P/1 – Jorge, você pode começar falando o seu nome completo, o local e data de nascimento?
R – Claro! Meu nome completo é Jorge Francisco de Carvalho Melo. Nasci no interior do Piauí, em Piripiri, no dia 27 de novembro de 1948
P/1 – Seus pais são de Piripiri?
R – São
P/1 – Seu pai...Continuar leitura
P/1 – Jorge, você pode começar falando o seu nome completo, o local e data de nascimento?
R – Claro! Meu nome completo é Jorge Francisco de Carvalho Melo. Nasci no interior do Piauí, em Piripiri, no dia 27 de novembro de 1948
P/1 – Seus pais são de Piripiri?
R – São
P/1 – Seu pai e sua mãe?
R – Papai e mamãe nunca saíram de lá e viveram em Piripiri toda vida. Já velhinhos foram pra Fortaleza por todos os filhos terem saído e eles iam ficar sozinhos
P/1 – Seus avós maternos e paternos são de Piripiri?
R – Todos de Piripiri, apenas o paterno, do lado do meu pai, o seu Domingo Borges, ele não tinha endereço fixo determinado. Ele era um cigano, andava com um bando de cavalos comprando mercadorias na região litorânea e vindo pelo interior vendendo tudo aquilo, por isso ele foi deixando filhos por onde ele passava. E essa circunstância dos Borges criou para o papai um problema, que eu não sou Borges, meu pai é Raimundo Borges, por quê? Porque pelo velho pai não aparecer, ele foi criado desde pequeno por uns tios, irmãos da mulher dele, da minha avó. E esses irmãos da minha avó, o seu Aureliano, virou meu pai na cidade. Dos 25 irmãos que papai tem, ele é o único que foi morar em cidade, na cidade era Piripiri, uma vilazinha de nada. Todo o restante, os 24 outros irmãos de papai permanecem e permaneceram até morrer no mato mesmo, mato fechado. Nenhum deles foi pra cidade
P/1 – O que seu avô paterno fazia?
R – Ele comprava mercadoria como os grupos de ciganos fazem, eles fazem isso naturalmente, compram mercadoria no litoral. Por exemplo, se fossem ciganos de hoje, chinela japonesa, relógios, remédios e vendem naqueles interiores onde não têm essa mercadoria. E lá eles adquirem material que o interior tem como animais, bois, cabras, cavalos e levam para vender nas regiões de mercado que são as cidades maiores, litorâneas. Isso hoje. Naquele tempo, nas histórias que meu pai conta, é que meu avô comprava enxada, material de aço, martelos, pregos na região litorânea e entrava no sertão adentro vendendo aquele material; e comprava de lá a carne de charque, a linguiça, frutas secas, doces caseiros, pra voltar e vender. Então esse era o movimento. O que quer dizer com isso? Meu avô nunca teve um teto, ele morava sob o céu
P/1 – E a sua avó, mulher dele?
R – A minha avó, dona Cecília, que era a mãe do meu pai teve com ele 25 filhos, meu pai era o caçula. Da mesma mulher
P/1 – E ela tomava conta dos filhos.
R – Ela tomava, mas faleceu logo que o papai nasceu, acho que ele tinha quatro pra cinco anos quando ela faleceu. Como meu avô continuou tendo essa atividade, meu pai foi levado pelos irmãos mais velhos. Quando meu pai nasceu já tinha irmã dele casada, ele é o vigésimo quinto. As mocinhas de 20 anos já estavam casadas e elas não ligaram muito pra filharada pequenininha daquela senhora minha avó, dona Cecília. Então, uma tia de Piripiri que tinha uma padaria junto com o tio Aureliano achou por bem tê-lo porque era um funcionário a mais na padaria. E meu pai a partir de cinco, seis anos, já era funcionário da padaria em Piripiri. Ele trabalhava já com a venda de pão, distribuindo, gritando: “Pão! Pão! Pão!”, pela cidade e o povo comprando. E o meu pai se criou assim, um homem dependente, sem liberdade nenhuma. Ele nunca teve um quarto nessa casa, ele dormia sempre no peitoril ou nas calçadas do lado de fora. Nunca teve um quarto dele. Até os 27 anos de idade, quando ele casou com a mamãe. Como ele aprendeu um monte de ofícios, em uma cidade pequena, cortador de cabelo, barbeiro, pedreiro e o ofício de costureiro, fazia roupas, camisas, ternos. Não existia camisa feita, existia o pano que o pai dele era um dos que traziam do litoral, de Parnaíba, região portuária; panos importados do Sul ou de outros países, para aquele interiorzão. Meu pai aprende a fazer camisas, fazer roupas, com isso ele tinha uma forma muito ágil de ganhar dinheiro. Ou tava numa atividade e à noite pegava outra, então, ele sempre ajudando aos tios que cuidavam dele na padaria. Mas o que ele tinha de tempo folgado, e com isso ele juntou um capital. E se interessou por uma pessoa. Um dia a máquina dele quebrou. Ele nunca namorou com minha mãe. Ele tava fazendo um terno, tinha responsabilidade pra entregar e a máquina de costura dele quebrou. E um amigo dele, que trabalhava junto, nesta costura disse: “Rapaz, a única pessoa que tem uma máquina aqui em Piripiri que eu conheço é a Maria Hilda, minha irmã. Ele disse: “Vamos lá pedir a máquina dela”, ele disse: “Não sei se ela vai te ceder”. Minha mãe trabalhava nos Correios e Telégrafos como telegrafista, morse. Eu to falando pós-guerra, 45, 46, logo pós-guerra. Minha mãe tinha a função de telegrafista por concurso, antes era professora. Três anos mais velha que ele, ele 27, minha mãe 30. Ela já era considerada uma titia porque se a moça não se casa até 20 no interior naquela época, acabou-se. E o papai foi até a casa dela com esse irmão dela, e lá ele pegou. A mamãe não estava, estava nos Correios. Ele pegou a máquina e disse: “Faz rápido que a Maria Hilda vai ficar zangada por saber que eu te emprestei”. Papai pegou, ele tava costurando quando mamãe entra. Mamãe entra, disse que passou na porta, olhou assim, foi até a cozinha, voltou, olhou de novo. Papai disse assim: “Não é que a gente já tava namorando!”. Ele achou que aquele flerte era um namoro, não existia namoro. Foi aí que o irmão falou: “Rapaz, Maria chegou” “Ah, foi aquela que passou aqui olhando foi?”. Nisso aí falou pro irmão, quem é, casada com quem, tal, e o irmão deu a notícia que ela não era casada. Ele disse: “Rapaz, marca um encontro comigo e ela pra gente conversar”. E marcaram na capelinha de São Benedito no alto de um morro. E ele disse que sinceramente compareceu e foi dizendo pra ela: “Eu sou um homem de 27 anos, tenho minhas posses, trabalhador, tenho minha ocupação. Preciso de uma pessoa pra, junto comigo, a gente enfrentar essa luta e acho que você é a pessoa ideal”. Nunca namoraram! Naquele dia marcaram o casamento e foram ter, em menos de 15 dias já estavam casados. E criaram cinco filhos, os cinco, todos foram embora, nenhum ficou em Piripiri
P/1 – E seu pai? Naquele momento fazia o que quando eles se casavam
R – Fazia essa atividade
P/1 – Fazia essa atividade
R – Depois da minha mãe também ter juntado um dinheirinho por ser funcionária pública federal, foi que ela disse: “Olha, com meu casamento vão me transferir aqui da cidade, já me falam isso demais, só não me transferem porque eu moro com meu pai, minha mãe velhinha também. Vão me transferir daqui. Pra cidade que a gente for a gente vai montar uma estrutura fixa pra você, que é um comércio”. Então juntou o dinheirinho deles tal e eles foram pra Batalha, que é uma cidade perto, também uma cidadezinha de dois, três mil habitantes. To falando de vilazinhas, e lá papai investiu na atividade comercial, montou uma quitanda, uma bodega. Bodega é aquele lugar onde você compra um cigarro, ela vende de um a um cigarro, você compra 100 gramas de arroz, porque é o que o cara pede. Fumo, pedacinho de fumo de um, dois dedos, dá praquele cidadão. É uma bodega. Mas também tem, pensando assim hoje, de chinela japonesa à acordeão. Cofre a fumo, entendeu? É um empório, tem tudo. Papai teve isso a vida toda
P/1 – Começou lá?
R – Começou na cidade de Batalha
P/1 – E a sua mãe era funcionária...
R – Depois da cidade de Batalha foram pra Pedro II, outra cidade, depois foi pra Teresina e só cinco anos depois voltou pra Piripiri
P/1 – Aí que você nasceu?
R – Não, eu nasci logo depois que eles se casaram, já quando eles estavam em Batalha. Eles moravam em Batalha quando eu nasci, mas no nascimento vieram pra casa dos pais dela pra me ter, depois saíram de novo naquela loucura. Os irmãos todos são um a cada ano, nos cinco primeiros anos
P/1 – Tudo em Piripiri?
R – Tudo voltava pra Piripiri. Andava por onde andava, vinha pra Piripiri
P/1 – E sua mãe era funcionária dos Correios. O que ela fazia?
R – Telegrafista, morse
P/1 – Você lembra de alguma história que você presenciou dela?
R – Nossa, dezenas de histórias, dezenas! Você não acredita. O dia que chegou a Piripiri o primeiro telefone, lá era tudo no morse, você queria falar com Rio de Janeiro, um telegrama dizendo: “Faleceu seu pai, senhor Fulano de tal”. Aquele telegrama ia pra Teresina, ficava em Teresina três, quatro horas e ia pra Fortaleza, ficava três, quatro horas, chegava no Rio de Janeiro às vezes no final do dia para um carteiro sair correndo e levar o telegrama para o destinatário, que vinha a resposta. Quando vinha a resposta ela quem recebia, traduzia, porque a resposta vem em forma de barulhinho, pi pipi pu pu pu pu, que é o morse. Ela traduzia e chamava o entregador e dizia: “Corre e entrega a Fulano que tá tudo bem, que receberam lá”. Nesse momento eu me lembro de um flagrante com minha mãe, espetacular! Eu estava nos Correios brincando e ela me levava, talvez por eu ser um moleque muito esperto, muito danado, ela me levava pra me ter na segurança da guardiã, ela é uma pessoa muito dura, depois eu te conto como foi minha vida escolar. E eu estava lá quando ela recebeu a péssima notícia. Chegou um cidadão, entrou: “Sou dos Correios da capital, sou de Teresina, vim montar isso aqui”.Quando montou ele pegou aqui e fez: “Alô! Alô!!!! Tudo bem? Tudo bem!”. Aí pegou, mamãe: “Agora, pra você falar com a capital, com Teresina, não precisa mais esperar resposta, você fala aqui. Por enquanto pros clientes é ali, mas dentro da empresa é aqui, no telefone”. Ela olhou assim de lado: “Pronto, acabaram com meu emprego!” . Quem vai precisar de dedo se você pega aqui e fala? E foi exatamente o que aconteceu. O dia que chegou em Periperi, 20 anos depois, ela já aposentada, 30 anos depois ela já aposentada, que chegou o serviço telefônico em Piripiri, que eu já nem lá mais morava, eu já morava no Rio de Janeiro, chegou a Telefônica em Piripiri. Um dia eu falando com ela por telefone, ela tinha telefone em casa, 15, 20 pessoas compraram telefone em Piripiri e aquilo servia pra toda a cidade e ficava aquela fila. E aqui em São Paulo, eu em 71 passava na Telefônica, encomendava uma linha pra Piripiri, ia embora pra casa e voltava na hora que eles me falavam: “Daqui a quatro horas o senhor vem”. Quatro horas eu vinha, ficava lá aguardando até que a moça dizia: “Box número cinco”, eu entrava por aquele boxinho: “Oi mãe!”, e falava. Isso eu aqui, já morando em São Paulo, eu vim pra São Paulo em 71, já casado, eu e minha mulher. Quando eu vim com uns artistas que acabei de falar pra você, vieram Fagner, Belchior, todo mundo morava em minha casa. Nesse dia, eu falando com ela por telefone, ela disse: “Meu filho, já me aposentei, mas você não sabe o que aconteceu, a minha profissão se acabou, não existe mais telegrafista nos Correios. Tudo agora é o diabo desse telefone!”. Não existe mais. Eu disse: “É mamãe, faz parte”. Depois voltando lá numas férias, já com computador, com o laptop, eu mostrei pra ela, abri o laptop, mostrei pra ela e disse: “Olha mamãe, outras profissões estão se acabando” “Como assim?” “A sua não se acabou com o telefone? Pois agora os telefonistas também têm que tomar cuidado porque vai ser isso aqui, internet” “Como isso aí?!” Eu digo: “Sente-se aqui, faz assim, a pessoa fala, tá”. Expliquei o que era, ela disse: “Mas vai ser muita gente que vai ficar sem emprego!” . Então esse flagrante do primeiro dia marcou a mim, eu era um moleque de cinco, seis anos quando eu vi esse cidadão botando na mesa dela, do lado da maquininha do morse, um telefone. E ela teve essa visão, essa expressão. Olhou de lado, fez: “Pronto, acabou a minha profissão!” de telegrafista
P/1 – Como é que era essa sua casa de infância em Piripiri?
R – A casa do meu pai era um quintalzão imenso perto do centro da cidade, quer dizer, no miolo da cidadezinha de Piripiri, uma casa grande com um quintalzão imenso cheio de fruteiras. Porque o meu pai por ser um cabra do interior e sem formação, ele não tinha contatos com aquela coisa formal que a gente chamava os ricos da cidade, os doutores, o filho do médico, tal tal, com quem eu jogava bola. Mas minha mãe tinha porque a função dela é uma função social de empregada pública, mas de papai foi sempre de bodeguerão bruto lá do mercado. Sempre aquele bodeguerão. Nunca bebeu, era ele que abria e fechava a igreja cinco horas da manhã, minha mãe fechava à noite, religiosíssimos os dois, e de uma ética ímpar. Meu pai era um pai de uma ética ímpar, chegava um cidadão lá no comércio dele e dizia: “Raimundo, você tem um produto tal”. Ele olhava: “Tenho, mas não é bom. Vá ali no seu Raimundinho e compra o produto que a marca tal que é melhor do que o meu”. Minha mãe quando via ficava louca:
“Raimundo, você é comerciante, quem tem que decidir o que quer é o cliente” “Isso é bom, gastando o dinheirinho dele, o produto que eu tenho não é bom. O produto bom até ali na concorrência, Fulano de tal”. Então isso era meu pai, ele nunca foi pra frente no comércio dele, sempre ficou só o suficiente pra cuidar da gente. Agora, nossa casa muito arborizada, árvores das mais diversas. Nós tínhamos pé de ingá, amora, no quintal, tinha guabiraba, carambolas desse tamanho, as mangas, você nem imagina o tamanho das mangas. Tudo no quintal ao lado da cozinha. E eu passava o dia trepado naquelas árvores brincando ou do lado de fora brincando com a vizinhança e jogando bola, então fui molecote assim. E eu era mais filho do papai do que meus outros irmãos, filhos da mamãe, porque eu ficava com ele na bodega, eu tive essa orientação de meu pai e não orientação de minha mãe, como aconteceu com os outros meus irmãos
P/1 – Por quê?
R – O meu pai gostava do meu jeitão. Ele me acordava cedo e dizia: “Vai comigo”. Então eu fui aquele homem que acompanhou o papai nas pescarias, aventuras monstruosas. Ele era um bruto, como eu to te falando. A gente ia caçar ou pescar, um dia a gente tava caçando na beira do rio dos Matos e animais grandes, eram emas, sariemas, animais grandes, eram aves grandes. Eu com uma espingarda e ele com outra. Espingarda que ele vendia no comércio dele. E numa dessas caçadas ele atirou num determinado animal e esse animal caiu lá dentro do rio dos matos, você imagina o nome rio dos Matos, era mata, mata, mata e o rio lá dentro, como se fosse um canion. E ele gritou pra mim: “Jorge!”, eu tava do outro lado da mata “Pula que ele tá descendo na água, pula!” Isso já eram cinco horas da tarde e eu com medo da escuridão lá embaixo, do rio. E eu tinha uns sete, oito anos. “Vai rapaz! Você tá com medo? Não me diga que você tá com medo!”. Eu digo: “Não, não, não to não”. Então eu ficava sempre perto dele mostrando que eu tinha coragem, mostrando que eu era bom no que ele precisasse, tal, um companheirão das atividades dele. Ele nunca fez isso com nenhum dos meus outros irmãos e acho que é porque mamãe não deixava
P/1 – Por que sua mãe?
R – Ela foi um pavãozão total
P/1 – E por que com você ela...
R – Eu acho que comigo ela percebeu que não ia dar certo. Ou a gente ia ter algum tipo de... Ela percebeu alguma coisa diferente, que eu não ia dar certo. Tanto é que os outros nunca saíram de lá e eu com 14 anos fui embora num circo, saí num circo.
P/1 – Quais eram suas brincadeiras de infância?
R – Nessa época? Tomar banho nos riachos, nos açudes, pescaria. E na cidade jogando bolinha de meia com a turma quando era mais novinho; na sequência bolas de borracha com os meninos maiores quando já estava no ginásio, primeiro, segundo ano do ginásio. E no mais os circos que se armavam do lado do quintal de nossa casa. Os circos que vinham no interior que se armavam tinha um terreno vazio e o nosso quintal era parte do muro do circo pra fora, e isso me divertia muito. Me deu essa coragem até de dizer ao papai, 14 anos: “Eu to indo”. Quando eu fui embora ele botou um bilhete dentro da minha mão, que é a contracapa do meu primeiro disco, você vai ver. O bilhete dizia. Eu disse pra ele: “Papai, estou indo embora. Eu preciso, você sabe”. Só tinha três chances de uma pessoa que mora no Piauí se educar, três chances: fazer um concurso daqueles que tem em capa de gibi, você compra um gibi da Luluzinha, um gibi do Tarzan, a última contracapa é: “Faça o concurso de sargento” e eu preenchia todos pra ver se me chamavam. Fui chamado em um deles pra Agulhas Negras, mas não fui. Ou você saía para o seminário, porque os frades te levavam e tu se educava, vários colegas meus assim optaram, minha mãe queria pra mim esse destino, ser padre: “Não, Jorge Melo quando chegar nos 14 anos a gente leva ele pro seminário e ele vai fazer carreira, vai virar frade”, que é o franciscano. Lá tinha um seminário de franciscanos na região e os frades de lá eram franciscanos, e era a segunda opção, que na época me agradava um pouco ainda, quando criança. Depois que eu conheci Beatles com 13, 14 anos, conheci Chico Buarque, conheci Gil, aí essa opção pulou fora
P/1 – Vamos voltar. Com quantos anos você entrou na escola?
R – Cinco anos
P/1 – Como que você ia pra escola?
R – A primeira escola foi no colégio das irmãs, lá no alto de um morro. Todo dia de manhã minha mãe levava a mim e meu irmão Emanuel, e ao meio-dia ia pegar. Era a pé
P/1 – E como era a escola, você lembra das professoras?
R – Lembro demais, nossa! Minha memória dessa época é total. Lembro os nomes das pessoas e dos colegas. Inclusive agora no Facebook tá muito engraçado porque os amigos, um mora em Brasília que é juiz, eu aqui, o outro não sei o que, tal. Da minha geração eles ficam loucos, quando eles querem identificar uma foto: “Jorge Melo, diga aí! Quem é aquele lá de trás”. Lembro-me de todos, inclusive dos nomes e apelidos
P/1 – Quais são?
R – Lá no colégio das irmãs, a diretora era a Irmã Timbó e a minha professora era a Irmã Angela. A Irmã Timbó já falecida, Irmã Angela mora em Fortaleza, tem 80 e poucos anos, está viva. Era das irmãs de caridade. Os meus colegas de classe que eram Socorro, Remédio Rodrigues, Remédio Rego, Irismar, o Paulo, todos eu me lembro. E de lá a gente foi para uma escola, como era um colégio para mulheres e tinha uma turminha de crianças apenas até tal ano, se não me engano até dez. A partir dos dez eu tive que sair, fui pra escola particular da dona Ísis, também me lembro dos meus coleguinhas com a dona Ísis. Depois da dona Ísis, já com 11 anos, eu prestei o exame de admissão e fui para o ginásio, também me lembro de todos os meus colegas de ginásio. O ginásio abriu comigo, minha turma é a primeira turma. Houve uma pompa danada quando eu tinha 14 anos porque me formei no ginásio na primeira turma, foi uma pompa imensa essa festa. E foi quando eu fui embora
P/1 – E o que você mais gostava na escola?
R – Ainda hoje o Nordeste puxa muito pelo aluno. Em Matemática, eu andei lendo um dia desses aí, os prêmios são todos de lá. Os meninos da nossa região recebem esses prêmios que o mundo inteiro oferece de Matemática. Eu tinha uma habilidade muito grande com Geografia, e dava que na aula todo mundo escrevia poesias, fiz um livro de poesias com 14 anos, publicado pelo Governo do Estado do Piauí, “Tumultos d’alma”, naquela época. Eu gostava muito da folia, da tropa, das primeiras namoradas, todas as memórias de uma criança eu acho que vivi intensamente todas. Lembre-se, eu não tinha como sair, meu pai não tinha condição de me mandar pra fora. Eu tinha a certeza de que um dia sairia. Quando eu saí com 14 anos, que terminei chegando em Fortaleza. Primeiro fui pra Teresina. Teresina você já viu, fui morar na Casa dos Estudantes, um moleque de 14 anos morando na Casa dos Estudantes
P/1 – Pera aí, vamos voltar um pouquinho só para eu entender essa sua saída. Você passou a infância em Piripiri, ia pra escola, ajudava seu pai
R – Exato, diariamente
P/1 – Como é que era Piripiri?
R – Uma cidadezinha interiorana e com uma vantagem, ela é a passagem de Teresina para Fortaleza, passagem de Batalha para Pedro II. É uma região de passagem, acontece muita coisa, muita gente. A maior característica de lá é religiosidade. Ainda é. Esse meu novo romance é sobre Piripiri, esse livro que está em cima. Eu convivi em Piripiri com um homem muito estranho, muito misterioso; não é uma biografia, mas eu o situei em um momento da década de 50, exatamente o que você está me perguntando é quando eu estava lá. Eu estou falando de 55, 56, exatamente nesse momento quando eu tinha sete anos. Então minha infância foi de porta de mercado por causa da bodega do meu pai. Minhas brincadeiras, minhas vivências eram de porta de mercado. A bodega do papai era na porta do mercado, do lado de cá da rua. Aqui o mercadão do lado de cá da rua, Armazém São Jorge, eu lá. Com nove anos de idade eu já era sanfoneiro na cidade, tocava sanfona e essa sanfona que eu tocava tá aqui ó (mostra algo no papel) nove anos de idade. Essa sanfona chamava freguesia para a bodega do papai o dia todo. Eu animava aquela porta de bodega chamando a freguesia. Esse sanfoneiro aí só deixou essa sanfona quando eu comecei a ouvir falar em Beatles
P/1 – Você aprendeu a tocar sanfona com quem?
R – Quando eu tinha nove anos. A sanfona, o papai vendia, ele tinha no seu comércio. E o Luís Gonzaga era quem ditava o sucesso, era sucesso total. E todo mundo comprava aquela sanfona, só que elas iam ficando lá na bodega, elas iam ficando no balcão e eu ficava atrás do balcão mexendo, e aprendi de ouvir, sem ninguém me ensinar. Mas, quando chegava nas férias, meu pai me mandava para uma outra cidade onde eu ficava num hotel sozinho, com nove anos, hospedado durante o mês de férias e as férias de fim de ano que são três meses. E lá eu aprendi a ler partitura com dona Edne, professora de música da cidade vizinha chamada Campo Maior, se fosse aqui Campinas. Lá eu aprendi, estudei, aprendi partituras. Ao voltar pra casa, estudando...
P/1 – Você passava as férias lá sozinho?
R – Sozinho, hospedado num hotel
P/1 – Por que ele te mandava pra lá?
R – Porque eu era teimoso, eu queria, eu forçava, eu brigava em casa, discutia com eles: “Eu to infeliz, não quero saber, nós temos que ir pra lá, eu quero ir pra lá pra aprender a tocar esse negócio aqui”. Eu me decidi pela carreira do artista muito cedo mesmo, eu não tive aquela orientação que os outros tiveram. Minha cabeça era do teatro, era do cinema. Só pra você ter ideia, todas as revistas de Tarzan, todas, do número um à última eu tenho. Eu tenho mais revistas Tarzan do que a Editora Abril, que lançava. Hoje eu faço show lá na Abril e já falei lá dentro. Eu disse: “Rapaz, eu tenho uma coleção que vocês aqui não têm”. Eu tenho todas as revistinhas de Tarzan. Do Fantasma, olha a cabeça de um moleque sonhador, do Fantasma eu tenho mais de cinco mil revistinhas, é um universo louco. Isso minha mãe não gostava, meu pai batia muito em mim porque eu lia aquilo. Cordel, hoje uma das maiores coleções de cordel do mundo é a minha, eu tenho 16 mil livretos de cordel lidos e catalogados porque eu nunca joguei fora. Todos aqueles vendedores de cordel, seja aquele ceguinho da rabeca, ou aquele vendedor de cordel da praça do mercado, eu ia lá, comprava um e guardava. Eu ia lá no dia seguinte, comprava outro e guardava. Até que agora, como intelectual morando em São Paulo, eu vi que eu tinha um ouro porque ninguém guardou cordel da década de 20 e da década de 30 senão eu. Eu preservei a cultura popular, a cultura e a memória popular do Brasil, guardei tudo. Todas as minhas canetas, desde quando eu tinha quatro anos de idade, no colégio das irmãs que eu acabei de te falar, até hoje eu tenho todas elas, as minhas canetas, guardadas. Eu preservei a memória, hoje eu posso contar a história da caneta porque eu tenho todas. E aí vai, as radiolas, e é óculos, é foto, guardei tudo. Eu sou um memorialista. Vejo o que minha mulher tem de chateação. Eu tenho todos os jornais O Pasquim, desde o número um até o Pasquim se acabar, durante 20 anos tem a evolução, que é o Jornal Carioca, tenho todos. Quem tem?
P/1 – Aí você comentou que o circo se hospedava sempre
R – Sempre do lado
P/1 – Você lembra dessa memória, que memória você tem do circo na cidade?
R – Claro! Montes, montes, montes, montes. Eu me lembro uma vez que minha mãe ralhava porque ela achava que eles eram malandros, folgados, minha mãe era completamente diferente da minha cabeça, minha mãe era pão pão queijo queijo, como eu lhe falei, muito rígida, quando ela olhava, te falei que ia te repetir, ela me levava ao professor quando minha nota era abaixo de nove ou dez. Eu morria de vergonha. Ela me pegava pela mão, batia na porta do professor, o professor vinha e ela: “Professor Amaro” “Sim, dona Maria Hilda” “Eu só quero ver que o senhor corrija na minha frente essa prova do Jorge Melo e me diga por que ele tirou sete”. Eu olhei com medo do professor, com medo dele me dar zero, já morrendo de feliz com aquele meu sete. “Maria Hilda, ele errou isso, errou aquilo assim. Tá normal, tá bem corrigida, é isso mesmo. Essa foi uma das maiores notas da classe”. Ela: “Foi”, olha rapidinho assim: “Mas não foi dez”. Isso aí é minha mãe. Rígida mesmo na educação. Resultado, eu sonhando com o mundo, sonhando com música, sonhando com teatro, com cinema, amando as divas do cinema, amando todas elas. Eu amava Shirley MacLaine no cinema. Tinha um cineminha lá, Cine Marajá, que é uma música minha de muito sucesso na minha região, que chama Emoções do Marajá, tá nos meus CDs. Eu amava isso e isso dava muita dificuldade na relação minha com minha mãe porque ela não aceitava. Ela abre a igreja e fecha a igreja, só que eu não ia pra igreja, eu ia pro cinema. Os outros meus irmãos não, todos são carolas ao extremo. E eu não to dizendo disso, tornando isso uma coisa ruim, não, cada um que cuide da sua religião. Apenas eu tinha minha cabeça cheia com outras coisas
P/1 – E aí você gostava de ver o circo, você sempre ia?
R – O circo, eu ficava lá dentro o tempo inteiro, ou em pé em cima do muro olhando a vida deles e conversando. E minha mãe me metendo ficha quando ela chegava dos Correios. E eu olhava ver se ela chegava, voltava pra dentro de casa. Quando ela ia cochilar depois do almoço, eu, pá, em cima do muro, conversando com eles. Era meu universo, era meu mundo, era o que eu queria
P/1 – E você pensava já em fugir com eles?
R – Tempo inteiro. E corria, tirava ovo da galinha que papai tinha e passava pra eles por cima porque eles estavam passando fome. Passava ovo, passava fruta, levava tudo pra eles no circo do lado de casa e a mamãe desesperada: “Esse menino não vai dar!”. Você não acredita como foram minhas primeiras visitas, eu aqui, músico já com disco gravado, já casado e com filhos. Meus filhos são pessoas de muito sucesso aqui em São Paulo, muito sucesso, mais do que os filhos dos que ficaram lá. Meu filho, um deles é uma das maiores autoridades em Filosofia da USP, foi quem ficou com a cadeira do Haddad. É pós-doutor em Filosofia e Política. E minha filha tem uma grife que o mundo inteiro procura e compra, muito bem.
P/1 – Qual a grife dela?
R – Do Balacobaco. Ela é uma corsetiere, inclusive pra Madonna, que encomenda com ela. E ela produz isso e remete pra essas pessoas. O ateliê dela é na região da Granja Viana. Muito bem, aí lá com minha mãe ela não se permitia. Eu cheguei lá em Piripiri numa visita já levando meus filhos, levando meus discos, levando minha carreira de sucesso, e minha mãe andava comigo pela rua, mostrando a minha presença aos amigos, aos conterrâneos, e por várias vezes eu ouvia, morria de rir eu e minha mulher, minha mulher é a mesma cabeça minha, atriz. E eu com ela, mostrando os filhos, ela fazia assim: “Ô dona Fulana, pois é, os meninos estão aí, esse aqui é o Jorge”, a pessoa: “Ô Jorge Melo! Menino, eu lembro de você com 14 anos. Meu filho era da sua turma”. E a mamãe ali do lado, de repente mãe fazia assim: “É, o Emanuel tá na Medicina em Fortaleza, vai ser médico. Esse aqui não deu pra nada, foi pro Rio de Janeiro, diz ele que vive metido aí com os hippies”. Metido com os hippies. É claro que ela tava definindo o meu cabelo, porque eu tava cabeludo, usava trança até aqui na cintura enquanto o cabelo não tinha caído. Bigodão deste tamanho, do jeito que tá na capa do meu disco. E ela não respeitava isso mesmo, era impossível, na formação dela, ter nisso uma coisa boa, ela não tinha. Aí você pergunta: “Jorge, é alguma mágoa que você tá falando?” Não, eu to retratando como foi a minha infância com eles. E na época dos circos era a mesma coisa, era uma briga. Mamãe fechava a casa por dentro para eu não entrar na volta do circo. O circo terminava às onze da noite. Ela ia dormir às sete e meia. Eu tinha que pular o muro, entrar por algum canto e bater na porta devagarinho pra uma das minhas irmãs abrirem e pular pra dormir, entendeu? Era difícil. Até o dia que eu cheguei e disse: “Ó papai, to indo mesmo acabou-se, e é isso que eu quero”
P/1 – Tinha quantos anos?
R – Catorze
P/1 – E seu pai?
R – Meu pai me compreendia mais, a gente conversava muito nesses passeios no mato, eu e ele o dia inteiro na bodega. Ele viu em mim o senso de mercado, nenhum irmão meu sabe comprar e vender, é como meu pai, eles não têm senso. Meu pai sacava que quando eu chegava ali eu vendia mais, o negócio andava melhor, pá, eu movimentava mais, além de ser o músico na porta que animava um pouco também ali ao redor. Mas eu cheguei pro meu pai, botei na mão dele um bilhete: “Papai, leia”. Aí ele leu: “To indo, papai, to indo embora. Chegou o dia”. Aí ele foi lá dentro, escreveu outro bilhetinho, que tá na contracapa do meu disco, no release do primeiro disco. Esse é o primeiro, por isso que tem essas fotos de memória. Pensei que tivesse trazido um sem release. Na contracapa, ó o bilhetinho dele, original. Ele disse pra mim: “Meu filho Jorge! Vá, mas não esqueça tua terra, tua gente e seja bom. Eu te abençoe em nome do pai, do filho e do espírito santo”. Eu guardei isso anos e anos, quando eu fiz meu primeiro contato com a gravadora aqui em São Paulo. Anos depois, peguei aquele bilhetezinho, abri, num papelzinho de cortar sabão, daqueles que você tem em bodega, de embrulhar sabão, papel que a gente chama de papel de embrulho. Hoje eu plastifiquei. “Ah, eu guardo, isso aqui vai estar no meu primeiro disco”. E é uma caminhada, eu no mato longe, até chegar perto. Porque é muito significativo pra mim a cofiança dele: “Vá meu filho, vá”
P/1 – Como é que foi? Você chegou lá, conta
R – Passei anos sem nenhum contato com eles
P/1 – Mas aí você foi com o circo pra onde?
R – Primeira cidade que o circo foi pra diante, ele parou numa cidadezinha chamada Luzilândia. Parou lá. Depois saiu pra uma outra
P/1 – E você fazia o quê?
R – O começo eu só ajudava a montar o circo e fazer exercício físico. Eles me achavam muito fraco para as atividades circenses. E um cara chamado Tarzan Moreno era um partner, ele usava uma escada e uma moça subia naquela escada, ficava fazendo pirueta lá em cima. Esse homem sentiu um problema no ombro e ia trocar esse número. Eu achava que a troca do número era botar a mim pra fazer aquilo, que aquela moça pesava muito mais do que eu. Não era. Ele queria me preparar fazendo exercício físico. Eu fazia exercício físico de oito da manhã até de madrugada. Peso, aqueles pesos de chumbo, de cimento, lata de cimento e eu pá pápá. Quatro, cinco, meses depois ganhei o número. Eu e Tarzan Moreno fazíamos o Telecatch, aquilo que tinha na televisão, do Ted Boy Marino, que era o maior sucesso? Eu fazia no ringue, que era o último número do circo. Era montado um ringue e eu chutava a cara dele, ele chutava a minha, não sei o quê. Eu entrava com um blusão de material plástico, encouraçado, e com um calçãozinho e aquilo assim forma, parecia a roupa do Lothar, aquele que trabalha com o Mandrak, o auxiliar do Mandrake. E ele me batizou, eu era apresentado como Julio Charles, o Tarzan da Grécia vivo mais novo para o Brasil. E fui atração do circo, eu lutava com ele telecatch. Julio Charles e Tarzan Moreno. Aí um dia eu adoeci no circo. Já estava achando que não era aquilo que eu queria
P/1 – Estava com quantos anos, 14 ainda?
R – Já 15, 15 e meio. Já estava achando que não era aquilo que eu queria. E adoeci e quem foi cuidar de mim foi um padre da cidade, lá na cidade que eu fiquei. Esse padre me procurou e, ao me procurar eu perguntei: “Estou bem, já posso ir?” Tava no posto da cidade, Sandu. E o padre falou: “Não, hoje é dia de visita, eu vim aqui conversar com você porque o circo foi embora” “O circo foi embora?!”, foi o maior susto. Ou seja, era o meu fracasso, eu tinha que voltar. Ele falou: “De onde você é, filho? Pelo seu sotaque eu percebo que você é daqui da terra, qual é a sua cidade?” Eu não disse pra ele, eu disse: “É longe”. Ele disse: “Você tem documentação?” Eu disse: “Tenho”, peguei um saquinho lá com os documentos que eu tinha, que era documento de término do ginásio, conclusão do ginásio, registro de nascimento, tal. E ele, imediatamente, arrumou uma inscrição pra mim num seminário pra estudar. Aí eu fui pro seminário. Chegando lá no seminário percebi que o caminho era aquele, voltar a estudar muito, foi quando eu comecei a frequentar o rádio e frequentar programação de rádio já dizendo para os padres que aquele negócio de seminário não era a minha. Fui claro com eles: “Olha, eu vim porque o padre queria que eu saíssa da cidade. Eu ia dar mais trabalho se eu ficasse naquela cidadezinha lá. Então estou indo procurar uma forma”. Eu fui ser vendedor de jornal, fui morar na Casa dos Estudantes, vendia o jornal na rua, dele me sustentava, fiquei amigo de advogados, amigo de médicos, deixava o jornal com eles em casa, no escritório, tal. Passei lá dois anos. Aí inaugurou TV em Fortaleza! Imagina, uma televisão! Quando eu vi aquela imagem que tinha TV em Fortaleza, só se falava nisso porque não tinha no Piauí, não tinha no Maranhão, não tinha no Pará, não tinha em Mossoró, não tinha em lugar nenhum, só tinha em Fortaleza e Recife. Eu tava mais perto de Fortaleza, aí eu disse: “Agora eu vou pra Fortaleza”. Só então passei em Piripiri pra avisar. Aí eu voltei
P/1 – Quanto tempo depois? Você saiu com 14?
R – Dois anos e meio
P/1 – Aí você passou em Piripiri
R – Aí passei em Piripiri e falei: “Olha, estou indo embora pra Fortaleza”. Aí papai disse: “E aí, meu filho?” “Não, agora eu vim avisar que pode mandar meu irmão vir morar comigo”. Que meu irmão canta muito bem. Eu disse: “Vamos virar artista”. Meu pai: “Você não tira isso da cabeça!”. Eu falei: “Não se preocupe não, eu vou fazer uma faculdade, vou fazer Direito”. Aí eu fiz Direito e meu irmão fez Medicina no vestibular. Passamos os dois. E comecei a frequentar a Faculdade de Direito e meu irmão a Faculdade de Medicina. Imediatamente aquela revolução estudantil de 1968, só se falava em passeata, tiro na porta das faculdades, polícia na porta, exército na porta, aquela confusão. Comecei a aparecer como cantor, era eu que animava as passeatas em Fortaleza. Lá eu conheci o Belchior na Medicina, amigo do meu irmão, da mesma turma. Eu no Direito, ele na Medicina. Eu e ele frequentando a TV, todos os sábados a gente tava lá, os programas de sábado da TV, esses primeiros que eu fiz, eu era estrela nesse programa, eu to falando de 67. Show da Juventude
P/1 – Mas como é que você foi parar na TV?
R – Eu fui lá, entrei, bati palma: “Sou artista”
P/1 – Como foi seu primeiro contato?
R – Exatamente como estou te falando. Fui lá, perguntei como é que eu falava com o apresentador Fulano de tal, a moça falou: “O senhor aguarda ali”, o cara chegou: “Eu sou artista, sou bom, pode me botar pra tocar. Se quiser eu toco sanfona, toco violão”. Nisso já tinha um monte de música minha, composição minha, aquela ficha com meu livrinho do lado
P/1 – Desde quando você compunha?
R – Eu compunha desde criança, desde sete, oito anos, tenho música minha desde pequenininho. Sempre musiquinha infantil, não tinha valor nenhum. Mas a partir de 14, 15 anos já tem músicas minhas gravadas. Eu tenho mais de 300 músicas gravadas, algumas eu tinha 15, 16 anos quando eu compus. Já músicas falando da vida
P/1 – Quando você foi nesse programa que música você tocou?
R – A principal que eu me lembro dessa época, que inclusive foi gravada pelo maior conjunto de Fortaleza, chamava Brasa Seis. Eu fiz tanto sucesso lá que eles gravaram no LP deles. Era “Vez por outra eu pego nos meus velhos papéis, só pra ver se eles ainda têm validade, da juventude eu pintei só fatos cruéis, mas quem quiser me ver me pegue pela cidade”. Negócio muito roquinho, tipo Roberto Carlos, Erasmo, aquela turma da Jovem Guarda, 67. Aí aquilo fez sucesso e os conjuntos atrás de mim, os maestros atrás de mim, começaram a me gravar. Quando eu vi Gil, Caetano, fui contratado pela TV como diretor musical da programação
P/1 – De Fortaleza?
R – De Fortaleza. Eu fui diretor musical em Fortaleza com 18 anos de idade. Contratado e já tinha um programa dirigido por mim. Aí eu botei nesse programa quem? O Fagner, o Belchior, eu chamei a rapaziada que eu já conhecia das universidades, não só os profissionais. Esse programa chamava “Porque hoje é sábado”, que eu dirigi, o primeiro que eu dirigi. E chamei o Belchior para dirigir comigo parte musical. Era eu e ele dividindo esse programa. Dois anos depois, já com patrocínio, tal, o programa cresceu e virou “Gente que a gente gosta”. Nesse a gente já trazia um artista daqui do Sul pra lá, por exemplo, Jorge Ben, e ele nos via junto com a gente, duas horas de programa cantando junto, tal. Assim a gente se vendeu para o artista daqui, a gente se mostrou pra rapaziada daqui. E sempre no ar dizendo...
P/1 – Quem que você levou pra lá?
R – Ah, todo mundo. Daquela época desde Gil e Caetano, Trio Mocotó a Evaldo Gouveia, de Jessé à Vanusa, de Erasmo Carlos a Trio Nagô. Todo mundo que tocava na década de 60, 70 no rádio passou pelo nosso programa lá, e sempre com um de nós ou dois naquele dia na programação. O programa era aos domingos, ou era Belchior com eles e eu dirigindo ou era eu com eles e Belchior dirigindo, ou era o Fagner. Aí um dia a gente se sentou e disse: “Tá na nossa hora, vamos embora.”
P/1 – Você, o Fagner e o Belchior?
R – Eu fui o primeiro a vir, eu e o Belchior. O mesmo espírito de aventura que eu tinha em Piripiri eu levei pra Fortaleza
P/1 – Você era fã da música do Belchior já?
R – A gente era parceiro. Eu sou parceiro dele em dezenas daquelas obras
P/1 – Qual obra? Quais músicas, naquela época?
R – Naquela época, os nomes das obras. Nós fizemos a trilha sonora inteira de uma peça de teatro, virou a maior peça de teatro de Fortaleza. Essa peça de teatro ganhou prêmio no mundo inteiro, a trilha era minha e do Belchior. Foi montada no Rio de Janeiro com muito sucesso em 1962, foi montada em São Paulo durante um ano, ali na Avenida Brigadeiro Luís Antônio no ano de 76
P/1 – A peça?
R – A peça chama-se “O Morro do Ouro”. Um musical como Hair, como Balcão, como Cats. Lindo, lindo, tinha uns 40 atores. A montagem do Rio fizemos com atores da Globo naquela época. Milton Moraes, Miriam Persia, quem fazia novela da Globo era ator da nossa peça. E isso em 72. E em São Paulo nós mesclamos alguns atores importantes, como Migliaccio, que era da Globo, com atores da própria noite do teatro, essa turma que tá aí nos breus das docas. A peça aqui ficou um ano em cartaz. E das músicas gravadas tanto por mim ou pelo Belchior, ou por terceiros, eu e Belchior temos 29, que é minha e dela, gravadas ou por mim ou por ele ou por outros
P/1 – Quais? Você sabe falar?
R – Sei. “Canção de Gesta de um Trovador Eletrônico” foi gravada pelo próprio Belchior em sete ou oito CDs dele. Melodrama, Arte Final, nossa, é só pegar aqui meus álbuns e ver quantas aqui são minhas e do Belchior. E que também ele gravou, e gravou Zé Geraldo, e gravou dezenas de bandas. As músicas com o Belchior faziam muito sucesso. Fazia não, faz. E lá em Fortaleza a gente plantou isso dentro da TV, era um movimento. Hoje quando eles perguntam: “Jorge, o movimento musical do pessoal do Ceará existiu?” Eu digo, inclusive to dizendo aqui o que acabei de dizer numa grande matéria publicada lá na imprensa local, que eu passei o mês de agosto em Fortaleza. Existia esse movimento enquanto todos nós universitários, enquanto todos nós amadores e morando em Fortaleza. Porque a gente tinha a ideia de um movimento, como o movimento Tropicalista de Gil, Caetano e os Baianos, como o movimento mineiro do Clube da Esquina. Mas no momento em que nós chegamos no Sul, que eu vim primeiro junto com Bel, que depois veio Fagner, que veio morar em minha casa, que depois veio o Cirino morar na minha casa, que veio o Ednard, que veio a Amelinha, que veio o Rodi, que veio a Tete, que tomamos conta de tudo com Coração Alado, nome de novela da Globo, Pavão Misterioso, tema do Saramandaia, tudo era nossa. Quando esse sucessão chegou mesmo, os nossos contratos não tiveram o tipo de contrato que tiveram os mineiros e os baianos, todos os baianos gravavam na Poligram, então a Poligram divulgada o grupo. Todos os mineiros gravavam na Odeon, então a Odeon divulgava o grupo. Quem os mineiros? Milton Nascimento, Lô Borges, todos numa só. Nós não, o Belchior arrumou um contrato com a Copacabana, gravava lá. Eu arrumei um contrato com a Poligram, gravava lá. O Fagner gravou com um contrato com a CBS e o Ednardo gravou com outro contrato com outra, gravava lá. As gravadoras só divulgavam aquele. Imediatamente não havia mais a ideia de movimento. Então o que é o pessoal do Ceará? Passou a ser um conjunto, é um conjunto musical num LP gravado pelo Rode, a Tete e o Ednardo. Esse conjunto não representa nós outros, eu, o Belchior, o Cirino e o Fagner porque eu e o Fagner não somos daquele conjunto. Então o pessoal do Ceará não existiu como movimento, existiu como uma banda e todos nós, apesar de amigos, de parceiros e de trabalhar juntos, não tínhamos a ideia de um movimento porque faltou um investimento naquilo como um todo
P/1 – Quando que você decidiu sair de lá e vir pro Rio?
R – Em 1971, no mês de janeiro. Conversei com o Belchior no bar do Anísio, na frente de todos os poetas e malucos da noite, falei assim: “Tá na hora de um de nós ir embora”. Foi exatamente naquele ano Gil e Caetano tinham sido expulsos pra Inglaterra, quando eles foram expulsos pra Inglaterra e o Chico Buarque tava com o Toquinho e o Vinícius na Itália, também expulso sem poder entrar no Brasil, eu falei: “Vagou, é o momento de vacância, vamos entrar no Sul, vamos embora”. Foi tudo planejado, enquanto lá era um movimento discutido na boemia da noite na praia, nos botecos. Uma semana depois Belchior trancou a matrícula dele no quarto ano de Medicina, uma semana depois eu tranquei a minha no quinto ano de Direito, faltavam dois meses para eu terminar Direito, tanto é que esses dois meses eu fiz as provas daqui e consegui o diploma porque minha média era muito boa e não prejudicou. E eles, de alguma maneira, me ajudaram a dar as presenças. Porque eu saí de lá em agosto de 71, da faculdade
P/1 – E por que o Rio de Janeiro?
R – Escolhemos o Rio porque eu tinha um contrato de trabalho com a TV Tupi, eu fui diretor musical da TV Tupi. Eles foram lá, e lá vendo o meu trabalho, a dinâmica que eu dei na TV Ceará, que era deles, TV era do Sistema Associados, a TV Tupi era dos Diários Associados, do Chateaubriand. E eles falaram: “Uma pessoa como você merecia ser muito importante no Rio”. Quem me chamou foi Manoel Carlos e a Cidinha Campos, esse que hoje faz novela pra Globo. Aí eles foram lá, conversaram comigo, lá no Bar do Anísio. Disseram: “Jorjão, você tá certo, tá na hora. E tem emprego pra você no Rio”. Aí eu vim e assumi a direção musical do programa Dia D da Cidinha, do programa A Grande Noite, do Isaac Karabischevski, o maestro, do programa do Ivon Curi, Na Tarde e no programa da Edna Savage de manhã, na TV Tupi. Com isso eu montei uma estrutura no Rio e todo mundo hospedava em minha casa
P/1 – Onde você foi morar?
R – Na Santa Clara, esquina com a Barata Ribeiro. Em cima do Cine Lido, quinto andar
P/1 – Como foi chegar no Rio de Janeiro?
R – Nossa!!! Você não imagina. Mudou a nossa cabeça completamente, tudo, inclusive os títulos das músicas. Tem uma música minha chamada “Kitchenet”, eu nunca tinha visto um lugar onde a cozinha é ao lado do corredor, cozinha é no fundo porque na geografia nossa é essa, a cozinha é a última. Primeiro é a sala, depois o quarto, depois sala e aí cozinha. Você chega na kitinete, a primeira é a cozinha, depois que você passa pela cozinha e o banheiro é que tem a sala. Foi uma mistureba de geografia total.
P/1 – Como é essa música “Kitchenet”?
R – (canta) A minha cozinha é vizinha da porta da rua, ê... Eu não posso é chamar de rua um corredor, um corredor do vigésimo terceiro andar do edifício Central. Mas eu ainda to por aqui, pessoal. Eu ainda to com esse ar normal, fatal e igual de quem mora e vive nessa capital. Eeeeeeee Rio de Janeiro, ei boi
P/1 – Mudou minha geografia, minha visão. Essa música que eu ganhei o festival, quando se pegou o cdzinho que mostrou fala disso também. A música que eu ganhei o festival “Felicidade Geral”. Olha como eu estava. Foi a primeira música que eu escrevi no Rio de Janeiro. Felicidade Geral, estava no céu. Felicidade Geral, ela descreve esse kitinete
P/1 – Como que é?
R – Vixi Maria, será que eu lembro a letra toda? Vou tentar. (canta) “No meio do mundo a cidade, no meio da cidade em que eu moro no meio de um bairro elegante, no meio da Rua Central. Lá no Edifício Jangada, bem perto do quebra-mar, no centro da capital. Lá no meio do quarto um colchão, um retrato no meio da parede, o armador que segura minha rede. Meia dúzia de livros no chão. Lá onde quebra o mar e começa a rua, lá onde morre a rua e começa o mar. Há mais de mil ruas plantadas entre o mar e o cimento. Minha vaidade que chega, tal qual meu pensamento. Mil viadutos e trevos que travam meu crescimento. Hei! É a felicidade geral, é a felicidade geral. Felicidade geral”. Pronto, ganhei o festival e fiz meu primeiro disco. Entendeu? É uma aventura muito louca, muito maravilhosa. Se você perguntar: “Jorge, você faria tudo de novo?” “Exatamente igual, não mudaria uma nota”
P/1 – Aí você chegou lá, veio o Belchior e morou na sua casa?
R – Todos. Belchior comigo, basicamente juntos, ele na frente, chegou na minha frente dois meses, morando com os tios. Eu cheguei, montamos o apartamento e ele veio pra dentro. O Fagner chegou nessa época via Brasília e o Cirino. Nós quatro
P/1 – Na mesma casa?
R – Mesma kitinete
P/1 – Como é que vocês dormiam?
R – No chão. Todos no chão. Quem tinha grana pra comprar um colchãozinho dormia em colchãozinho, quem não tinha ia dormir em cima da camisa, dormia em cima de jornal. No chão. E seis meses depois chegou a minha mulher, ela tava terminando Odontologia
P/1 – Você já tinha casado lá?
R – Tinha casado lá, ela trabalhava na TV comigo e ela tava na peça “O morro do ouro”. E eu queria montar “O morro do ouro” no Rio. Aí eu disse: “Venha que a gente monta a peça aqui no Rio”
P/1 – Aí ela foi dormir na kitinete também?
R – Exatamente. A gente botava uma toalha, botava uma cordinha, no meio a gente botava uma toalha pra gente poder ficar na intimidade, do lado de lá, e a turma dormindo aqui. Nossa intimidade era entre uma toalha, ou então pedia licença para o cara sair. “Turma, todo mundo pra fora, vou ficar com a minha mulher aqui uns 20 minutos, meia hora, daqui a pouco vocês voltam”. Então era eu, a Têca, ela chama Têca. E quando terminou o contrato desse apartamento, para alugar outro eu e a Têca ficamos dois meses andando na praia sem ter onde morar. Eu morei na Praia de Copacabana, eu e minha mulher, já casado com ela, sem teto
P/1 – Mas você não tinha ido com trabalho pra lá?
R – Tinha ido com trabalho, mas não tinha quem me alugasse. E a grana não dava pra ir no hotel, tinha que ser esse esqueminha. Dois meses depois alugamos outro, mas aluguei lá no Largo do Machado. É muito confuso porque tinha que ter fiador, é difícil. Não era ter o dinheiro, eu tinha o dinheiro pra botar na mão do cara, eu tinha emprego. O cara: “Não, não, não, tem que arrumar fiador pra assinar o contrato”. Eu disse pra minha mulher: “Não vou ficar com medo, não, vamos pra praia”. Deixava meu violão guardado no boteco, numa boate que eu tocava. Eu tocava numa boate lá muito maravilhosa, Boate Plaza, o cara fazia: “Boate Plaza é a continuação da sua casa!”. A hora que eu entrava era sete horas da manhã, a hora que eu entrava pra cantar. Só marinheiro. Aí quando terminava eu deixava meu violão lá e ia pra praia andar, cochilar, dormia até quatro horas da tarde, queimadão. “Mas esse é um malandro”. Que malandro, eu tinha passado a noite toda tocando. Aí, sempre dizendo pra minha mulher: “É assim mesmo, vai dar certo pra todos nós”. Deu
P/1 – Aí deu dois meses e você alugou um apartamento onde?
R – Largo do Machado
P/1 – Aí foi você e sua mulher?
R – Aí só eu e minha mulher. Nessa altura, os meninos, o Fagner, o Ednardo, o Rod e a Tete vieram pra São Paulo e montaram um grupo em São Paulo. Por quê? O Rod veio assumir na USP a cátedra de Física Nuclear. E o Ednardo trabalhava na Petrobrás, veio transferido, vieram com trabalho e aqui montaram uma estrutura. Os outros dois que estavam comigo arrumaram pra onde correr, o Belchior ficou um tempo aqui com eles e passado um ano de Largo do Machado eu vim me juntar com eles e me mudei pra São Paulo e também aqui aluguei um imóvel
P/1 – Por que você saiu do Rio e veio pra São Paulo?
R – Eu achei São Paulo uma cidade que funcionou como minha secretária. São Paulo pôs os pontos nos meus is. Eu sou uma pessoa muito organizada, homem de agenda. Já te falei aqui na entrevista que sou um memorialista. E o Rio não serve pra esse tipo de coisa. O Rio o nego vai: “Nós precisamos se ver!”. Que dia, que hora, quando, com quem? Aqui você acha o cara. No Rio eu não via a casa de ninguém, eu só via as pessoas no boteco. “Vamos marcar aí, dia tal”. Lá a gente conversava, fazia negócio, jantava, tal. Não tinha aquela coisa que eu precisava, São Paulo foi exatamente o contrário. São Paulo servia pra São Paulo: “Cara, estou passando”. O cara te recebia muito bem, os contatos em casa ou em escritórios. Então teve uma alegria minha de encontrar uma coisa muito parecida comigo, tanto é que mal eu cheguei aqui, não tinha mais a TV Tupi, ela tinha se acabado, faliu. Eu comecei a ensinar em faculdade, ensinar música, sou maestro. Ensinei em três faculdades, eu to falando agora de 74, 75 e 76
P/1 – Você veio morar onde, em que bairro?
R – O primeiro aluguel foi bem no centrão, naquele prédio em frente à câmara municipal, aquele prédio que parece um bolo confeitado. Vigésimo terceiro andar do Edifício Central, por isso que tá na música: (canta) “No vigésimo terceiro andar do Edifício Central”. Vigésimo terceiro andar do Edifício Central. Minha música é muito autobiográfica. Aí eu fiquei um ano lá, um ano eu descobri o Brooklin porque eu ia visitar uns amigos, a minha mulher arrumou um emprego numa agência de publicidade como redatora, e esses diretores dessa agência moravam no Brooklin. Eu ia pra lá fim de semana, via as casas, muita casa, muita casa. Aí achei uma casa no Brooklin e aluguei, uma vilazinha, entrava numa ruazinha assim, só duas casinhas. Ficamos lá mais um ano. Te juro, dois no Rio, mais dois aqui, só com quatro anos aqui comprei minha casa. Aí comprei minha primeira casa on Brooklin
P/1 – Como é que foi chegar em São Paulo?
R – O que mais maltratou foi o frio. Chegar em São Paulo, essa coisa do clima teve muita influencia. A minha mulher pedia muito pra voltar pro Rio: “Jorge, não aguento mais, isso aqui vai me matar, pelo amor de Deus, um frio”, tal tal. Agora, fora isso, o resto tudo eu gosto muito. Feiras na rua, isso é uma coisa maravilhosa. Em Fortaleza não tem, Rio não tem. Eu adoro, adoro feira na rua! Quem faz a feira lá em casa sou eu. De manhãzinha no sábado eu me arranco pras feiras, e fico lá e pego aquelas verduras todas. Eu adoro cozinhar, escolho tudo o que quero fazer, e meu peixe e vou cozinhar. Então tem um monte de coisa em São Paulo que me alegrou a vida, me alegrou muito. Aí eu comprei essa casa, depois os filhos começaram a vir
P/1 – Qual foi seu primeiro filho?
R – Minha filha, Morena. Morena Soares Melo.
P/1 – O que mudou na sua vida com a paternidade?
R – Na época eu fazia muito sucesso, tanto eu quanto o Belchior. Foi a época que a gente estourou. A minha filha nasceu em 74 e em 76 eu fazia 40 a 60 shows por ano andando por aí. Foi muito estranho deixar a minha mulher sozinha aqui em São Paulo e eu andando esse mundão inteiro, da Amazônia ao Rio Grande do Sul, almoçando e jantando dentro de avião. Foi muito estranho
P/1 – Vocês fizeram muito sucesso?
R – Na época a gente fez muito sucesso. O Belchior, um sucesso mais tradicional, junto com o Fagner. O quer dizer o sucesso tradicional? É isso que você espera do sucesso, é o teatro, a casa noturna e o cinema. E eu um sucesso menos visual e menos tradicional. Eu fiz muito mais sucesso do que eles com relação a patrocinadores, a agências, que têm sido a coisa que mais me segurou. Eu era sempre um artista patrocinado e isso me deu muito mais o lance econômico do que a exposição. Então ia fazer um show em Manaus, eu saía daqui pago, eu ia fazer um show num teatro no Rio Grande do Sul, saía daqui pago. Eu tive vários patrocinadores
P/1 – Mas você tocava junto com ele?
R – Não, não. Aqui, fora amizade não tinha movimento. O Belchior tinha a vida dele, eu tinha a minha, Fagner a dele. Nós apenas nos ligávamos, nos reuníamos na casa de um ou de outro fim de semana, sabíamos o que tava acontecendo, éramos amigos, ia fazer uma música a gente marcava. “Vamos fazer uma música” “Marca aí pra mim no fim de semana, eu não tenho show não, vai dar pra fazer umas músicas”. Ia lá, fazia duas, três. Gravava num gravador, eu gravava em casa, de casa eu passava por telefone a correção tal. Mas as carreiras nunca se misturaram mais. O empresário do Belchior era um, meu empresário era outro, o empresário do Ednardo era um, do Fagner outro. Nunca mais nós tivemos nada junto como grupo, como movimento. Como aconteceu com Gil e Caetano que sempre tiveram. Lá não, pra nós, não
P/1 – Mas quando você diz que fazia 40 shows, não era com ele, era você?
R – Não, sozinho. Só eu, era meu trabalho, resultado da minha obra. Só que a minha obra sempre foi mais ligada ao patrocinador. Por quê? Porque eu peguei um empresário mais forte nessa área. Eu fui garoto propaganda Tintas Suvinil 14 anos. Me mandaram pro mundo inteiro. Dos maiores teatros do Chile aos maiores teatro do México. Eu fui em Cancún mais de cem vezes nos hotéis de Cancún fazer show patrocinado. Você pergunta: “Mas Jorge, patrocinado por quem, pela Suvinil?”. Não, eu tinha um contrato da Suvinil, já fui da Basf, da Pfizer. O show de abertura do Viagra no Brasil fui eu que fiz. Porque na época eu era da Pfizer, tudo o que a Pfizer fazia era comigo. Então eu tinha um belíssimo de um show que esse pessoal absorvia. Um momento com bailarinas de primeira linha, mulheres belíssimas demonstrando samba. Outra, belíssimas demonstrando danças de outra região, como danças baianas. Bumba meu boi, coloridíssimos. Tudo eu to falando da década de 70, de 80, de 90. Eu parei tudo em 1995, por estresse. Em 1995 eu falei: “Acabou-se senão vou morrer”
P/1 – Você ganhou bastante dinheiro?
R – Ganhei. Eu tenho um patrimônio considerável. E soube cuidar. Tá tudo investido, tudo montado. Eu tenho um sítio belíssimo e fora isso, aqui em São Paulo, um monte de casa. Além de eu morar muito bem, várias casas para sustentar a mim, meus filhos, com os alugueis durante muitos anos
P/1 – Aí você decidiu parar?
R – Não, eu parei dessa maluquice de aceitar essa loucura. Porque eu era produtor de discos, os três últimos CDs que estão aqui são da minha própria gravadora. Era dono de uma gravadora, produtor de discos e produtor de comerciais. As propagandas da Varig, de Antartica, várias delas são minhas. Eu não tinha mais como aguentar. Eu percebi isso dentro do estúdio. Quantas vezes eu desmaiei dentro do estúdio e acordava em hospital, com a pressão 28 por 14? E aí médico tudo amigo meu e tenho um irmão que é médico, eu tava em Fortaleza falando com ele, ele disse: “Cara, tu não vai aguentar, não. Pode se despedir da família que tu não vai aguentar, não. A não ser que tu mude tua vida”. Foi aí que eu comprei meu sítio. Eu disse: “É mesmo?” “Jorge, passou dos 50, bicho, não vai aguentar. Tu não almoça nem janta, tu come comida de avião”. Eu digo: “É”. Eu fazia um show aqui em Santos, fazia outro em Campinas, voltava e fazia outro em Santos na mesma noite. Fazia um em Santos, das oito até dez horas da manhã, pegava meu carro, corria, fazia em Campinas um de uma às duas horas, pegava meu carro correndo, descia pra Santos, fazia um de quatro às cinco horas. Isso várias vezes, não to dizendo que foi um vez nem duas, não. Dezenas de vezes, como hoje tá fazendo esses meninos aí que fazem sucesso. Que eles até podem não ir, mas no meu caso eu não posso porque era patrocínio, eu quebrava meu patrocinador, quebrava. Era uma Varig atrás, uma Antartica, não dava
P/1 – Qual música sua que fez mais sucesso?
R – Sucesso popular, as minhas canções gravadas pelo Reginaldo Rossi, que vende milhões. O que ele gravou meu eu recebi direito autoral de milhões. Belchior, algumas que fez muito sucesso na voz dele, seguia bem
P/1 – Qual?
R – Canção de gesta de um trovador eletrônico rendeu muito
P/1 – Canta um pedaço pra gente
R – Quer que eu faça com violão?
P/1 – Ah, eu quero
R – Porque aí você vai ver exatamente como a música é (pega violão). Eu só sei que agora eu estou mais na Literatura e no Teatro, eu não aceito mais tocar em casa noturna, eles me ligam é muito: “Jorge, vem” “Não vou, não” “Porquê?”“Não vou cara, não preciso mais disso, não”. Agora no teatro ainda me interesso, numa associação, um sarau, tudo isso me interessa, o artista precisa disso. Bem, eu vou fazer do jeito que eu a interpreto, tá? Eu fiz essa música, o Belchior já gravou essa música umas cinco, seis vezes em CDs diferentes. Canção de Gesta de um Trovador Eletrônico, Jorge Mello e Belchior. (toca violão). “O som do alto falante, Rolava e me dava um toque, Chuck Berry, berrando em sua guitarra, era um choque. Cometas Halley passando,Astros no pó de Woodstock,Cabeças, sonhos, mil transas, Jim, Jimi, John, Janis Joplin e a moçada do subúrbio, Cinema, topetes, motos. E rock, rock, rock, rock, rock, rock n’roll.E rock, rock, rock, rock, n’roll.Rock, rock, rock, rock, rock n’roll. No rock, rock, rock, rock n’roll. No rock, rock, rock, rock n’roll. Rock, rock, rock, rock, rock n’roll. Cai na estrada tirana, a juventude é um dom! Garotas, sonhos, mil transas, como dar bandeira é bom!Olhando a cidade grande cheia de fúria e de som, querendo ser uma estrela, de sexo, laser e neon. Cidade grande é uma droga, mas o rock dá o tom. No rock, rock, rock, rock, rockn’roll. No rock, rock, rock, rock, rock n’roll. No rock, rock, rock, rock, rock n’roll. São mil milhões de habitantes neste parque industrial: negros, mulheres, menores, filhos da crise geral iguais pela mesma bomba que vai cair no quintal. Ídolo
Deus dos esgotos. A musa urbana me fez, meu sucesso é saber disso e dizer tudo pra vocês. Num rock, rock, rock, rock, rockn’roll.Num rock, rock, rock, rock, rock n’roll. Num rock, rock, rock, rock, rock n’roll.” (palmas)
P/1 – Que privilégio! . Então você decidiu dar essa desacelerada
R – É, quando os caras me ligavam no dia seguinte, eu tinha um estúdio. Eles diziam: “Mello, eu quero fazer um jingle com você” “Cara, não faço mais. Te dou o endereço do meu amigo faz, tal taltal” “Pô, faz a trilha de um filme” “Não faço mais, não” “Pô, mas não é possível! Então o que você faz?” “Vou fazer discos, vou fazer produções que me interessem”. Aí comecei a fazer produções mais na valsa, produções de discos maravilhosos que eu fiz, um esteio pra mim
P/1 – Que disco você fez?
R – Vários de tribos do Xingu, discos com trilhas sonoras de situações. Eu tenho um disco que o Egberto Gismonti faz todos os violões, que o Luís Gonzaga faz coro, que a Tetê Espíndola mais o próprio Belchior e um monte de pessoas fazem coro, esse disco me interessa. Produto altamente intelectual, altamente criativo, descompromissado com o mercado e o compromisso apenas com a estética. Comecei a produzir e esse material eu tenho na prateleira. Até que, em 1997, por causa da nova lei autoral eu voltei pra OAB e fiz o concurso da OAB, passei e sou advogado. Abri meu escritório de Direitos Autorais e comecei a cuidar dos direitos autorais meus e de outros colegas que precisem da área. Com isso, todo mundo: “Jorjão, então tu parou a música?” “Não, mas comecei a dirigir o que eu quero”. O meu mercado. Tem um show pra fazer no sarau, no teatro? Tem. Vamos fazer. Agora: “Ah Jorge, aqui é a boate tal, na cidade de Rio Verde. Corre pra cá, o show começa às três da manhã”. Eu digo: “Não, não, não. Não é mais pra mim”
P/1 – E você começou a escrever livros
R – E comecei a Literatura porque eu tinha que absorver essa minha criação, esse meu tempo. No começo muita poesia, muita poesia para exatamente meus parceiros encherem com músicas ou compondo num ritmo mais lento. Estou falando do fim da década de 90. Depois, essa Literatura se ampliou e eu comecei a fazer livros da ordem de pesquisas, de teses, ensaios, discos, que são muito agradáveis de escrever porque eu fico estudando o tempo inteiro. E ultimamente comecei a cair na área da ficção, do romance, que já tenho quatro deles prontos, um dele já editado, que é o “Benedictus - Uma aventura de magia”, já é um romance editado, e tenho mais três que já estão prontos pra ir pra agulha e correr pra editora
P/1 – Quais são seus sonhos hoje?
R – Muitos. Muitos. Sonhos totais. Escrever muito mais do que estou escrevendo, exercitar a minha criação até o último dia de minha vida. Comecei também a fazer uma atividade que é a pintura. E ampliar esse meu sentido na Literatura. Ampliar, buscar formas novas, textos novos, características novas. Você não acredita, mas eu tenho um texto meu em francês e que você vira assim e ele está em português
P/1 – Como assim?
R – Um texto, que você escreve ele, mas se você colocar de cabeça pra baixo ele tá em português. Então agora eu estou estudando em cima da língua o limite da possibilidade linguística, indo ao limite da possibilidade da comunicação em cima do texto. E isso vai desde um estudo muito longo sobre vários poetas. Por exemplo, pra você entender um pouquinho melhor, vamos falar, por exemplo, da Literatura de um poeta clássico, Olavo Bilac. Eu tenho tudo da poesia brasileira, tudo, obra completa. Olavo Bilac é um poeta que tem uma pulsação própria, bem diferente da pulsação de Camões, bem diferente da pulsação de outros. No momento que eu compreendi isso (corte)
TROCA DE FITA
P/1 – A minha preocupação principal, o meu sonho atual é reforçar, estudar, me aprofundar no trato com a palavra, com a língua. E os meus estudos estão me levando a um momento em que ela possa transcender a informação. Toda palavra tem um significado, ela junta com outras e forma outro significado. Mas eu já acho que na minha criação isso é pouco. Temos que pensar em outras coisas além disso. Por exemplo, o cantabile do verso, o cantabile da palavra, a pulsação natural dela. Eu posso dizer, por exemplo, de Bilac, Olavo Bilac tem uma pulsação, Camões tem outra. Um cordelista, poeta de cordel, tem também uma pulsação. E eu comecei a trabalhar isso, a buscar isso, a compreender isso. Por exemplo, um verso de três sílbas: um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nova, dez, conhecido por décimas, tão trabalhado nos poemas bilaquianos de sonetos, cada verso é a frase, e são quatro, quatro, três, três. Esses 14 versos são do soneto, cada uma com dez. Mas a pulsação de Bilac, em muitos dos seus trabalhos ele trabalha com um, dois, três, quatro, um, dois, três, quatro, um, dois. Isso me chamou a atenção. Outros poetas têm outra pulsação, um, dois, três, um, dois, três, um, dois, três, quatro, que também dá dez. E outros, ainda outra, um, dois, três, quatro, um, dois, três, um, dois, três, quatro, um, dois, três. E eu comecei a trabalhar com isso, a tal ponto que a minha criação começou a buscar profundamente essa sonoridade da palavra. Eu vou citar um texto de um exemplo. Eu tenho dezenas, centenas de poemas prontos para serem publicados em livros ou serem musicados, como tenho músicas prontas, inéditas. Mas as novas, a minha nova criação tem essa busca. Essa canção “Num país feliz”, gravada pelo Belchior, gravada por mim, ela tem uma pulsação na palavra, uma sonoridade, que parece que você está ouvindo o tupi guarani. O que é o tupi guarani? O tupi guarani é um excesso de as, is e us. Exemplo, Piauí, Itaquatiara, Itaquaquecetuba, Araraquara. E se você trabalhar essa sonoridade com a língua portuguesa, ela daria certo? A gente tentou e eu achei esse poema. Num país feliz. “Ainda não se ouvia o ai do sabiá e nem Jaci sabia que ele assobiava lá. E o índio ia indo, inocente e nu, e no cauim ninguém sentia a essência do caju. Não navegavam naus abaixo do equador. Aqui nem sonhos maus, nem há anhanguá,nem cruz, nem dor.E o índio ia indo, inocente e nu, sem rei, sem lei, sem mais, ao som do sole do uirapuru. Não navegavam naus abaixo do equador e à terra chã, tupã descia sempam de tambor. Ainda não se ouvia o dó das juritis. E eu já sonhava com a cor e mil tons de algum país, num país feliz”. Ainda citei Milton e Tom Jobim sem falar neles, porque eles estão implícitos na sonoridade da palavra e não no sentido que elas têm. Essa busca é um trabalhão, mas acho que é o meu grande sonho atual
P/1 – Jorge, o que você achou de dar esse depoimento de história de vida pro Museu da Pessoa?
R – Achei ótimo, achei maravilhoso, estou encantado, estou curtindo, está sendo gostosíssimo. Muito doce
P/1 - ObrigadaRecolher