P/1 – Rosie, você pode falar o seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Claro, meu nome é Rosie Kriszhaber, eu nasci no Egito, no Cairo, em 20 de março de 1940. Apesar de ser do Egito, eu sou ashkenazi e não sefaradi. A maioria dos judeus no Egito eram sefaradi
P/1 – E seus pai...Continuar leitura
P/1 – Rosie, você pode falar o seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Claro, meu nome é Rosie Kriszhaber, eu nasci no Egito, no Cairo, em 20 de março de 1940. Apesar de ser do Egito, eu sou ashkenazi e não sefaradi. A maioria dos judeus no Egito eram sefaradi
P/1 – E seus pais são do Egito, do Cairo?
R – Meus pais nasceram na Palestina, na época da Palestina, hoje em dia Israel. Meu pai nasceu em Tiberíades e minha mãe em Tzfat. Minha mãe foi pro Egito com os pais dela quando ela tinha uns dez anos
P/1 – Por que eles foram pro Egito?
R – Porque naquela época na Palestina, que era dominada pelos ingleses e pelso turcos, não tinha muito negócio e não dava pra trabalhar. Então meu avô resolveu ir pro Egito que era muito mais próspero
P/1 – O que eles faziam? O que seu avô fazia?
R – Meu avô tinha uma loja onde ele vendia produtos alimentícios
P/1 – No Egito ele fazia isso
R – No Egito
P/1 – E seus avós paternos?
R – Meus avós paternos eram. Aí deixa eu só dizer. Minha mãe, depois de jovem, foi pra Israel onde ela conheceu meu pai que tava voltando da Suíça, onde ele foi estudar..
P/1 – Pera aí, nós vamos chegar lá
R – (risos) Porque ele foi pro Egito. Os meus avós paternos são nascidos na Rússia e foram para Israel jovens. E meu pai nasceu lá em Tiberíades. O que eles faziam eu realmente não sei, mas acho que meu avô era rabino
P/1 – Você não teve contato com ele
R – Não, eu não conheci. Eu só conheci a minha avó paterna quando eu tinha uns cinco anos, eu fui pra lá com a minha mãe na época que ainda se podia ir pra Palestina de trem do Egito, eu conheci e depoisnunca mais a vi
P/1 – Entendi. E seu pai, ele mudou quando?
R – O meu pai nasceu em Tiberíades, foi estudar na Suíça, ficou preso lá por causa da guerra. Depois ele voltou pra Palestina e acabou conhecendo minha mãe, casaram e foram pro Egito
P/1 – E você sabe como eles se conheceram?
R – Provavelmente arranjado, naquela época (risos)
P/1 – Mas eles tinham parentes lá, tanto sua mãe quanto seu pai
R – Tinha, tinha, tinha. Meu pai tinha parentes lá e ele tinha uma irmã que tinha casado lá, inclusive meu tio, marido dessa minha tia, era primo de segundo grau. Eles tinham a família toda lá e a minha mãe tinha a família no Egito, então acabaram se conhecendo, casaram e meu pai foi pro Egito
P/1 – E o que seu pai fazia?
R – Meu pai tinha uma fábrica de roupa de crianças
P/1 – Mas você sabe um pouco da história dele? Ele teve que voltar por causa da guerra, o que aconteceu?
R – Ele voltou por causa da guerra, ele ficou...
P/1 – Mas você sabe o que ele passou, o que aconteceu com ele?
R – Naquela época acho que ele não passou nada, ficou na Suíça, era tranquilo e voltou pra Israel, não passou necessidade nem nada. Depois ele foi para o Egito com a minha mãe e lá ele abriu o ateliê dele
P/1 – Ateliê?
R – De roupa de criança. Ele que desenhava e vendia pros grandes magazines no Egito
P/1 – E a sua mãe?
R – Minha mãe era de casa, dona de casa
P/1 – E quantos filhos eles tiveram?
R – Eles tiveram a minha irmã, depois eu só soube que entre ela e eu tinha dois filhos que faleceram, eram quatro. Eu só soube disso quando começou o nosso processo pra sairmos do Egito porque minha mãe nunca quis falar que ela perdeu, que a minha irmã Raquel faleceu com seis anos
P/1 – A primeira?
R – A segunda. E meu irmão Davi faleceu com nove meses
P/1 – Então sua irmã mais velha conhecia eles
R – Sim, ela conheceu. Eu que não conheci, mas era tabu falar que tinham falecido
P/1 – E tua irmã não falava pra você?
R – Também não
P/1 – E você viveu quanto tempo lá?
R – Eu vivi 16 anos. Eu nasci no Egito, fui pra escola, saí de lá depois da guerra...
P/1 – Mas você ficou na mesma casa?
R – Ficamos na mesma casa, no mesmo apartamento
P/1 –Como era? Era uma cidade...
R – Era uma cidade muito bacana. O Cairo era muito bacana, era muito limpo, tinha muita vida cultural porque vinha óperas da Itália, Comédie-Française da Itália, balé. Meus pais tinham assinatura lá, a gente via tudo, cinema. Tanto que quando eu vim pra cá todo mundo disse assim: “Nossa, mas você no Egito não tinha camelos andando no meio da rua?” (risos) Eu disse: “Não, era uma cidade cosmopolita”. Tinha muito italiano, francês, se falava muito essas línguas. E todos os filmes que estava chegando aqui eu já tinha visto no Egito (risos)
P/1 – E como era a sua casa?
R – Era um apartamento bem grande por causa do calor, então os quartos eram grandes. A minha avó morava conosco
P/1 – A mãe da sua mãe
R – A mãe da minha mãe. E era muito gostoso porque eu voltava da escola rapidinho pra ela ficar lendo histórias. E era muito gostoso ter a vó junto com a gente. Eu estudei num colégio francês que era de freiras porque no Egito só tinha uma escola judaica, então a gente quase não frequentava. As árabes e as judias tinham aula de moral, enquanto as católicas tinham aula de catecismo. A gente se dava maravilhosamente bem, sem problema nenhum
P/1 – Não tinha uma distinção naquela época?
R – De jeito nenhum
P/1 – Nunca teve?
R – Não. Só depois da guerra que o negócio piorou mas, no prédio onde a gente morava tinha uma família árabe no primeiro andar, nós morávamos no terceiro. Minha mãe se dava muito bem, tanto é que ajudou muito a moça que era jovem quando ela teve neném, nunca teve problema
P/1 – Quais eram suas brincadeiras de infância?
R – As minhas brincadeiras, eu fazia patinação, não tinha patinação no gelo, era patinação de rodinha. A gente ia nos jardins, a gente fazia piquenique nas pirâmides. E não tinha o que tem hoje em dia, era tudo mais simples. Depois durante a guerra ficou um pouco difícil, 1942, 43
P/1 – Você tinha quantos anos?
R – Três anos. Eu me lembro de ir com a minha mãe na fila porque a gente tinha um cupom que dava direito a um quilo de açúcar, um quilo de farinha e uma lata de óleo por mês por família. Como era guerra a gente tinha que racionar tudo. Por isso que a gente deixava pra fazer uma guloseima, um bolo pra poder comer
P/1 – E se falava da guerra na sua casa, você tem lembrança disso?
R – Sim, porque quando tinha os ataques tinha o abrigo, cada prédio tinha um abrigo no subterrâneo, então a gente descia. Começava, tocava a sirene e todo mundo descia pro abrigo. E mamãe me conta que eu dizia pra ela ela assim, porque sexta-feira a gente fazia o shabat, que todo judeu faz. Ela me contou, eu não me lembro. Ela diz assim que eu falava: “Mas mamãe, por que o Hitler não pode deixar a gente pelo menos sexta-feira ficar em casa e não descer no abrigo?” (risos) Aí passava, vinha a sirene e a gente voltava
P/1 – Todo mundo do prédio descia?
R – Todo mundo
P/1 – Você tem lembranças de ficar no abrigo?
R – Sim. Lembro, era assim como se fosse uma sala enorme e todo mundo sentado lá. Tinha umas cadeiras e a gente ficava lá
P/1 – Conversavam
R – Conversava esperando que acabasse. E, às vezes, a gente ia ao cinema e quando tinha também ataque tinha uma bola vermelha bem grande na tela, todo mundo sabia, saía correndo pro abrigo. É, não foi fácil, mas também criança a gente leva as coisas mais facilmente.
P/1 – E os seus pais, o que eles falavam sobre isso?
R – Não falavam nada, era guerra e a gente só esperava que acabasse tudo. Porque não se sabia muito o que estava acontecendo lá, era só o rádio, não tinha televisão na época. Então a gente sabia que estava acontecendo uns horrores na Alemanha, mas a gente não sabia exatamente o que era. A gente só esperava que acabasse e a gente voltasse à vida normal
P/1 – E você, o que você pensava naquela época, você lembra?
R – Pra mim era engraçado ter que descer todas as noites no abrigo, ficar lá esperando. Aí depois eu só ficava com medo das bombas, e acho que eu ficava com medo de uma bomba cair no prédio e acabar com a gente. Mas a gente não sabia exatamente, como criança eu não sabia muito como acontecia, provavelmente os meus pais não queriam falar muito pra não me assustar
P/1 – E seu pai, como ficou a atividade dele? O ateliê?
R – Não, era normal. Ele ia pra lá, trabalhava, ele preparava, vendia ainda. Começou em 56, quando houve então o ataque e aquela guerra grande, aí papai teve que fechar, não podia mais trabalhar porque como judeu não podia mais trabalhar lá e nós fomos mandados embora
P/1 – Você estava com 16 anos aí
R – 16 anos
P/1 – Vamos voltar um pouquinho pra trás. Você estava falando dos piqueniques na pirâmide. Como eram esses piqueniques?
R – Ah, era muito gostoso porque você podia chegar. Então a gente levava comida, a gente ia de bonde até Guiza, que é onde ficava as pirâmides embaixo e a gente subia e passava a parte da manhã lá, levava comida. E fiz vários piqueniques também com a escola, a gente fazia isso, era muito gostoso, muito legal. A gente andava de vez em quando de camelo, então era bem gostoso
P/1 – Com quantos anos você entrou na escola?
R – Eu entrei com cinco, só que mamãe já tinha me alfabetizado. Foi a escola onde ela também estudou, onde minha irmã estudou.
P/1 – E era perto da sua casa?
R – Não, a gente ia de ônibus pra escola. Não era muito longe, mas de dia o ônibus passava, pegava a turminha e a gente ia pra lá. A gente estudava até umas quatro horas da tarde, almoçava na escola. Tinha que almoçar tudo o que tinha, senão ó (risos)
P/1 – E como era essa escola?
R – A gente aprendia lá francês, inglês e árabe. Nós tínhamos um sheik que dava aula de árabe, nós tínhamos aula de inglês também. Era muito grande, a gente tinha concurso de ginástica, a gente tinha ginástica uma vez por semana. O colégio era muito bom, muito gostoso
P/1 – Tem algumas professoras que te marcaram, você lembra delas?
R – Sim. A gente tinha muito medo da madre superior. Depois tinha uma outra professora que era Soeur Thérèse, que era muito severa. E tinha uma outra diretora que, aquela lá era bem bem bem severa. Mas depois a minha, praticamente a minha última professora que foi Soeur Geneviève, ela era muito bacana e eu continuei me correspondendo com ela até cinco anos atrás, quando ela faleceu
P/1 – Daqui você mandava carta pra ela?
R – Daqui eu mandava carta pra ela e ela respondia
P/1 – Por que você achava ela bacana na época?
R – Ela era muito humana. Quase todas as professoras eram humanas e ela era jovem. E a gente, evidentemente menina naquela idade, imaginava que ela foi ser freira por uma desilusão amorosa (risos). Mas ela era realmente muito bacana
P/1 – E o que você gostava de estudar? Quais eram as matérias que você gostava?
R – Inglês, História. A gente tinha, Matemática era muito engraçado porque a gente tinha um professor, ele era grego e a gente aprontava com ele tudo o que a gente podia (risos). E eu tinha um professor de Geografia que no final ele acabou também saindo do Egito e vindo pro Brasil, encontrei com ele aqui, foi muito gostoso
P/1 – E era um colégio feminino?
R – Só feminino, não podia misturar
P/1 – Com quem você brincava, quais eram seus amigos?
R – Eu tenho inclusive duas amigas que até hoje eu me correspondo com elas. Uma mora na França, se chama Arlete e a outra foi pro Canadá e se chama Cristiane. A Arlete veio para o Brasil com os dois filhos dela, um se chama Patrick e outro Christian. E o meu filho se chama Patrick por causa do filho dela porque o meu marido tinha gostado do nome dele e a gente deu o nome de Patrick para o meu filho por causa dela. Eu me comunico com ela, pelo menos umas duas vezes por semana a gente fala pelo skype
P/1 – Que costumes religiosos vocês mantinham?
R – No Egito, a nossa casa era kasher, quer dizer que não misturava leite com carne, não sei se você sabe disso. Então a nossa casa era kasher, toda sexta-feira a gente tinha o shabat e nas festas a gente ia pra sinagoga, meu pai que fazia a reza e tudo. Sem ser demasiadamente ortodoxo, mas era bastante religioso. E quando nós viemos pra cá foi um fato muito engraçado, a gente não falava português,a minha mãe foi comprar uma carne e ela viu umas costeletas de porco e não sabia o que era. Ela comprou porque achou a carne muito bonita, rosa clara, e ela chegou na casa da minha tia e disse assim: “Olha só que carne linda que eu comprei! Olha a carne daqui!” “Você tá louca? Isso é carne de porco!” (risos). Porque no Egito nem árabe, nem judeu come carne de porco, então a gente não conhecia a carne de porco
P/1 – E seu pai era próspero a atividade dele, ele conseguia fazer dinheiro?
R – Aqui, infelizmente...
P/1 – Não, estamos falando ainda de lá. A gente já vai chegar aqui
R – Lá a gente tava bem. Não éramos muito ricos, mas éramos bem. A gente podia viajar todo ano pra Alexandria, passar as férias lá. A gente alugava um apartamento e passava as férias lá. E nada de muito extraordinário, mas naquela época não era assim...
P/1 – Como era? Que lugar de Alexandria?
R – A gente ia pra praia lá, Sidi Bishr, San Estêvão. A gente alugava a casa lá, em geral era mais casa do que apartamento, e passava um mês lá de férias, que era o mês de agosto, e voltava porque em setembro recomeçava as aulas
P/1 – O que vocês faziam lá nas férias? Que lembrança você tem?
R – Ah, eu adoro praia! Pra mim é maravilhoso, adoro água, praia. Sempre tinha umas turminhas que a gente encontrava. De noite todo mundo saía e ia comer sanduíche de falafel. Depois que eu cresci tinha festinha de jovens
P/1 – Lá em Alexandria?
R – Lá em Alexandria
P/1 – Como eram essas festinhas?
R – A base de Coca-cola, sanduichinho. Ouvir música, dançar
P/1 – Quando você já tava ficando adolescente?
R – Com 14, 15 anos já
P/1 – Você gostava de dançar?
R – Ah, eu adorava dançar. Meu marido que não dançava (risos)
P/1 – E paixão? Você tinha alguma paquera? Qual foi o primeiro amor que você teve?
R – Eu conheci um rapaz quando eu tinha 14 anos, se chamava Roland. Era um bonitão, então era paixonite, mas depois, imagina, se eu chegasse pros meus pais e dizer que aos 14 anos eu queria namorar (risos). Ficaria trancafiada dentro de casa
P/1 – Você conheceu o Roland em Alexandria?
R – Em Alexandria
P/1 – Era tipo paquera de férias?
R – Paquera de férias, exatamente. E pronto. Depois eu tava com 16 anos, uma outra família judia também estava lá perto e eles tinham um filho. E o pai veio falar com o meu pai dizendo que queria que eu ficasse noiva do rapaz
P/1 – Com 15 anos?
R – É. Daí eu falei pro meu pai que se ele me obrigasse eu fugiria porque eu não queria nada disso, eu queria estudar, eu não queria saber de nada. Eles vieram em casa. Ai, mas foi terrível, eu me escondi, eu avisei: “Se vão me obrigar eu fujo de casa”. Que naquela época era assim mesmo.
P/1 – E aí?
R – E aí não deu em nada (risos)
P/1 – E o que você sente que mudou na sua vida da infância pra adolescência?
R – O fato de eu ter que correr atrás da papelada, quando soubemos que tínhamos que vir pra cá, ligamos pra minha tia e eles me mandaram o visto. Mas aí eu tive que ir na embaixada porque meu pai não podia sair de casa. Ele ficou preso em casa
P/1 – Por quê?
R – Pelo fato de ser judeu, de sermos mandados embora. Então, eu que comecei a tratar dos papéis e de tudo, prepara a nossa viagem pra cá
P/1 – Com 16 anos?
R – Foi um pouco chocante pra mim, mas eu tava toda feliz, eu ia pras Américas (risos)
P/1 – E por que seu pai escolheu vir pro Brasil?
R – Por causa da minha tia. E o fato que se a gente fosse pra Israel eu teria que entrar no Exército e minha mãe tinha pavor disso, não queria de jeito nenhum. Porque lá em Israel naquela época você tinha que fazer Exército, não tinha como não ir
P/1 – E por que sua tia veio pra cá?
R – A minha tia veio quando meu pai foi para o Egito, ela veio pra cá porque também naquela época lá não tinha muito negócio na Palestina, então eles vieram pro Brasil
P/1 – Por que eles escolheram o Brasil?
R – Não sei. Veio ela com o marido e ela teve os filhos aqui. Veio a irmã dele, do meu tio e os outros dois irmãos também
P/1 – Enquanto você estava lá no Egito ainda você tinha consciência do que significava ser judeu naquele momento?
R – Não, era muito natural. Era normal em casa, em casa a gente falava iídiche. Mantinha a casa kasher, então pra mim era uma coisa muito normal. Não destoava em nada, eu tinha amigas que eram, amigas que não eram, que eram católicas, outras que eram árabes, mas não via diferença muito grande porque lá todo mundo convivia bem, naquela época
P/1 – E aí com 16 anos vocês vieram pra cá?
R – Aí comecei a preparar toda a documentação, as coisas todas. Meu pai não conseguiu vender nada porque ninguém comprava e não podia vender nada de casa, tínhamos que deixar o apartamento com tudo lá dentro. E uma coisa que me magoou muito, que eu tinha pego todos os meus discos que tinha e tudo ia pra censura, e eles ficavam com todos os meus discos, não me deixaram levar nenhum. Eu queria começar a brigar e meu pai disse: “Fica quieta. Quieta, nós estamos saindo com vida, graças a Deus. Então não inventa”. Mas eu fiquei com muita raiva (risos). E viemos de navio
P/1 – Quanto tempo durou?
R – 18 dias
P/1 – Como é que foi essa viagem?
R – Primeiro a gente pegou um navio grego porque não tinha um navio que ia direto, então a gente pegou um navio grego super lotado, todo mundo saindo. A gente parou em Pireu, a gente não conseguiu descer porque não tínhamos passaporte. Nós viemos com um papel dado pela Cruz Vermelha, que se chama salvo-conduto. E aí eles diziam, qual era a nacionalidade, apátrida, eles ficaram com a nossa nacionalidade egípcia. Eles nos deram um papel que não éramos mais egípcios e acabou. Então, a gente não conseguiu descer, ficamos no navio. Depois fomos até Marselha na França, lá descemos e pegamos um navio francês vindo pra cá. Era o Bretagne. A bordo tinha um casal israelense, um outro casal judeu e mais outros dois israelenses. A gente passou a primeira noite de páscoa no navio. Eles trouxeram matzá, inclusive. E tava ansiosa pra conhecer o Brasil, conhecer minha tia que eu não conhecia
P/1 – Veio seu pai, sua mãe e sua irmã?
R – Exato. E a minha irmã veio com o segundo marido dela, ela era casada em segundas núpcias
P/1 – Ela já era casada quando você tinha 16 anos?
R – Ela já era. Eu tinha 16 anos, ela já era casada. Ela casou no Egito em segundas núpcias, e ele veio junto
P/1 – Ela tinha quantos anos?
R – Ela tinha 14 a mais. Eu tinha 16, então ela tinha 30
P/1 – Ah, ela tinha 14 anos a mais
R – Catorze anos a mais. Porque tinha duas crianças no meio. Depois que eu vim entender o porquê dessa diferença
P/1 – Entendi. Aí veio ela e o marido
R – Também
P/1 – Ela tinha filho?
R – Não, ela tinha filho do primeiro marido que morava na Inglaterra
P/1 – E o filho veio também?
R – Não, ele ficou na Inglaterra com o pai
P/1 – Entendi. E você lembra de mais cenas do navio?
R – Ah, do navio, lembro. Tinha um rapaz que era espanhol e que vinha pro Brasil, ele pegou uma turminha, a gente tentou estudar português. Eu não entendia nada (risos), foi muito engraçado. E aí na época que a gente passou o Equador, aí a gente fez uma festa, eu era uma rainha e um outro rapaz era um príncipe, era o Netuno. Foi uma confusão danada, mas era gostoso. Quando chegamos aqui foi muito bonito porque nós chegamos de noite, e chegar no Rio de Janeiro de noite é a coisa mais linda! Não tinha ainda a ponte Niterói, mas você via toda a Baía de Guanabara iluminada. Nossa, foi lindo, lindo, lindo, lindo. Foi muito bonito. E aí subiu minha tia, meu tio, meus primos, que eu não conhecia, a bordo
P/1 – Eles moravam no Rio ou São Paulo?
R – Moravam no Rio. Tanto é que nós fomos pro Rio, casei no Rio também, depois a gente mudou pra São Paulo
P/1 – Entendi. Qual foi sua primeira impressão? Foi essa vista
R – A vista maravilhosa. Aí depois teve um primo que fez uma brincadeira de mau gosto comigo porque não cabia todo mundo nos carros, então eu fui. Aí meu pai foi com minha tia, minha irmã foi com meus primos e eu fui com um outro primo. E ele me levou na favela do Rio de Janeiro e disse assim: “Aqui mora sua tia”. Era um brincalhão, mas foi brincadeira de mau gosto. Quando eu vi isso, me assustei tanto, nunca tinha visto uma favela na vida. Eu pensei: “Amanhã de manhã eu pego meu pai, minha mãe e a gente vai embora pra Israel!” Aí ele caiu na gargalhada e disse: “Que nada, isso é bobagem. Tua tia mora em Copacabana, vou te levar lá”. Depois eu briguei tanto com ele: “Isso não se faz com uma pessoa que acaba de chegar!”. E fomos pra casa da minha tia, aí foi outra coisa. Estar no meio deles todos
P/1 – E a sua tia, como acolheu vocês?
R – Ah, muito bem! A minha tia era um doce, um doce, um amor de pessoa. Meu tio também. E aí foi assim, amor à primeira vista, minha tia com minha irmã e meu tio comigo (risos). Adoção. E eu com a minha prima, filha delas, que é a terceira, a Eva, a gente se deu muito, muito bem. Todo mundo ficou na casa da minha tia
P/1 – Era grande?
R – Era um apartamento de três dormitórios. Então tinha um dormitório que era dela, ela deu pra minha mãe e pro meu pai, outro dormitório ela deu pra minha irmã e meu cunhado. O terceiro dormitório era da neta dela, que a filha tinha falecido dando a luz à neta. E ela e o marido, meu tio, dormiam na sala e eu e minha prima dormíamos na outra sala
P/1 – Ela dormiu na sala com o marido e deu o quarto pros seus pais?
R – Você vê que pessoa maravilhosa
P/1 – Quanto tempo vocês ficaram assim?
R – Nós ficamos uns três meses lá
P/1 – Dormindo assim
R – Dormindo assim, aí eu comecei a aprender português. Porque eu achei que eu ia começar a estudar, eu fui com os livros debaixo do braço pro Colégio Liceu Francês achando que eu ia ser aceita lá por ser refugiada. Aí disseram que custava cinco mil cruzeiros naquela época, por mês. Eu não tinha dinheiro
P/1 – Seu pai tava sem trabalhar.
R – Tinha acabado de chegar, a gente não falava português, não falava nada. Aí voltei pra casa chorando e fui procurar emprego. E comecei a trabalhar no escritório de despachante sem falar português. Ah, mas foi uma experiência de vida muito boa, muito legal. Eu comecei a estudar português
P/1 – Quais foram suas impressões quando você chegou? Você viu o Rio de Janeiro? Em questão aos hábitos, alimentação, o que mais te...
R – Alimentação na casa da minha tia era tudo kasher, então não diferenciava muito da minha casa. Mas por exemplo, nunca tinha visto abacate, foi novidade. Algumas frutas, por exemplo, abacaxi. No Egito não tinha abacaxi, só tinha abacaxi em lata, então foi muito gostoso. E o que me surpreendeu muito foi ver os casais andando na rua de mão dada e se beijando, coisa que no Egito você não faz isso, então fiquei horrorizada de ver (risos). Aí depois veio um monte de primos de Belo Horizonte por parte da mamãe pra ver a mamãe, conhecer. E aí toda noite vinha gente ver meu pai. Os primos, os conhecidos de Israel, ver os bichos egípcios chegando (risos)
P/1 – E o seu pai?
R – Meu pai tentou. Eu ia com ele. Tentou várias vezes em vários lugares, ofereceu os serviços dele, porque ele desenhava os modelos. E ficou muito tempo sem conseguir nada. Finalmente ele conseguiu, um dos casais israelenses que veio conosco e mais um outro senhor resolveram abrir um ateliê, aí meu pai teve um ataque do coração e faleceu
P/1 – Depois de quanto tempo que ele tava no Brasil?
R – Três anos. Chegou em 57...
P/1 – Mas ele ficou três anos sem trabalhar?
R – Isso pra ele foi...
P/1 – Mas como vocês viviam?
R – Eu comecei a trabalhar e minha tia ajudava. Isso pra ele foi a morte
P/1 – E vocês mudaram pra onde depois de três meses?
R – Nós mudamos pra um apertamentinho de sala e quarto, também em Copacabana, a uma quadra da casa da minha tia
P/1 – E quem morava nesse quarto e sala?
R – Meu pai, minha mãe e eu
P/1 – E a sua irmã com o marido...
R – Também alugaram. O meu cunhado era cabeleireiro, especialidade dele era tintura. Então ele alugou um salão e começou a trabalhar. Era mais fácil
P/1 – E ele conseguia se sustentar?
R – Conseguia se sustentar. Papai o negócio foi difícil pra ele
P/1 – Você que sustentava a casa?
R – Hunrum
P/1 – Como é que foi? Como você chegou nesse trabalho do despachante?
R – Meu tio conhecia alguém e pediu pra ver se eu podia trabalhar com eles. Então eu fui atender telefone, ajudar. Mas logo em seguida o primo de Belo Horizonte conheceu o Júlio Sauer, que era o dono da Rede Sauer Amsterdam, pediu e eu comecei a trabalhar lá com eles no escritório porque eu falava francês e inglês. Então fui trabalhar na loja de Copacabana atendendo os vendedores para poder vender as jóias, porque vinha muito turista. Aí depois eu fiquei lá...
P/1 – Você ganhava bem?
R – Mais ou menos, mas tinha que aguentar. E depois então eu comecei a trabalhar em escritório como secretária. Fui procurando, trabalhei nas Seleções usando inglês e francês, aí já falava português, já tinha feito curso de noite
P/1 – Como é que foi aprender a língua, que dificuldades você enfrentou, as palavras?
R – Como eu falo francês, eu lia e conseguia entender mais ou menos. Agora, quando o pessoal falava, principalmente o carioca que tem mania de xi xi xi, e por exemplo o ‘l’, ele vira sol. Então eu não entendia que era sol, foi difícil mas a gente vai acostumando, vai pegando
P/1 – Você lembra de algumas palavras que te causaram estranheza?
R – Uma coisa que foi muito engraçada, ainda não tinha começado a trabalhar. Tinha lojas que vendiam manteiga e queijo e ela me pediu para ir comprar manteiga pra ela. E eu falava italiano porque no Egito tinha amigas italianas. Eu cheguei lá, acho que eu tinha uma semana ou duas de Brasil, e eu falei pro rapaz. Eu sabia que tinha que dizer: “Quero mezzo quilo de burro”. Ele olhou pra mim: “O quê?” “Mezzo quilo de burro!” “Ah, mas minha filha, aqui a gente não vende burro” “Mas mezzo quilo de burro, quello la” (risos). Foi terrível. Aí ele me disse que era manteiga. (risos). É que minha tia, coitada, nem pensou em me dizer como falar. São as coisas que são bacanas e a gente lembra. Hoje em dia nem existe mais esse tipo de loja que existia 50 anos atrás
P/1 – Você ia à praia?
R – Eu fui à praia. Porque quando nós chegamos era Páscoa. E a nossa roupa, as nossas malas ficaram no porto porque era feriado. A minha prima me emprestou uma blusa, pediu pra uma amiga dela que era alta, porque a minha prima não era muito alta, eu era muito alta, emprestar um maiô (risos) e eu fui à praia. Ela me apresentou como a prima egípcia. Todo mundo falando português, eu não entedia nada (risos). Cheguei em casa e digo: “Mamãe, essa língua eu não vou aprender nunca” (risos)
P/1 – E a praia? Como é que foi a diferença da praia daqui praquela de Alexandria?
R – O que acontece é que o mar mediterrâneo é muito azul e é menos forte do que o oceano. Então no Egito se podia nadar, se podia ir longe. E aqui, as ondas são bem grandes. Mas era praia, eu tava feliz da vida
P/1 - E seus pais, se acostumaram? Como é que foi o processo?
R – Mamãe não acostumou, foi muito difícil pra ela. Muito, muito difícil. E meu pai, infelizmente, pelo fato de não conseguir trabalhar e ver a filha sustentando-o foi terrível pra ele. E é por isso que ele eve um ataque do coração e faleceu
P/1 – E depois que ele faleceu?
R – Aí fiquei com a minha mãe, ficamos as duas no apartamento
P/1 – Nesse mesmo?
R – Nesse mesmo apartamento, que era alugado. Não, a gente já tinha mudado para um apartamento de dois quartos depois que eu...
P/1 – Tudo com seu dinheiro
R – Sim
P/1 – Em Copacabana?
R – Em Copacabana
P/1 – Como era Copacabana naquele momento?
R – Ah, era ótimo
P/1 – A gente tá falando dos anos 50?
R – 60
P/1 – Como era Copacabana?
R – Copacabana era muito bonito. Você andava tranquilamente sem medo, sem nada. Copacabana era o chique na época. Só depois é que Ipanema começou a ser mais chique do que Copacabana. Mas era muito gostoso. Você tinha lojas bonitas. Eu trabalhava no centro, então eu pegava o ônibus em Copacabana, ia até o centro trabalhar. Muito bem. E tinha um grupo de egípcios que morava na mesma rua. Tinha um prédio que eles até chamavam ‘o prédio dos egípcios’. Então tinha uma amiga lá, a gente pegava o ônibus juntas e íamos trabalhar no centro. Uma época bem gostosa
P/1 – Você gostava?
R – Eu gostava, tava muito bom. E todo mundo se reunia e íamos à praia em frente ao Copacabana Palace. E o sábado, como a gente não tinha muito dinheiro, então os apartamentos eram todos meio que vazios. Sábado à noite era sempre no apartamento de um do grupo. Rádio, a gente comprava mortadela que era mais barato (risos), bisnaga, coca-cola e era nosso sábado
P/1 – Você tinha algum paquera lá?
R – Tinha um rapaz que por acaso também era egípcio, se chamava Sammy, mas a mãe dele não deixou porque ela queria que ele casasse com uma moça rica e eu não era (risos). Então ficou por isso mesmo. E depois não tive mais outro paquera
P/1 – E como você foi vivendo com sua mãe lá?
R – Ah, tudo bem, vivendo bem com ela. Porque a minha irmã morava perto então a gente via bastante a minha irmã. Infelizmente o meu cunhado era terrivelmente ciumento, não deixava ela vir em casa sozinha. E queria mandar também na minha vida, então eu tinha atritos com ele terríveis, até que um dia não deu mais, minha irmã se separou, saiu de casa e foi morar conosco
P/1 – Aí morou você, sua mãe
R – E a minha irmã
P/1 – Quanto tempo?
R – Ah, até eu casar ela morou conosco
P/1 – Quanto tempo foi isso?
R – Ela deve ter morado conosco uns 15 anos, mais ou menos
P/1 – Ah, você morou 15 anos ainda no Rio de Janeiro
R – Eu casei no Rio
P/1 – Como você conheceu o seu marido?
R – Ah, eu tava fazendo um curso à noite e conheci a secretária dele
P/1 – Curso do quê?
R – Sobre, como era? Pronto, agora esqueci, daqui a pouco eu me lembro
P/1 – Tudo bem
R – E aí ela disse assim: “Ah, você precisa conhecer meu chefe! Ele é solteiro, é judeu”. Eu digo: “E daí?” (risos) “Ah não, você precisa” “Não quero. Eu não quero conhecer, não quero nada”. Mas ele representava várias empresas de brinquedos e essa neta da minha tia, a Sarinha, era uma criança excepcional. O aniversário dela se aproximava e eu queria dar uma coisa diferente pra ela. Eu falei com a moça, a secretária dele chamava Beth, eu digo: “Beth, dentro dos brinquedos tem alguma coisa diferente?”. Ela disse assim: “Tem, acabaram de lançar, eram dois cachorrinhos que formavam um abajur” “Opa, boa. Posso comprar?” Ela disse: “Não, é uma amostra”. Eu digo: “Ah, pede pra teu chefe, vê se ele compra um pra mim”, porque não tinha nas lojas. Aí ela falou com ele, e ele disse: “Não, só se ela vier me conhecer” (risos). Eu disse: “Não, eu não vou. Eu posso ver pelo menos? Vê um dia que ele não tá, eu subo e vejo”, porque eu trabalhava perto. Aí um dia ela me liga: “Ó, tal dia ele não vai estar porque ele tem hora marcada com cliente” “Então eu vou lá”. Meia hora antes o cliente desmarcou e ela não teve tempo de me ligar. Aí eu cheguei e ele tava lá (risos). E foi assim que a gente se conheceu
P/1 – Como foi? Aí você foi ver o cachorrinho?
R – Aí eu fui ver o cachorrinho, pedi pra ele comprar o cachorrinho pra mim. (risos). Aí começamos a conversar e ele frequentava a mesma sinagoga que eu, a gente nunca se viu. Ele ia almoçar no mesmo restaurante que eu, a gente nunca se viu. Porque eu trabalhava na Praça Mauá e ele tinha o escritório na Venezuela, que era na outra rua. A gente almoçava em frente no mesmo restaurante. Foi muito engraçado
P/1 – Mas você, à primeira vista
R – Achei muito simpático, ele tinha uns olhos azuis lindos. Sempre brigava que ele não quis dar os olhos azuis pros meus filhos porque nenhum deles tem. E a gente começou a conversar, começou a sair, a gente ia ao cinema, ia jantar, aí depois um dia ele me pediu em casamento (risos). Aí a gente ficou noivo
P/1 – O que ele fazia?
R – Ele tinha um escritório de representação de brinquedos. A minha mãe gostou muito dele. Ele era filho único e também passou pela guerra porque ele era húngaro, saíram de lá depois do Holocausto e vieram pro Brasil
P/1 – Quantos anos?
R – Ele tinha quando ele saiu de lá? Acho que ele tinha 14 anos
P/1 – E qual é a diferença de idade entre vocês?
R – Seis anos. E aí casamos no Rio, tivemos os filhos no Rio
P/1 – Quantos filhos vocês tiveram?
R – Eu perdi o primeiro numa gravidez tubária, e depois eu tive uma menina e um menino
P/1 – Em que ano nasceu a menina?
R – A minha filha agora tá com 38 e meu filho com 36
P/1 – Vocês casaram e foram morar em que bairro?
R – Copacabana
P/1 – Continuaram lá?
R – Continuamos, só que mais pro Posto 5. A gente alugou um apartamento lá e fomos morar lá
P/1 – Ele tinha dinheiro?
R – A gente tava bem. Ele trabalhava, eu também, a gente nunca foi muito rico, dava pra gente viver tranquilamente
P/1 – E como foi essa experiência de ser mãe a primeira vez?
R – Ah, foi maravilhoso! Foi muito, muito. Eu adoro crianças, eu sempre tive um xodó incrível por crianças, então pra mim foi ótimo, foi maravilhoso. A única coisa é que meu segundo filho nasceu prematuro,nasceu de sete meses e meio. Foi bastante chocante porque eu não sabia, eu tava grávida e eu fui à praia com a minha filha porque tinha um almoço do pessoal do escritório. Eu comecei a perder água e liguei pra minha médica: “Puxa, doutora Hélia, tá esquisito, não to conseguindo reter a urina” “Mas o que você tá sentindo?” “Nada”. Aí foi pra casa, no dia seguinte fui trabalhar, e quando eu cheguei de noite no consultório dela: “Você tá doida! A bolsa d’água rompeu, vamos já pro hospital!” (risos) E aí meu marido não dirigia, quem dirigia era eu, então eu preparei uma mala rapidinho, deixei a Natalie, a minha filha, com a empregada e fui correndo. Desci, eu queria dirigir, mas não deu tempo, desmaiei na rua;
parou um casal, nos levou pro hospital e aí nasceu o senhor Patrick. A gente ficou meio preocupado ainda durante umas 48 horas, mas graças a Deus tá bem, um galalau de um metro e 83
P/1 – E aí sua mãe ainda era viva
R – A minha mãe faleceu quando Patrick tinha dois anos. Ela tava se sentindo muito sozinha, apesar das crianças e tudo, sem papai. Cada um tinha sua vida.
P/1 – Ela e seu pai se davam bem?
R – Muito bem
P/1 – E como é que ficou o apartamento do Egito, as coisas
R – Nada. Inclusive, a chave do ateliê papai jogou no mar quando subimos no navio. Foi duro pra ele. Porque ninguém comprava. Inclusive a gente tinha pedido à gente que viesse comprar as coisas, aí eles viravam: “Pra que a gente vai comprar? Vocês vão ter que sair e a gente vai ter tudo de graça”. O apartamento ficou com todos os móveis porque a gente não ia trazer móveis pra cá, a gente só trouxe a roupa do corpo. E o ateliê fechou e acabou. Então isso tudo foi muito chocante pro papai. Lógico, a vida inteira trabalhando e chegamos aqui com cinco libras, só. Que era isso que era permitido tirar de lá. Então foi muito duro pra ele e pra minha mãe, mas ainda assim nós temos que agradecer a Deus que saímos com vida.
P/1 – E por que vocês saíram do Rio de Janeiro, você e seu marido?
R – Meu marido era muito europeu, húngaro, e ele sentia muito calor, muito calor, tava muito quente no Rio. E depois ele tinha já um escritório lá e pediram pra ele montar um escritório aqui pra também representar as diversas fábricas aqui. Então, ele veio primeiro e nós ficamos no Rio. Aí as crianças começaram a ficar com saudade porque só viam ele no fim de semana e acabamos mudando pra São Paulo. Tinha que ser (risos)
P/1 – Que marcas que ele representava?
R – Ele representava a Mateco, que era aquela de inflados. Você lembra daquele João Teimoso?
P/1 – Lembro
R – Pois é, era essa. E as primeiras boias. Depois brinquedos Paraná, que faziam aquelas tábuas de brincar futebol de botão. E mais a Saxônia que eram aqueles carrinhos de madeira com os pinos. E aí eu já nem lembro, eu sei que ele representava umas cinco, seis fábricas
P/1 – E você tava contente, você tava ansiosa? Como é que você tava pra vir pra São Paulo? Você já conhecia São Paulo?
R – Conhecia São Paulo, mas conhecer São Paulo de visita e morar é diferente, sente muita falta da praia. Minha irmã ficou no Rio, minha prima ficou no Rio, então sentia muita saudade. Mas a gente ia, passava lá as férias com as crianças, mas a princípio foi difícil pra mim
P/1 – E você deixou seu trabalho lá?
R – Lá eu deixei, eu trabalhei na empresa Klabin Irmãos e Companhia nove anos, saí de lá pra vir pra cá
P/1 – Você saiu da joalheira...
R – Ah sim, depois da joalheira eu fui pra Seleções
P/1 – O que você fazia na Seleções?
R – Secretária. Depois da Seleções eu fui pra um escritório de representação, fiquei lá nove anos também. Aliás até hoje eu me dou com meu ex-chefe (risos). E depois eu fui pra Souza Cruz, onde eu trabalhei quatro anos, e da Souza Cruz eu fui pra Klabin
P/1 – Como secretária sempre
R – Como secretária
P/1 – Tem alguma história marcante desse período de trabalho, de algum lugar?
R – Aqui. Foi mais marcante aqui
P/1 – Aí você voltou, deixou seu emprego lá e veio pra cá
R – Eu vim pra cá
P/1 – Que bairro vocês foram morar?
R – Nós fomos morar no Morumbi. Meu marido queria casa, casa e eu tinha muito medo de casa, eu não tava acostumada e fomos morar no Portal do Morumbi. A gente ficou lá três anos e meio
P/1 – Foi logo quando construiu o Portal?
R – Não, foi alguns anos depois. Pras crianças foi maravilhoso porque ele tinha aula de judô, ela tinha aula de natação ou de balé, mas todo mundo dizia que era muito longe e as crianças começaram a estudar no Renascença em Higienópolis. Foi tudo bem enquanto eles tinham o mesmo horário, depois começou o integral, ele saía à uma e ela saía às quatro. Eu levava ela pra casa e ia buscar ela. E depois ele começou também, mas cada um em um dia diferente. Aí eu disse assim: “Eu não aguento, não dá”. Aí saímos do Portal e fomos morar em Higienópolis
P/1 – Como é que era o Morumbi naquela época?
R – Era muito sossegado, muito tranquilo, não tinha o que tem. As crianças tinham que estar no colégio às sete horas, saía de dentro de casa seis e meia, cinco pra sete estávamos na porta da escola. Hoje em dia a gente teria que sair às cinco provavelmente (risos). Estava muito gostoso, foi uma época muito boa
P/1 – Qual foi teu impacto quando você chegou em São Paulo?
R – Eu achei o paulistano muito fechado. No prédio onde a gente morava nós éramos os únicos cariocas naquele bloco. Eu entrava e o pessoal sabia que eu era carioca pelo sotaque, lógico. Eu entrava, dava bom dia, o pessoal virava o nariz pra mim. E aí, a princípio, antes deles irem estudar no Renascença eles foram, porque no Rio eles estudavam numa escola chamada, não era Chapeuzinho Vermelho, era um negócio parecido. E aí eu gostei do método, porque o método lá tudo era problema pra criança resolver. E eu pedi que me indicassem um colégio aqui, me indicaram o Colégio Crie, mas não era a mesma coisa. Mas ali tinha uma outra família que morava perto e eu sugeri que a gente fizesse um rodízio. Ela não quis porque eu era carioca
P/1 – Mas isso foi dito?
R – Eu escutei ela falando com outra. “Ah, eu não vou aceitar, imagina uma carioca levar”. Foi assim, só que ela teve um problema de coluna e ela não podia dirigir, então um dia ela me liga: “Você se importa de levar meus filhos?” Eu digo: “Mas aí a carioca de repente pode levar?” Ela não sabia que eu tinha escutado, ela ficou: “Imagina, foi uma bobagem”. Eu digo: “Não tem problema eu levo teus filhos e trago, mas saiba que carioca é igualzinho ao paulistano, ou talvez até melhor”. Mas no ano seguinte eu tirei meus filhos e eles foram estudar no Renascença
P/1 – Aí vocês decidiram mudar pro Higienópolis pra ficar mais perto
R – Ah, pra ficar mais perto, lógico
P/1 – E como é que seu filho tava no trabalho?
R – Tava bem, tava tudo bem, graças a Deus
P/1 – E você não sentia falta de trabalhar?
R – Foi o que eu
fiz depois (risos). Eu comecei a trabalhar. Quando eles já estavam bem, já estavam ambientados e tudo voltei, só que aí acabei entrando em banco. Eu fui trabalhar no Chemical
P/1 – Como é que você conseguiu, como é que foi trabalhar lá?
R – Eu li um anúncio no jornal, fui me apresentar e trabalhei lá com o vice-presidente do Chemical
P/1 – Você viu por anúncio de jornal?
R – Foi
P/1 – Que ano foi isso?
R – Nós mudamos em 80, foi em 83. Entrei no Chemical, fiquei lá cinco anos; do Chemical eu acabei saindo e fui pro Banco Chase porque um dos diretores do Chemical foi pra lá e me chamou. Aí fiquei no Chase. Do Chase eu saí porque me chamaram pra ir trabalhar numa empresa que era os Elevadores Schindler. Ia trabalhar com uma pessoa maravilhosa que veio de Miami, que era um super... Quando eu fiz a entrevista eu realmente achei que ia ser fantástico, porque o cara falava inglês, francês, italiano, alemão e português. Só que depois descobrimos que o cara era um doido, louco varrido. De gritar, de jogar as coisas, de arrancar telefone. Foi um negócio assim, horroroso
P/1 – Mas você chegou a trabalhar com ele?
R – Cheguei a trabalhar com ele nove meses. Aí eu liguei pra Diretora de Recursos Humanos e contei. Depois ela viu e disse assim: “Olha, nunca lamentei de ter tirado você daquele emprego como eu lamentei”. Eu digo: “Olha, estou pedindo demissão porque eu não estou aguentando esse cara”. Olha só o cúmulo, um dia tinha uma reunião de diretoria, com clientes, com tudo. Ele me chama, me dá uma bronca na frente de todo mundo porque eu não avisei a ele que a gata teve gatinhos (risos)
P/1 – A gata de quem, dele?
R – Do lugar que a gente trabalhava, era uma casa alugada no Pacaembu. Aí eu virei para ele e disse assim: “Isso aqui não faz parte do meu trabalho. O meu trabalho é de secretária”. Saí, aí naquele dia eu bati uma carta de demissão. “Ah não, desculpe, tal”, eu digo: “Não, chega”. E aí liguei pro pessoal do banco, estavam precisando de alguém no Chase e voltou pro Chase (risos). E depois do Chase eu fui pro J.P. Morgan, e depois eu fui pro Deutsche. A minha trajetória toda é de banco
P/1 – E por que você entrou nesse setor? Começou daquele anúncio
R – Daquele anúncio e aí você entra, o pessoal acaba te chamando.
P/1 – E você fazia bem o seu trabalho, por isso que ficavam te chamando sempre
R – Eu acho que sim. Tanto é que no Deutsche eu já não era mais secretária, eu era Officemanager de um departamento chamado Private Banking. Só que depois fecharam o departamento, todo mundo foi mandado embora e aí eu não consegui mais voltar porque aquelas coisas que acontecem, na época não tinha lugar e tal. E aí fui trabalhar numa empresa francesa de celulares, mas eu não tava muito satisfeita lá, não era bem o que eu gostava de fazer, eu tomava conta do escritório e tudo, mas aí veio a história, vai ser vendida, não vai ser vendida, tal. Um dia alguém me liga dizendo se eu conhecia uma secretária pra trabalhar para o ex-Ministro de Agricultura Pratini de Moraes. Eu digo: “Eu!”. Aí eu fui, fiz a entrevista com ele, ele trabalhava numa empresa chamada Abiec, onde a Leslie também trabalhou. E eu fiz a entrevista com ele, ele me aceitou, pedi demissão na outra empresa, comecei a trabalhar com ele e depois nós fomos pra JBS, e trabalhei lá até o ano retrasado
P/1 – Por que você saiu?
R – Porque ele também saiu, ele ficou só no conselho. E aí eu era, infelizmente, uma frase que eu já conheço: “Boa demais para o que nós precisamos”. E acabei, agora não estou mais trabalhando
P/1 – Você já está aposentada?
R – Já
P/1 – E seu marido?
R – Infelizmente faleceu há seis anos
P/1 – Ele continuou trabalhando o tempo inteiro com representação?
R – Com representação
P/1 – Vocês se davam bem?
R – Maravilhosamente bem, foi realmente um companheirão
P/1 – Vocês viajaram?
R – A gente viajava, mas nem tanto assim. Ele era muito workaholic, mas a gente foi pra Miami juntos, voltamos pra Hungria, ele voltou a primeira vez depois de 50 anos. Ele foi ver o apartamento onde eles moravam, esse apartamento tinha sido transformado em quatro apartamentos. Foi muita emoção pra ele também
P/1 – Você nunca mais voltou pro Egito?
R – Não. Porque durante muitos anos eu não podia voltar. Imagina, fui mandada embora. E depois, quando podia voltar, eu digo: “Quer saber de uma coisa? Deixa eu guardar minhas lembraças boas”. O Egito era limpo, de noite passavam caminhões lavando as ruas. E aí depois uma amiga minha tinha voltado, disse que tava tudo quebrado, tudo sujo. Eu digo: “Não, deixa eu ficar com as minhas lembranças muito boas de lá”
P/1 – Do que seu marido morreu?
R – Infelizmente ele teve problema renal. Até se cogitou um transplante mas o meu rim não era compatível, seria o rim do meu filho e na véspera da operação meu marido teve um enfarte que era um sinal, ele achou que era um sinal pra não pegar o rim do meu filho. E aí depois o negócio foi degringolando, degringolando e ele faleceu. Porque o problema renal é terrível, o rim começa a pegar todos os órgãos possíveis e imagináveis
P/1 – E você tem netos?
R – Eu tenho dois netos, um que vai fazer nove anos agora e uma que vai fazer seis anos em dezembro. Até achei que meu marido ia conhecer a neta porque ele faleceu dia seis de dezembro e ela nasceu 22 de dezembro. A frustração dela é não ter conhecido o vovô Gabriel. E eles são a minha alegria, fora os meus filhos que são maravilhosos, graças a Deus
P/1 – E você cultiva costumes da sua família tradição?
R – Sim, toda sexta-feira. Graças a Deus a gente se dá muito bem com os sogros da minha filha, como se fosse a mesma família, como se fôssemos irmãs. Então toda sexta-feira praticamente tem shabat na casa dela, ou na às vezes casa da minha filha, ou às vezes na minha. Mas é mais na casa dela porque ela tem uma filha que é casada e tem dois meninos, então, ela quer reunir lá na casa dela. Sempre as festas juntas, a primeira noite é na casa dela, a segunda noite na minha casa, então é muito, muito gostoso, graças a Deus a gente tem uma família muito bonita
P/1 – E qual é o seu cotidiano hoje?
R – Eu sou síndica, cínica, no prédio (risos). Tem muito trabalho lá. E eu ajudo a minha filha no que posso. O meu filho comprou um apartamento, que ele pretende sair, já tá na hora. Então eu tava ajudando ele com a reforma do apartamento. Então não tenho um minuto livre
P/1 – Seu filho não é casado
R – Não. Procurando noiva, eu, pra ele (risos). Não, não põe esse negócio não, senão ele vai ficar danado da vida (risos)
P/1 – Você tem algum hobby?
R – Eu gosto muito de ler, gosto de teatro e eu gosto também de ficar um pouco na minha casa. Durante muitos anos eu trabalhava, trabalhava, trabalhava, então eu gosto de curtir minha casa. Mas eu gosto muito de ler, ouvir música, e o que a gente faz bastante, a gente vai ao Teatro Municipal, eu vou com os sogros da minha filha, quando pode a gente compra e vamos ouvir música clássica, eu gosto
P/1 – Quais são seus sonhos hoje? Desejos, sonhos
R – Meu desejo é ver meu filho bem casado, feliz. E a minha família feliz e ver meus netos felizes e com saúde. Eu já to final da reta, ah, 73 anos... Chega. Então é isso que eu quero. E ver paz no mundo, que isso eu acho difícil, mas eu espero que a gente possa ter paz
P/1 – Rosie, deve ter várias coisas, você tem uma trajetória profissional longuíssima, essa história da imigração pro Brasil. Um fato que você queira deixar registrado, que evidentemente a gente não conseguiria tocar aqui?
R – Que a gente nunca pode perder a fé, que a gente tem que sempre olhar pra frente. O que passou, passou e tem muita coisa boa pra vir. A gente não pode se deixar abater. Eu sei que é triste, a gente fica triste, mas a vida tem que continuar e tentar viver com alegria
P/1 – Olhando sua trajetória, tudo o que você fez, as decisões que você tomou, o que você fez pelo destino, se você tivesse que mudar alguma coisa você mudaria alguma coisa?
R – Eu não mudaria meu casamento, não mudaria o amor que eu tenho pela família. Eu só queria ter podido fazer o que eu sempre quis que era ser médica, e eu não pude. Seria só isso
P/1 – Por que você não pôde?
R – Porque eu tinha que trabalhar e estudar Medicina à noite não tem como, então sou uma médica frustrada (risos). Mas de restofoi tudo maravilhoso
P/1 – Rosie, o que você achou da experiência de dar esse depoimento aqui pro Museu da Pessoa?
R – É a primeira vez que eu faço isso, eu realmente estava com um friozinho na barriga (risos) porque eu nunca fiz. Mas foi ótimo, foi muito fácil, você me ajudou muito, e eu agradeço muito essa oportunidade de poder falar um pouquinho. Porque deve ter outros egípcios também que poderiam fazer esse mesmo depoimento
P/1 – Claro, é só indicar
R – Eu falei com a Leslie que eu poderia indicar outras pessoas porque às segundas-feiras a sogra da minha filha e eu vamos a palestras dadas por um rabino marroquino que se chama Samuel Pinto. Numa sinagoga que eles chamam “a sinagoga dos egípcios”, que é sefaradi. Tem vários egípcios lá que eu poderia depois pedir, se vocês precisarem, para eles virem aqui dar o depoimento deles
P/1 – Ótimo! Muito obrigada!
R – De nada, muito obrigada vocêsRecolher