Programa Conte Sua História
Histórias de Esperança – 29 Anos do Projeto Criança Esperança
Depoimento de Luciene Silva Souza
Entrevistada por Vanuza Ramos
São Paulo, 27/08/2014
HECE_HV011_Luciene Silva Souza
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Karina Medici Barrella
MW Transcrições
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Programa Conte Sua História
Histórias de Esperança – 29 Anos do Projeto Criança Esperança
Depoimento de Luciene Silva Souza
Entrevistada por Vanuza Ramos
São Paulo, 27/08/2014
HECE_HV011_Luciene Silva Souza
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Karina Medici Barrella
MW Transcrições
P/1 – Obrigada por ter vindo dar seu depoimento. Pra começar, eu queria que você falasse o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Meu nome é Luciene Silva Souza. Eu nasci na cidade de São Paulo, no dia 13 de março de 1973.
P/1 – E qual o nome dos seus pais, Luciene?
R – Meu pai chama Vicente Emídio de Souza e a minha mãe, Maria José da Silva.
P/1 – Quantos anos eles têm?
R – Ih, boa pergunta! Porque a minha história familiar é muito complicada, eu não tenho muito contato com eles, então, eu não consigo definir. Eu sei que a minha mãe nasceu em 53, mas o meu pai eu não tenho a menor ideia.
P/1 – E você sabe a profissão deles?
R – O meu pai hoje mora no interior do Pernambuco, trabalha na terra, não tem uma profissão, ele é dono de um pedaço de terra e vive disso. A minha mãe mora aqui no Jardim Ângela, com ela eu tenho um pouco mais de contato; ela é autônoma, ela trabalha em partes no bar do marido, do atual esposo e vende coisas, cosméticos por conta.
P/1 – Você falou que sua história é complicada, você não teve convivência com eles. Você não foi criada por eles?
R – Não, não fui criada por eles. Eu vivi um tempo com meu pai, um tempo curto, bastante difícil. Fui bastante ajudada pela minha mãe, mesmo estando longe. Fui morar sozinha muito cedo, tinha 16 anos de idade. Ela me deu muita ajuda, muito suporte, mas no que ela podia também. O contato sempre foi muito restrito a alguns momentos que eu tive com os dois. Praticamente a minha infância eu passava um mês na casa de um parente, outro mês na casa de outro, então, foi uma história bem difícil. A família que eu fiquei mais tempo eram os meus padrinhos, o meu padrinho era irmão do meu pai, então ele era meu padrinho e meu tio. Na casa dele eu vivi dez anos, mas esse foi o período de maior estabilidade na minha vida, durante a minha infância e adolescência, o restante foi tudo meio turbulento.
P/1 – Conta um pouquinho pra gente como foi sua infância. Você conviveu com sua mãe até mais ou menos que idade?
R – Olha, eu era muito pequenininha. Eu não tenho lembrança desse período que eu vivi com ela, tenho alguns flashes. A minha mãe teve uma filha sem saber nem que estava grávida, sem saber nem como se fazia o filho. Era uma menina do interior e essa filha foi adotada pela irmã dela e posteriormente ela conheceu meu pai. Meu pai já tinha uma família, ficou viúvo e a minha mãe acabou indo morar com ele, com autorização do pai dela, meu avô, foi morar com ele e eles tiveram três filhos, eu sou a filha do meio. A minha irmã mais velha por parte dessa união é a Lúcia e o meu irmão mais novo, ainda por parte dessa união, é o Luciano. Mas eu já tinha mais quatro irmãos por parte do pai. Posteriormente, depois de toda confusão na vida que a minha mãe teve, ela acabou tendo um outro relacionamento, que tem até hoje, e adotou um menino. Então assim, eu tenho muitos irmãos, eu tenho a primeira irmã que foi adotada, que virou prima, teoricamente. Depois os irmãos do casamento do meu pai e agora o rapazinho já está grandinho, o Heitor, que é da adoção dessa união que a minha mãe teve agora; não agora, já tem bastante tempo. Bem recentemente me caiu a ficha que ela passou mais tempo na vida dela com o meu padrasto do que com meu pai. Eu falei: “Nossa, não dá pra imaginar isso”, mas uma hora caiu essa ficha (risos).
P/1 – Então no total você tem quantos irmãos?
R – São quatro por parte de pai, a primeira minha mãe são cinco, mais dois dessa união, sete, mais esse adotivo agora, oito. Todo mundo me pergunta e eu nunca me lembro quantos são, porque tenho que ficar contando quantos são de cada lado (risos).
P/1 – E com quantos anos você foi morar com seu padrinho?
R – Olha, foi uma situação muito delicada porque foi... o meu pai estava morando no Pernambuco e eu estava morando lá com ele nesse período. Eu tenho um problema respiratório desde criança, por isso que eu estou um pouco rouca. Então eu ficava indo e vindo, o meu pai ia pro Nordeste eu ia com ele, depois alguém vinha pra São Paulo e eu vinha com ele; depois eu voltava pro Nordeste, ficava o tempo todo assim. Nessa época eu ia mais pra Paraíba, onde estava o meu avô paterno, aliás os dois, são da Paraíba. E aí o que aconteceu? Chegou um certo momento, eu já estava crescidinha, devia estar com cinco, seis anos, mais ou menos, a minha tia estava aqui e foi visitar o pai e eu pedi pra ela pra me trazer, porque eu não queria mais ficar lá. Por que eu não queria ficar lá? Lá não tinha recurso pra nada, lá eu tinha uma sandália havaiana, eu tinha a roupa do corpo praticamente, eu não estudava, eu não tinha uma alimentação. Eu brinco com meus amigos que eu não gosto de farinha de mandioca, por exemplo, porque além de ter visto o processo de produção, ter participado desse processo todinho, era o que a gente tinha pra comer, feijão de corda com farinha. Então, aí eu falo até hoje, eles falam: “Nossa, como assim você não gosta de farinha?” eu falo: “Gente, farinha de mandioca me dá dor de cabeça”. Imagino que deva ter um componente emocional nisso tudo, né? Mas diante dessa dificuldade toda, quando a minha tia foi pra lá eu pedi pra ela me trazer. E ela ficou super mexida com o meu pedido e me trouxe. Só que assim, imagina uma criança que sai do meio do sertão nordestino, chega em São Paulo, acha que é o paraíso. E chegando aqui nessa última vez, vamos dizer assim, eu queria brincar. Então queria brincar, eu fiquei nesse processo de alienação do entorno, só queria brincar, e a minha tia ficou meio impaciente comigo. E quando meu pai veio pro casamento de uma outra irmã que estava aqui, a minha tia me disse que eu ia voltar. Na hora que ela disse isso meu mundo caiu. Eu fiquei chorando, desesperada, porque eu não queria voltar, não queria voltar, e quando ela definiu o meu pai já estava na casa dela, em São Paulo, os preparativos pra festa. E foi uma situação muito delicada porque assim, eu era uma criança muito tímida, muito carente e, ao mesmo tempo, eu sabia que eu não ia ter muitas chances junto à família. Eu lembro que no momento dessa tia se casar ela selecionou as crianças que iam ser as damas de honra dela e ela não me escolheu, e eu fiquei muito triste (choro). E assim, quando a família se reuniu pro anúncio do casamento, tudo, eu pedi pro meu padrinho pra ele ficar comigo. Na casa do meu padrinho já eram sete filhos, ele e a esposa. O meu padrinho era uma pessoa de coração imenso, ele falou assim: “Meu, uma boca a mais não vai fazer diferença”, e aí eu fui morar com eles. Morei com eles durante uns dez anos, eram quatro crianças na época, eu era a quarta criança, apesar de ser um ano mais velha da turminha, mas ele tinha quatro filhos adolescente e mais quatro crianças comigo. E aí eu fiquei morando com eles durante esses dez anos, foi quando começamos o processo de tentar me colocar na escola, que eu não tinha, enquanto eu morei com meu pai eu frequentei Mobral porque não tinha escola pra gente.
P/1 – Qual era a cidade do interior da Paraíba que você morava?
R – Quando eu estava morando com meu avô, que foi antes de eu vir pra cá, eu morei na verdade no sítio, ficava entre duas cidades, uma cidade chamada Congo e outra chamada Sumé. E o meu avô morava no meio dessas duas cidades. O meu pai mora até hoje numa cidade chamada Sertânia, essa que fica no Pernambuco, na divisa, mas no Pernambuco.
P/1 – E nessa época seu pai morava com seu avô também?
R – Não. Eu não tenho nenhuma lembrança da família já vivendo junto. O que eu me lembro era meu pai já casado com uma outra mulher, já morando em Sertânia. Eu tenho alguns flashes da relação dele com a minha mãe, que era ali próximo dos avós, era uma casinha também isolada lá no meio do sítio. Eu lembro do meu pai vindo em alguns momentos pra trazer alguma comida pra gente, em momentos de ver minha mãe chorando muito porque não tinha. (choro)
P/1 – Isso aqui em São Paulo, Luciene? Que você fala que você trazia alguns alimentos?
R – Lá no Nordeste ainda.
P/1 – Lá, então a sua mãe também morou lá.
R – Minha mãe é paraibana.
P/1 – E você teve convivência com seus avós paternos e maternos?
R – Então, com os avôs eu tive, com as avós não, as duas faleceram. Se eu tive algum contato eu não tenho nenhuma lembrança. O meu pai e a minha mãe se conheceram lá, vieram pra São Paulo, tiveram a família aqui e quando o meu pai acabou conhecendo essa mulher que é a esposa dele até hoje, ele voltou pra lá. E nessa volta a minha mãe, ainda por conta da minha questão de saúde, me leva também de volta pra lá e é aí que eu fico nesse pingue pongue entre São Paulo e a Paraíba. Nós tivemos um incidente na família que a minha irmã mais velha desse trio acabou se perdendo, porque houve um problema de comunicação, dizem que éramos crianças muito bonitas e a minha tia foi visitar, minha tia materna, quando encontrou a gente. E aí, a minha mãe conta que ela queria que eu fosse com ela, ficasse uma semana com ela, ela morava aqui em São Paulo. E a minha mãe falou: “Não posso, ela é muito doente, não posso ficar longe”. Aí a minha outra irmã, que era maiorzinha pediu pra ir e a minha mãe deixou. E nesses desencontros de interior, a minha tia trouxe a menina pra São Paulo porque a pessoa que ia pegar ela na cidade no final de semana não chegou na hora, uma história não muito esclarecida. Resultado, a minha mãe teve que vir atrás da filha. No que ela veio, eu fiquei lá com o avô. E aí essa menina, que é a Lúcia, a gente ficou sem contato com ela 15 anos. A gente só veio conseguir se encontrar quando eu estava fazendo 15 anos, foi um encontro bem... Nossa, a gente estava muito ansiosa, tanto ela quanto eu, mas assim, a gente tinha... quem encontrou a Lúcia foi aquela primeira filha da minha mãe que já estava em São Paulo, estava trabalhando. E ela com os contatos, com a família, acabou descobrindo onde estava a tia, o paradeiro da menina e aí conseguiu agendar um encontro com a gente e a gente conseguiu se ver pela primeira vez. Hoje, da minha família, a pessoa mais próxima de mim é a minha irmã.
P/1 – Quantos anos ela tinha nessa época que ela veio pra São Paulo e teve esse desencontro?
R – Era pequenininha, devia ter uns três anos. Era muito pequena.
P/1 – E a sua mãe veio procurar ela e não encontrou?
R – Não encontrou. Pra ficar aqui ela teve que arrumar trabalho, continuar a procura. Ela já tinha, eu não sei te dizer onde foi parar meu irmão nesse momento, porque já tinha também meu irmão, mas não sei te dizer onde estava. Eu acho que ele estava com meu pai, lá no Pernambuco. E assim, eu tenho flashes de situações muito doloridas, tipo, quando a minha mãe viu que não ia encontrar a minha irmã ela tentou pegar os filhos e ela foi buscar na casa do meu pai. Só que quando ela se aproximou, a esposa do meu pai apontou uma espingarda pra ela não se aproximar da gente (choro). Eu entendo, essa mulher não era má pessoa, mas a situação fez com que ela ficasse nessa situação. Ela gosta muito da gente, mas ao mesmo tempo (emocionada), de certa forma a família acabou se desfazendo, né? E aí, depois que eu, não nessa situação específica, ficamos eu e meu irmão da janela vendo aquilo, chorando, porque a gente queria estar com a mãe, (chorando) mas talvez tenha sido tudo isso que fez que eu não gostasse de ficar lá. Nessa outra união o meu pai não teve nenhum filho, continua morando com ela até hoje. O tempo que a gente esteve lá ela até me protegeu do meu pai numa surra que meu pai tentou me dar, tentou não, ele conseguiu. Eu fiquei com o corpo todo roxo da surra que ele deu. Então, não tinha nada que me fizesse falar: “Eu gosto de estar lá”. Nada. Hoje a minha relação com o meu pai é de total distanciamento; gosto dele como ser humano, não como meu pai. Ele sofreu um acidente, fiquei triste, mas triste, como eu falo, triste que eu ficaria com qualquer ser humano ter sofrido um acidente, porque a gente acaba atribuindo a ele grande parte dos desencontros, dos desastres que aconteceram na minha vida, na vida dos meus irmãos, da minha mãe. A minha mãe nesse período que veio pra cá, procurar a Lúcia, ela chegou a ser internada no hospital psiquiátrico, tamanho o sofrimento e desequilíbrio que ela acabou atingindo (emocionada). Bom, então quando a minha tia foi pra lá que eu pedi pra ficar com ela, por isso que eu falei, o momento mais estável da minha vida foi esse período que eu fiquei com a minha madrinha, mesmo que essa estabilidade tenha sido, eu diria que externa, porque internamente eu ainda estava dissolvendo todo esse processo. Eu penso até hoje, que o fato de eu ter me engajado numa comunidade religiosa, naquele período eu frequentava a Igreja Católica, isso facilitou muito lidar com todos esses altos e baixos. Aí eu me tornei líder da comunidade, fiz uma série de atividades. Os padres da região, vários são amigos até hoje, me deram muito apoio, me ajudaram, inclusive, a conseguir uma ajuda financeira pra pagar um cursinho, para que eu conseguisse ingressar na universidade. Então assim, eles foram muito bons.
P/1 – Luciene, só voltando um pouquinho nessa parte da sua infância. Você ficou morando entre a Paraíba, Pernambuco que seu pai morava e São Paulo. Que lembranças você tem do ambiente dessa diferença que foi pra você quando você veio morar aqui, de ambiente? O que você lembra da casa onde você morava lá com seu avô, os períodos que você passava com seu pai e a esposa dele? O que você lembra?
R – Então, na casa do meu avô eu tenho lembranças, eu diria que lembranças legais. A gente acordava muito cedo, era cinco e meia da manhã a gente já estava no roçado, ou era, sei lá, catando algodão, ou era plantando alguma coisa. A gente plantava feijão, legumes pra vender. Então tinha a feira em uma, agora eu não sei se vou lembrar a ordem, se não me engano segunda-feira tinha feira em Sumé e no sábado a gente tinha feira no Congo. Então, aquilo que a gente plantava, que a gente colhia, a gente levava pra cidade pra vender na feira livre.
P/1 – E quem morava com você nessa época?
R – Na época que eu vivi com meu avô morava uma das filhas dele que estava solteira, era uma solteirona da época, ela não tinha se casado; morava o meu avô, pai Emídio, e morava a esposa dele que era a segunda esposa. Quando a minha avó faleceu, pra você ter ideia, eu não sei o nome da minha avó, então quando a minha avó faleceu ele casou-se novamente. A avó que eu conheci foi essa segunda esposa.
P/1 – Você nem conheceu a sua avó mesmo.
R – Se eu cheguei a conhecer eu não tenho essa lembrança.
P/1 – E eles são seus avós maternos ou paternos?
R – Esses são os paternos. O meu avô materno morava num sítio também ali próximo. O nome do meu avô materno é Florentino, então a gente chamava de pai Tino; me ocorreu agora o nome, ele não se casou de novo, pelo menos que eu tenha esse registro, eu me lembro que quando eu ia visitá-lo ele oferecia aquela goiabada de lata. Nossa, era a nossa felicidade porque a gente não tinha acesso à doce. O que eu tenho de lembranças assim, uma das filhas do meu avô paterno morava do outro lado do rio, então, quando o rio enchia, aqueles rios que secam repentinamente, a gente tinha que cavar cacimba lá dentro do rio pra conseguir água, a gente carregava água. Eu carregava água na cabeça, como todas as mulheres de lá, né? Então assim, quando chegava o final do ano, a gente pegava manga na própria mangueira, jogava ali perto da cacimba, lavava e comia a fruta ali mesmo. Mas tirando este período do ano, a nossa alimentação se restringia aquilo que eu falei antes, ao feijão com farinha de mandioca.
P/1 – E a primeira escola que você frequentou foi lá?
R – Olha, eu frequentei uma escola, eu não sei te dizer se é da prefeitura, se é do Estado, era uma dessas escolas rurais que a minha tia trabalhava lá como a preparadora da merenda. E tinha época que não tinha o que fazer. Então, por exemplo, o leite em pó a gente comia o leite em pó mesmo, não tinha com o que dissolver o leite em pó. E era uma classe multisseriada, isso eu me lembro muito bem, até contei num evento do Educadores essa história. Eram quatro filas de alunos, a primeira fila era do primeiro ano, segundo, terceiro e quarto ano, e um professor só. Eu me lembro que eu devia ser a quarta criança, mais ou menos, da minha fila no primeiro ano e a professora vinha com aquela cartilha pra gente ler o texto. Eu prestava muita atenção na leitura dos coleguinhas. Sei que quando ela chegou na minha vez de ler, eu repeti todo o texto, mas eu não estava lendo, eu tinha apenas decorado o que os colegas anteriores tinham lido. A professora olhou pra mim e viu que eu estava olhando pra ela e falando o texto, ela percebeu e começou a pular a ordem das palavras e ela descobriu que eu não sabia ler. Eu tinha uma letra linda, eu copiava absolutamente tudo, mas eu não sabia ler. Eu fui copista durante muito tempo, então, o período que eu passei com o meu pai que foi posterior, que eu fui pro Mobral, eu também copiava tudo, mas eu também não sabia ler. Eu vim aprender a ler eu tinha mais dez anos já.
P/1 – Foi aqui em São Paulo.
R – Foi aqui em São Paulo. A minha madrinha foi me inscrever na catequese e cada turma era dividida por idade. Eu era tão tímida, tão tímida, que na hora da inscrição anotaram meu nome errado, de tão baixo que eu falava. Hoje eu falo muito alto (risos). E aí, o que aconteceu? Eu só fiquei nessa turma dos dez anos porque eu já estava começando a aprender a ler. Então, a minha catequista, que por acaso acabou se tornando minha madrinha de crisma porque era uma pessoa fantástica, é até hoje, uma pessoa fantástica, mas ela trabalhava de forma muito menos convencional, não foi uma catequese tradicional, aquela coisa de bíblia. Não. A gente fez teatro, a gente fez uma série de outras atividades de artes plásticas que eu acho que isso acabou me ajudando pra me comunicar um pouco melhor, então, aquela timidez toda começou.
P/1 – Quantos anos você tinha, mais ou menos, quando você foi morar com seu padrinho e sua madrinha aqui em São Paulo?
R – Bom, se eu morei dez anos com eles, em torno de cinco, seis.
P/1 – Cinco, seis anos.
R – É.
P/1 – E você lembra qual era o bairro que você foi morar?
R – Eles moram até hoje no – ele não, ele faleceu tem alguns anos – mas a família mora até hoje no mesmo lugar, é no Guarapiranga, lá próximo do projeto. E tem uma razão, inclusive, de eu estar no projeto, né? A localização dele. Porque eu cresci ali naquele bairro.
P/1 – E como era o bairro nessa época?
R – Nossa! Era bem complicado. Porque a gente não tinha nenhuma via asfaltada ou calçada, não precisa ser asfalto, mas calçada. Eu me lembro que a gente ia pra escola com sacolinha amarrada no pé pra não sujar o tênis e acabava sendo uma diversão pra criançada, porque o que a gente via de gente caindo durante o percurso era um negócio hilário, né? Mas o meu padrinho contava que quando ele chegou ali não tinha nenhuma casa, você tinha uma chácara, uma casinha lá que não dava nem pra ver quando ele comprou aquele terreno onde é a casa dele hoje. Hoje está tudo ocupado, mas é uma região, é próxima da represa da Guarapiranga, do lado da Guavirutuba, do lado da Guarapiranga mesmo, não é do lado de Interlagos, não. A gente ficava, vamos dizer, que próximos do Parque do Guarapiranga, tanto o ecológico quanto o outro e ali o bairro cresceu muito, muito. Isso não quer dizer infraestrutura (risos).
P/1 – Quando você foi morar com eles, eles te matricularam na escola.
R – Isso, ali do bairro.
P/1 – Foi a escola que você se alfabetizou.
R – Isso, exatamente.
P/1 – Você lembra o nome dessa escola?
R – Carolina Rennó. Ela tem até hoje, no projeto a gente recebe muitos meninos de lá. Na época que eu entrei foi numa situação muito... porque eu entrei fora da idade, foi uma situação assim, não tinha vaga na época e do nada a Secretaria mandou avisar pelos meus primos, pelos filhos da minha madrinha, que era para ela ir lá no outro dia muito cedo para ela conseguir essa vaga pra mim. Eu me lembro que a minha madrinha saiu correndo, muito cedo, pra garantir essa vaga. E deu tudo certo. Frequentei lá até o oitavo ano, tive excelentes experiências lá dentro. Já conseguia, naquele momento, fazer uma série de questionamentos que eu não via nas outras crianças, começava a juntar o conhecimento da igreja com o da escola e aí me enchia de interrogações. Tanto que em casa a minha madrinha perdia um pouco a paciência comigo porque eu perguntava muito. Em um dado momento ela ficou tão irritada com aquele monte de perguntas que eu comecei a escrever um diário, que ela encontrou. E na hora que ela encontrou ela rasgou e jogou fora (risos).
P/1 – Quais eram os questionamentos que você se fazia na época?
R – Nossa, de todos os tipos. Eu me lembro de um que era assim: “Por que eu tenho que dizer muito prazer pra uma pessoa se eu estou conhecendo ela naquele momento? Eu não sei se eu vou ter prazer em conhecê-la”. Questionava absolutamente tudo. Não podia fazer perguntas de cunho sexual em hipótese nenhuma. E eu falava: “Mas na bíblia está escrito algumas coisas assim, por que eu não posso falar isso?” Claro que na época eu não tinha consciência de que era despreparo deles, eles não tinham condições de me responder. Mas o que me incomodava, ou talvez o que me instigasse mais, era eles não conseguirem, eles ficarem irritados pelas perguntas. Então muitas coisas curiosas aconteceram por conta da minha curiosidade mesmo. Eu sempre me incomodei muito com injustiça. Não injustiça ainda, naquele momento, não injustiça com os outros, ações, pequenas ações. Eu lembro que uma vez eu levei uma chinelada da minha madrinha, que eu considerei uma injustiça sem tamanho, porque nós éramos quatro crianças e a gente montava uma escolinha pra brincar, com a mesa, as cadeiras, tal. No final todo mundo tirava, menos um dos filhos dela. E ela mandava eu tirar. E eu ficava muito brava, eu falei: “Não é justo, todo mundo faz sua parte e ele não e vai sobrar pro outro?” Eu tirei, eu sempre tentei ser o máximo obediente possível, até porque toda vez que eu encontrava minha mãe ela ficava falando: “Você está de favor, eles estão cuidando de você com todo carinho, então seja boazinha”, aquela coisa toda. Eu fiz, menina, mas eu fiz com tanta vontade que eu virei a cadeira e fez um risco, acho que de uns dois centímetros, na máquina de costura dela. Aí ela me bateu (risos). Eu falei: “Pois é, duplamente injusto, se o menino tivesse feito a parte dele eu não teria apanhado”.
P/1 – E você conseguia falar isso pra ela, que achava injusto?
R – Eu falava, mas nunca era muito tranquilo. Eu sempre preferi guardar mais por cuidado com a minha mãe do que comigo ou com ela, entendeu? Porque como eu já conhecia um pedacinho da história da minha mãe eu achava que ela não merecia sofrer tanto com isso.
P/1 – E como era a convivência com esses seus primos, que de alguma forma eram seus irmãos? Do que vocês brincavam?
R – Os mais velhos gostavam muito de mim, agora os dois mais novos, eu e a minha prima temos praticamente a mesma idade, um aninho de diferença. E ela sempre foi muito vaidosa, ela sempre se arrumou muito, ela sempre foi muito simpática, talentosa e tudo. E eu me achava o inverso dela e, de certa forma, pra idade a gente acabava competindo. Por exemplo, tinha aula vaga na escola. Ela queria ficar no portão batendo papo com os colegas. Eu também queria, mas eu sabia que não estava certo, e eu não queria dar razão nenhuma pra ter reclamação de mim, então, queria ir pra casa, e isso gerava uma certa tensão entre a gente. Mas a gente se gosta até hoje, a gente não tem muito contato por razões de correria de São Paulo, mas eles me consideram e eu os considero como irmãos até hoje. Chamo, inclusive, a minha madrinha de mãe até hoje. Ela ficou super feliz que eu fui no aniversário dela do ano passado, eu fui apresentar meu bebê pra ela. Ela ficou numa alegria, o menino não saiu do colo dela, né? Mas não foi uma convivência tranquila, como em qualquer lugar que tem muita gente, eram dez pessoas na casa. Eu tinha um dos meus primos, os dois mais novos, são gêmeos. Um era super gente boa, todo mundo gostava dele, porque ele era sossegadão; o outro que era mais agitado, todo mundo pegava no pé dele, óbvio, a mãe ia proteger esse que todo mundo pegava no pé, que era esse que não quis levar a cadeira, que era esse que quando eu estava passando um pano no chão, ele ia lá e pisava só pra atormentar, aí quando chegava dizia que eu não tinha feito. Então, essas situações geravam um estresse, mas um estresse normal de convivência com criança, né? Hoje está todo mundo bem, todo mundo casado (risos), todo mundo tranquilo, mas foi uma infância, desse período, foi uma infância até que tranquila perto das oscilações que eu tive anteriormente. Inclusive um motivo que me fez ir morar sozinha tem a ver com esse rapazinho. Um certo dia eu estava lá limpando a casa enquanto a minha madrinha tinha saído pra ir à feira e ele fez essa gracinha de novo, de eu limpar e ele ir lá sujar. Eu falei: “Eu não vou limpar”, joguei o rodo no chão, “Vai ficar sujo. Quando a mãe chegar ela vai saber o que aconteceu”. Só que como sempre o que ele fazia? Ele sabia o horário que a mãe estava chegando. Ele correu, foi ao encontro da mãe e, claro, a mãe cansada de ter vindo de muito longe, a feira não era perto, era no Jardim Ângela, era muito longe. E aí ele foi encontrar e contou que eu não tinha limpado e falou a versão dele, não sei nem exatamente qual foi. Sei que ela chegou em casa muito nervosa dizendo que naquele mesmo momento ia na casa da minha mãe dizendo que ela não ficaria mais comigo porque ela estava com medo de um dia ela sair e chegar e ter um morto prum canto e outro pro outro. Claro que dentro do exagero absurdo, mas ela fez isso, ela foi até a casa da minha mãe, falou, conversou com a minha mãe. Também não sei o que foi dito lá, mas uma das filhas dela, das duas mais velhas, falou uma coisa que me magoou bastante, ela disse que a minha mãe tinha dito que ela não ia jogar a vida dela fora por causa de mim. Aquilo me desestabilizou bastante e aí eu saí de casa pra pensar em tudo o que tinha acontecido e fui até a casa do padre que era meu amigo. Naquele momento eu imagino que o que ele acabou fazendo não estava errado, ele falou assim: “Olha, se ela brigou com você e chegou a tomar essa atitude alguma coisa você fez”. Mas não era o momento, emocionalmente, para eu ouvir aquilo, né? Bom, tirou o meu chão, quer dizer, eu não tinha o apoio do amigo, não tinha o apoio da família, e agora? Eu falei: “Bom, e agora eu vou ter que cuidar da minha vida”. Quando eu cheguei em casa eu perguntei pra ela: “A senhora me dá quanto tempo para eu sair?” Eu tenho certeza que ela não esperava ouvir aquilo (emocionada). Bom, resultado, dentro de um mês eu saí de casa. E eu tive que começar a faltar na escola, pra no período da escola procurar uma casa pra ir morar, porque eu não podia faltar no horário do trabalho. Nessa época eu já estava trabalhando numa creche da igreja.
P/1 – Você tinha quantos anos?
R – Eu estava com 16 anos.
P/1 – Você trabalhava de dia e estudava à noite?
R – Não, eu trabalhava meio período, então eu estudava de manhã e trabalhava à tarde. O horário que eu devia ir na escola, nessa época eu já estava estudando numa escola padrão, antiga escola padrão do Estado, que era o Alberto Conte, ali em Santo Amaro, uma escola muito boa. Então comecei a faltar na escola, cada dia eu ia prum bairro caçar, estudar, ver o preço, negociar. Bom, deu certo, eu fui morar no que a gente chama lá no bairro de Morrão. Tinha uma escola de ensino fundamental e meia dúzia de casas só, tudo terra, não tinha mais ninguém por ali. Era um lugar perigoso. Era tão perigoso que teve uma época que eu levantei no domingo pra ir pra igreja, no caminho eu encontrei seis mortos. É meio assustador, né? Mas assim, eu nunca tive medo. Eu estabeleci pra mim algumas regras, falei: “Bom, vou morar sozinha, legal. Como eu vou me manter? Como eu vou fazer pra que as pessoas não me interpretem mal?” Porque assim, sempre teve alguém que ficou na torcida: “Não vai dar certo, ela vai pedir pra voltar, ela vai se envolver com gente que não deve”. Eu falei: “Não vai acontecer nada disso comigo”. E foi o que eu fiz. Quando eu tinha um namoradinho eu nunca levei ele pra casa, nunca. Mas assim, eu fui uma adolescente que não namorei muito, então, isso era uma coisa que dava uma certa tranquilidade. E os meus amigos gostavam de mim, independente. Eu tinha muitos amigos, principalmente da igreja, muitos. A gente fazia algumas aventurinhas assim, de fazer uma viagenzinha rápida: “Ah, vamos fazer um bate e volta no litoral”. E a turma era super animada. Eu era tão responsável que eu ia pedir pros pais desses jovens autorização. E eles, em nenhum momento disseram não para mim.
P/1 – Só voltando um pouquinho, isso você ainda morava na casa dos seus tios, esses passeios?
R – Não.
P/1 – Já morava sozinha.
R – Já morava sozinha. Quando eu morava na casa dos meus padrinhos era muito difícil, muito difícil, eu não conseguia receber amigos em casa em hipótese nenhuma. Uma vez eu recebi, eu tive que ficar conversando com ele fora, no quintal, ela não deixou ele nem entrar em casa.
P/1 – Eu ia perguntar isso, o que você fazia de lazer? Você já contou um pouco do seu envolvimento com a igreja.
R – Não tinha, não tinha lazer. Quando eu comecei a frequentar a comunidade, de certa forma me destacava no que eu fazia, fui fazer teatro, mas ali dentro da comunidade. Melhorou minha comunicação, eu queria sair um pouquinho, mas foi o suficiente para minha madrinha falar não. É o que eu falo, eu também entendo porque não, a forma como ela foi criada, forma como ela criou os filhos, eu era muito nova pra aquilo tudo que estava acontecendo, então não tinha, praticamente não tinha.
P/1 – E como foi que surgiu esse trabalho na creche da igreja?
R – Nos trabalhos que eu fazia na comunidade, eu fui catequista, dei aula de crisma, e um belo dia o padre me viu brincando, jogando vôlei com os meninos lá embaixo no quintal da igreja e ele me chamou: “Olha, a gente está precisando de uma menina lá pra trabalhar na creche, você quer?”. Eu falei: “Ó, preciso perguntar pra minha madrinha, mas tudo bem”. Eu não sei se ele já tinha conversado com a minha madrinha, não sei, eu só sei que na segunda-feira eu já estava sendo esperada lá.
P/1 – E era um trabalho remunerado?
R – Era um trabalho remunerado.
P/1 – E o que você fazia com esse dinheiro?
R – Eu entregava todinho na mão da minha madrinha, não ficava com nenhum centavo. Até o dia que o próprio padre falou assim pra mim: “Você precisa ficar com um pouco pra qualquer emergência, pra qualquer coisa. Você precisa aprender a dividir isso”. Eu passei a ficar com 20%, trocava o cheque, passei a ficar com 20% e entregava o restante pra ela. Até porque eu estava na casa dela o tempo todo, a ajuda que a minha mãe dava era eventualmente um calçado, uma roupa. E toda vez que ela dava pra mim ela dava pra minha prima também, já que ela não dava absolutamente nada pra alimentação, pro estudo, não dava nada. O contato que eu tinha com a minha mãe na época era: “Preciso ir no médico, então a minha mãe vai levar”, era esse. Normalmente eu chorava quando eu encontrava com ela porque ela ficava contando algumas coisas da vida dela. Então, em vez de ser um momento de prazer, não, era um momento de prazer por estar com ela, mas ao mesmo tempo, de muita tristeza de saber tudo isso, e era importante que eu soubesse. Ontem eu até estava comentando com uma colega, a minha adolescência inteira, infância e adolescência inteira, eu sentia muita dor, era um negócio impressionante, todo dia eu tinha dor em algum canto. Óbvio, depois de alguns anos de terapia, eu descobri que tudo isso era de fundo emocional, os meus primos brincavam comigo, falavam: “Não, seu nome não tinha que ser Luciene, tinha que ser Maria das Dores, porque é um negócio impressionante”. Por isso que eu falo, com os meus primos mais velhos, tanto as meninas, quanto os meninos, a relação era muito boa, essa tensão era com as crianças e por motivo de criança, eu diria. Foi nessa igreja, que é a igreja do bairro.
P/1 – E sua família, sua madrinha, seu padrinho e os filhos deles também frequentavam essa igreja?
R – Minha madrinha sim, meu padrinho raramente. Quem frequentava mesmo era eu e a minha prima.
P/1 – A sua prima da mesma idade que você.
R – Isso, exatamente. Nós duas fazíamos parte de tudo na igreja. E aí, um dado momento o padre me chamou, sei lá, num sábado, na segunda-feira eu comecei. Essa creche ficava no Jardim São Francisco, que era uma das comunidades; eu trabalhei lá de 89 a... nossa, não lembro, talvez 96, alguma coisa assim.
P/1 – Quando você foi morar na sua casa, nesse lugar que você chama de Morrão, você ainda estava trabalhando na creche, você continuou?
R – Estava. Eu só saí dessa organização, era uma ONG, ligada à igreja, mas era uma ONG, eu saí quando eu entrei na faculdade. Quando eu entrei na faculdade eu falei: “Bom, não dá pra ficar aqui, está muito longe”. Eu fiz PUC, então, estar no Jardim Ângela e ir pra PUC estava muito difícil e eu falei: “Não, e outra coisa, eu preciso de experiência em outra área”. Fui trabalhar numa locadora de automóveis ligada a uma grande empresa, trabalhei lá com eles, fiz alguns trabalhos paralelos nesse período que eu estava na universidade, eu voluntariei ligado à Educação, dentro da própria instituição. Na PUC a gente fundou um cursinho pré-vestibular dos alunos da PUC, fiz a coordenação pedagógica desse trabalho. Só me afastei por questões políticas, a gente tinha algumas pessoas que estavam levantando algumas bandeiras que eu não tinha a menor afinidade, eu falei: “Não, se é pra ir por esse caminho eu prefiro me afastar”.
P/1 – Só um pouquinho, Luciene. Você diz que fez o curso normal no ensino médio.
R – Foi.
P/1 – E quando você terminou o curso normal você ingressou automaticamente na faculdade?
R – Não, eu fiz um ano de cursinho.
P/1 – Você fez um ano de cursinho. E você já pensava em seguir a carreira de professora, o que você pensava profissionalmente pra você?
R – Já. Eu tive várias opções. No ensino médio eu tive experiência com teatro, gostei muito, fiz até algumas apresentações, mas a família não aprovava de jeito nenhum porque o teatro estava ligado a pessoas desmioladas (risos), era esse o termo que eles usavam. “Não, o pessoal do teatro não é gente direita”. Bom, então vamos lá. Eu tinha pensado em trabalhar, sempre com o pé na realidade, então falei assim: “Olha, eu queria ser cientista”, não aquele cientista maluco, químico lá, bonitinho não, “Eu quero trabalhar com Ciências”. Mas ao mesmo tempo eu não quero perder o pé da realidade, porque a gente sabe que os teóricos acabam, infelizmente, acabam perdendo um pouco isso, né? E aí eu fui conversando com vários colegas, inclusive os padres: “Por que você não faz Serviço Social?”, aí eu fui estudar o que era Serviço Social. Falei: “Não, ainda não é isso”. Aí, nós entramos no momento do Brasil de conhecer o Betinho, a campanha dele e eu me engajei nisso e falei: “Ah, é isso que eu quero ser”. Porque é o cientista, mas ao mesmo tempo, pé no chão. E aí eu falei: “Bom, então eu quero ser cientista social”. E aí fui procurar onde que tinha, o que oferecia, e eu falei: “Bom, para eu entrar nessas universidades com o que eu tenho não dá conta, o que nós vamos fazer?”. Aí esse padre da comunidade viajou pra Itália e conseguiu uma bolsa com uma família lá, pra mim; essa família mandava o valor da mensalidade do cursinho, não lembro agora qual era a peridiocidade, ela mandava um valor e esse valor era só feito a conversão pra pagar o cursinho.
P/1 – Você fez que cursinho?
R – Eu fiz Universitário. E deu certo, eu passei na segunda fase pra Fuvest e tinha passado na PUC. Não fui nem fazer a segunda fase da Fuvest, fui direto pra PUC por vários motivos. Primeiro motivo é que naquela época a avaliação do curso de Ciências Sociais da PUC estava melhor do que o da USP. O da USP só ganhava por causa da biblioteca, eu falei: “Não vale a pena porque a biblioteca da USP eu posso ir”. Beleza. Foi muito bom pra minha autoestima, passei muito bem colocada, então eu fiquei muito feliz. Eu falei: “Tá, mas universidade particular, e agora?”. E no ano que eu entrei a mensalidade da PUC subiu assustadoramente. Quando eu ingressei o curso era 184 reais, naquele ano ele passou pra 560. Eu falei: “Cara, eu não tenho dinheiro pra pagar isso, e agora?” Fiz parte de toda a manifestação, ocupação da reitoria e eu ouvi muito dentro da universidade: “Quando você prestou vestibular já sabia que era particular”. Eu falei: “Eu sabia, só que estava no preço que eu podia pagar, agora eu não posso mais, não dá”. Eu me lembro que o primeiro movimento que eu acabei me envolvendo dentro da universidade foi esse. Porque dentro da comunidade, a gente chama de Comunidade Eclesial de Base, eu fazia parte de tudo, então, eu frequentava o Movimento de Jovens, a Pastoral da Comunicação, até me tornei a representante da diocese em Comunicação; acompanhava o movimento de moradia porque eu ia fazer introdução dos seminaristas que iam nos auxiliar em alguns projetos. Então, acompanhava muito, estava muito atenta, frequentava um curso de formação que os padres faziam entre eles. Eram os padres, as religiosas e alguns funcionários das comunidades, secretário, e eu acabei indo nesse grupo. Aprendi muito, muito, eu diria que certos assuntos e certos aspectos eu aprendi mais do que na universidade.
P/1 – Mas esse grupo era ligado à PUC?
R – Não. Era o da comunidade.
P/1 – Da comunidade lá...
R – Do M’Boi Mirim, é.
P/1 – Porque você disse que chegou uma época que você deixou a creche quando você entrou na faculdade, arrumou outro emprego, mas continuou ligada à igreja.
R – Isso. Quando eu arrumei esse outro emprego estava ligado e um determinado momento ficou im-pos-sí-vel, porque eu fui morar em Perdizes, trabalhava no centro, não é Perdizes ali, é próximo. Então assim, estava tudo muito distante pra manter esse trabalho na comunidade, então houve rompimento completo. Quando houve esse rompimento completo com a comunidade eu fui voluntariar dentro da PUC, fiz várias coisas.
P/1 – E como você fez pra pagar a faculdade, Luciene?
R – Eu pedi bolsa. Eu pedi uma bolsa pra PUC, eles me cederam e no momento seguinte viram que a situação era muito séria, que eu não ia conseguir pagar a bolsa, eles me mandaram pro Creduc na época e o Creduc me financiou 80% do meu curso todo. Já no final do meu curso eu voltei pro Jardim Ângela, fui morar do lado da minha mãe.
P/1 – Da sua mãe que é a sua madrinha?
R – Não, da minha mãe minha mãe (risos). E aí só vim sair daqui do Jardim Ângela, na verdade, quando o meu marido veio morar comigo. A gente estava namorando e saí de perto da casa da minha mãe, vim vindo sentido Centro, morei em alguns bairros e vim morar aqui na Vila Mariana, já saindo dessas empresas. Uma amiga minha da faculdade me indicou a escola que a irmã dela estava trabalhando e eu vim lecionar. Essa escola foi fun-da-men-tal na minha vida.
P/1 – Qual é a escola?
R – Ela não existe mais hoje, mas Escola Cooperativa. Talvez você conheça o projeto da Escola Cooperativa da Cidade de São Paulo. Ela foi fundada por
alunos da USP há muito tempo, só que infelizmente as pessoas que acabaram assumindo a direção da escola perderam a essência do que era a Escola Cooperativa. Foi uma construção fantástica, eu aprendi muita coisa lá.
P/1 – Você lecionava o que lá?
R – Lá eu lecionava História.
P/1 – Você já estava formada?
R – Não. Eu estava no terceiro, do segundo pro terceiro ano. Eu saía daqui da escola, que fica na Vila Mariana, eu saía daqui uma hora e chegava em casa três, três e pouco da tarde, eu falei: “Não, isso não está funcionando”, aí resolvi procurar casa pra cá e consegui uma pertíssimo da escola e acabei, foi quando eu vim definitivamente pra essa região onde eu moro hoje. Hoje eu moro na Saúde. E foi nessa escola, aconteceram coisas impressionantes, deu um salto de qualidade nas minhas aulas pelo projeto da escola, pelo nível dos alunos, eram muito bons. Tive contato com projetos de todo tipo, desde Empreendedorismo, Cooperativismo, diversas pedagogias, apesar da pedagogia da escola ser a Construtivista. A gente tinha um grupo muito bom de professores, era uma equipe fantástica, mas que por razões alheias a nossa vontade a escola foi mudando de rumo e os professores foram saindo. E olha, eu fiquei muito tempo sem receber e mesmo assim eu trabalhava, e trabalhava muito feliz. Pra minha felicidade aconteceram duas coisas. Na época não entendi como felicidade, fiquei muito frustrada, eu fui mandada embora pela nova direção e por que foi um favor? Porque eu não ia conseguir me desvincular emocionalmente daquela situação, daquela turma. Mas foi muito bom porque eu tinha que procurar outra coisa e não dá pra trabalhar sem receber porque você tem seus compromissos. E um tempo depois eu fui visitar essa escola, quando eu cheguei lá a diretora, não a que me mandou embora, a diretora me contou: “Você não sabe da maior, os meninos que você dava aula fizeram greve com a sua saída, eles ficaram uma semana sem assistir aula de História”. Eu falei: “Coitado do outro professor”. Não queria, juro que não queria causar esse transtorno, mas pro meu ego foi maravilhoso. Quer dizer, por mais séria que eu fosse no trabalho com eles, séria no sentido de sisuda, que alguns diziam que eu não era, outros diziam que eu era muito, tal, eles gostavam do que eles estava fazendo, do trabalho que eu estava desenvolvendo, então isso foi muito importante na minha vida, eu aprendi a trabalhar com adolescente, que não é fácil, é dificílimo trabalhar com adolescente. Dificílimo por quê? Se você não tem a preocupação de agradá-los, tudo bem, mas eu tenho a preocupação de agradá-las. Então, além do conteúdo eu tenho que me preocupar muito com a forma, isso eu consegui fazer com eles, né? Então pra mim isso foi um retorno muito positivo. Quando eu entrei na Cooperativa eu trabalhei numa outra escola também, os dias que eu não ia pra Cooperativa eu ia pra essa outra escola, era uma escola de uma outra instituição religiosa, que por acaso eu não tenho nenhuma afinidade. Foi um trabalho belíssimo, mas fiquei muito chateada com o que a instituição fez comigo, eu diria que ela foi desonesta. Nós levamos pra Justiça, eu e um grupo de professores, porque fechou a escola assim, da noite pro dia (estala os dedos), deixou os alunos todos na mão, então, saiu até notícia aí nas revistas semanais. Meu trabalho na área de Educação também nunca foi um trabalho muito sossegado, eu entro numa escola, se é uma escola grande eu acabo tendo dificuldade de me encaixar, porque as pessoas, na média, não estou dizendo todas, mas na média, os profissionais estão muito acomodados. E quando você oferece alguma coisa diferente causa um impacto, às vezes agradável, às vezes muito desagradável. E por que eu fui pra área da Educação? Exatamente por causa daquela ideia que eu tive lá atrás, que eu quero ser cientista, mas pé no chão. E quem me dá esse pé no chão é a sala de aula.
P/1 – Deixa eu perguntar uma coisa que eu esqueci. Você teve uma trajetória escolar no começo bastante conturbada. Você morava em um local que não tinha escola, você frequentou o Mobral, que não era adequado pra sua idade, depois você veio pra São Paulo, se alfabetizou num período já tardio. Teve toda essa coisa dessa escola, foi pra escola normal, ao mesmo tempo passando por problemas familiares. Teve algum professor que foi uma referência pra você? Desde lá da infância até adolescência, na escola do ensino médio, a escola normal, teve algum professor que te marcou de forma especial?
R – Olha, eu vou te dizer que teve professores que eu não seguiria o exemplo. É triste dizer isso. Eu lembro da minha professora da primeira série, ela chamava Elisa, e no grupo que eu estava a gente tinha um rapazinho que era um dos mais velhos da turma e que tudo ela pedia pra ele fazer. E eu falei: “Mas por que só ele?”, daí eu comecei a questionar e pra calar a minha boca, vamos dizer assim, ela mandou também eu fazer as coisas pra ela, ajudá-la. Ela não conseguia me explicar, ela não conseguia responder, então, ela desviou o foco e tudo bem. Quando eu cheguei no ensino médio eu tive alguns professores que eu me lembro até hoje, do que não deveria ser. Por exemplo, eu tive um professor de Biologia formado pela USP, o cara sabia muito, mas eu não entendia nada o que ele falava. A única coisa que eu entendi, de todas as aulas dele, foi uma aula de Genética porque ele usou uma dinâmica completamente avessa ao nosso cotidiano. Ele pra brincar com o menino, mandou o menino tirar o tênis, pegou o cadarço do sapato e fez lá o trançamento do DNA. Claro, isso pra mim foi... eu lembro dessa aula, só. E me lembro de uma professora de Geografia que eu falo que eu fui até me especializar em Geografia por culpa dela (risos), porque ela me pediu um trabalho, eu estava no terceiro ano, vestibular na porta. Fui pedir ajuda e ela falou assim: “Não dá tempo de falar de tudo isso, mas bom, pra vocês passarem de ano por causa de greve, vocês vão fazer um trabalho. Façam um trabalho sobre Eras Geológicas”. Beleza. Eu fui pra biblioteca, pesquisei, copiei, fiz tudo o que eu podia fazer. Entreguei pra ela e a nota foi vermelha, eu nem lembro qual nota, foi nota vermelha. E aí eu falei pra ela: “Mas por quê?” “Porque não foi isso que eu pedi”. Eu falei: “Tá. Então me explica de novo o que você queria?” Ela explicou de novo, eu refiz o trabalho. Nota vermelha de novo. Eu sei que eu fiz três vezes, na quarta vez eu falei pra ela: “Olha”, ela também era uspiana. Aí eu falei assim: “Você não está conseguindo dizer pra gente o que você quer. Eu vou ter que assumir essa nota, eu não tenho mais o que fazer”. E aí, sem dúvida nenhuma, isso me fez estudar Geografia. Não acho que todo professor só vai levar a gente pro bom, bom porque quer, às vezes um professor que não consegue se comunicar bem também pode levar, depende mais da gente, né? E a última professora, que foi interessantíssima a situação, era uma professora também de Geografia (risos), essa só dava aula de Geografia Política, Econômica e Humana. Ela andava com o bottom do partido do lado. Eu falava: “Gente, tudo bem, ela tem todo o direito de declarar qual era a posição política dela, tal, mas vir na sala de aula com bottom eu acho um negócio meio complicado”, mas eu era aluna e fiquei na minha, vou falar o quê? Mas me ajudou na minha formação, porque assim, na sala de aula onde eu estou, independente de ser escola particular, pública, no Educadores, em qualquer lugar, eu falo pros educandos que eu estou assistindo: “Não me perguntem em quem eu voto, qual é a minha religião”. Eles ficam assim: “Mas por quê?”, eles ficam tentando fazer pegadinha pra ver se eles descobrem. Eu falei: “Por quê? Porque eu quero te ajudar a pensar, eu não quero te dar respostas prontas. Se de repente eu disser qual é a minha religião e você me admira por N motivos, você vai seguir isso não porque você pensou, mas porque você admira tal coisa. Então eu não costumo”. Quer dizer, estou fazendo exatamente o inverso daquela professora. Mesmo que ela não saiba disso, ela acabou influenciando, ou interferindo, na minha formação muito claramente.
P/1 – Luciene, mesmo com todos esses contraexemplos na sua formação educacional você se planejou, escolheu um curso e pensou em seguir carreira de educadora. Me explica um pouco por quê, como isso se deu.
R – Olha, ontem eu estava pensando, imaginando que essa pergunta viria. E aí, uma das famílias que eu morei eu vi muitos exemplos ruins. Então, por exemplo, se eu chegasse na casa e colocasse uma coisa em cima da mesa e falasse: “Gente, isso aqui é meu, não mexe, depois eu venho buscar”, no dia seguinte não estava mais lá. E aí eu comecei a buscar referências de educação, educação em todos os sentidos, em outros lugares. Eu falei assim: “Está errado isso, não é possível que outros povos tenham isso”. E aí eu conheci, eu nem sei te dizer como, com que veículo, não sei, não me recordo mais, eu comecei a me interessar pela cultura francesa e falava: “Cara, todo mundo muito educado, muito polido. Não combina comigo porque eu vivo uma realidade que não tem nada a ver com essa delicadeza, com esse gestual, mas tem uma essência aí que é o respeito pelo outro”. E eu comecei a buscar isso na minha vida. E reforçado pela religião, por uma série de coisas que eu acabei vendo, assistindo, então nesse período eu lia bastante, tudo o que estivesse ao meu alcance. Infelizmente não tinha muita coisa. Eu não posso te dizer que eu ia ao cinema, porque eu tinha uma velocidade de leitura muito pequena, se eu tivesse que entender o filme no cinema eu tinha que ver pelo menos três vezes. Parece brincadeira. Uma vez eu lia a legenda, outra vez eu via a imagem, outra vez eu juntava as duas, é um negócio meio maluco. Mas assim, parava um jornalzinho na minha mão eu lia, parava alguém divulgando poesia eu lia, tudo eu estava lendo, tudo o que eu tinha. E aí o que aconteceu? Eu falava baixo, porque todo mundo da minha família falava aos berros. O gestual não teve jeito, eu aprendi e ficou, mas foi útil no teatro, então, eu comecei a buscar essas coisas que eu não achava. Nesse lugar que eu vivo, no meio que eu vivo, as pessoas estão só preocupadas consigo, também não é isso que eu quero. Se eu estou bem eu quero que o outro esteja bem. E nessa busca de ajudar, em construir junto, eu comecei a incomodar algumas pessoas, tanto profissionalmente quanto na família, as pessoas começaram: “Ah, porque quer se aparecer, porque...”. E não é isso, eu acho que é uma filosofia mesmo. Na faculdade eu tinha um amigo da História que falava assim pra mim: “Você só não se filiou ao Partido Comunista, porque você é comunista, não é possível”. Eu brincava com ele: “Tá, então se eu sou comunista você é da TFP” e a gente ficava provocando um ao outro. Eu falei: “Olha, eu acho que o que tem de essencial em mim é isso, eu tenho preocupação com o outro, eu quero que estejam bem, se eu puder ajudar eu ajudo. Se eu for atrapalhar ok, eu saio”, como eu fiz lá no cursinho na hora que eu vi que tinha uma questão política por trás, eu me afastei, porque eu estava vendo que eu não ia ajudar mais ninguém, ia causar conflito, então me afastei. E eu acho que tudo isso na minha vida, ou na vida das pessoas que eu acompanho, que eu tenho algum contato, foi a Educação que mudou. Essa minha crença de que a Educação é o caminho pra transformação não só financeira, social, mas pra transformação interna. Eu me lembro que eu cheguei na faculdade, eu tive muita dificuldade. Eu não conseguia ler todos os textos, eu não conseguia ter o vocabulário pra entender determinados assuntos. Os professores começavam a citar clássicos da literatura universal, do cinema, das artes, eu não sei nem o que é um ateliê. Então, as minhas anotações de aula eram uma loucura porque eu anotava o assunto discutido aqui e nas laterais eu anotava filme que eu tinha que ver, texto que eu tinha que ler, autor ou artista, era uma confusão a minha folha, eu percebia o quanto me faltava. Gente, assim, é impressionante o que a Educação faz com a gente. E aí, foi a minha decisão de estou indo pro caminho certo. Quando eu saí definitivamente pra lecionar eu já tinha passado por uma empresa, na época chamava multinacional, fala: “Ah, podia ter feito carreira lá dentro”. Não podia. Não podia porque um ano que eu trabalhei nessa empresa, eu trabalhei na Nestlé, as conversas das pessoas, as preocupações, eram muito díspares em relação ao que eu pensava, ao que eu queria. Eu falei: “Bom, então é hora de sair. Se é hora de sair, vamos direto pra aula”. E foi numa oportunidade que eu fui chamada pra participar de uma seleção na HP, eu: “Uau, minha carreira agora vai fazer assim!” e só acabei não indo pra HP por conta do inglês, que já era uma deficiência lá atrás. Até investi depois no inglês, até pra aumentar meu conhecimento, mas não acredito mais que eu volte pra uma empresa comercial, se eu voltar eu volto ainda pra Educação, eu acho que transformou a minha vida e vai transformar de muito mais gente.
P/1 – E você é casada, Luciene?
R – Não. Eu tenho uma relação de união estável. Depois que eu me afastei da igreja, e aí juntando com todos aqueles escândalos que a Igreja Católica passou e com todo o conhecimento que eu desenvolvi com as minhas pesquisas – eu fiz pesquisa na área de Religião – eu diria que, eu não posso dizer que eu sou ecumênica, porque o Ecumenismo pressupõe que você tenha uma e dialogue com as outras, mas eu estou próxima a essa. Eu transito em qualquer uma e sempre fui muito bem recebida, mesmo naquela que eu falei pra você que, que eu trabalhei na escola e fui injustiçada, mas eu acho que também é um dos caminhos, não tenho objeção a nenhuma religião.
P/1 – E foi na igreja que você conheceu o seu marido?
R – Foi. Eu participava de uma comunidade, ele participava de outra, também ali pro lado do Jardim Ângela, M’Boi Mirim. E o nosso primeiro contato foi numa romaria. Nessa romaria a gente saía das comunidades, vai encontrando outras comunidades e seguia até Itapecerica da Serra, no estádio municipal, onde a gente fazia o encerramento da atividade. E numa das romarias ele com a turma dele, eu com a minha turma, minha turma era muito animada, a gente subiu a última rampa de Itapecerica, é uma subidona assim, subia dançando, cantando, brincando e a gente acabou se aproximando por isso. Passou algum tempo a gente foi convidado para um baile à fantasia, eram amigos em comum da igreja e a gente acabou ficando junto nessa festa. Daí pra frente estamos juntos até hoje.
P/1 – Tem quantos anos isso?
R – Ah, muito tempo já! Vai fazer quase 20.
P/1 – E vocês têm filhos?
R – A gente tem o Dudu, fofinho, está com dois anos e cinco meses.
P/1 – E como foi ser mãe?
R – Olha, foi mais lindo do que eu esperava. A única pena que eu tenho é que ele herdou o problema respiratório que eu tenho, mas ele é lindo. Ele é tudo o que eu esperava (emocionada).
P/1 – A gente vai encaminhar agora para uma parte da entrevista mais ligada ao Educadores sem Fronteiras, ao vínculo da Educação com o Criança Esperança, que são as perguntas temáticas. Como foi que você chegou no Educadores sem Fronteiras? Depois de todo esse percurso profissional que você trabalhou em algumas escolas, em multinacional, como foi que você chegou onde você está hoje?
R – Então foi o seguinte, eu entrei na Escola Cooperativa e quando eu percebi que a situação da escola estava muito difícil, eu comecei a procurar algumas alternativas. Por acaso, bem por acaso mesmo, eu entrei no site do terceiro setor e tinha um anúncio do Educadores. E quando eu vi o anúncio eu falei: “Meu, no Jardim Ângela, no bairro que eu vivi, quero muito. Não sei se eu vou ser selecionada, mas...” E mandei meu currículo, fui chamada pro processo de entrevista, que não era simples; o processo era bem longo, eram todos os que enviavam, dali saía uma primeira seleção que ia de novo, montava-se um projeto, depois do projeto mais uma, então, foi um negócio demorado. E eu fui vendo que eu fui ficando, fui ficando. E fiquei muito feliz porque, bom, por vários motivos, eu tinha identificação com o projeto, eu tinha uma identidade com a comunidade e eu fui ajudada pra crescer, eu fui ajudada e eu vivi ali, eu falei, por que não ajudar essa comunidade que eu sei do tamanho da carência? Eu não vou dizer que é a mesma carência porque os tempos são outros, eu saí de lá tem 30 anos quase. Então, fiquei muito tempo afastada da comunidade, mas visitava uma vez ou outra a família que mora por ali ainda. E aí, passado todo esse tempo fico cada vez mais feliz com os resultados que a gente tem alcançado, muuuitas história de sucesso.
P/1 – Qual foi o ano que você entrou lá?
R – 2009.
P/1 – 2009. E você sabe quando começou a instituição?
R – A instituição começou em 2007. Em 2008 eles já fizeram um projeto piloto, era só com voluntários. No ano que eu entrei foi a primeira equipe contratada, primeira equipe de CLT. Eu sou a única dessa equipe que permanece.
P/1 – E você entrou com qual função?
R – Como educadora.
P/1 – Como educador de um projeto?
R – O projeto principal do Educadores, ele muda de nome, mas a prática é a mesma. São aulas complementares pra crianças e adolescentes, adolescentes e jovens. Você tem lá os meninos do fundamental II, do sexto ao nono ano, frequentam o que a gente chama de Fundamental. E o pessoal do médio que é o jovem que ainda está cursando, ou que acabou de concluir o ensino médio, ou que já terminou há maior tempão e quer voltar pra tentar faculdade, concurso, então essa turma vem pra quê? Eles vêm pra ter aula.
P/1 – Aula igual à aula da escola?
R – Não é igual por vários motivos. Primeiro, a gente aborda o que a escola não dá conta.
P/1 – Por exemplo o quê?
R – Por exemplo, o Paulo tem uma frase que a gente ri, ri da tragédia porque não tem outra explicação. Ele fala assim: “Olha, quando eu entrei na escola na parte de História me ensinaram lá Tratado de Tordesilhas, Capitanias Hereditárias, aí passou. No ano seguinte eles ensinaram a mesma coisa, no ano seguinte, também, portanto a escola só ofereceu isso”. Quer dizer, olha a imensidão de assuntos que tem que a escola não abordou? Estou falando isso no caso de História. E vou te falar que o meu caso não foi muito diferente, exatamente o mesmo. Então é assim, por exemplo, eu não tive absolutamente nada de Geografia Física, nem no ensino fundamental, nem no ensino médio. Nada. E quando eu pego os vestibulares hoje é impossível você responder a parte de Geografia se você não tiver essa noção.
P/1 – Então em termos de conteúdo que é ensinado seria o que é, por exemplo, determinado...
R – O que deveria ser ensinado pela escola. Como a escola não dá conta, por isso que a gente fala, muita gente pergunta pra gente: “É reforço?”. Não, senão eu vou falar de Capitanias Hereditárias de novo. É complementar. Eu acho que isso faz toda a diferença. É claro que eu vou passar por Capitanias Hereditárias porque alguém não teve, e aliás o ano retrasado eu fiquei surpresa de ter uma turma de terceiro ano do ensino médio que não teve absolutamente nada de História do Brasil. Nada. Nem Pedro Álvares Cabral. Nada. Então, por isso que o Educadores existe, pra gente dar esse suporte.
P/1 – E os alunos vêm de escola pública normalmente? Qual o perfil do aluno?
R – O Jardim Ângela não tem muitas escolas particulares, até por conta do perfil da população, mas tem um ou outro de escola particular. O que a gente oferece? É uma educação de qualidade e, infelizmente, nem a escola particular está oferecendo uma educação de qualidade. São raríssimos os casos. Quando a gente faz um levantamento dos estudos aí, das escolas, do rendimento, a gente percebe que a escola particular está ali com a escola pública, então, a gente não vai dizer não pro cara só porque ele é da escola particular. O critério número um para ser educando nosso é querer aprender, ter sede de conhecimento, então não importa se ele é de escola particular, de escola pública, se ele já terminou os estudos. Nessa ocasião a gente tem uma situação de ter algumas pessoas mais velhas, então eu tenho a situação de uma estudante nossa lá com 40, 42, 50, não tem. E o que é legal é colocar essa turma junto, esses meninos que estão na escola com esse pessoal que já saiu da escola há muito tempo. Porque eles aprendem uns com os outros, então, isso está sendo muito bacana.
P/1 – E qual foi o ano que o Educadores sem Fronteiras recebeu recursos do Criança Esperança?
R – Se não me engano foi 2011.
P/1 – Num projeto que é esse projeto base?
R – O projeto do Criança Esperança financiou laboratório pra gente. Então, por exemplo, a gente tem lá a cadeia do DNA, o esqueleto, tem cérebros, microscópio. Esse projeto financiou as nossas aulas com esse aporte que a gente não tinha. Como são nossas aulas? A gente usa projetor, então, a gente projeta as imagens, projeto trechinhos de filmes pra fazer alguma discussão, então por isso que eu te falei que é muito diferente da escola. E aí assim, o que a gente escuta dos nossos educandos é: “Nossa, isso era tão simples assim? Por que na escola não conta?” Porque o método é totalmente diferente. Lá os meninos deitam no pufe pra assistir aula, eles não ficam atrás de uma carteira; eles ficam se eles quiserem. Tem carteira? Tem. Carteira colorida, o ambiente é deles, então, é totalmente diferente.
P/1 – Luciene, você sabe de que maneira o Educadores sem Fronteiras foi selecionado pra receber esses recursos pro laboratório de vocês, do Criança Esperança?
R – Nós tínhamos uma coordenadora institucional que fazia captação pros nossos projetos. Abriu um edital do Criança Esperança, nós mandamos um projeto pra eles com o minicurrículo de todos os profissionais. E aí a gente acabou recebendo retorno positivo de que eles nos ajudariam, foi um projeto que a gente mandou pra eles.
P/1 – Quando vocês escreveram esse projeto no edital vocês já definiram que seria o Laboratório de Ciências?
R – Isso. Se não me engano o nome do projeto era Alquimia dos Saberes. Por quê? Porque é essa coisa do Laboratório de Ciências, de Biologia, tudo estava nesse projeto, foi o desenho desse projeto.
P/1 – E daí todas as turmas passavam por esse projeto?
R – Todas as turmas.
P/1 – Quantas crianças, adolescentes e adultos vocês atendem, mais ou menos?
R – É assim, nós não temos um prazo pra pessoa ficar lá, eu acho que o Sem Fronteiras está não só no conhecimento, mas na necessidade da pessoa: “Eu quero passar no vestibular” “Ok, se você passar você pode fazer sua faculdade e deixar a gente, ou...”. A gente tem muito caso de gente que passou, está fazendo a graduação e continua conosco.
P/1 – Mas tem um número de matriculados, digamos.
R – Tem. Hoje nós atendemos 80 educandos, 40 no ensino fundamental e 40 no ensino médio. Mas o que eu estou te falando é difícil te dar um número exato por conta dessas entradas e saídas. No meio do ano, por exemplo, a gente tem uma perda muito grande porque tem vestibular no meio do ano, né? No fundamental a gente não tem tanta porque o fundamental, qual é o nosso retorno? É a aprovação dos meninos na escola. Por exemplo, eu fiz esse levantamento semana passada, dos 40 educandos nossos do ano passado, nós tivemos uma reprovação na escola, e aí por questões que iam além da Educação, tanto que a mãe optou por manter essa criança conosco. Se eu te falar o número entre os que saíram e os que ficaram eu precisaria tabular esse número pra te falar.
P/1 – Você lembra mais ou menos na época do projeto do Criança Esperança que vocês receberam os recursos para o laboratório, quantas crianças e quantas pessoas tinham matriculadas na época?
R – Então, nossa, eu tenho que multiplicar esses 80 por uns três, porque se eu for pensar que desde então as crianças continuam usando, dá mais ou menos isso. Vamos lá, 2011, 12, 13, 14, a gente continua usando o laboratório até hoje. Então se eu for pensar oito, 16, 24, 240 pessoas, no mínimo, já usaram esse material.
P/1 – E teve mudanças no aspecto pedagógico, no aspecto do prazer de aprender, que vocês notaram, depois da implantação do laboratório?
R – Sem dúvida. Quando os meninos têm esses conteúdos na escola, é aquela figurinha do livro, que ele só pode olhar. Com o laboratório ele vai lá, ele desmonta, ele monta, ele descobre pra que serve tal pecinha: “Não consigo encaixar, como chama isso, onde põe?”. Esse manuseio traz pra eles, além do prazer imenso de estar descobrindo uma coisa nova, desperta uma curiosidade para além daquilo. Eles ficam ansiosíssimos: “Quando a gente vai usar de novo?”, então isso traz exatamente o que a gente busca, aquele brilho de: “Olha, como é isso? Quero saber mais”. O laboratório, pra esse meninos que não têm absolutamente nenhum acesso, é fantástico.
P/1 – Eu ia perguntar disso, do interesse dos estudantes, o que mudou nesse sentido.
R – Então, olha só, os laboratórios ficam abertos, ao alcance deles. Por exemplo, eu tenho um salão onde eu tenho uma turma, mas é passagem pra biblioteca, fica ali. Então eles vão lá, eles manipulam, pegam, de vez em quando: “Ih, acho que eu quebrei” “Não, é porque não soube encaixar direitinho”, a gente vai lá, monta, mostra. E ele fala: “Ah, da próxima vez eu consigo”. Então na aula seguinte ou no momento livre que eles têm eles voltam a tentar. Não é só aprendizado no aprendizado, mas é também uma brincadeira. E quando a gente percebe que isso está funcionando? Na aula teórica que a gente vai falando, “Ah, isso aqui não é aquela parte lá que a gente mexeu?”, então a gente percebe que ficou. Pra eles é fantástico. Semana passada a gente deu uma reorganizada no laboratório, tirou algumas caixas que tinha e aí eu cheguei pra eles, porque a gente estava em um momento de avaliação deles, avaliação diagnóstica pro semestre. E chegamos, tinha um planetário na parede de uma sala, na outra tinha um planetário no teto. Aí tinha alguns ábacos, alguns jogos, você precisava ver a alegria deles! “A gente pode mexer?”, eu falei: “Ué, desde quando vocês não podem?” “Ah não, é porque vocês mexeram, a gente não sabia se tinha algum propósito” “Tem, o propósito é que vocês usem, o espaço é de vocês”. Imagina a alegria deles de ver isso.
P/1 – Esses materiais são de outros laboratórios?
R – De outros projetos.
P/1 – Porque o projeto do Criança Esperança foi o do Alquimia que você falou.
R – É.
P/1 – E pros professores, pra você? Que transformação teve, que impacto teve a implantação desse laboratório?
R – Então, a gente trabalha algumas áreas do conhecimento, que a gente trabalha com a juventude é muito difícil, porque você fala nomes científicos, os caras não dominam direito a língua portuguesa. Como eles sabem que a gente não tem prova, eles não precisam decorar os nomes daquilo, então assim, já começa a relaxar. Quando você apresenta um material que eles nunca tiveram a oportunidade, a gente costuma dizer que a gente vê o brilho do olhar da pessoa. É isso que a gente quer, é esse brilho no olhar, ele desperta não só pro conhecimento científico como pro próprio conhecimento como capacidade de construir e alcançar sonhos. E eu acho que os projetos que nós desenvolvemos têm esse objetivo. Se o cara vai prestar um vestibular ou não vai, pra gente é o que menos importa, pra gente o que importa é ele decidir que ele pode o que ele quiser. E ele pode o que ele quiser com esforço dele, ele tem que estudar, ele tem que se conscientizar e aí ele pode. Então esse trabalho que a gente tem, esses laboratórios, esses instrumentais todos, têm enriquecido cada vez mais nossas aulas, não fica uma coisa só o professor falando. Lá é extremamente interativo, a gente brinca que se uma aula não tiver pelo menos umas duas ou três gargalhadas o negócio ficou complicado pro professor, porque a aula está sendo chata. E a gente não admite que a nossa aula seja chata, porque de chatice já basta o convencional, a gente não quer isso. A gente brinca que até as nossas avaliações devem ser motivadoras, e têm sido. “E aí, quando vai ser a próxima? Eu quero ver se melhorei, onde eu melhorei”, eu falo: “É isso aí, é esse o foco”. A gente não tem nota, então a gente percebe esse retorno dos meninos nesses inúmeros casos de sucesso. A gente tem uma educanda que a gente indicou aqui pra vocês, ela foi minha aluna em 2012, hoje ela é nossa professora! Voluntária, ela está terminando a graduação dela, mas a menina é um espetáculo, ela é muito esforçada, extremamente competente, acabou de apresentar o trabalho dela da graduação nos Estados Unidos. E ela conta sempre o quanto o Educadores foi importante na vida dela, esse é apenas um dos casos, essa é a mais velha, eu diria.
P/1 – Luciene, você é educadora e tem uma outra função de coordenadora pedagógica também. Pensando no lado dos profissionais, você acha que tipo de motivação a implantação de um Laboratório de Ciências traz para os profissionais?
R – Olha, eu vou te falar o seguinte, o profissional que está com a gente é muito diferente do profissional que está no mercado. Porque assim como os educandos, ele tem que ter o brilho no olhar, ele tem que ser, não basta gostar do que ele faz, ele tem que ser apaixonado pelo que ele faz. Então, ele pode estar com um problema do tamanho do mundo na casa dela ou em qualquer outro lugar, ali dentro ele se transforma. E não é uma exigência nossa, esse é o perfil que a gente acabou descobrindo que é o nosso educador. Ele é alegre, ele é comunicativo, ele é extremamente atualizado. E ele sabe um pouco de tudo, né? É claro que ele não sabe tudo, ninguém sabe tudo, mas ele não tem o menor medo de enveredar pelas áreas que ele não conhece. Se ele não conhece, ele pede ajuda. A gente trabalha, as aulas são todas ligadas na internet o tempo todo. Se eles perguntarem alguma coisa esdrúxula, que por curiosidade, o nosso fundador fala sempre assim que surgiu uma pergunta na aula dele de: “Qual é a distância do Canal da Mancha”, não é o tamanho. Quem que vai saber disso? Ele falou: “Não tem problema, a gente entra aqui, pergunta lá na internet”. Beleza, tem a resposta. Então, deixa o pessoal pensar, perguntar o que quiser, o que tiver vontade, então, isso é muito importante. O profissional que não aquele medo de “ah não sei isso, não sei aquilo”, não serve pra gente. Ele pode não saber como eu às vezes não soube. “Gente, ou vamos pegar aqui na internet”, ou “Alguém sabe?”, mas admitir que não sabe determinada coisa é um processo saudável, é muito bom. Ele não vai achar que é o super herói, não existe, então vamos construir isso juntos. O profissional, quando ele tem todo esse instrumental, enriquece a aula dele, ele quase pira de emoção (risos). A gente tem um colega lá que eu brinco muito com ele, eu falo: “Meu, você pira”, ele fala assim: “Se você colocar mais não sei o quê aqui eu vou pirar mais ainda”, e faz isso, de verdade. Numa situação, teve uma criança que trouxe uma coleção de moedas antigas. Gente, aquela aula não estava planejada, porque nunca ia imaginar que um menino ia usar aquele material. Mas mudou completamente o rumo da aula porque o professor ficou empolgadíssimo, porque é uma coisa que não está ali todo dia, né? Então todo o grupo tem uma preocupação muito grande com essa motivação. Porque você ficar três horas, quatro horas, dentro de uma aula que só um fala, ou que seja um diálogo, mas que fique muito restrito, isso não é o nosso formato. Nossas aulas de ensino médio hoje tem três horas de duração na semana e quatro horas no sábado. E do ensino fundamental um hora e meia. E no caso do ensino fundamental, por exemplo, a gente tem uma aula chamada Pensamento Lógico e uma aula chamada Linguagens. Linguagens, todas. Então passa por Artes Plásticas, por Música, por Língua Portuguesa, Inglesa, Espanhola. Esses dias a gente estava fechando o semestre, eu propus a uma turma pra fazer um guia, o assunto do semestre era patrimônio. Falei: “Vamos fazer um guia do Brasil, dos patrimônios que a gente tem estudado”, ou de São Paulo, nem lembro se era Brasil ou São Paulo. “A gente pode fazer bilíngue, português e inglês” “Não pode ser português e espanhol? Português, inglês e espanhol?” Eu falei: “Ah? Pode”. Está dentro do que a gente... “Pode ser português, inglês, espanhol e latim?” Eu falei: “Ôpa, poderia, mas só temos um mês pra fazer tudo isso e vocês não vão adquirir vocabulário em latim nesse tempo”. Quer dizer, eles têm umas propostas mirabolantes, entendeu? É muito legal. E que vem deles, isso é o que nos motiva, quanto mais a gente oferece, mais eles querem. Eu acho que esse é o retorno principal, principalmente do fundamental. A gente começou a trabalhar dentro do Pensamento Lógico Filosofia, nossa! Tem um pessoal lá que manja muito de xadrez, então a gente vai unir o xadrez com a Filosofia, com a Matemática, com a interpretação dos enunciados, que está tudo dentro do grupo do Pensamento Lógico e que eles não se dão conta, eles acham que Matemática é número, que Língua Portuguesa é letra e parou por aí. Quando eles vão caminhando conosco eles vão percebendo que é tudo junto. Então, se de repente eu chegar lá e oferecer uma aula de grego os caras vão entender que tudo isso faz sentido. Então essa é a ideia.
P/1 – E pensando em tudo isso que você falou, de toda essa mudança de uma aula convencional pra uma aula interativa, com aparato tecnológico, que diferença você acha que o financiamento, o recurso do Criança Esperança contribui pro nosso meio mesmo, pra sociedade? De uma forma geral, pra nossa convivência, aprendizado.
R – Olha, nós fizemos uma pesquisa interna recentemente sobre como essas crianças aprendem. E 90% deu que as crianças são sinestésicas. É desesperador ver que essas crianças estão numa escola de lousa e giz. Por isso que esses materiais e financiado por esses projetos são tão importantes. Os canais de comunicação e de aprendizagem desses meninos é fazendo coisas. Então se eu der um texto pra ele ler, se eu ficar falando com ele sobre o mesmo assunto e se oferecer esse material do laboratório pra ele, o rendimento dele vai ser muito maior. Porque é nesse toque que ele está pensando como se estrutura, como as coisas se encaixam, como tudo funciona. No texto ele vai lendo, mas ele vai ficar com muito pouco. Dependendo de quem está falando, eu brinco com eles que a minha voz é muito calminha na aula da tarde, dá um soninho, eu falo assim. Se eu não der um outro recurso, isso em qualquer lugar, a criança, o adolescente, jovem vai perder a atenção. Eu me lembro que eu estava fazendo um material, eu estava trabalhando curva de nível com o pessoal do ensino médio, tinha um pessoal mais velho. E uma das pessoas que estava lá, era uma senhora. Ela falou assim pra mim: “Isso aqui foi a coisa mais legal que eu fiz na minha vida em termos de Educação!” Eles estavam moldando um material pra entender o que era uma curva de nível. Então assim, eu poderia ter dado só o desenho da curva de nível e dito: “Isso aqui é altura, isso aqui é a altura maior ou menos e no exercício do vestibular vai aparecer assim”. Ela não teria tido o prazer que ela teve de construir aquilo. Eu tenho certeza que ela não vai mais esquecer disso. Do exercício ela vai esquecer.
P/1 – Você fala bastante nessa coisa da aquisição de um conhecimento que já existe acumulado. E essa parte da construção do próprio conhecimento pra outras referências e também na construção da personalidade? A gente fala muito em Educação pra Cidadania, que diferença você vê, que impacto você vê com a implantação desse tipo de laboratório na organização?
R – É o que eu te falei, eu acho que conhecimento científico é apenas a porta para o conhecimento sobre si, sobre a sociedade. Então, se você consegue, que é o que a gente pode oferecer no instituto é oferecer essa porta. Ele entrou por essa porta vai modificar tanto a ele quanto o entorno dele, porque o pensamento vai mudar, as atitudes vão mudar. Eu acho que uma coisa está ligada a outra, mas por onde ela começa? Ela começa por essa porta de entrada que é o conhecimento científico que a gente acaba oferecendo. Eu tenho histórias muito legais do tipo, vou citar aqui uma educanda, depois eu peço permissão pra ela, tá? Eu tenho a Patrícia que estudou com a gente lá desde o início do Educadores. E a Patrícia, ela não acreditava que ela conseguisse nada, que tudo era muito difícil. E aí ela passou, primeiro ela passou num curso técnico lá da Etec, fez, ficou super feliz, não deixou o Educadores, continuou com o Educadores. Depois ela resolveu prestar um concurso em Saúde Pública e aí ela passou, e ela está levando esse conhecimento que a gente está trabalhando pro trabalho dela, né? Então quer dizer, indiretamente todas as pessoas que ela vai visitar, que ela está na casa, ela está passando conhecimento. Ela não contente continuou conosco e entrou na faculdade de Psicologia. E questiona os professores da universidade, questiona os colegas, se coloca, quer dizer, esse conhecimento que o Educadores ofereceu de conheça a si, conheça suas potencialidades, vá em frente, descubra quais são seus sonhos, vai além. A gente está trabalhando na aula essa parte do conhecimento científico, mas é inevitável, a gente respeita a pessoa enquanto ser humano, então a gente conversa muito com os educandos, a gente acompanha, se tem um problema de saúde a gente encaminha pra nossa rede: “Olha, Fulano está precisando dessa ajuda nesse ponto”, então, é muito maior, o impacto é muito maior. O que traz imensa alegria pra gente é quando a gente precisa, por exemplo, comentar com, apresentar o projeto pra alguém eles ficam bravos se eles não são convidados pra contar a história deles. “Mas como você esqueceu de mim?” “Não, a gente não esqueceu de você”, tanto que a gente se fala o tempo todo. Eles mantêm contato via e-mail, pelo site, pelos blogs, a gente tem muitas formas de entrar em contato com eles, e eles ficam chateados quando a gente não chama. Então, a gente percebe que o impacto de querer colaborar, pra você ter uma ideia, no semestre passado foi a primeira vez que nós fizemos um encontro de voluntários. Nós tivemos educandos querendo voluntariar no Instituto, eles não queriam só aula, eles queriam ajudar outros. Então, o retorno disso pra gente é muito importante, porque eles ficam por dentro de como é que funciona o instituto e eles querem ajudar mais, então isso é muito legal, a gente vê o alcance da nossa ação.
P/1 – Luciene, você teve contato com algum outro projeto apoiado pelo programa Criança Esperança? Ou o Educadores Sem Fronteiras foi o único?
R – O Educadores sem Fronteiras foi o único.
P/1 – A gente vai encaminhar agora pras perguntas conclusivas pra gente finalizar a nossa entrevista.
R – É, porque eu falo muito, se não cortar vai embora.
P/1 – É ótimo (risos). Quais são as coisas mais importantes pra você hoje?
R – Ai, que pergunta difícil! Olha, eu diria que o meu filho e o Educadores sem Fronteiras. É. Onde eu divido minha atenção hoje.
P/1 – E seus sonhos? Quais os sonhos?
R – Nossa, eu tenho muitos! Muitos, muitos!
P/1 – Fala pelo menos uns dois aí pra gente.
R – Tá bom. Eu acho que é continuar ajudando mais gente nesse projeto, ou qualquer outro lugar, mas a ideia é continuar contribuindo socialmente pro desenvolvimento principalmente cultural, educacional cultural, da nossa sociedade, precisa muito. Outro, que diretamente vai atingir a minha família é viajar, adoro viajar. Adoro viajar, amo viajar. Então, pra cada lugar que eu vou mais conhecimento eu trago, mais eu posso compartilhar. Eu acho que esses são os dois principais.
P/1 – E tem algum lugar que você queira ir especialmente?
R – O mundo, qualquer lugar. Esse final de semana eu descobri, por exemplo, que eu consegui trazer pro meu bebê uma relação muito boa com a natureza. Ele era muito, tinha acabado de andar e eu fui fazer trilha com ele. E esse final de semana eu fui pro interior, pra casa de uma amiga e ele grudou lá, pisa no chão, na terra, feliz da vida, então isso já me deixa muito feliz (risos).
P/1 – Tem alguma coisa que a gente não falou aqui e que você gostaria de acrescentar?
R – Olha, assim, eu acho que a maior dificuldade de manter todos esses projetos que o Educadores desenvolve é a questão do financiamento. A gente sabe que tem muitas organizações, mas pra área de Educação é absurdamente carente, muito carente. A gente ainda não entende porque os empresários, ou sei lá quem, não conseguem enxergar a importância de projetos como esse. Porque a gente vê muito financiamento pra arte, muito financiamento pra dança, música, arte como um todo. Mas pra área de Educação. Teve um projeto que a gente estava fazendo um levantamento dos dados, a gente não conhece nenhum projeto que tenha o mesmo perfil do Educadores, nenhum, no Brasil, que é de educação complementar. De reforço até tem, mas de educação complementar a gente não encontrou. Pode ser que tenha e não esteja registrado, nós fizemos uma busca rápida só na internet e a gente não achou. E a gente sofre muito com a falta do apoio financeiro, porque hoje pra manter essa equipe a gente está passando maus bocados, a gente consegue manter porque a ideologia de transformação da sociedade fala mais alto, porque com os recursos que a gente tem é desesperador.
P/1 – E como foi contar a sua história?
R – Legal (risos). Foi legal. É difícil, como eu falei, ela tem uns momentos bastante sofridos que é inevitável mesmo segurar o choro, mas é legal ver que alguém que passou a dificuldade que eu passei, tanto no sentido familiar, emocional, até profissional em alguns casos, ainda acredita. Eu acho que no dia que eu deixar de acreditar a primeira coisa que eu tenho que fazer é sair da Educação. E eu falo isso muito pros meus colegas em escola, tenho muitos colegas completamente desacreditados de tudo. Eu falo: “Meu, então se aposenta, cara, vai fazer outra coisa da vida, porque você está lidando com esse monte de gente que está apenas começando, se você não acredita por que ele vai acreditar?” E assim, na minha área de atuação de sala de aula, que é a área de História, Geografia, Sociologia, se eu falar pra esse povo: “Olha, o Brasil não funciona, tudo está, tudo o que vocês estão enxergando é assim mesmo”, que mudança eu vou provocar? Eu tenho até alguns alunos de escola que falam assim pra mim: “Ai, mas você é muito sonhadora, você só enxerga o lado bom”. Eu falei: “O lado ruim já está aí, se eu for só enxergar ele o que eu mudo? Eu tenho que começar a enxergar outras possibilidades pra que eu transforme essa realidade”. E a gente está com uma geração que não acredita muito nessa mudança, pelo menos esses mais novos, é desesperador ver que esses meninos não enxergam uma luz no fim do túnel. Então, o que a gente tenta é mostrar que tem: “Olha, eu passei por tudo isso e estou aqui legal, então você também pode”. E passo número um, respeite o outro. Quando você respeita o outro você está respeitando a si também. Então, é essa mensagem que eu deixo, se preocupar com o outro é importante.
P/1 – Está ótimo! Muito obrigada pelo seu depoimento, agradecemos em nome do Museu e do Programa Criança Esperança.
R – Obrigada!
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