Ponto de Cultura
Depoimento de Hanne Lore Kosanovic
Entrevistada por Giselle Rocha
São Paulo, 23/06/2009
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PC_MA_HV186
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 – Primeiro, Hanne, muito prazer em recebê-la, muito obrigada.
R – Eu que te agradeço....Continuar leitura
Ponto de Cultura
Depoimento de Hanne Lore Kosanovic
Entrevistada por Giselle Rocha
São Paulo, 23/06/2009
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PC_MA_HV186
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 – Primeiro, Hanne, muito prazer em recebê-la, muito obrigada.
R – Eu que te agradeço.
P/1 – Pra começar, eu queria que você falasse seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Meu nome de solteira era Hanne Lore Langen Steinhäuser; de casada, Kosanovic. Nasci em Vila Velha, Espírito Santo, na praia, em nove de outubro. É necessário dizer o ano (risos)? 1932.
P/1 – A gente já conversou um pouquinho. Já vi que você tem muitas histórias de antes da sua existência, então acho que a gente vai pra bem longe. Vamos começar dos seus avós; falar o nome deles e pode escolher alguma parte da família pra começar a contar, ou o que você for lembrando, eu vou te ajudando.
R – A família do meu pai vem do Reno, anteriormente perto de Weimar, na Alemanha. Eram intelectuais, compositores, filósofos, escritores. Escreveram partituras interessantes, até pequenas obras. Eram uma família, como se dizia na época, da alta burguesia. A minha avó, por parte de pai, era também do Reno, perto da Holanda, onde nasceu também o meu pai. Eles se chamavam Steinhäuser, de sobrenome.
Os avós maternos eram franceses; fugiram, durante a Guerra dos Trinta Anos da França, da Gascogne para a Bélgica, para a cidade de Bruges, famosa cidade que você conhece. Eram fabricantes de tecidos e trouxeram consigo muitos móveis lindos. Você sabe como essa Guerra dos Trinta Anos foi uma coisa terrível, um guerra de religião. Eles eram huguenotes, quer dizer, eram protestantes e os católicos os perseguiam. E eles levaram, entre outras coisas, o armário feito na época da Renascença, na época em que o Brasil foi descoberto, 1580. Um armário todo em carvalho, intarsiado… Você vai ter a foto aí, uma história interessante. Eles pintaram de vermelho, pra que não fossem roubados durante a viagem. E realmente, tudo o que eles tinham de bens, de móveis maravilhosos, tapetes, pratas, tudo foi roubado quando eles chegaram em Bruges, eles não tinham mais quase nada. Mas esse armário, como estava pintado de vermelho, não parecia nada; continuou dentro da família. Muito mais tarde, essa família emigrou para o outro lado do Reno; foi pra Alemanha e carregou esse armário, mas esses netos já nem sabiam mais da história dele. Acho eu que não sabiam; em todo caso, ele continuava vermelho. Até que um bisavô meu, que era farmacêutico, viu que havia um machucado nele, uma empregada deve ter batido com a vassoura, não sei o que... Enfim, pra encurtar a história, ele fez uma... Como é que se diz? Uma solução farmacêutica e limpou o armário; ele está hoje comigo. Isso depois de quantos anos? Quinhentos anos. Esse armário acompanhou a família o tempo todo. Quando eu era pequena, já em Vitória, eu era muito mística, como todas as crianças, e rezava em frente desse armário aberto. Achava que lá dentro morassem anjos e fadas. Minha avó, quando viva, disse: “Quando você casar, você vai ganhar esse armário”, então ele está lá em casa. Nunca entrou um animalzinho, um cupim, nada. Fantástico. Enfim, essa história... Eles se chamavam Clavier Benoit de Saint-Sever, porque a cidadezinha que existe até hoje na Gascogne é Saint-Sever. Depois foram casando e acabaram se chamando Langen.
Você quer que eu continue ou quer parar?
P/1 – Pode ir. Eu vou te ajudar.
R – Depois você corta, né?
P/1 – É. Aí tudo o que você se lembrar...
R – Você corta depois, porque estou falando tanta coisa igual, não adianta.
P/1 – Pode falar o quanto você quiser. Tem gente que não consegue ter uma estrutura.
R – Você me critica, por favor?
P/1 – De jeito nenhum, pode ir.
R – Eu gosto daquele alinhavo que nós jornalistas temos que ter.
P/1 – Pode dar continuidade.
R – Então tá bom. Deixa eu pensar. Essas duas famílias se conheciam, eram amigos. Os Steinhäuser do Reno e os Clavier Benoit de Saint-Sever, que depois viraram os Langen, se conheciam. Meu avô, Clavier Langen, foi um menino muito bem educado, porque você tem que imaginar que, naquela época do século passado, o pai dele tinha uma fábrica de tecidos. Continuaram sempre fazendo isso, aliás, veludo. Então ele foi mandado para Glasgow, pra Escócia, pra estudar inglês e aprender o ofício e depois foi pra Bélgica - ou vice-versa, isso eu não me lembro bem, pra cidade de Spa. Interessante que em Glasgow, o chefe dele era amigo do Mark Twain. Sabe quem é Mark Twain?
P/1 - Não.
R – Acho que ele escreveu “A Cabana do Pai Tomás”. Um grande escritor, irlandês. Enfim, depois esse avô foi pra Bélgica. Ele tinha só 18 anos quando essa firma belga o enviou para o Rio. Antes disso, é interessante contar que a família dele, como eram franceses de origem… Você vai ver um documento de um dos antepassados ainda sob as ordens de Napoleão, vai ver esse documento aí. Esse avô, que se chamava Roberto Langen, foi enviado ao Brasil como representante da firma Peché Efrèr -
eu não me lembro o que eles faziam realmente. Em todo caso, ele veio de barco a vela, aliás de navio a vela, da Alemanha, eu acho, até o Rio. Passou três meses viajando e me contava que era muito interessante, porque eles não tinham motor. Então às vezes, quando havia calmarias, eles passavam dias e dias jogando de um lado pro outro no mar, até que chegou no Rio. E no Rio ele morou em Santa Teresa, numa assim chamada república, que era … Até hoje acho que vocês jovens ainda têm isso, que são quando dois ou três ou quatro rapazes, ou moças também, moram juntos. Ele tinha dois amigos, com os quais ele morava. Interessantíssimo é que ao lado, numa vila, moravam duas moças lindas, cuja mãe tinha morrido. O pai era amigo ainda do Imperador, que era o Pedro II. Era a época logo depois da escravatura e essas duas moças eram muito bem educadas porque tinham uma governanta alemã, com a qual elas passeavam no jardim. E os três caras lá em cima, um dos quais meu avô, quando a governanta não olhava, mandavam uns bilhetinhos, que chamavam billet-doux, dentro de uma pedra com “Você é muito bonita”, sei lá. Pra encurtar, ele [se] casou com uma das duas irmãs, que se chamava Lídia da Fonseca e foi a grande paixão dele. Com ela, ele teve uma filha e ela morreu logo em seguida do parto, quando só tinha 19 anos. Então meu avô, muito desesperado, voltou pra Alemanha de navio de novo. Um navio a vela, mas muito importante, porque esse navio já tinha um motor, então só quando não havia vento é que ele ligava o motor. Ele voltou com essa menina, Ina, que se chamava Ermelina Wagner Langen Barbosa da Fonseca, com uma babá preta, assim com um peito muito grande, com dois papagaios e um macaco - ou vice-versa, isso eu não sei - voltou pra Alemanha. Ele acabou sendo cônsul brasileiro em Dusseldorf. Nunca esqueceu o Brasil, amava o Brasil. Muitos anos depois, conheceu a minha avó alemã. Essa menininha morreu com nove anos, de uma apendicite não-diagnosticada, o que era típico daquela época. Então voltaram depois em 1912 pra Vitória, já com minha mãe pequenininha e meu tio, e o meu avô fundou, com um cônsul alemão da época, uma firma de exportação de café. Teve muito sucesso, foi muito feliz nisso tudo e eles tinham uma casa linda na praia. O avião vinha do Rio e pousava ali na praia mesmo. Eram coisas assim, tenho todas essas fotos. Minha mãe e meu tio cresceram com uma cultura impressionante, porque quando ela tinha 17 ou 18 anos foi pro Rio, fazer o exame de maturidade.
Passou em segundo lugar e nunca tinha ido à escola. Por que? Porque os meus avós mandavam vir da Europa os preceptores, como se chamavam. E ela tinha que aprender, desde as sete horas da manhã, a fazer uma cama, a arrumar a casa, a limpar uma privada, Latim, Grego, Música... Tudo o que nós também aprendemos na escola, Matemática, Física e Química, enfim, escola mesmo. Imagina que loucura. Nunca foi a uma escola porque achavam que Vila Velha não era bem o lugar pra ser educado. Vila Velha, onde eles foram morar, era um pequeno Paraty, lindo, uma aldeia de pescadores. Hoje é uma selva de pedras, muito feio mesmo, mas lá minha mãe cresceu, enquanto a família do meu pai… Agora quero fazer esse sidewalk [passeio]. Como eu te contei, moravam naquela cidadezinha do Reno, eram pessoas assim da alta burguesia, mas muito modestas, muito cultas. Esse meu avô, Gunter Steinhäuser, estudou Direito, mas na Primeira Guerra ficou sem dinheiro e não achou interessante continuar com essa carreira. Foi ser industrial. Enfim, ganhou dinheiro, mas quando se aposentou, com 70 anos, ele começou de novo a trabalhar com direito. Então ele defendia os camponeses daquela cidadezinha contra outros camponeses que brigavam por causa de uma vaca, por causa de três galinhas, porque um tinha roubado a terra do outro ou seja lá o que for. Quando ele ganhava essa causa, em vez de dinheiro, ganhava três galinhas, uma vaca. Uma vaca acho que jamais ganhou, mas alguma coisa e ele se dava por feliz com isso. Um dia ele defendeu um amigo judeu - isso foi no ano de 36, imagina - contra um camponês ariano e venceu essa causa. Eu não sei se esse amigo judeu depois deu a ele três galinhas ou uma meia vaca. Só sei que, alguns dias depois, ele e minha avó, já com mais de 70 anos, estavam dormindo na cama e três rapazes nazistas, daqueles loucos, fanáticos, entraram pela casa adentro - tudo aberto, obviamente -,
pelo jardim.
Subiram e massacraram o meu avô, ao lado da minha avó, na cama. Minha avó, coitada, nunca mais se recuperou direito. Ficou sempre um pouco desnorteada e ele ainda sobreviveu alguns meses, eu acho. O mais interessante disso tudo é que eu fui uma criança extremamente feliz; nasci em Vila Velha, nesse fim de mundo, naquela época, no Espírito Santo e o meu irmãozinho também e meu pai, que teve que viver e sobreviver a essa história horrível dos pais na Alemanha, nunca nos contou essa história. Eu me lembro que ele fazia a gente rezar. Ele dizia: “Rezem porque o vovô está agora lá em cima” Só quando eu fiz 18 anos ele me chamou, me lembro bem, no terraço e me disse: “Minha filha, senta porque agora você é adulta, ou deveria ser, e eu quis que você fosse brasileira. Por isso você foi a colégios brasileiros, tem amigos brasileiros. Toda sua cultura é europeia, alemã, musical, filosófica, você a ganhou dentro das nossas quatro paredes, mas eu nunca quis que você tivesse ódios, preconceitos de racismo, de religião, seja lá o que for”. Aliás, minha mãe era católica, ele era protestante.
“Agora vou te contar o que aconteceu em 1936. O teu avô, que era um humanista, um homem aberto a todas as filosofias, foi realmente uma vítima do nazismo. Isso aconteceu e eu fiz questão de não te dizer nada, porque não queria que você tivesse nenhum tipo de ódio. Agora sim, você vai ter a sua opinião. Por favor, tenha essa opinião”. Esse foi o começo da minha educação, eu diria. Começo não, começou quando eu nasci, mas eu digo a linha de educação que meu irmão e eu ganhamos. Durante a Primeira Guerra, interessante também, é que esse avô em Vila Velha perdeu tudo porque era alemão. Era riquíssimo. Nada mais, porque o governo liquidou a firma de café que ele tinha. E ele tinha muitos amigos ingleses, com os quais ele jogava bridge. Esses amigos ingleses disseram, quando a guerra começou: “Infelizmente nossas pátrias agora são inimigas, então não vamos mais jogar bridge durante o tempo da guerra, mas também não vamos deixar de ser amigos. Não vamos nos ver”. Meu avô teve que vender tudo o que tinha, todos os tapetes e pratas e - essa mesma história se repete sempre - menos o armário, ele não vendeu. Os ingleses compraram tudo. E quando a guerra acabou, de 14 a 18, ele se recuperou, ele fez de novo, abriu a firma. Acabou sendo a maior firma de exportação de café do Espírito Santo; trabalhava com o mundo inteiro e depois de algum tempo, ele teve o dinheiro e recuperou tudo pelo mesmo preço. Eu gosto que os nossos filhos, pra quem nós estamos fazendo essa entrevista… Afinal de contas, pra quem? [Pra] Quem possa se interessar. Isso não é história, isso é história dentro da história, mas eu gostaria que vocês, da geração seguinte e as outras, talvez, pensassem um momento sobre essa maneira de se viver também, sem ódios e sem espírito vingativo, mas sim com todo o critério e bom senso de dizer: “Será que eu estou sendo justa?” Eu acho que isso a minha família me deu, tanto do lado da mãe como do lado do pai.
Enfim, o que mais que eu posso te contar? Meus avós, na Segunda Guerra, tiveram que voltar pra Alemanha. Isso foi com o Getúlio Vargas, porque o velho avô, já velhíssimo, era cônsul alemão honorário; não era nem diplomata e aí o governo do Getúlio Vargas o exilou. Foi pra Alemanha, foi bombardeado, perdeu tudo em Berlim e foi para a Áustria, para uma aldeia lindíssima, que se chama “Bacustein” [Badgastein] - não é bem uma cidadezinha - [eram] termas. Um chalé lindo, que você vai ter a foto, de amigos de Teresópolis - também eram exportadores de café. Interessante a história, porque nessa casa, que era quase um museu particular ou museu a domicílio, eles tinham, entre outras coisas, a partitura original da canção “Noite Feliz”, que em alemão é “Stille nacht, heilige nacht, alles schläft, einsam wacht, nur das traute, hochheilige Paar...”, todo mundo conhece, né? Esses dois que escreveram essa música eram um padre e um professor da escolinha da aldeia e justamente o dono desse chalé tinha, entre tantas coisas importantes, também isso.
Acontece que caiu uma única bomba, nessas poucas semanas antes do fim da guerra, nessa aldeia. Essa bomba era dos americanos ou dos ingleses, não sei. Era pra cair na estação e minha avó viu, da janela, como o vento carregou a bomba. Ela disse que, correndo, correndo, todos que estavam lá, amigos, parentes que tinham sido bombardeados, conseguiram fugir na neve. Existe uma foto que eu não tenho, todos de camisola na neve. A casa, essa casa linda, esse chalé, com todos aqueles valores, entrou nas chamas dessa guerra. Mais uma história interessante pros nossos filhos e netos. Esses meus avós eram realmente fora de série, principalmente a minha avó, da qual não se falou. Ela era cantora, a família dela era muito musical e o pai dela era amigo do Brahms. Não era amigo, era conhecido. Na época não tinha televisão, então as famílias se encontravam uma vez por semana pra fazer saraus de música, todo mundo tocava. O pai dele tocava violoncelo e o Brahms, que na época era diretor musical da cidade, também tocava nesse piano que existe até hoje, está na casa da minha cunhada, no Rio. É um Steinbeck. Minha avó cresceu também cantando, depois se casou com meu avô e foi pro Brasil. Como você sabe, ela é uma mulher fantástica, engraçadíssima. Com 96 anos morreu, mas com 95 ainda estava no teatro conosco; depois foi ao restaurante, depois foi a um cabaré e quando eram duas horas da manhã, alguém disse: “Bom, eu acho que está na hora de irmos embora”. Todo mundo diz: “É mesmo” e ela diz: “Vamos? Pra onde?” (risos).
Essa avó, depois que tudo isso aconteceu na guerra, conseguiu entrar em contato com amigos em Portugal que eram maçons - porque toda a nossa família era de maçons, era muito moda aquilo. E aí eles foram via Genève [Genebra] pra Portugal, pra voltar pro Brasil, pensando que tudo aqui ainda estivesse em pé. Nós tínhamos perdido tudo, os meus pais… Não havia mais dinheiro, não havia mais firma, tudo tinha sido liquidado. Enfim, essa é uma outra história. Ela conseguiu então ir até Portugal e lá ficaram um mês, na casa de amigos que também eram maçons, até que finalmente conseguiram, em 1946 - a guerra acabou em 45 -, encontrar uma passagem via KLM, a companhia holandesa, pra voltar pro Brasil. E havia rádio, eu me lembro que eles falaram, eu também, “Nós estamos voltando. Daqui a três dias vamos chegar no Rio, que maravilha”. Imagina, depois de todos esses anos, não é? Ela era muito vaidosa e tinha comprado um chapéu, mas esse chapéu estava grande ou pequeno, então eles ficaram de passar na chapelaria antes de ir ao aeroporto. Finalmente conseguiram uma passagem naquele voo da KLM, que naquela época levava 45 horas, acho, não sei. Aí chegaram na chapelaria. Imagina, o chapéu não estava pronto. O meu avô disse: “Com chapéu, sem chapéu, vamos embora, não pode ser”, “Não, sem chapéu eu não vou”. Pra encurtar também esta história… Eu não estou encurtando nada, estou sendo muito longa mesmo. Desculpem, meus bisnetos, se vocês ouvirem um dia isso. Então ela conseguiu o chapéu. Chegaram no aeroporto, o avião havia partido e caiu no meio do oceano. Todos morreram, inclusive uma famosa soprano daquela época, não me lembro se era francesa ou americana, mas até hoje existe... Você pode ver, esse foi um dos grandes acidentes da história. Eles voltaram um avião depois e viveram muitos anos felizes ainda conosco, no Rio. Infelizmente, só a partir daquele dia meu avô nunca mais questionou a minha avó. Quando ela tinha uma ideia, ele aceitava na mesma hora (risos), não questionava nada. Logicamente ela também tinha nascido num dia 9. Pois é, o meu avô era Libra também.
Enfim, ainda posso falar ou não?
P/1 – Pode.
R – Interessante sobre esses avós também é que quando ele estava no auge aqui, do café, ele tinha um freguês - se diz um cliente - italiano, se chamava Basílio Costalonga, que era um grande industrial também, e que havia herdado uma fazenda. Herdado não - tinha ganho uma fazenda numa noite de pôquer, o que é muito interessante da época também. Um grande fazendeiro, que possuía uma fazenda imensa no interior do Espírito Santo, perto de Cachoeiro do Itapemirim, Fazenda Paraíso. Perdeu a fazenda pra três, quatro amigos no pôquer. Pôquer se joga com quatro? Eram três. E esse Basílio Costalonga ganhou um terço dessa fazenda. Quando ele não pôde pagar uma dívida imensa ao meu avô, ele deu de porteira fechada essa fazenda pro meu avô. Basílio Costalonga para o Roberto Langen; meu avô aceitou a fazenda de porteira fechada e nunca esteve lá. Com palavra de honra e uma única assinatura, nada mais, e disse: “Com isso você está quites, não me deve mais nada. Não vai ter processo, não vai ter nada”. Aí vem a guerra, você já sabe a outra história, e nós, que tínhamos ficado lá, perdemos tudo. Isso foi uma coisa terrível.
Você pode ver que no dia 18 de Agosto de 1942 existiu um dia macabro na história do Brasil, que se chama o Dia do Quebra-quebra, principalmente no Norte do Brasil. Aqui no Sul isso foi menos dramático. Eu me lembro que eu era pequena. Meu pai voltou de Vitória e disse pra minha mãe que o governador do Espírito Santo, que era amigo nosso, Lindenberg, lhe telefonou e disse: “Vai pra casa porque alguma coisa está no ar”. O que acontece é que naquele dia cinco navios brasileiros (ou três, não me lembro), navios que estavam na costa do Recife, foram postos a pique. E pensava-se que fossem os alemães, logicamente, submarinos alemães que tivessem posto... E aquilo foi o começo do Brasil entrar na guerra contra o eixo Alemanha, Itália e Japão. Naquela mesma noite, às oito horas da noite, todas as casas de alemães, italianos e japoneses - principalmente alemães, como a nossa - foram destruídas. Eu era criança, meu irmãozinho também, eu me lembro que foi uma coisa inesquecível. Às oito horas em ponto caiu a primeira pedra. E eles destruíram a casa totalmente, a casa dos meus avós, que já estavam na Alemanha. Foi uma coisa horrível. Não quero entrar em muitos detalhes, mas foi horrível. E depois disso tivemos que sair da costa, porque dizia-se que alemães poderiam ser espiões. Antes disso meu pai foi preso; ninguém sabia onde ele estava, ele ficou preso com meu tio e todos os amigos alemães, italianos, numa clínica de leprosos, mas que não estava ainda pronta. Eu me lembro sempre. Engraçado, na tragédia sempre existem coisas estranhas. Meu irmãozinho saiu uma vez pro jardim de infância, voltou e disse: “Imagina que um garoto na rua me disse “Você sabe que seu pai já virou sanduíche?”, aí eu disse “Sanduiche de que? De mortadela?”(risos). Também disse: “É, o moleque lá, um pretinho me disse: “Seu João alemão cara de pão”. Sabe, mamãe, o que eu respondi? Eu disse: “E você é João, cara de feijão” (risos). Essa era a guerra, não era pra se rir, não. Tivemos que sair da cidade e fomos pra essa Fazenda Paraíso; pela primeira vez alguém da nossa família foi lá. E lá nós passamos… Eu passei três anos lindos, muito lindos, numa fazenda, aprendendo com a natureza o que realmente a vida nos dá de saudável, de bom.
P/1 – Posso perguntar? Você contou tantas histórias dos seus avós que já chegou na sua infância. E pra gente voltar um pouquinho, conte como seus pais se conheceram, esse início da criação da sua família.
R – Meus pais se conheceram porque os pais eram amigos, como eu já contei. Essa também é uma história engraçada porque meu avô que era, como eu disse, cafeeiro, foi pra Alemanha com minha avó e numa daquelas viagens levava sacos de café e fazia, como chama? Não é pombo-correio. É um correio, você põe uma carta dentro de uma garrafa, põe essa garrafa no mar e quem encontra dá notícias. Ele também fez isso e disse “Quem encontrar essa garrafa vai ganhar dez quilos de café”, sei lá, imagino, cinco quilos ou dez ou 20. Meu avô, o outro que era amigo dele, o ajudou a fazer isso. Assim meu pai, que era um menino, um único filho, conheceu a minha mãe quando ela nasceu e meu avô, por parte de pai, escreveu uma poesia que existe até hoje, “Para a Minha Noiva”. O meu pai tinha dois anos e a minha mãe tinha acabado de nascer. Os pais eram amigos e acharam aquilo engraçado: “Quem sabe um dia nossos filhos”, né? Só que minha mãe cresceu aqui em Vila Velha e o meu pai lá na Alemanha. Ele foi estudar e depois foi pra Viena. Meu pai - é interessante também pros meus netos e os teus - ele morou na casa da irmã do Freud, imagina. Anna, acho que se chamava Anna Freud. Engraçado, me lembrei agora. Mas depois ele voltou e quando meu avô e minha avó de Vila Velha vieram de novo visitar esses amigos, esse menininho que tinha escrito - que nunca tinha escrito a carta, mas enfim... Já era um rapagão sem emprego, porque tinha perdido o emprego em Viena e meu avô o convidou pra ir pro Brasil como estagiário, por dois ou quatro anos. Assim ele viu a minha mãe e começou o namoro, por isso estou sentada nessa cadeira aqui. É muito engraçado também, porque eu nasci nove meses depois do casamento deles, que foi no dia nove de janeiro. Nasci no dia nove de outubro, realmente é uma família muito organizada. E meu irmão nasceu no dia nove de outubro também, quatro anos depois. Gente, eu gostaria de ter essa organização (risos).
Eu cresci muito feliz, muito feliz mesmo, num jardim imenso, numa casa muito gostosa, nessa Vila Velha e tinha amigos maravilhosos. Todos são brasileiros e fui pro colégio americano - era em realidade brasileiro, mas foi fundado pela embaixada americana. Quando veio essa guerra, eu era pequena. Tive que sair desse colégio, estava ainda nos primeiros anos, fui pra um colégio de freira. Ah, será que eu conto isso? Eu era, como eu disse, protestante luterana, neta de pastores e quando eu cheguei lá, [o colégio era] tipicamente católico; as freiras disseram “O que? Você é protestante, minha filha? Você não vai pro céu”. Essa era a educação católica. “Mas minha mãe é católica”, “Não, mas...” Eu disse: “Escuta aqui, eu vou pro céu”. Cheguei em casa - eu sempre fui uma grande dorminhoca -, aí eu disse: “Meu pai, sabe de uma coisa? Eu não vou pro céu, a não ser que eu seja freira. Eu vou ser freira”. Ele era protestante, aí ele disse: “Minha filha, ótima profissão, porque finalmente você vai acordar cedo” (risos). Ir pra missa… Até hoje eu sei cantar a missa em latim. “Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, miserere nobis. Amen” e assim por diante. Todo domingo, cinco e meia da manhã, eu acordava pra ir à missa e meu pai me endossou totalmente nessa história. Ele era muito sábio. Era engraçado também. Ele disse coisas fantásticas… Rápidas, simples, curtas e grossas. Quando eu fiz 14 anos, ele disse: “Você pode ser freira, mas o que nós somos? Não somos nem católicos, nem protestantes; somos sim, cristãos. Então você vai... Seguindo a tradição da Igreja Luterana, você vai fazer a sua primeira comunhão, que lá se chama Confirmação. Existe um pastor no interior do Espírito Santo, numa cidadezinha chamada Campinas, e você vai ficar 15 dias lá, [vai] conversar com ele.” Esse velhinho pastor era um homem muito interessante, porque durante a Primeira Guerra lutou contra os bolcheviques. Sabe quem são os bolcheviques?
P/2 – (inaudível)
R – É, eu também eu não sabia. Ele me contou que não acreditava em nenhum deus, em nada, mas vendo todos eles lá morrendo, outros sobrevivendo, ele encontrou o seu Deus. Quando saiu da guerra, estudou Teologia, se formou e foi ser realmente um missionário dentro de uma… Enfim, de uma roça. Um homem desse poderia estar em Paris ou em Viena. Ele foi pra Campinas. Eu fiquei 15 dias lá com ele. Eu tinha 14 anos, ele disse: “Você é uma pessoa que gosta de pensar, de estudar. Você não precisa decorar todo esse catecismo - essas crianças aqui têm que ficar dois anos fazendo catecismo antes de entrar. Nós vamos conversar que nem os antigos gregos, embaixo de uma árvore, de manhã. Você toma o seu suco, eu tomo o meu vinho, você me faz perguntas como você está fazendo agora e eu vou responder no que eu puder. Você vai esquecer tudo, mas uma coisa você jamais vai esquecer. É o que eu vou te dizer agora. Quando você ou teus filhos te perguntarem “O que que é certo? O que é errado?” eu só posso te dizer uma coisa, os Dez Mandamentos vão te dizer. Aquilo que está lá. Isso já foi Moisés, já foram os judeus, já foram os muçulmanos, já são os cristãos. Seja lá quem for, os Dez Mandamentos nunca foram errados e nunca serão errados”. E a outra coisa ele disse em alemão: “Wenn du glaubst Sie hast. Wenn du nicht glaubst Sie hast nicht”. “Se você crer você terá, se você não crer você não terá”. Isso tem a ver com tudo; não só Deus, com você mesmo. Com teu pai, com teu amigo, com teu sócio, com teu inimigo. Acredite e você terá. Muito corajoso pra um padre, um pastor, pra um rabino dizer isso, porque eles são obrigados a dizer “Deus existe”. Não, ele existe se você acreditar nele, senão ele não vai existir pra você. Eu acredito assim. Enfim, eu fiz a Confirmação lá, com esse monte de camponesinhos e assim continua a vida, não fui ser freira não. Eu fui ser jornalista e modelo.
FINAL DA ENTREVISTARecolher