, pequena, mas nem todas.
P/1 – Espedita, quando você saiu da sua cidade?
R – Eu vim pra Cordeiro... Primeiro eu vim pra Araras.
P/1 – Você veio direto do Ceará pro Estado de São Paulo?
R – Foi. Casei e fui direto pra Araras.
P/1 – Logo que você casou?
R – Não. Eu tinha uns três anos de casada.
P/1 – E por que vocês vieram, resolveram sair de lá?
R – Começou a ficar muito difícil, o marido era da roça também e falou: “Vou procurar coisa melhor”. Porque começou a dificuldade, ele perdeu as terras que tinha, que era de herança. Ficou sem ter onde morar também.
P/1 – Por que ele perdeu?
R – Porque a terra era da avó, e tinha muito herdeiro. E pra dividir a herança teve que vender. O pouco que tocou pra ele, só deu pra comprar uma casa na cidade, então ele ficou muito desgostoso e veio pra Araras.
P/1 – Por que vocês vieram pra Araras?
R – Pra procurar vida melhor, né?
P/1 – Sim, mas por que Araras?
R – Porque foi indicado, já tinha parente morando aí, e já estava trabalhando, tinha local. Então Araras foi a solução, porque já tinha primo que já morava aí e tudo. Então foi a saída, Araras.
P/1 – E a viagem, vocês vieram como?
R – De ônibus.
P/1 – De ônibus. E como foi essa viagem?
R – Boa. Nessa empresa Itapemirim, uma empresa boa, confortável, tudo.
P/1 – Vieram só os dois ou já tinha filhos?
R – Já tinha três filhos. Primeiro ele veio, arrumou trabalho, arrumou casa pra morar e depois de um ano foi que eu vim. Eu vim depois.
P/1 – E você continuou trabalhando mesmo casada?
R – Não. Aí eu fui cuidar dos filhos, da casa e dele. Porque tinha dó de deixar, não tinha creche, que era sítio também.
P/1 – Vocês moravam no sítio?
R – Morava no sítio. Ele trabalhava pra um fornecedor de cana, então cortava cana e eu ficava em casa pra lavar, pra passar, fazer comida e cuidar dos filhos.
P/1 – Vocês plantavam cana no seu sítio mesmo?
R – Não. A cana era de fornecedor, ele era empregado. A cana era do patrão, não era nossa.
P/1 – E no sítio de vocês, vocês plantavam na época?
R – Não. Na época não, a gente só trabalhava com arroz, feijão, milho, algodão.
P/1 – Pra vocês mesmo?
R – Pra nós mesmos.
P/1 – E vocês vieram pra Araras. Quando você chegou em Araras qual foi a sua impressão?
R – A minha impressão era de muito medo, porque eu não tinha parente. Ele tinha, eu não, então era difícil porque eu não conhecia ninguém, outros costumes, né? Pessoal muito bom, mas eu tinha medo, longe de pai, de mãe, de irmão, então, era difícil. Aí fui encontrar frio, muito frio na época. Ser morador dos outros, saber respeitar os outros, que a gente sempre soube, mas era assim, as culturas eram diferentes. Mas aí eu fui me acostumando, fui me adaptando.
P/1 – O que era muito diferente na cultura?
R – Assim, a fala do povo. A gente, nordestino, falava bem arrastado. Os paulistas bem explicado, muitos tiravam sarro do jeito que a gente falava. A gente sempre falava diferente, cada cidade tem seu modo de falar. Tinha hora que eu ficava constrangida, porque eu falava: “Ai meu Deus, vim de tão longe, as pessoas com outros costumes”, aí ficava meio encolhidinho. Mas aí foi acostumando, foi acostumando.
P/1 – Você ficou morando na casa de algum parente?
R – Não, quando eu vim, ele já tinha arrumado casa na fazenda mesmo. Eu fui diretamente pra uma casa.
P/1 – E ele veio trabalhar com o que aqui, Espedita?
R – Cortar cana.
P/1 – Cortar cana também. E como era esse trabalho, Espedita?
R – Ele saía cinco horas da manhã, ganhava acho que por metro a cana, era carteira registrada e tudo. O patrão pagava os direitos certinho e tinha emprego a cada seis meses; seis meses tinha emprego, seis meses ficava fazendo bico. Quando acabava a safra, aí ele ficava desempregado, mas o patrão não dispensava.
P/1 – Não dispensava?
R – Não, porque daí chegava o próximo corte, tinha que estar ali pra cortar de novo.
P/1 – Mas só ganhava quando cortava.
R – É, só ganhava quando cortava. Daí o resto dos meses ficava livre pra fazer bico. Sempre aparecia colheita de algodão, carpir o mato, tem laranja, abanar café, recortar cana pra planta de outros. Quando o patrão tinha, segurava; quando não tinha: “Pode arrumar bico”, então fazia bico até chegar a outra safra de novo.
P/1 – Vocês moravam na fazenda dele?
R – Na fazenda dele, do Euclides, aqui em Araras. A gente morou com ele uns cinco, seis anos.
P/1 – Só vocês ou tinha outras famílias?
R – Tinha mais nordestinos que vieram. Os primos dele, que eram tudo primo-irmão, tinha uma família muito grande, inclusive tem ainda hoje em Araras. Aí morava tudo na colônia, chamava colônia de casas.
P/1 – E como vocês vieram pra essa região que vocês moram hoje? Por que vocês vieram?
R – Por causa da necessidade, assim, de vida melhor. É uma ilusão também, né? Porque meus irmãos, ninguém quis vir e estão tudo vivendo lá, têm emprego, tudo.
P/1 – Eu digo de Araras pra cá.
R – Pra cá?
P/1 – Como foi essa mudança?
R – Surgiu o acampamento.
P/1 – Conta um pouco dessa história, com um pouco mais de detalhe. Como é que vocês ficaram sabendo, como vocês vieram?
R – Foram várias reuniões. Lá tinha o Sindicato dos Trabalhadores, em Araras, e daí fizeram seis meses de reunião.
P/1 – Só dos trabalhadores na cana ou geral?
R – Não, aí eu já tava na cidade. Eu morei sete anos num bairro, eu já tava na cidade e apareceu a oportunidade de fazer reunião pra quem queria um pedaço de terra, que tinha Horto desocupado pra fazer reforma agrária mesmo. Aí fui participando das reuniões, das conversas, fui gostando. Vizinho da gente já tinha um assentamento, inclusive eu fui convidada pra ir lá e não quis, porque eu tinha muito medo, né?
P/1 – Você não quis ir onde?
R – No acampamento vizinho. Porque o povo falava que tinha muita morte, povo cortava de facão, então eu tinha medo. Depois que surgiu a reunião eu vi que as terras lá saíram, tudo. Aí meu marido, como ele tinha o sonho da terra, que ele tinha perdido na mocidade dele, ele falou: “Essa é a hora da gente ir”, falei: “Vamos, não” “Vamos!”. A gente conversou e decidiu. No começo nós fizemos 16 mudanças de barraco.
P/1 – Dezesseis vezes vocês mudaram?
R – Aham.
P/1 – Foi uma ocupação primeiro?
R – É, a gente ocupava. Teve um fazendeiro de Mogi Mirim que falou: “Ah, eu perdi minhas terras, por causa que eu não paguei o imposto e minhas terras estão lá”. Nós já estávamos acampados, ele falou: “Vocês têm que ocupar lá”. Nós ocupamos, e a terra era do banco! Só que ninguém sabia, ele botou nós de bucha na terra, a terra tinha dono. Ele disse que tomaram a terra dele, mas se tomou, porque ele não pagou algum imposto, dívida, né? Eu sei que a gente ficou muito tempo nessa terra lá, aí teve que arrumar outra. Fomos pra uma beira de pista, ficamos uns cinco, seis meses na beira de pista. E só rodando! Depois apareceu outro.
P/1 – E você já tinha os seis filhos?
R – Já tinha, tudo pequenininho.
P/1 – E como era pra você morar com eles?
R – É difícil, a gente fazia o barraco de lona. Chegava, tirava bambu, tinha lona, comprei uma lona muito boa, fazia os barracos e morava. Deixei casa, deixei tudo pra trás.
P/1 – E o que você pensava quando você se via nessa situação?
R – Ah, eu pensava, assim, que eu tava naquela vida, porque eu queria. A gente conversou e eu concordei de ir, e que o sonho pela terra, né? Tinha um sonho de conseguir a terra. Aí a gente ficou na luta nove meses acampados.
P/1 – Nove meses.
R – Nove meses.
P/1 – Em quantos lugares diferentes?
R – Ah, 16, será? Nós ficamos na divisa de Minas, ficamos pro lado de Mogi Mirim, Mogi Guaçu, Espírito Santo do Pinhal, na divisa de Minas nós ficamos também. Aí apareceu outro rapaz dizendo, outro dono de uma terra: “Ah, eu tenho uma terra e quero que vocês vão pra lá” “Ah, mas é fria” “Não, a terra é minha”. Só que tava de briga também com a mulher. Só que a terra era dele, mas estava numa confusão lá, não sei, de inventário, sei lá. Nós ainda ficamos uns três meses nessa terra também. Depois só era confusão desse homem com essa mulher, até hoje ninguém sabe porque eles brigavam tanto, porque ele queria, acho, tomar a terra da mulher. Briga por causa de terra de vizinho, né?
P/1 – Teve mais gente que falava pra vocês irem ocupar a terra?
R – Então, teve, né? Porque era uma liderança que já era acostumada a fazer ocupação e tinha dado certo. Então nós estávamos na certeza, era sofrido, mas nós estávamos na certeza que íamos pegar a terra.
P/1 – Você acreditava naquilo.
R – Acreditava. Eu já tinha largado tudo pro alto, emprego, casa, tudo. Nós estávamos ali pro que desse e viesse.
P/1 – E ele também continuava trabalhando ou não?
R – Não. Ficamos os dois desempregados, eu e ele.
P/1 – E como fazia pra sobreviver?
R – A gente fazia campanha de alimentação nas ruas.
P/1 – É um movimento?
R – Sim.
P/1 – Qual o movimento?
R – O Sindicato dos Trabalhadores lá de Mogi Mirim.
P/1 – E era junto do Movimento dos Sem Terra ou não?
R – Ele apoiava o trabalhador, que o sindicato era dos trabalhadores. Ele apoiava nas campanhas, mandava o carro de som.
P/1 – Eles quem?
R – O sindicato. Levava a gente pra rua pra fazer as campanhas de alimentação.
P/1 – Mas o Movimento dos Trabalhadores sem Terra não participou.
R – Não. Fomos só nós mesmos. O movimento que tinha era só nosso. Nós não quisemos o MST.
P/1 – Por quê?
R – Porque a gente já tinha começado com o sindicato, então a gente não quis o MST, porque tinha coisa que a gente também não concordava. A gente já tinha o nosso movimento, a nossa liderança, então ficamos só com o sindicato apoiando, a CUT apoiava.
P/1 – E teve algum momento que marcou? Tudo isso marcou muito, mas um especial?
R – Teve um que marcou muito, foi num dia que a gente chegou a liminar, que a gente tinha que sair e a gente já tava muito cansado de fazer mudança. Aí naquele dia eu ajoelhei eu e mais outras senhoras e pedimos a Deus que a gente tinha que achar uma solução. Porque a gente já estava cansado de fazer barraca, desmanchar. Aquele dia que a gente desmanchou essa barraca, a gente não tinha solução, o que ia ser de nós. Aquele dia marcou muito porque estava todo mundo, eu ajoelhei, fechei meus olhos e fiz uma oração, pedi a Deus ter misericórdia e mostrar uma solução, porque eu tava envolvendo meus filhos que não tinham nada a ver com isso, eram inocentes, era tudo pequeno, aquilo me marcou muito. E a gente foi pra beira de uma pista.
P/1 – Sem nada?
R – Sem nada. E cansado, já tava muito cansado, debilitado.
P/1 – E o que aconteceu?
R – A gente ficou nessa pista.
P/1 – Acampou de novo.
R – Acampou de novo, ficamos lá um par de tempo, até cansamos, já tava sócio da beira da pista. Mas lá era aquele sofrimento, porque o povo passava, já era na divisa de Minas. O povo passava e xingava. “Ô seus vagabundos, vocês querem terra pra vender! Vocês não vão pegar terra nunca!” “Ah, vão trabalhar seu bando de marginal!”. A turma passava e xingava. Ficamos uns três meses nessa pista, a turma dizia: “Vamos sair daqui, que aqui não vai ter futuro nenhum”. A gente foi conversando e soube desse horto aqui.
P/1 – Quantas pessoas eram, mais ou menos?
R – Quando saiu a ocupação, não sei se eram 250 ou 300, era nessa faixa aí, era muita gente. Foi carreta levar as coisas do pessoal. Tinha gente que tinha sido despejado de casa, porque não aguentaram pagava aluguel. Não era nossa situação, a gente tinha onde morar, era sonho mesmo da terra que meu marido tinha. Eu nunca tive terra, sempre fui moradora, mas ele tinha o sonho de conseguir o que ele tinha perdido por causa de herança, que a herança foi pequena e a avó dele, a mãe, que era uma das moradoras, teve que vender essa terra.
P/1 – Aí vocês souberam daqui do Horto.
R – É. Aí a gente começou a pesquisar e num documento a gente achou aqui. Pesquisa, em conversa com pessoas de instituto de terra, acabou falando disso aqui. A gente já tava desesperado mesmo e falou: “Agora nós achamos o lugar ideal”. A gente veio, pegou varinha de pescar, disfarçando, porque os sem-terra são perseguidos. O povo fala que o sem-terra é ruim, mas ele é perseguido quando tá na luta. Vem muita gente querendo usar a gente. A gente serve de laranja pros outros. O povo leva a gente pra alguma coisa dizendo que é pro bem e acaba sendo uma emboscada, tem tudo isso. E daí a gente pegou, era umas oito horas da manhã, o pai da minha nora falou assim: “Vamos pegar umas varas de pescar, um garrafão de água, um sacão e nós vamos pescar”, passamos na casa dele na cidade. Só que não era pescar nada, viemos aqui ver. E chegamos aqui, porque tinha foto daqui, tinha tudo que puxou pela Internet. Nas secretarias em São Paulo tinha foto, tinha tudo e nós falamos: “É lá que nós vamos”. A gente veio, entrou por cima, andou tudo e falou: “Aqui dá pra fazer uma reforma agrária”. Aí a gente veio.
P/1 – Você era uma das lideranças, Espedita?
R – Eu era. Eu trabalhava na cozinha, liderava a cozinha.
P/1 – Mas você diz: “A gente veio”. Você veio junto fazer essa...
R – Vim, eu fui uma das que veio ver, fazer a volta, olhar. Chegamos no posto, conversamos com as pessoas, fizemos algumas perguntas, eles responderam. E a gente caiu pro meio (risos).
P/1 – Aí foram lá, buscaram as pessoas que estavam...
R – Aí a gente foi. Só que daí, do nosso grupo já tinha gente fazendo o mesmo movimento, saiu de dentro do grupo e veio, fez o mesmo movimento. Quando nós chegamos com as pessoas aqui, já tinha outros que fizeram outro grupo, se reuniram, rachou o grupo e veio. Quando nós chegamos, não queriam nos deixar ficar.
P/1 – E o que você acha disso?
R – Eu achei uma covardia, né? Porque se a gente tava todo mundo junto, todos lutando por aqueles que fizeram isso e eles, pelas nossas costas, saíram de dentro do acampamento e vieram fazer isso, eu achei uma bela covardia isso. Porque nós estávamos lutando pelo direito de todos, agora vocês pegam e vêm querer só pra vocês? Porque os que se juntaram, 20 famílias, dizendo que nós não cabíamos, os outros que ficaram pra trás. Eu falei: “Nós estamos tudo no mesmo barco, estamos todos sofrendo a luta da terra. Como vocês fazem isso e não querem nos deixar entrar?”
P/1 – Vieram 20 antes e não queriam deixar os outros.
R – Vieram 20. Saíram três do nosso grupo. Arrumou três do nosso grupo e arrumou outras famílias que não tinham nada a ver e botaram na casa lá. Quando nós chegamos nós tivemos a surpresa, já tinha gente. Dos nossos que não queriam dividir a terra com nós!
P/1 – Mas eram três só de vocês?
R – Eram três que se juntaram a outras famílias. Estavam em 20. De três eles arrumaram outras famílias que não estavam com nós e colocaram. Nós falamos: “Não é justo, está todo mundo correndo atrás do benefício de todos. Como que vocês querem rachar, dividir?”. Aí falaram: “Ah, que vocês não ficam”. Eu falei: “O quê?”. Pulei no meio e falei: “Aqui nós ficamos, sim! Porque nós estamos todos no mesmo barco”. Falei pro moço: “Você nem da liderança é, e nós somos liderança”. Éramos eu, meu marido, o pai da minha nora e mais outros. “Então, se cabe vocês, cabe nós também, porque nós estávamos correndo atrás do bem de todos”. A gente ligou pra um advogado do Itesp, que é o Instituto de Terra. Ele veio e falou assim: “Eles têm que ficar, porque já estão na luta há nove meses e vocês estão tudo na luta. Vocês entrem num acordo e fica todo mundo” “Ah, mas a terra não dá” “Dá. Aqui tem terra pra umas 30 famílias” “Então se tem, eles ficam”, eu falei pra eles: “Nós ficamos nem que você não queira. Não é justo”. Eu fiquei indignada, falei: “Não é justo, isso se chama traição, porque nós estávamos comendo tudo na mesma panela, passando o mesmo frio, dividindo a mesma comida, fazendo a luta para todos e ter esse tipo de desunião? Não vai colar”. Ele falou: “Então fica” “Se você falar que fica, nós ficamos, se você falar que não, nós ficamos a mesma coisa” “Ah, mas você é brava” “Sou, porque nós estamos tudo correndo atrás da mesma luta. Eu já perdi tudo, já perdi emprego, já perdi as amizades que tinha porque foi mandado embora por causa daqui porque minha patroa não queria nem me ver mais. Então agora, se o nosso sonho é terra, vamos sonhar”. Ficamos. E olha as coisas, é engraçado. Esses que não nos apoiavam, que estavam juntos, só tem um. Pra não dizer que não tem nenhum, só tem um.
P/1 – Quantas pessoas vocês conseguiram acomodar aqui, Espedita, dos 300?
R – 21.
P/1 – 21 famílias?
R – Porque tem desistência. Quando começa frio, necessidade, xingamento, que a gente é xingada, as portas começam a se fechar, as pessoas não aguentam a pressão e vão embora. Tem que ser forte! A gente fez uma frase assim, o rapaz falou: “Vamos fazer uma frase pra nós” “Vamos ser forte, ocupar e resistir, nunca desistir” (bate mão em punho).
P/1 – A frase era essa?
R – Era.
P/1 – Fala de novo como é.
R – É “Ocupar, insistir e nunca desistir”, tem que ser forte pra aguentar.
P/1 – Espedita, tinha um lixão aqui no terreno?
R – Tinha.
P/1 – Era muito perto de onde vocês moravam?
R – Pertinho do sítio nosso.
P/1 – E como era conviver com essa situação do lixão?
R – No começo a gente achava bom, porque a terra não dava muita renda, então a gente catava garrafa PET, reciclagem. Só que tinha muito mosquito, muita mosca azul, tinha mal cheiro. Então nós, adultos, íamos catar as garrafas PETs e fazíamos até um bem pra natureza, porque tiramos muita reciclagem de lá, que vinha tudo. As crianças começaram a ir, e a gente não queria que elas fossem, porque nós éramos adultos e sabíamos o que estávamos fazendo, catar pra ajudar na despesa da casa. Vendi muita reciclagem de lá.
P/1 – Mas depois? Você falou que depois começou a ficar...
R – É, aí a gente começou a ver que ia prejudicar o meio ambiente, que tinha uma mina d’água. Então a gente começou a perceber que estava fazendo mal ao meio ambiente. A gente fez uma comissão e fomos pra São Paulo pedir a retirada do lixão.
P/1 – Ah, vocês que pediram.
R – Foi.
P/1 – E demorou pra conseguir?
R – Demorou.
P/1 – Quanto tempo?
R – Ah, foi mais de ano, viu? Dois, três anos. Porque o antigo prefeito falava: “Ah, mas quando vocês chegaram já encontraram o lixão lá”. Nem é lixão, eles falam aterro sanitário. Então, a gente falou: “Mas não queremos, porque já está chegando na mina d’água. E no futuro a gente podia utilizar essa mina. Porque a falta d’água que tá no país, no mundo”. Foi muita luta, muita reunião, muito debate, mexer com Cetesb. A última reunião que teve no Palácio da Justiça foi pra tirar, aí tirou.
P/1 – Tirou.
R – A gente fechou a porteira, fez manifesto.
P/1 – É?! Fechou a porteira pra quê?
R – Pra não deixar entrar, né?
P/1 – Pra não deixar entrar o quê?
R – O resíduo, lixo que vinha da cidade. Porque no sítio de uma delas, que é da dona Valdomira, que até passou aqui, no sítio dela voava todo o plástico na terra dela. Então aquilo tinha urubu, mosca azul, o mal cheiro do lixão, pneus eles jogavam a céu aberto. O outro eles aterravam, mas traziam muito pneu. E a gente foi vendo que aquilo ali não fazia bem, né? Porque além de ser no meio de um assentamento, tinha nascente, podia virar um bosque. A gente plantou muita árvore lá, tem muita árvore plantada por nossas mãos lá.
P/1 – Espedita, nesse dia do manifesto vocês fizeram um manifesto ou mais de um?
R – Nada. Foram feitos vários! Todos os manifestos que a gente fez, reuniu as famílias, fez almoço, café e até janta foi servida, porque os homens ficavam nas porteiras e mulheres também, fez a marcha, tudo. Aqui encheu de gente, nessa estrada. Vieram outros assentamentos nos apoiar.
P/1 – E conseguiram?
R – E conseguimos. O prefeito falava que não ia conseguir. Mas quando veio a notícia de São Paulo, que ele tinha que arrumar lugar pra tirar, porque as famílias estavam incomodadas, aí ele conseguiu tirar. Mas ele não gostava da gente. Ele falou que a gente tinha que ir embora daqui, porque ele tava de olho na terra pra fazer chácaras, vender pra quem tinha dinheiro mesmo. Nós que éramos minoria, não era pra ter chácara, só eles.
P/1 – Espedita. E como começou depois? O seu marido plantou como ele queria?
R – A gente planta até hoje.
P/1 – O que vocês plantam?
R – A gente tem plantação de cana, hoje a gente fornece um pouco pra usina. Temos horta e criamos porcos, galinhas.
P/1 – Cada família faz a sua parte ou tem alguma coisa que é junto?
R – Cada família faz a sua parte, tem a sua atividade. A nossa é cana e hortaliças.
P/1 – E não tem nenhuma atividade que todas as famílias plantem junto ou fazem junto?
R – Não, é individual, cada qual cuida do seu lote.
P/1 – Vocês chegaram a pensar em alguma coisa em conjunto?
R – Não. Chegaram a pensar na cooperativa, mas não foi muito além, não.
P/1 – E a plantação de cana é suficiente pra vocês sobreviverem?
R – Ó, dá um empurrãozinho, porque a nossa é pouca, a terra é pouca. É uma atividade pra não deixar a terra vazia e dá menos trabalho, a cana, pra nós.
P/1 – Sei. E seu marido trabalha na terra mesmo.
R – Trabalha na terra, sobrevive da terra.
P/1 – Tem alguma outra atividade além desta?
R – A horta.
P/1 – Na horta.
R – É.
P/1 – E vocês vendem as verduras?
R – Vende.
P/1 – Ah, é?
R – Entrega no PAA, é um programa do Governo Federal, e tem entrega na merenda escolar.
P/1 – Mas esse plano de entregar nas merendas é de quem?
R – Foi um convênio. O Governo Lula criou esse programa na época que entrou para as famílias terem aonde escoar o produto. Porque a gente plantava e perdia toda a produção. Mas foi uma luta que não caiu do céu também, né? Nós fomos lá na Praça da Sé fazer um manifesto, distribuir alimentos. A gente distribuiu abacate, feijão, arroz, mandioca, ovo. A gente levou de caminhão, fez o manifesto e deu pra todo mundo, pobre, rico pegava. Ficamos o dia na Praça da Sé fazendo distribuição grátis de verdura, fruta de qualidade.
P/1 – Aí que veio esse programa do Governo Federal.
R – Aí sim, a gente fez esse manifesto que era pra ver que os agricultores trabalhavam, mas não tinha quem comprava. Quer dizer, foi do governo, mas primeiro saiu dos assentamentos. A atitude das mulheres, de homens. A gente saiu daqui de madrugada pra São Paulo e cada assentado levou uma mercadoria e fizemos o protesto. “Botemo” lá na praça e distribuímos alimento pra todo mundo.
P/1 – Esse movimento foi liderado pelo sindicato?
R – Sindicato, CUT, Sindicato dos Trabalhadores estavam juntos apoiando.
P/1 – E aí conseguiram esse?
R – Daí demorou muito tempo, saiu o programa, o PAA, e saiu pra vender pras merendas escolares. Ah, a gente fala: “Foi o governo”. Foi o governo? Fomos nós! Nós que fizemos. Ele apoiou, é claro, que ele acatou, mas se nós não pegássemos nossa mercadoria, não amanhecesse o dia em São Paulo e veio reportagem, veio tudo, entrevistando e falando porquê estava fazendo aquilo. Porque esse ano mesmo, as minhas mandiocas de mesa eu dei tudo embora, porque não tinha pra quem vender.
P/1 – E o que é o PAA?
R – O PAA é um programa de alimentação do Governo Federal para ajudar as famílias carentes.
P/1 – E vocês levam os alimentos pra esse lugar.
R – Tem o Banco de Alimentos em Rio Claro, a gente leva e deixa lá e de lá eles fazem a distribuição.
P/1 – Vocês vendem e eles compram de vocês.
R – Eles compram pra distribuir para as famílias carentes. Muito bacana.
P/1 – E está dando certo?
R – Ah dá. Esse ano tá sendo difícil “mó da” seca, foi muito seco, então agora que a gente começou a produzir.
P/1 – E como vocês hoje têm um restaurante aqui, como chama esse restaurante?
R – Restaurante Rural Recanto das Palmeiras Ltda.
P/1 – E como é que começou esse restaurante?
R – Esse restaurante começou através de uma vereadora que sempre apoia a gente.
P/1 – Como ela chama?
R – Fátima Marina Celin. Ela esteve em Rio Claro na lanchonete da Whirlpool, e ela viu o projeto social da Consul que apoiava as mulheres. A gente já fazia a Mandioca Chips, a Banana Chips e vendia em feirinhas, né? E ela estando lá nessa lanchonete da Economia Solidária, ela trouxe uma das educadoras, que não se encontra mais, a Melissa, saiu.
P/1 – Ela viu a batatinha lá ou não?
R – Não. Ela viu o trabalho lá da Consul.
P/1 – Ela já conhecia as batatinhas?
R – Ela já conhecia o nosso trabalho daqui. Daí lá em Rio Claro, ela se interessou pela lanchonete e soube da história que tinha a Whirlpool que fazia trabalhos com as mulheres, com as empreendedoras. E ela trouxe a educadora pra fazer reunião com a gente. A gente fez várias reuniões com essa educadora, aí ela perguntou: “É isso que vocês querem, têm certeza?”. Nós não tínhamos nada de equipamento, né?
P/1 – Quantas mulheres eram?
R – Nós éramos em dez mulheres.
P/1 – Todas do assentamento.
R – Todas do assentamento.
P/1 – E ela conversava com vocês.
R – Ela fez reuniões. Foram seis meses de reuniões!
P/1 – E o que vocês conversavam nessas reuniões?
R – Nas reuniões a gente fazia planilha de custo, preço, lucro, perda. Cada reunião tinha um significado, uma explicação. Daí ela falou, assim: “Pela insistência de vocês, pelo acompanhamento das reuniões, eu tenho certeza que é isso mesmo que vocês querem”. Aí a Consul, com o Consulado da Mulher, investiu, comprou fogão que nós não tínhamos, comprou tacho, comprou uma geladeira, comprou panelas e foi nos assessorando cada dia, cada semana eles vinham. Aí abriu um espaço pra gente vender a mandioca chips e a banana até lá na lanchonete, você deve ter visto lá, né? Isso ajudava muito a gente, toda semana. Aí veio um diretor também, nós fizemos um coffee pro pessoal da Whirlpool, e ele se interessou muito, ele gostou do trabalho da gente.
P/1 – Nessa época, quando eles deram esses equipamentos, foi depois do café ou antes?
R – Foi antes.
P/1 – Primeiro eles deram os equipamentos.
R – Deram os equipamentos.
P/1 – Aí o diretor veio.
R – Eles levavam os nossos produtos pra vender. A cada 15 dias vinha um pouco de dinheiro do que a gente vendia lá.
P/1 – Deixa eu perguntar, até então vocês só estavam fazendo a mandioca?
R – Só as mandiocas e as bananas chips.
P/1 – Mesmo assim vieram os equipamentos.
R – Vieram os equipamentos para nós trabalharmos porque nós não tínhamos, pra poder ter o fogão, os tachos.
P/1 – Vocês faziam na casa de vocês?
R – Não, nós fazíamos aqui mesmo, no fogãozinho pequenininho que tinha.
P/1 – Aqui onde a gente tá?
R – Não, na outra casa lá, que tá fechada. A gente fazia lá. E daí a gente começou a sentir necessidade, como eu tinha o sonho de menina, de ter o restaurante, veio essa pessoa da Whirlpool, o diretor, e queria ter o café. Ele gostou muito do espaço, e eu falei pra ele que a gente tinha esse espaço, que queria fazer comida, queria servir o povo, já tinha feito comida pra uma turma do Consulado mesmo. E foi muito falado em São Paulo esse almoço, eu citei pra ele. E ele: “Então, um restaurante aqui ia ser muito bom pra vocês. Eu vou ver o que eu posso fazer”. Ele veio ver o espaço, que deu esse coffee pro pessoal e através...
P/1 – Onde era esse espaço que teve o coffee?
R – Lá. Nós montamos as tendas.
P/1 – Na casinha.
R – Na outra casa. A gente montou as tendas. Eu falei pra ele: “É muito ruim a gente ter que montar tenda, nós temos essa casa, precisa reformar”. Ele olhou, mandou a educadora vir tirar foto e falou: “Eu vou ver o que eu posso fazer por vocês”. Quando foi em janeiro de 2012 ele falou assim: “Eu vou arrumar a casa pra vocês. Eu tenho uma esperança muito boa, vai sair um dinheiro pra vocês arrumarem aquela casa lá”. E saiu, o dinheiro veio em mãos, assinei conta, prestei as notas, tudo.
P/1 – E só veio o dinheiro, vocês que tiveram que organizar.
R – Eu que tive que organizar todas as compras, eu e meu marido.
P/1 – A reforma, vocês que tocaram?
R – A reforma.
O meu genro que foi o pedreiro, porque ele trabalha de pedreiro. Então a gente administrou as coisas mais ou menos sem saber, mas a gente administrou (risos).
P/1 – Mas teve um acompanhamento.
R – Teve um acompanhamento do pessoal do Consulado, dos educadores que eram a Rita e o Mateus, os educadores que trabalhavam aqui com a gente.
P/1 – E essas pessoas que trabalham com você aqui, as outras mulheres, são desde essa época?
R – São. As outras saíram e eu, a dona Aparecida, a Valdomira insistimos. A minha filha Aparecida estava, saiu e voltou de novo. Aí ficamos só nós três, depois as quatro e depois foram juntando mais. Depois veio minha nora, minha filha também trabalhou como voluntária um tempo aqui e agora estamos em cinco.
P/1 – E levou quanto tempo até vocês conseguirem construírem tudo isso aqui?
R – Olha, aqui já era construído, foi reforma. Nove meses de reforma. Começou dia sete de janeiro do ano passado, quando foi em dezembro, dia cinco foi que inaugurou, quase um ano de reforma.
P/1 – Antes ainda da casa, dessa reforma, você falou que os equipamentos foram chegando.
R – Foi.
P/1 – E tinha algum aparelho, eletrodoméstico? O que chegou?
R – Chegou depois, por último, geladeira, freezer, prateleiras. Louça que nós não tínhamos, prato, talher, panela, cadeira.
P/1 – E quando ia chegando esses equipamentos, esses aparelhos, qual era a reação de vocês?
R – Nossa! Cada coisa que chegava, a gente se via aqui dentro cozinhando. A gente pensava aqui cheio de gente, recebendo o povo, recebendo elogio, que graças a Deus, não sei se é mentira ou não, mas o povo elogia, fala que o espaço é gostoso. O pessoal aqui mesmo da cidade fala que esse espaço é gostoso.
P/1 – E quando vocês estrearam, antes mesmo da casa, qual foi o primeiro equipamento que vocês estrearam?
R – O primeiro?
P/1 – Ou aqui mesmo, na casa.
R – Fogão, né? O primeiro foi o fogão porque a gente teve que fazer o coquetel da inauguração.
P/1 – Vocês que fizeram?!
R – Foi! Nós que fizemos os bolos, as tortas, os pãezinhos, os doces, tudo. O primeiro equipamento que foi ligado foi o fogão.
P/1 – E aí?
R – E aí saiu muita coisa gostosa. Muita coisa mesmo.
P/1 – Você conhecia a Consul antes dessa assessoria? A marca Consul?
R – Conhecia.
P/1 – Conhecia?
R – É a melhor marca do Brasil inteiro, que é falado, é a Consul, né?
P/1 – Você acha isso agora?
R – Agora que eu acho, né? Porque já passou muita obra por aqui, muito projeto social, mas o único que deu certo foi só o deles.
P/1 – É mesmo? E por que você acha que foi o único que deu certo, Espedita?
R – Porque acreditou em nós. Porque muitos começavam e paravam, não acreditavam. E eles acreditaram na gente.
P/1 – Os outros paravam por quê?
R – Porque acho que não acreditavam na garra, na vontade que a gente tinha, e nunca terminava o que começava. E eles começaram e terminaram.
P/1 – Além da casa, da estrutura e dos móveis, louça, equipamentos, tem alguma coisa a mais que o Consulado da Mulher ajuda?
R – Tem sim. Ajuda na parte de administração, no que está fazendo errado que é pra fazer certo. As reuniões dos educadores sempre estão ensinando pra gente. Isso é uma coisa muito gratificante que a gente aprendeu, que a gente tem eles como uma pessoinha da família da gente mesmo. Porque é onde a gente deposita toda a confiança, a gente se abre, a vida, a dedicação, todos os problemas você joga em cima deles, e eles estão sempre pra ouvir a gente, pra orientar, pra fazer as coisas. Então, a gente tem um laço muito forte com as pessoas, os educadores do Consulado.
P/1 – Se você puder dizer as coisas que você foi aprendendo com o Consulado da Mulher com essas educadoras, algumas coisas que foram muito importantes.
R – É muito importante o que eles passam pra gente, pra gente não errar, acertar. É difícil, mas é muito bom o trabalho deles com a gente.
P/1 – Fala um pouco, como é esse trabalho, o que eles fazem?
R – Eles ajudam pra gente ter resultado mesmo, pra gente ter um foco do que a gente quer, um controle do que a gente vai fazer pra gente não se perder. Então, a cada 15 dias, no começo uma vez por semana a Miriam estava aqui explicando, ensinando custo, gasto, o que pode fazer pra melhorar, o que não é. A gente tá aprendendo muito com eles, muito mesmo.
P/1 – E aí, o dia da inauguração, como é que foi?
R – O dia da inauguração foi muito bom, teve o prefeito, cortamos a fita. Teve música de raiz tocando.
P/1 – E seu sentimento nesse dia?
R – Nossa, eu não me cabia dentro de mim! Até hoje, né? Tem horas que eu fico pensando: “Mas será que isso tá acontecendo?”, porque a gente começa uma coisa que você não tem experiência. Você quer, você sonha, mas você não tem experiência de viver aquilo, que é ser um empreendedor. É difícil, mas é bom, cada dia tem uma surpresa. Porque tem tanta coisa que você nem imaginava, tem documentação, documento pra assinar, como é que se fala, lei. Tem um monte de coisa assim que você tava perdida e você nem imaginava que tinha, mas o duro é você viver a realidade, né? Você começa querer aprender e fazer a realidade que está ali acontecendo na sua frente e você quer enfrentar, você quer conseguir, não quer deixar para trás aquele sonho. Por mais que esteja difícil hoje, você quer fazer esse sonho, sempre procurar, já que ele se realizou, não deixar ele morrer, deixar ele viver. Porque se você queria esse sonho, tem que fazer ele ficar vivinho como uma flor bem bonita, né? Sempre tem que estar florido, porque problema vem mesmo, vem à tona, vem vários pepinos pra descascar e você tem que saber descascar e fazer a salada bem feitinha, com boa aparência.
P/1 – E junto com as outras mulheres, conta um dia, ou uma semana, como é que vocês se organizam no trabalho?
R – Então, a gente tem o caixa, que é a minha nora. Tem a menina, a outra Aparecida, que ajuda, é garçom, ajuda a limpar, servir mesa. Na cozinha tem eu e a dona Aparecida, a gente faz comida junto. Tem a Valdomira que lava a louça, faz salada. Quando uma acaba de fazer a comida, ajuda a lavar, fazer a faxina do chão pra deixar tudo bonitinho. Então, assim, cada uma já tem sua tarefa pra fazer quando chega.
P/1 – E como vocês decidem as coisas? Porque não tem um dono, todas são donas.
R – Todas são donas. A gente conversa, né? Fala uma pra outra. Às vezes nem se reúne, mas conversa: “Isso não tá bom, vamos melhorar isso. Onde é que nós estamos errando?”. A gente tem esses diálogos, essas conversas, porque nós estamos só com quatro meses aqui, então tem muitas coisas para acontecer.
P/1 – E o movimento anda bem?
R – Tem dia que sim, tem dia que não. No fim de semana melhora. Começamos a receber o grupo da terceira idade de Rio Claro, dia 25 tem o grupo de mulheres da terceira idade daqui de Cordeirópolis. Pequenos jantares, pequenas confraternizações. E estamos andando, estamos indo. Cada dia procurando um caminho pra darmos um tiro certeiro (risos).
P/1 – Em relação à parte financeira mudou alguma coisa pra você, pra sua família?
R – Por enquanto ainda não. O que mudou é o prazer de descer todos os dias e pensar o que eu vou fazer amanhã. Aí a sogra da minha filha fala: “Eu não queria um trabalho desses que você fica pensando no amanhã”. Eu falei: “Mas é isso que nós queremos. Nós não pegamos a causa? Nós temos que pensar no amanhã, no que nós vamos servir pro cliente”. Se hoje eu servi costelinha de porco, amanhã eu quero servir um bife de frango, almôndegas, um pernil, uma galinha caipira com polenta, no outro dia uma linguiça, um peixe. Todos os dias têm que ter o arroz com feijão, mas tem que ter o complemento, macarrão, uma lasanha, uma panqueca. Tem que ter, não pode pensar todo dia que é arroz, feijão e mandioca. Tem que ter o arroz, a mandioca, a batatinha. Tem que incrementar: da batatinha frita pode virar o purê, do purê pode virar batata no frango, na carne de panela. Cada diz você tem que incrementar uma mistura diferente. Porque o cliente enjoa, né? Então, ele não quer comer a mesma coisa todo dia. Nem que eu mande hoje frango no molho, amanhã eu tenho que mandar o bife, o filé do frango. Se eu mandar o filé de frango hoje, amanhã eu vou procurar mandar outra coisa, né?
P/1 – Além de servir aqui vocês também vendem pra fora?
R – Tem os marmitex, são as quentinhas que a gente tá servindo. Tem duas firmas que a gente serve.
P/1 – E qual o seu maior sonho daqui pra frente?
R – O meu maior sonho é nunca desistir disso aqui! Só no dia que Deus me tirar, esse é o meu sonho (emocionada).
P/1 – E tá indo!
R – Por mais luta que eu passo, meu Deus, eu peço força pra eu nunca desistir (chora, fala emocionada). Eu já até falei assim, em momento de raiva, mas dói. Porque eu queria isso, eu vesti essa camisa, então, esse é um sonho que eu vou até eu ficar velhinha, até caduca se for possível, se Deus me permitir, mas é o meu sonho. Pra mim, a minha vida, eu amo meus filhos, meu marido e a minha casa, mas a minha vida, um pedaço de mim está nesse lugar. Eu não aguento, eu lembro, sabe, todas as lutas lá do fundo do baú que passou. E Deus botou o Consulado, a Consul, na nossa vida e fez a gente conseguir esse sonho. Então, isso é uma coisa que eu peço a Deus força, todo dia, pra nunca desistir. Esse é o meu maior sonho. Tenho o sonho de conseguir e tenho o sonho de nunca desistir, venha o que vier, venha a luta que vir, as dificuldades que vierem, mas esse é o meu sonho, que eu vou me sentir realizada. Nunca dizer assim: “Hoje eu não vou”. Porque, às vezes, eu desço doente, começo a trabalhar e eu melhoro, sabe? Aqui me faz um bem tão grande, se eu pudesse, eu falei, eu arrumava até a casinha do lado e eu descia. Eu passo ali, ó, eu fico feliz. Antes da inauguração eu descia todos os dias pra ver, ficava sonhando, imaginando, cada panela, cada coisa que a gente ia fazer, cada cliente que a gente ia receber. Então eu falo, nem que não vire o restaurante dos sonhos, mas vire um ponto turístico pra receber pessoas, que o sonho é ver essas mesas estendias aqui, todos os dias. Por mais que é doloroso, é pesado para as meninas, mas é um prazer ver esse sonho realizado, que é desde criança que eu tenho esse sonho. E hoje, com 51 anos, eu consegui realizar meu sonho, então eu luto com todas as forças (chora). Eu não tenho canseira, eu não tenho dor na perna. Eu chego aqui, a minha vida se transforma. De coração mesmo, eu amo esse espacinho, que foi o primeiro espaço que nos acolheu quando veio pro assentamento, foi esse pedaço. Eu amo esse pedacinho aqui, eu amo de coração, porque foi a minha primeira morada, foi esse espaço aqui. E vai dar muitos frutos, vai dar muita sobrevivência pra gente complementar a renda da família, que meu marido já tá de idade também, 56 anos, eu com 51. Mas quando eu tou aqui eu me sinto uma menina, uma jovem de 15 anos. Eu falei que talvez se eu fosse mais jovem, eu não teria a garra e a força que eu tenho pra enfrentar esse espaço aqui que Deus deu pra nós, muito bom. Muito gratificante ter. Que Deus abençoe a Consul, que eles nunca passem por dificuldades, que eles nunca cheguem a sofrer. Porque tem tanta empresa que a gente vê, que acontece de entrar em dificuldade. Que Deus abençoe quem criou esse projeto. Se todos olhassem um pouquinho como a Consul tá fazendo, o nosso mundo seria muito melhor, porque é muito gratificante a gente não ter condição e arrumar uma pessoa que realize seu sonho, mesmo que ele seja pequeno, mas pra nós ele é bem grande.
P/1 – Muito bom, Espedita, a gente já tá terminando. Muito obrigada pela sua história.
R – Desculpa de eu chorar, porque vêm as lembranças e eu choro de emoção, de lembrar. Lembrar as coisas boas da vida e o sonho realizado, né?
P/1 – E a sua história é uma bela história, uma lição mesmo pra nós. Muito obrigada, Espedita, pela sua história.
R – Obrigada eu.
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