Meu nome é Amália Gonzalez Grimaldi - Frank. Meu pai chamava-se Manuel Gonzalez Perez, era imigrante espanhol e minha mãe Nair Grimaldi Gonzalez Perez nascida de Valença na Bahia era professora primária. Conheceram-se em Salvador. Já são falecidos.
Sou casada com o cidadão suíço Ernst Fra...Continuar leitura
Meu nome é Amália Gonzalez Grimaldi - Frank. Meu pai chamava-se Manuel Gonzalez Perez, era imigrante espanhol e minha mãe Nair Grimaldi Gonzalez Perez nascida de Valença na Bahia era professora primária. Conheceram-se em Salvador. Já são falecidos.
Sou casada com o cidadão suíço Ernst Frank. Sou mãe de Fabiana Grimaldi e avó de Manuela Grimaldi.
Sou Dentista por formação, embora já não exerça mais a profissão desde que fui morar na Austrália - 1992 a 2002. Hoje moro na cidade de Valença, na Bahia.
Sou escritora e artista visual. Escrevo crônicas semanais para o periódico local - Jornal Valença Agora. Sou membro da Academia de Letras de Valença e também da UBE- União Brasileira de Escritores.
Publiquei dois livros da minha autoria: Quando - poesia e A Casa da Rua do Cais do Porto - poesia. No momento trabalho em outros textos: O Olho de Badejo - prosa e poesia e A Filha do Padeiro Galego - prosa e poesia.
Nasci na cidade do Salvador na Bahia, em quinze de novembro de mil novecentos e quarenta e três. Sou a mais velha de seis irmãos - cinco meninas e um menino. Meu pai era um imigrante espanhol, galego da província de Avión pertencente a Orense. Isto motivou um sentimento especial em mim talvez por se tratar de terra longe. Alimentei pela vida a fora um desejo incontido de resgatar a minha gênese paterna.
No limiar do ano dois mil, saí da Austrália onde morava, com a intenção de encontrar meus parentes paternos e conhecer o lugar onde meu pai nascera. De Lisboa ao Porto viajamos de trem, eu e meu marido, a fim de encontrar meus primos na estação ferroviária daquela cidade. De lá fomos de carro subindo e descendo serras até chegar a Avión. Uma emoção inigualável
Gonzalez, Perez - nomes familiares encontrava nas lápides do pequeno cemitério ao lado da pequena igreja do século doze-San Justo Pastor. Era dia de finados. Aí coloquei flores e recitei minhas preces.
Foram doze dias de muita emoção. Conheci primos e primas. A casa onde meu pai nascera e também as ruínas em pedra da escola onde frequentara quando criança. Daí trouxe uma pequena ardósia como lembrança e guardo com carinho.
Um tempo - 1948 a 1969. Cidade do Salvador capital da Bahia. Bairro do Garcia. O casarão da padaria e suas janelas ovais.
Morada da família do padeiro galego. Seis crianças ainda pequenas e uma ama negra. Meu pai enviuvara quando eu tinha nove anos.
Os trilhos do bonde – adorno na paisagem. Do Rio Vermelho à Praça da Sé – Passagem de acontecimentos. Desejos e esperas por se cumprirem.
Sons de atabaques distantes chegavam até nós. O bueiro ao pátio - o calor de fornadas ansiadas. A nossa casa era rodeada por sonoridades peculiares.
Os bondes sobre a retidão dos trilhos de aço- Sentíamos a sua vibração no piso. A casa toda tremia no largo assoalhado de madeira de taboas longas.
Missa dominical. Rapazes estudantes- Alvoroço no bairro. O colégio dos padres jesuítas logo em frente ao casarão. Esquina com a Curva Grande e a Leovigildo Filgueiras.
A grande palmeira na praça - Marco de encontros dos namorados. Contorno de conveniências.
A Casa da Torre, palacete cor –de- rosa, residência de família abastada, a poucos metros da nossa casa à Avenida Leovigildo Filgueiras, era um dos vértices do grande triângulo de acontecimentos ao lado do casarão da padaria e do colégio dos jesuítas. Um grande terreno baldio –divisor de águas- mediava o casarão da padaria e a casa da rica família.
Tempos idos - talvez no ano de 1940, no vasto pátio do sobrado da Padaria Bahiana, num dos casarões que hoje fazem parte do centro histórico da cidade do Salvador à Ladeira da Praça, avistara meu pai, uma jovem morena de sorriso meigo. Tinha ela belos olhos negros. Esta moça chamava-se Nair, e viria ser a minha mãe.
Da cidade de Valença, vivia aí na capital em casa de parentes. Estudava para o curso Normal. Trocaram olhares apaixonados. Tempos depois, uniram-se ao matrimônio. Começaram uma família promissora. Tiveram seis filhos - cinco meninas e um menino sendo eu a primeira dessa prole.
Meu pai, católico praticante, seria um provável descendente Sefaradi. Disso hoje tenho certeza. Oriundo da Península Ibérica - Sefaradí - a terra distante com se diz em hebraico. Porém, isto nunca nos foi revelado.
A história do povo da Península Ibérica - Imigrantes recém chegados ao solo desbravado do nosso Brasil – Traziam consigo o segredo de seus antepassados distantes.
O lacre do sigilo- a herança do medo histórico, até hoje presente.
Gonzalez, Perez – seriam estes nomes sefarditas ? Busquei sustentar meus argumentos com a intenção de desenrolar a história de meus antepassados. Fiz leitura de registros idôneos. Consultei historiadores assim como religiosos.
Pesquisei o que foi escrito em torno do povo judeu na Península Ibérica a cerca da sua saga mundo afora. Procurei em bibliotecas.
Escritos diversos.
Interpretei símbolos e comportamentos familiares ao longo dos meus anos. Não contava com a ajuda de parentes mais próximos. Sentia imediata rejeição ao tocar em tal assunto. Proibido. Ofensivo até. Uma grande escara aberta ao tempo. Parece nunca cicatrizar. Esta é a minha impressão.
Quem sabe não serei apedrejada após a publicação desses relatos? Não importa. Alguém tem que tomar conhecimento dessa história que não pertence somente a mim.
Em viagem de reconhecimento pela Galícia, senti a emoção aflorar. A caminhar, pelo rastro de mim mesma, atraia-me o valor do pertencer. A essência de minhas origens. Não sabia que tinha tantos primos. Próximos e distantes. Preciosos elementos, ramos de uma árvore genealógica por se completar no meu caderno já repleto de nomes. Meu tronco paterno.
A princípio meu pai condenava a deliciosa culinária baiana. Comida de dendê, não se punha na mesa. Essa situação perdurou por muitos anos, mas aos poucos, o os temperos baianos, iam vencendo os obstáculos, e o galego teimoso, ia caindo de amores pelo vatapá e caruru... Foi aos poucos se deixando seduzir pelo paladar.
Assim, um bom vatapá se fazia com esmero, se bem que com aquela dose magistral de azeite de oliva. Duas culturas que se casavam muito bem - A do azeite de oliva e a do óleo dendê. Daí por diante via para meu contentamento, com o passar do tempo à nossa mesa, sem cerimônias diga-se de passagem, a triunfante moqueca de xaréu ao lado da frigideira de caranguejo que foram incorporados ao cardápio da Semana Santa. Não faltando aí as cores do vatapá.
Contudo alguma restrição no que se diz respeito à farofa de dendê. Só às escondidas lá no cantinho junto ao fogão, com a conivência de Amélia, a nossa ama de muitos anos. Entretanto o rastro denunciante de farelos ao chão da cozinha fornecia indícios da nossa rebeldia. Mas, acredito que meu pai até fazia vista grossa, principalmente quando estava de bom humor.
Difícil se imaginar que o Senhor do Bonfim seria o mesmo Oxalá. E que a governar o reino das águas encantadas, das fontes, dos rios, cachoeiras e lagoas estaria Oxum a deusa do ouro. Já o canto da sereia na verdade seria o de Iemanjá. Pelo menos lá nas águas de Amaralina, a abençoar as redes dos pescadores que traziam fartura de peixe grande - peixe Xaréu. Muito bem-vindo à mesa de todos nós, baianos e galegos.
Enquanto meu pai vendia o pão que amassava, com nostalgia falava de terras galegas distantes. Minha mãe, serena pessoa, dotes culinários e artísticos tinha. Nutria e nos embalava ao som de ternas canções de ninar. Contava histórias de seres esquisitos de floresta imaginária, e de monstros de mares distante dos ricos aos mais humildes. Compartilhávamos todos as calçadas da Avenida Leovigildo Filgueiras, a via principal do bairro. A rua dos trilhos do bonde.
Passagem obrigatória. Do ceguinho à esquina do armazém do português no tilintar de moedas na cuia de queijo, ao homem da perna-de-pau, morador do Alto da Silveira. Como não lembrar do falador da vida alheia - Bate-Bico - morador do beco do Sabino que era também padioleiro do Pronto-Socorro. As cantigas do verdureiro ainda tão vivas na memória daqueles que as escutaram um dia. Quem não se lembraria do mercador de peixe que vinha do Rio Vermelho a pé e que passava invariavelmente pelas manhãs.
Já o vendedor de pirulito tocava seu realejo pelas tardes. Fazia seu ponto na porta do colégio Dois de Julho.
Bandos esporádicos de ciganos montados a cavalo armavam suas tendas nos terrenos baldios da Fazenda Garcia. Traziam mercadoria exótica. Motivavam um certo receio. Dissimulado. “Cuidado, pois cigano é ladrão de galinha...”
Fascínio em sorrisos de ouro. As mulheres ciganas liam as mãos de moças e rapazes à saída do colégio. Eram suas profecias acreditadas em troca de algumas moedas.
Sempre queriam mais no convencer intencional. Aos homens ciganos cabiam outras tarefas - Batiam de porta em porta oferecendo simpatia envolvida na magia de peregrino pelas estradas do mundo. Sonho de outros. Sabiam usar bem as palavras. Tachos de cobre e almofariz niquelado faziam como ninguém. A arte dos ciganos nos metais. Herança da sua gente de muito longe. Da Índia? Ou da Romênia? Ou da Espanha? Não importa. Romeiros de vida a percorrerem caminhos de seus ancestrais digno valor da cultura.
O Afoxé dos Filhos de Gandhi ao lado da Mudança do Garcia faziam a história do bairro. Carnavais de percussão inspiradora arrastando multidões ao longo da avenida.
Quanto às baianas do acarajé (eram tantas) distribuíam-se em pontos privilegiados. Pertenciam às esquinas nas imediações das paradas do bonde ou próxima dos colégios.
Instalavam-se com farto tabuleiro e um pequeno fogareiro. Traziam de costume um menino ajudante a tiracolo. Um parente, geralmente. A longa avenida era passagem de todos, sem distinção. E, comíamos do mesmo pão. Branca massa de esforço legítimo. Madrugadas crescidas ao forno aquecido.
Era uma folia só, e ao final estávamos todos lambuzados com prazer. Crianças escolhidas metiam as mãos na enorme gamela de barro e comungavam vatapá, caruru, farofa de azeite, arroz branco, milho, pipoca, roletes de cana, banana da terra frita e um pedacinho de galinha para cada um – somente sete crianças como mandava o ritual. Aprendíamos os nomes dos orixás – o branco era de Oxalá. Amarelo de Oxum.
Crescíamos acostumado a presença de ebós ou feitiços pelas esquinas do bairro. Medo e respeito em torno do que se falava. Minha mãe segurava nossas mãos e éramos obrigados a atravessar a rua afim de não passar perto do feitiço chamado.
Ao se voltar para casa depois de um caruru, tentava-se apagar os vestígios da festa. Amélia desaparecia em direção ao quintal com as roupas manchadas pelo azeite
Levando com ela os rastros incriminadores. ao tanque de lavar roupa mãos cuidadosas tentavam retirar as marcas dos nossos vestidos. Sem muito sucesso, contudo.Incursões pelos terrenos baldios da Curva Grande se vaziam necessárias na colheita de biri-biri.
Junto ao sal servia como descolorante, com a ajuda do sol.
No dia seguinte, exibiam-se as roupas ensaboadas no imenso quaradouro.Um extenso chão de cimento áspero, de um pátio de tantos acontecimentos que nos viram crescer – o pátio e o imenso bueiro da padaria.
Bolhas de sabão, uma diversão barata. Quintais alheios abandonados nos proviam de material necessário.Mamonas despreocupadas aí cresciam férteis.
Os meninos do Alto da Silveira contra os da rua do Sabino disputavam a melhor pontaria nas batalhas de badogue. As meninas sopravam os canudinhos. Bolhas de sabão se perdiam no ar.
Gatos no cio, Mamonas em terrenos baldios e Cantos de cigarra num quintal de jaca madura. Meu mundo era de flores silvestres.
Passeios no bonde do Rio Vermelho. As conchas na praia.
Graxas vermelhas de jardins alheios A enfeitar meus cabelos negros. Eram adornos preciosos que não se compravam nas vitrines da Loja Slopper.
Quantas vezes afoguei meus sonhos de criança em águas rasas de pensamentos furta-cor, submergindo tempos depois num mundo paradoxal, de teoremas fundamentais, mas, sentindo-me a heroína da minha própria libertação.
Vivíamos todos no pacato bairro de cores distintas, que resistiriam à corrosão do tempo inexorável. Tempos que pintaram a aquarela da minha infância.
Um monstrengo de pernas finas a passar pelo corredor largo seguia em direção à sala da frente um móvel esquisito. Nosso primeiro aparelho de televisão.E o primeiro homem a pisar na Lua. Acontecimentos distintos. Aos domingos, ainda pequenas, escutávamos através do velho rádio Phillips, um programa de música típica espanhola pela Rádio Nacional - A hora de España - que muito apreciávamos - “passo doble”,
sevilhanas e gitanas. Meu pai não perdia um programa. E nós adquirimos o prazer de escutá-lo depois que ele se fora.
“Paella” e
xinxim de galinha. Arrotávamos o prazer do piquenique nos relvados verdes sob a sombra do coqueiral do Bico de Ferro. Havia empanada de bacalhau que minha tia Socorro trazia em largas assadeiras. Frigideira de caranguejo, com azeite de dendê, que minha mãe juntava aos pratos galegos. Todos comiam e gostavam. Formávamos um grande grupo; a nossa família e a de tia Socorro, que era a única irmã de meu pai aqui no Brasil. Alguns amigos galegos juntavam-se a nós. Dona Carmen e Seu Jesus eram de Pontevedra, moravam no mesmo bairro. Na Rua dos Protestantes. Eram compadres de meus pais. Batizaram minha terceira irmã.
Mês de setembro, tempo de festas. Caruru de São Cosme e São Damião.
Convites não faltavam à comilança dos santos gêmeos tidos como santos das crianças.
Meu pai era um tanto reticente quanto à veneração de santos pagãos.
Apague a lamparina Apague as Velas Esconda a farofa Quantas vezes assisti ao corre -corre a subir as escadas do sótão.
“Ele está chegando... Manuel está chegando... A onça está chegando...” O ranger da escada de madeira era o suficiente
Lembro-me que inocente, perguntara a minha mãe em frente a meu pai: “mãinha, cadê a Onça?...” “Ah, então a onça sou eu...? “Silencio. Os olhares convergiam na minha direção, como se atirassem flechas de desapontamento. Querendo dizer, traidora...
Minhas tias corriam a apagar as velas do pequeno santuário no sótão. Escondiam os santos - São Cosme e São Damião.
Acaloradas discussões entre meu pai e minha mãe
presenciávamos sem entender. Meu pai não simpatizava com uma fé totalmente alheia à sua, e certamente tinha receio de ser diferente dos seus patrícios galegos. Mostrava-se intolerante.
O bonde do Rio Vermelho. A viagem. A paisagem. Pessoas entrando e saindo a cada parada do bonde. A praia. A magia do mar. As conchas na areia.
Não sei o que era mais excitante, se a viagem no bonde, ou a imagem do mar, na areia batendo forte. Almoços aos domingos, passeios de bonde à praia de Amaralina, ao Rio Vermelho. No Clube Espanhol, no Corredor da Vitória, comemorava-se, no mês de julho o dia especial a Santiago de Compostela, o padroeiro da Galícia. Havia fartura de comida. Cantos e danças galegas. Eu e minhas irmãs vestidas em fantasia galega.
Durante os dias de carnaval, como a padaria Quintela ficava bem no centro da cidade, perto do relógio de São Pedro por onde passavam os carros alegóricos.
Meu tio dispunha uma linha de inúmeras cadeiras amarradas umas às outras. A nossa família participava com eles, apreciando a passagem do cortejo. Havia muita fartura de comida. empanadas de bacalhau e empadinhas de camarão. Os adultos bebiam cerveja ou vinho e nós,as crianças, preferíamos gasosa de limão, aliás não tínhamos escolha.
Tudo tinha um espírito muito afetivo e comunitário, o que nos unia em laços estreitos por certo tempo.até quando meu pai subitamente veio a falecer.
Vitimado por um infarto do miocárdio em plena mesa de jogo de cartas no Centro Espanhol. Uma quinta-feira inesquecível. A partir daí veio o distanciamento da família. Outros tempos batiam a nossa porta e assim nos preparamos para a vida de acordo com as insurgências. Tempos difíceis.
Aprendíamos com a nossa própria experiência, pois já não contávamos com aquela família a família de meu pai, que se distanciava no tempo. Cada um seguia seu próprio rumo na vida. Começávamos a nossa lida de trabalho durante o dia,
e de estudos à noite, ora na escola pública, no Colégio Central da Bahia onde terminava o segundo grau tentando alcançar a universidade.
Tornávamo-nos adultos por imersão, mergulhando na sobrevivência, nos contrastes da imensa cidade contornada pela baía azul, nosso marco existencial na paisagem contente.
Já libertos das botas corretivas, tirania ortopédica que durou alguns anos, Pisava eu um tanto zambeta. Em passeio ao templo sagrado da colina do Bomfim dependuradas ao teto da igreja ao lado de muitos outros usares lá via eu um dia para espanto, membros em cera branca – pernas, braços e cabeças. Que sensação, mas cresci. Ganhei o mundo. A buscar minha origem distante, desembarquei em terras portuguesas do norte. A cidade do Porto. Os primos galegos já estavam a nossa espera. Seguimos pelo vale do Minho em viagem de trem. Alcançamos terras galicianas. Os rios Ávia, o Minho e o Douro.
Havia pedras no caminho. Incógnitas eram os arcos romanos. Suporte de pontes inabaláveis ao tempo.
Da Cantábria soprava o vento gelado. Mensagem de encontros. E assim me senti em casa.
Caminhos de pedras seculares. Percorri encostas e caminhos sinuosos. Galguei encostas íngremes, e desci aos férteis vales de aguadas mansas. Bolhas nos pés se formaram, mas dor, nem sentia. Somente um grande prazer de ali estar.
Cavalos livres, sensuais, ausente de cabrestos dominavam a paisagem. Atávica presença, lembrança do povo céltico.
Avistei a Peña Corneira, alta elevação à montanha, indicando posição de ancestralidade. Em San Justo de Avión bebi da sua pequena fonte. Onde meu pai e meus avós também saciaram a sede nos dias quentes de verão. A presença de meus antepassados estava latente em cada pedra que tocava. Tão forte era o sentimento. Como o granito sustentador daquelas paredes medievais. Sólidas casas às intempéries, onde me deixaram pousar nos breves dias em que aí passei.
Caminhos impregnados de história. Celtas,fenícios, árabes e judeus por aí deixaram marcas de suas culturas. Em Orense, forte ainda se mostra a estrela de Davi às portas das casas do Bairro Judeu.
Ao longe avistei a pequena capela do Santo Apóstolo. Cheguei mais perto aí deixei uma prece de sobrevivência. Adentrei o pequeno jardim do cemitério ao lado. Era Dia de Finados. Flores convencionais adornavam as lápides reverenciadas em nome daqueles parentes queridos. Gonzalez, Perez, Cota. Nomes familiares. Minha bisavó também chamada Amália, lá descansava, à sombra de muitas outras almas.Meus ancestrais paternos.
A caminhar por ruas e vielas sombrias de Orense, a pisar naquelas calçadas de pedras redondas, escorregadias, em dias de chuva, vislumbrei luzes que nunca se apagarão. A história desse povo descendente de judeus de Israel e da Palestina. A luz que nunca se apagou – a estrela de Davi no frontal das casas do Bairro Judeu falava por si só. A significação poderosa de um simbolismo secular. Um elo de união entre povos que disputam o mesmo Deus.
Judeus, cristãos e mulçumanos, gravitam em torno de uma mesma estrela.
esquisita, as minhas botas de ferro e couro já não eram minhas, pertenciam a outro mundo - O mundo dos ex-votos.
São tantas as penas
Em céus de pardais contentes
Um rico despertar de ouro
Desdobra-se o inseto larva ao sol
O que sei eu de ti?
Quantos daí partiram
Um dia
Deixando à mesa do pai
Por cortar o pão
O vinho por beber
Tinta dos céus
Coberta de seus vinhais
No espectro de suas manhãs
Despertadas de sonhos
Seu lugar à mesa
O copo. O prato.
O garfo e a faca
Oh, já não estarei mais aqui...
São tantas as penas
Choram as mães a partida
Quantos daí partiram um dia
São tantas as penas...
Confiscadas cores
Eis que a candeia se apaga
Esfuma-se à distância
A casa do pão e do vinho
Naufraga
Os vinhedos. Esquecidos
Distante lembrança
Morridos
Descansam na saudade
Estática calma pálida
Confiscadas cores
Ora somente riscos e rabiscos
Espectro de fantasma conhecido
Estática calma pálida.
Pedro Dommec e Xerez de La Fronteira...
Perfilados cavaleiros de Espanha
Prisioneiros de uma cristaleira
Acenavam encantos
através dos pequenos vitrais
Quanta tentação por tocá-los
Bebidas nobres
um toque distinto
ao vinagre de casca de banana
ainda a fermentar num barril de madeira
na escura despensa da nossa casa
Já sentira falta de suas garrafas meu pai
No calor do aborrecimento
desapareci rapidamente.
Enfiei-me debaixo da cama.
Na ausência súbita, assumia a minha culpa.
Mas o achado, ausente de conteúdo,
logo foi encontrado
no interior do galinheiro.
Amélia disto se encarregou.
Levei uma surra de cinturão
e fui parar na salmoura.
Ardia a pele e a alma.
Muita raiva tive de meu pai
Dizia para mim mesma: tomara que ele morra...
Quando isto veio a acontecer
fiquei cheia de remorso.
.
Ave distante
E depois de muito tempo...
De longe avistei a casa
Janelas e portas cerradas,
ausente de suspiros vitais me pareceu
deu aquele aperto no peito.
ave distante
seu piar alcançou o momento
Situações ali passadas vieram ao meu encontro
Senti o arrepio na lembrança do antes.
Adiantei os passos. Olhei em volta
qual toalha de mesa posta às avessas
Não se permitindo ver os detalhes do bordado
Assim me pareceu a grande praça central
A casa da torre era aquela louça trincada
ausente de sentido
No banquete do presente
perdera o sentido do gracioso íntegro
o colégio dos padres
parecia-me inabalável ao tempo
resistiam às intempéries dos anos
aquelas muralhas robustas
a resguardar preciosa arena de saberes.
à imagem de uma velha senhora
suas artérias calcificadas a exibir a passagem dos anos
narinas de um bueiro frio expiram a poeira do tempo
a padaria do bairro
cuja massa generosa alimentara a todos sem distinção
portas e janelas cerradas,
caliças a descascar a lembrança do passado.
Oh, mas cadê a grande palmeira imperial
Ao centro da praça,
o marco do encontro de namorados
sentia a sua falta
Ventos direcionais
Indicava intempéries por vir.
Como são nítidas ainda as suas feições
Como não me lembrar
Do meu primeiro arfar contente...?
Meti a mão na bolsa .
Procurava pela chave
Consegui abrir a porta.
Entrei. Com um certo receio
Tudo lá dentro parecia descansar.
O silêncio me dizia tudo.
Somente o vento lá longe zunia
ao agito de palmas derradeiras
As que ainda restaram
ao alto do jardim dos padres
mensagens de regressos
vinham ao meu encontro
Buscava cômodos antes ocupados
Seguia pelo longo corredor
levando-me à sala do grande espelho
outrora a refletir vaidade ilusão adolescente
Os móveis ainda conservavam
um quê da vida anterior,
encobertos pela óbvia poeira
cinzenta do sono a eternizar
só por instinto, meu dedo
aí rabiscou uma letra,
uma marca qualquer,
apenas um contato de pele
talvez a recôndita vontade
de morna interação
em tal fria superfície sentir
Na silhueta de cadeiras mortas,
Percebia vozes dos ausentes
Ainda tão presente
diálogos dos incompreendidos.
A velha gravura de campos de trigo,
provavelmente na Toscana,
ainda lá estava pendurada à parede úmida,
um tanto inclinada, é verdade
Nem tentei ajeitá-la.
Lembrança da minha primeira viagem à Itália.
Volumes de mofos criaram um claro-escuro tenebroso
A figura do momento.
A cristaleira prestimosa, preciosas taças de finos licores
Aí restaram seus fantasmas.A reter a essência do tempo.
Estaria tudo lá, imaginei.
Só um detalhe: a prateleira do meio
estava a despencar
Desviei meus olhos ante o irremediável.
Busquei o sótão, antes o tão necessário
canto escuro da minha alma sozinha
A escada rangia na sua rouca voz. A de sempre.
A cada degrau, uma figura do passado vinha à minha frente
A criatura malvada a me atormentar a infância
... A cobra já estava morta - Era só para meter medo a criança...
Ah A arca dos brinquedos
Vazia. Contudo plena de significados.
Quantas vezes atravessara o Atlântico
Nos porões do grande Alcântara.
trazia meu pai da Espanha
Sedas e perfumes caros
Castanholas. Até gaita de fole
Bonecas de louça
O palhaço de cinco caras era o meu favorito
Era só rodar a cabeça, e o espetáculo começava
De tanto rodar, um dia perdeu a cabeça.
Não me desesperei. cansada estava de tanto rodar
Os brinquedos antes tão cobiçados
À velha arca foram esquecidos
Tempos do primeiro beijo apaixonado.
Ah... e a pequena cantoneira de madeira?
suporte de lamparina votiva,
vejo-a ainda pregada à coluna de madeira
ora ninho de insetos caseiros
teias de aranha
Parecia ainda suportar o peso das dores maternas
Cânticos e orações. Luzes do meu tempo
Eram tantas as lembranças vivas
quase perdi a cabeça.
Esvaí-me daquele sótão bem devagarzinho
Não queria despertar as almas do outro mundo
Teimavam em levantar-se
Do leito das minhas recordações
Contudo, voltei aos fantasmas da sala de jantar
Eram tantos
Pensei em sair correndo
Meus pés pareciam grudados ao chão
Desejei reaver meu corpo sob a tontura do momento
O bueiro já havia esfriado
Fazia tempos saíra a última fornada de pão
Acho que me atrasei...
No emaranhado de trastes
A perder-se no tempo irreversível
Inteligente, busquei uma saída
A porta do quintal ainda estava aberta
Estranhada voz - Quem é você?
Sou parenta da casa, falei
Ah, sei... Ironizou com indiferença a criatura
Senti-me uma figura de catacrese
Aquela metáfora que perdera o sentido.
Recobrei o senso do presente. Retomei a lucidez
Busquei alternativa sobre restos conhecidos
Celebrei o passado. Animei o cotidiano
Ganhei o mundo
Ramos de pitanga me acenam
à passagem de finas areias ao chão.
Fim
(História enviada em dezembro de 2011)Recolher