Com 38 anos de trabalho na ECT, guardo alguns registros que não vou mais esquecer. Chefiei alguns setores e deles trago histórias, as mais interessantes e (algumas) hilárias. Abaixo, guardo a recordação daquela destinatária (uma senhora) que quase nos agride em busca de uma correspondência su...Continuar leitura
Com 38 anos de trabalho na ECT, guardo alguns registros que não vou mais esquecer. Chefiei alguns setores e deles trago histórias, as mais interessantes e (algumas) hilárias. Abaixo, guardo a recordação daquela destinatária (uma senhora) que quase nos agride em busca de uma correspondência sua. Só que o endereço que ela reclamava tinha algo especialmente peculiar. Eis, daí, o registro que faço agora - abaixo.
RUA AMAPÁ, NÚMERO 8.
Com a aposentadoria de um carteiro antigo, chegou a vez do carteiro José Roberto, o “Batata”, assumir uma posição de titular na entrega correspondências dos Correios. Na ECT há aproximadamente seis meses, “Batata” sempre fora reserva. Seu, agora, bairro fixo de entrega era longe e rural. “- Mas, tudo bem. Isso é ferimento leve!” – brincava ele. Em pouquíssimo tempo, “Batata” superou o desafio. Até que, um dia, apareceu uma senhora (já anciã) no seu setor de trabalho cobrando correspondências atrasadas. Mãos nas cadeiras sotaque nordestino, ela esbravejava que, desde que mudara o carteiro, não recebia mais correspondências. Verificado o endereço: “Rua Amapá, nº. 8”. Era da entrega do
“Batata”. Chamado à presença da senhora pelo chefe, de fato, admitiu que havia várias correspondências daquela senhora que não puderam ser entregues, inclusive já anotadas para devolução aos remetentes, por “número desconhecido”. “Batata” estranhou: “ - Senhora, desculpe, mas a Rua Amapá não tem número 8!” – afirmou. A anciã, rude, simplória, e sem papas na língua, se exaltou: “ - Oxente, você ta é louco, visse? Ou, então, ta precisando de óculos e bengala, de tão cego! O número ta lá pra ‘quarqué’ um vê!”. Para evitar discussão com a anciã, “Batata” pediu desculpas e prometeu rever toda a numeração da rua Amapá. Uma semana depois, a senhora nordestina reapareceu. Ela nem falou com o chefe, foi direta até “Batata”: “- Escuta aqui, sujeito: cadê minhas ‘carta’, hein?” “Batata”, foi pego de surpresa. A senhora emendou à queima roupa: “- É môco também, é? Cadê minhas ‘carta e minhas conta', sujeito?”
Diante do gestor, “Batata” se justificou: “ – Mas, chefe, eu andei a rua Amapá inteira e não vi nenhum número oito lá!” Só que continuava, de fato, chegando correspondência para a
“rua Amapá, nº. 8”. E, pra piorar, endereçadas àquela senhora nordestina, enfezada. E agora? O gestor contornou e prometeu conferir pessoalmente
a situação. Ela se acalmou, mas antes de sair lançou um olhar de acauã feroz sobre o carteiro. Infelizmente, passou-se mais de uma semana e nada do gestor, nem “Batata” irem à Rua Amapá.
Noutra manhã, em plena agitação de trabalho, a anciã nordestina invadiu o setor de cartas com um porrete na mão, resmungando, dando empurrões, indo direto na direção de “Batata”, decidida a espancá-lo. Contida, berrou: “ - Sujeito a toa, cabra sem vergonha! Tome tento, visse? Entrega minhas ‘carta’ e 'minhas conta', ordinário! Ou lhe dou de porrete, visse?” Acalmada a anciã, o gestor, de imediato a colocou numa viatura da ECT e foi com ela (e “Batata”) ao tal endereço. Chegando à rua
Amapá, guiados por ela, caminharam os três por uma trilha distante uns trezentos metros da rua, até chegarem à entrada de um terreno encoberto por
árvores e muito mato. À frente deles, uma porteira em decomposição, através da qual se via um casebre solitário, coberto por telhas velhas e sapê. Ante os olhares interrogativos de “Batata” e do gestor, em frente à entrada do terreno, ela bradou : “ - Tão vendo ali na porteira? (apontou) Olha lá o número oito. ‘Quarqué’ um pode vê, oxente!’ Os dois firmaram os olhos. Perguntaram: “- Onde, senhora?” Ela, então, se aproximou de um dos dois restos de moirões velhos, que serviam de base para o que restava da porteira, e cravou o indicador: “Apôs, olha aqui! Oxente! E que número é esse, hein, seus abestado?” Pois lá estava o que ela defendia, com valentia, como sendo o número 8. Na verdade, tratava-se de duas ferraduras – na posição vertical, uma acima da outra, inversas; sem sequer estarem unidas pelas respectivas pontas. Mas, para ela, aquilo era o número oito. Pasmos e apiedados, “Batata” e o gestor se olharam sem palavras. A partir dali, as correspondências da Rua Amapá, número oito, nunca mais foram motivo de reclamação. Nem se teve mais noticia da anciã enfezada.
Conclusão: “Mais valem duas ferraduras no portão, do que a falta de suas correspondências na mão!”Recolher