P/1 – Você pode começar falando o seu nome, local e data de nascimento?
R – Meu nome é Adriana Cordovil, nasci no dia dois de janeiro de 1966 em São Paulo.
P/1 – Os seus pais são de São Paulo?
R – Não. O meu pai era mineiro, de Manhuaçu e minha mãe italiana.
P/1 – Toda a família ...Continuar leitura
P/1 – Você pode começar falando o seu nome, local e data de nascimento?
R – Meu nome é Adriana Cordovil, nasci no dia dois de janeiro de 1966 em São Paulo.
P/1 – Os seus pais são de São Paulo?
R – Não. O meu pai era mineiro, de Manhuaçu e minha mãe italiana.
P/1 – Toda a família do seu pai é de minas gerais?
R – Sim.
P/1 – Como eles se conheceram?
R – Minha mãe chegou da Itália em 1960, em São Paulo. O meu nono trabalhava na Simca, em Paris e foi transferido para uma filial que havia sido aberta aqui.
P/1 – Antes eles moraram em Paris?
R – Sim, por treze anos. Saíram da Itália depois da guerra. O meu nono lutou na resistência e um pouco antes do fim da guerra ele já havia fugido com a minha nona e minha mãe pequena. Em 1960 o meu pai já estava morando em São Paulo. Antes disso ele havia saído de Manhuaçu e se mudado para Belo Horizonte. Nessa época ele já cantava na Jovem Guarda. Minha mãe o conheceu em um clube de campo onde ele estava cantando.
P/1 – Ela estava assistindo?
R – Estava. Não sei exatamente em que ano foi isso, acho que em 1962, 1963.
P/1 – O que seus avós maternos eles faziam na Itália?
R – O nono era torneiro mecânico, morava em Piacenza, uma cidade que era pequena mas hoje não estão tão pequena quando comparada com Milão, e a minha nona morava em uma cidade vizinha, chamada San Secundo Parmense. Eles se conheceram ali na região. Ele ia a visitar de bicicleta para namorarem, mas com a guerra as coisas mudaram um pouco. Eles tiveram que se virar pra se ver, casar e tudo mais.
P/1 – Mas o exército o chamou?
R – Todos eram chamados para se alistar, independente de querer ou não. Inclusive um irmão dele de 16 anos foi convocado e morreu em um bombardeio. Ele serviu a marinha e tomava conta da alimentação dos marinheiros que ficavam em terra. Raramente ele embarcava. O que ele me contou é que eles não sabiam exatamente se a Itália estava do lado certo da guerra. Um dos marinheiros que sabia inglês ouviu na BBC, através da rádio pirata, que a Itália estava do lado errado. Ai eles se rebelaram em silêncio e um vez que o navio atracou o nono se rebelou e fugiu para as montanhas e lutou com a resistência francesa, nunca mais voltou para a Itália.
P/1 – E então ele e sua nona se mudaram pra França?
R – Sim. Fugiram de lambreta! .
P/1 – Ele te contou essa história?
R – Na verdade eu é quem perguntava. Ele não gostava de contar as coisas dolorosas da guerra.
P/1 – E ai, como foi na França?
R – A própria resistência organizava trabalho para aqueles que haviam lutado. Ele foi convidado a trabalhar como torneiro e assim ficou. Depois ele acabou subindo de posto e quando veio para o Brasil já chefiava todos os engenheiros da Simca, Chysler, depois Auto Latina, foi mudando. Apensar de apenas torneiro mecânico, os engenheiros eram subordinados a ele por conta da experiência.
P/1 – Ele veio para São Paulo com a família?
R – A princípio ele veio sozinho, ficou três meses em um processo de experiência para sondar o terreno, depois trouxe a nona, minha mãe e os meus três tios.
P/1 – Em qual bairro eles vieram?
R – Vieram para próximo do Sírio Libanês, acho que o bairro se chama Planalto Paulista. Mas a região era só mato. O Brasil era muito atrasado em relação a Europa. Pra quem vinha de Paris pra cá notava esse atraso.
P/1 – Eles comentavam isso com você?
R – Comentavam. A minha nona ficou muito deprimida. Chorava muito porque deixou amigas, a irmã, amigos para vir pro meio do mato. Quase não tinham casas e ela se sentia muito sozinha. Para os filhos não foi tanto, porque a minha mãe tinha 16 anos, minha tia 14 e meu tio 12 anos. Logo arrumaram amigos e pra eles foi legal. Para o nono também, tanto é que nunca voltaram. Depois de um tempo ela se adaptou.
P/1 – Ela era dona de casa?
R – Sim. Sempre teve aquela saudade da terra dela.
P/1 – Os dois avós paternos eram de Minas?
R – Ele era. A minha avó acho que era daqui de São Paulo. Não tenho certeza. O pai do meu avô era médico e atendia as pessoas a cavalo, na região que hoje passa a Fernão Dias. Eles tinham uma fazenda e diziam que ele tinha um livrinho preto onde anotava as dívidas, mas nunca cobrou! . O meu bisavô também se casou com uma descendente de italiana, tiveram três filhos, um deles o meu avô, que morou ali, em Viçosa, por um tempo e depois veio para São Paulo.
P/1 – O que o seu avô fazia?
R – Ele era advogado, mas gostava muito de música. Sempre gostou muito. Começou tocando numa banda militar num colégio internato do Rio de Janeiro. Gostava muito e começou a estudar para ser maestro. Foi a escola de música e acabou virando músico profissional. Lembro de uma época em que ele foi até advogado da Antártica, mas sua ocupação principal sempre foi como maestro, professor, pianista. Ele regia os festivais da Record.
P/1 – Ele saiu do internato e já veio pra para São Paulo?
R – Ele circulou entre Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Ele veio para São Paulo já adulto. Se instalou aqui e não voltou mais para Minas.
P/1 – Nisso o seu pai veio junto?
R – Não. Ele ficou em Minas com a minha avó. Naquela época tinha muito disso. Pelo que eu sei, a minha avó não criou os filhos. Ficavam com os avós deles, iam para internatos, não se viam muito. Era aquela coisa de se ver uma vez por ano. Os filhos menores nem tanto, mas o meu pai, que era o mais velho, foi criado pelos meus avós.
P/1 – O que o seu avô veio fazer aqui?
R – Ele já era advogado e também já fazia música, marchinhas de carnaval, baião, coisas bem enraizadas com os sons do Brasil. Ai o meu pai, já um adulto jovem, veio e também já entrou na música. Ele veio pra cá porque queria entrar nessa área e lá em Minas não tinha campo.
P/1 – O seu avô incentivava ele?
R – Sim. A minha família era de músicos, profissionais ou não. Era uma casa com piano, cavaquinho, violão , tudo espalhado pela sala. Me lembro que uma vez por semana tinha um sarau em casa, ficava cheio de gente tocando e cantando!
P/1 – E o seu pai teve alguma outra profissão antes disso?
R – Antes não, só depois, quando ele parou de cantar.
P/1 – Como ele começou?
R – O meu avô já era compositor, então o meu avô compunha musicas pra ele cantar. O meu pai não tinha uma grande voz, mas era afinado, bonitinho, tinha olhos claros, gostava dos Beatles, já tinha toda aquela onda vinda da Inglaterra, e ele estourou! Foi pré Jovem Guarda, antes do Erasmo Carlos, Roberto Carlos e Wanderléia. Assim que ele gravou já virou um ídolo.
P/1 – Qual foi a primeira música que ele gravou?
R – Não vou saber. Era comum nesta época cantar em outras línguas, em espanhol, italiano, inglês, e foram estas as primeiras. Depois é que ele começou a cantar em português.
P/1 – O seu avô quem colocou ele para cantar em rádios?
R – Com certeza.
P/1 – Em que ano foi isso?
R – Em 1962, eu acho. Porque quando a Jovem Guarda entrou, ele já estava saindo.
P/1 – O seu pai morava aonde aqui em São Paulo?
R – Em Moema. Os meus avôs moravam na Rua Catuiçara, que é uma transversal da Rua Eucaliptos, numa casa perto da onde tem aquela igreja redonda.
P/1 – E a sua avó materna?
R – Eu não sei dizer muito dela. Ela era dona de casa, sempre muito ligada a cozinha, mesmo tendo empregadas. Morava em uma casa grande e era meio distante de nós. Na época, eles tinham um padrão de vida muito bom. Eu acho que o meu avô tem um peso para a música brasileira maior que a do meu pai. Meu pai teve uma carreira meio meteórica, o meu avô deixou um documento de muitos anos, gravando com Noel Rosa, Carmem Miranda, Gonzagão, acho que são coisas que tem mais peso. Se bem que este movimento pré Jovem Guarda também abriu muitas portas.
P/1 – Aonde o seu pai e a sua mãe se conheceram?
R – No Clube de Campo Castelo. Acho que é perto de Interlagos, se não me engano. Não sei nem se ainda existe.
P/1 – E como foi?
R – Ela detestava ele porque a música “Biquine de bolinha amarelinha” falava de uma tal de Ana Maria, que era o nome dela, e ela não achava a menor graça! . Irônico. Se conheceram na festa e começaram a namorar.
P/1 – E quanto tempo eles namoraram?
R – Acho que não foi muito não. Eles se casaram em 1965. Deve ter sido um ano, um ano e meio no máximo.
P/1 – E ai eles se casaram e foram morar aonde?
R – Na Avenida Santo Amaro, num prédio de três andares, onde eu nasci. Nessa época esta região ainda abrigava prédios residenciais.
P/1 – E quanto tempo você morou neste apartamento?
R – Seis anos. Sai de lá quando o meu pai já havia saído da música, trabalhava em uma empresa e foi transferido para Belo Horizonte. Foi quando ele retornou para Minas.
P/1 – E você se lembra de Santo Amaro nessa época?
R – Lembro. Era uma avenida bonita, grande, sem tanto movimento como agora, com muito cinema. Eu morava na frente do Cine Vila Rica. Eu atravessava a rua e estava na frente do cinema. Eu nem pagava mais, já era amiga do bilheteiro então passava por debaixo da catraca. Isso eu era bem pequenininha. Entrava, as vezes via o que estava passando e saia.
P/1 – Você ia sozinha?
R – Não, ia com a minha mãe. O cinema era a extensão da minha casa, onde eu ia brincar. Acho que é por isso que o cinema é tão presente na minha vida.
P/1 – E a Avenida Santo Amaro era arborizada?
R – Era. O meu pai tinha uma loja de discos lá. Quando ele parou de cantar, abriu uma loja de discos por ali. Então toda a minha vida era ali. Eu nasci no São Luis, que era na Avenida Santo Amaro, o cinema que eu ia também era ali, a minha nona morou na outra rua, e era uma avenida rica de coisas para fazer.
P/1 – Você tem outras irmãs?
R – Uma mais nova, a Flávia, que nasceu em 1969.
P/1 – E você brincava com a Flávia? Como eram as brincadeiras?
R – Nessa primeira infância não tínhamos amigos porque os vizinhos não tinham filhos e a minha família era muito pequena, então era eu com ela e ela comigo. Brincávamos de desenhar. A casa vivia cheia de lápis e papel colorido. Além disso brincávamos de quebra cabeça, casinha, de panelinha, de comidinha, justo eu que não cozinho nada! . Eram brincadeiras de apartamento. Não tínhamos patins, patinete, essas coisas. Eram brincadeiras mais introspectivas.
P/1 – O seu pai cantava bastante em casa?
R – Sempre teve música em casa. Ou era um disco tocando, ou o meu pai, com um violão tocando.
P/1 – Você lembra de alguma música que ele cantava?
R – Beatles, sempre. Quando eu era pequena ele cantava Michelle pra eu dormir. Eu lembro que era canção de ninar. . Eu sabia todas as músicas dos Beatles que tinha nos LP’s de casa, de cor e salteado. Engraçado o meu avô ter essa veia brasileira bem marcante e na casa do meu pai não ter nada disso. Era só Beatles, The Carpinters, Bee Gees. Minha mãe gostava de opera, então eu ouvia também. Ela adorava Mina, uma cantora italiana.
P/1 – A sua mãe trabalhava fora?
R – Não. Naquela época ela era dona de casa.
P/1 – Quem exercia a autoridade em casa?
R – A minha mãe. Era o general da banda, digamos. . O meu pai era meio artista. Não se preocupava muito com o mundo real, filhos, supermercado, contas a pagar...estava sempre com o violão em algum lugar. Depois que ele saiu da loja de discos foi trabalhar com vendas, coisas que ele conseguia. Por causa da música ele parou de estudar no colegial.
P/1 – Qual foi a vez que você o escutou e pensou “nossa, o meu pai é um artista de sucesso”.
R – Eu ouvia muito os discos dele. Principalmente os compactos, com músicas que ele gravou com os irmãos. O grupo se chamava The Cords, de Cordovil. . Tanto é que ele era o Rony Cords, pra época esses nomes meio sonorizados, americanos, caiam bem. A gente teve noção de quanto ele era importante quando veio a novela Estúpido Cupído, em 1977. Ai voltou tudo de novo. Eu tinha 11 anos, eu estava na escola e a trilha sonora era dos anos 70 e com isso novamente eles foram chamados para programas de auditório, Raul Gil, Programa do Bolinha, Silvio Santos, cantar em tudo que era lugar. Foi nessa época que caiu a ficha que ele era cantor porque, antes disso, eu só o via trabalhando em outras coisas. Me lembro de chegar com o caderno em casa e pedir pro meu pai fazer 42 autógrafos, para as minhas amigas da escola. .
P/1 – E o seu avô?
R – Eu não convivi muito com ele. Ele era grão mestre da maçonaria, até hoje eu não entendo muito bem o que é isso, mas por este motivo ele ficava muito tempo fora. Tinham esses sarais na casa dele a noite, mas ele saia muito. Eu achava que ele era marceneiro, que ia para a marcenaria, e não pra maçonaria. . Ele era muito ocupado, faleceu enquanto eu tinha 13 anos.
P/1 – E essa história dos festivais que ele participava?
R – Eu só vim a entender essa história bem mais pra frente, quando eu comecei a gostar de MPB. Com 14 anos eu não gostava mais só de Beatles. Me lembro que foi ao estádio do Morumbi pela primeira vez pra ver um show com vários artistas. Ai comecei a gostar de Elis Regina, João Bosco, Caetano Veloso, Gilberto Gil. Foi quando eu entendi que eles começaram nos festivais e que o meu avô estava lá.
P/1 – Até seis anos vocês moraram neste apartamento de Santo Amaro e depois vocês foram pra onde?
R – Pra Belo Horizonte. Só ficamos seis meses, mas pra mim foi bem marcante. Me lembro da cidade com o céu muito azul, um clima de montanha, adorava o clima da cidade mas na escola eu fui um pouco hostilizada por ser paulista. Foi algo que me marcou negativamente. A escola era maravilhosa. O meu pai pagava uma escola particular que pegava um quarteirão. Tinha ginásio olímpico, piscina, era uma coisa fora do padrão que a gente tinha até então.
P/1 – O que ele foi fazer lá?
R – Ele foi trabalhar na Trans Europa, que é uma agencia de turismo. Ele era um dos que mais vendia pacotes turísticos. Não sei se por que tinha sido famoso, ou os olhos azuis...mas na hora de vender fazia diferença! . Lá nós morávamos na casa da minha bisavó. Foi muito bom pra mim ter voltado às origens. Era uma casa, não um prédio como eu estava acostumada. Conheci um monte de tia, comi muito pão de queijo, café, aqueles lanches da tarde com muitas coisas, eu adorei!
P/1 – Você tinha uns seis, sete anos?
R – Isso! Me lembro bem do crochê, do papo da mulherada, eu adorava ficar no meio.
P/1 – A sua bisavó contava histórias?
R – Ela não. Já estava bem velhinha. Mas as minhas tias sim. Eu convivi bastante com o irmão do meu avô, que era pintor de quadros. Mais um artista. Eu adorava vê-lo pintando. Esse tempo com ele também foi muito bom.
P/1 – E depois desse tempo vocês voltaram pra São Paulo?
R – Sim. Mas depois que voltamos não fomos mais pra aquele apartamento. Nessa época ele vendeu o apartamento da Avenida Santo Amaro e comprou outro, na planta, em Moema. Quando voltamos o apartamento não estava nem acabado ainda. A gente mudou e me lembro que o salão de festas ainda estava com umas madeiras, em reforma. É um prédio que existe até hoje e destoa dos outros. Moema agora tem aqueles prédios de alto padrão e ele tá lá, totalmente fora! . É na Rua Sabiá.
P/1 – Como era a Rua Sabiá?
R – Com poucos prédios. O nosso era um dos poucos, se não o único. De lado tinha uma chácara. Chácara mesmo! A Avenida Hélio Peregrino era um córrego, chamava Rio Beirabinha, se não me engano. Tanto é que o ônibus que passava chamava Vila Beirabinha. A gente brincava ali nas redondezas, inclusive muito perto do córregos. Brincávamos na rua, todos os meus amigos moravam em casa, eu era uma das poucas que moravam em apartamento. A gente também brincava no playground do prédio e na piscina. Esse era um dos poucos prédios com playground da época. A genrte jogava vôlei fazendo o portão como rede e ia muito ao Parque Ibirapuera. Íamos a pé, de bicicleta, patins. Os pais nem sabiam onde a gente estava. Lembro que o bairro era tão plano que da minha janela eu via os aviões em congonhas. Dava pra ver aquele quadriculado laranja. Não tinha nada na frente.
P/1 – Em qual escola você foi estudar nessa época?
R – Instituto de Ensino Tabajara. . Uma escola em Moema também, mas do lado das ruas com nomes de índios, e não de passarinhos. Perto da Rua Jandira.
P/1 – Você ia a pé?
R – Não dava, era longe. Íamos de carro não me lembro se com a minha mãe ou meu pai.
P/1 – Quanto tempo você ficou nessa escola?
R – três anos.
P/1 – Você lembra das professoras?
R – Não. Só da diretora, que era muito brava. Era ditadura militar no Brasil, então tinha que cantar o hino no pátio, hastear a bandeira sem dar um piu, a gente não tinha noção se aquilo era bom ou não, me lembro que ela entrava nas classes e se tivesse qualquer coisa de errado, ela atirava giz. A gente tomava giz no olho, cabeça, onde ela acertava! .
P/1 – Do que você gostava na escola?
R – Eu fiz bons amigos. Sair da escola em Belo Horizonte foi um alivio pra mim. Eu sofri bullying com certeza. Só por ser paulista eu já ficava excluída da turma. Nessa escola de São Paulo tinha uma cantina, mas não era hábito comprar, todo mundo levava lancheira. Mas quando a minha mãe esquecia de mandar o lanche, coisa que era raro, ela dava um dinheiro e eu adorava comer pão com ovo! . Era o que eu mais gostava.
P/1 – A Flávia ia na mesma escola?
R – Ia sim.
P/1 – Vocês iam juntas?
R – Íamos. Até chegarmos à faculdade fizemos tudo junto. Íamos na mesma escola, dormíamos no mesmo quarto, usávamos as mesmas roupas, parecíamos gêmeas.
P/1 – Se falava em política na sua casa?
R – Não. Ninguém da minha família era engajado e eles também não falavam nada na nossa frente. A única coisa que eu me lembro foi que, quando teve a abertura política, pra se votar em Arena ou MDB, lembro que o meu pai votou no MDB e pediu pra eu não falar pra ninguém. Lembro disso e fiquei meio assustada porque eu não podia falar. O pessoal da Jovem Guarda não era engajado, era outra vibe.
P/1 – O seu pai tinha amigos artistas que o visitavam?
R – Era mais o meu avô. Me lembro do Adoniram Barbosa indo visitá-lo quando meu avô já estava doente. Lembro dele chegar, deixar o chapéu de feltro em cima do piano e subir as escadas para ver o meu avô. Eu fiquei com o chapéu brincando, e já sabia quem era ele. Lembro da Carmélia Alves, que era muito intima da família. Lembro do palhaço Arrelia, que também frequentava a casa do meu avô. Eu achava legal ele ser palhaço e ir a casa do meu avô sem ser palhaço. . A casa do meu avô era muito cheia de gente. Agora, na casa do meu pai não. Quando ele se casou com a minha mãe a carreira acabou.
P/1 – E porque acabou?
R – Eu não sei se porque ele já estava mesmo saindo de cena, quando entrou o Roberto, Erasmo e Wanderléia ele foi ficando de canto. Não sei se ele quis, ou ainda, se o casamento fez com que ele tivesse uma vida mais regrada. Acho que a minha mãe não era muito a favor disso. E ela mandava mesmo. Talvez tenha uma participação dela nisso ai.
P/1 – E educação religiosa, vocês tiveram alguma formação?
R – Não. O meu avô sempre foi espírita de mesa branca, do lado da minha mãe eles eram ateus. O meu nono era Partisa, imagina! . A minha mãe, influenciada pelo meu avô paterno entrou pro espiritismo mas acabou frequentando a Umbanda. Falaram pra ela que a veia dela não era no Kardecismo. Ela ficou muitos anos trabalhando como médium na Umbanda. A gente frequentava porque ela participava.
P/1 – Ela dava consultas?
R – Sim.
P/1 – Na sua casa?
R – Não, nunca. Lá nunca teve nada. As coisas que ela tinha, se guardava muito bem guardadinho. Mesmo porque, existia-se muito preconceito, coisa que ainda se tem.
P/1 – Você chegou a ir com ela?
R – Muitas vezes, acho que todas as sextas feiras.
P/1 – E o que você achava?
R – Eu sempre aceitei aquilo como uma coisa normal. Eu tinha muitas questões, é claro. Perguntava algumas pra ela e ela me respondia. Mas o som do atabaque, o cheiro da defumação, pra mim aquilo era normal. Eu me sentia bem porque era um lugar muito claro, branco, cheio de santinhos. Não era um lugar assustador para uma criança. Era um lugar limpo. Todo mundo de branco, pessoas muito simples e muito boas. A tiazinha do bairro, a senhorinha que vinha com o bolo, era muito aconchegante. Não entendo muito esse medo que as pessoas tem.
P/1 – E o seu pai, o que achava disso?
R – Ele adorava! Era cambono da mãe-de-santo. Cambono é o nome africano que se dá pra pessoa que ajuda a mãe-de-santo. Como ele não tinha mediunidade, não trabalhava incorporado. Então ele buscava uma vela, pegava água. Na verdade eles foram nesse lugar pela primeira vez porque a minha mãe ficou muito doente. Hoje a gente sabe que a minha mãe tem um doença psiquiátrica muito grave, crônica e sem cura, então talvez o que ela teve naquela época foi uma manifestação disso, mas na época atribuiu-se a coisas do mal que fizeram pra ela. Hoje sei que não foi bem isso. Quando eu era pequena ela teve uma depressão fortíssima. Ficou de cama, não levantava, não se vestia, não comia, ficou realmente mal.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Uns nove, dez. Mas não foi só uma vez, começava e voltava. A gente ficou muito assustado. Ela chegou a ser internada em um sanatório, coisa que na época era coisa de louco. Ficou 15 dias lá fazendo sonoterapia. Chumbavam a pessoa com sedativos fortíssimos e achavam que com isso curariam a pessoa. Ela ficou 15 dias dormindo e voltou igual!
P/1 – E quem ficou com vocês nesse período?
R – Ninguém! Nós! Tinha a nona por perto, mas ela tinha a casa dela. Eu não tomava conta da casa, mas me senti na responsabilidade de tomar conta da minha irmã, porque minha mãe estava mesmo fora de ar e o meu pai nunca tomou conta da gente. Não vou dizer que ele era ausente, mas ele não tinha capacidade de prestar atenção na roupa, na comida, sei lá.
P/1 – Vocês tinham empregada?
R – Sempre. Não me lembro de um dia não ter empregada, então, o básico, nós tínhamos. O tomar conta da minha irmã era muito mais dentro da minha cabeça do que real. Ela tinha tudo, mas eu achava que tinha que fazer papel de mãe.
P/1 – E como o seu pai lidava com isso?
R – Ele não conversa com a gente sobre isso. Era um tabu. Eu achava que a minha mãe ia morrer e, de fato, ela tentou se matar.
P/1 – Ele e sua mãe se davam bem?
R – Sim, mas tinham muitas brigas dentro de casa. A convivência com a minha mãe era muito difícil. Ela era muito violenta verbalmente. Meu pai era pacato e ela sempre gritando. Essa era a cena, ela gritando e ele não respondendo. Lembro de copo de requeijão quebrando na parede, ela jogando coisas na gente...só que a gente não teve apoio de ninguém. Como minha mãe sempre foi muito manipuladora, toda a família ficava com medo. Ninguém vinha acudir, então tivemos que viver com isso por anos. Tínhamos sempre que pisar em ovos, porque ela ia do normal ao surto total em segundos. Até saiu um livro sobre esta doença, transtorno de personalidade. De uma hora pra outra a pessoa muda o comportamento. Era muito difícil. Tinham momentos bons, mas a gente não sabia se duraria um minuto ou uma hora. . Ela foi parar no centro de Umbanda por causa disso. Achavam que ela tinha que desenvolver a mediunidade dela.
P/1 – Adriana, e depois da Escola Tabajara, pra qual escola você foi?
R – Quando sai de lá fui pra mais perto de casa porque a minha mãe foi trabalhar e não podia mais levar a gente de carro. Então fomos para a Escola Nossa Senhora Aparecida, uma escola Católica Apostólica Romana, de freiras franciscanas, parecia um convento, foi muito difícil pra mim. Não entendo até hoje porque a minha mãe fez isso com a gente. Estar em uma casa onde às sextas feiras você vai no centro de Umbanda e estuda-se no colégio católico, é muito repressor pra criança. Você chega lá e tem que se confessar, tomar hóstia, e eu não tinha feito nem a primeira comunhão! Foi duro pra mim e pra minha irmã. Não era uma escola leve. Tinha aula de religião, bíblia, novo testamento, velho testamento. Perguntava-se “quem foi na missa ontem?”. Eu nunca ia à missa! Então não tenho lembranças boas da escola, só mesmo das amigas. Toda escola que eu passei, carreguei amigos pra sempre.
P/1 – Tinha alguma professora ou cena que tenha te marcado?
R – Eu sempre fui boa aluna por exigência dentro de casa. E não podia ser nota média!
P/1 – Quem exigia?
R – A minha mãe, meu pai não estava nem ai. Sinceramente, professores eu não me apeguei muito. Lembro de uma professora de educação física que era bem masculina, não freira, e me lembro dela porque eu tirava zero em educação física! . Tinha prova de andar na barra, imagina, coisa de ginasta! Pra mim era um transtorno um zero no boletim.
P/1 – Você ficou até quantos anos nessa escola?
R – Até a oitava série.
P/1 – Você já tinha tido alguma paixão nessa época?
R – De 13 pra 14 anos, logo que eu sai da oitava série, eu me apaixonei perdidamente por um homem muito mais velho, de 19 anos, que era inatingível pra mim, ele nem olhava pra minha cara.
P/1 – De onde ele era?
R – Então, no meu prédio tinha uma república de jogadores de basquete. O time Monte Líbano pagava o aluguel de um apartamento pra todos os garotos que jogavam no time e não eram de São Paulo. Era uma zona! Eles foram a sensação das meninas do prédio. A gente estava na adolescência e eles eram muito legais com as crianças, estavam acostumados com o assédio por conta do tamanho, todo mundo parava eles na rua. Eram muito amorosos com as crianças. As vezes até entravam num jogo de bola. No casamento dos meus pais eu nunca vi paixão. Nessa época ela já estava mais aberta para o mundo e estava dando aula de francês para uma empresa do governo. Depois ela resolveu fazer um curso de instrumentação cirúrgica, pois não era médica mais gostava da área, ou seja, estava na vida. Saiu da coisa de dona de casa e estava mais social. Com isso ela convidou os meninos do basquete e outras crianças para frequentarem a minha casa, coisa que não era bem vista no prédio, porque eles eram moleques, arruaceiros, o que estariam fazendo na casa da Ana, que era moradora de muitos anos? Bom, fato é que ela se separou do meu pai para ficar com um deles, que era meu amigo. Que tal? .
P/1 – Se apaixonaram?
R – Se apaixonaram. Ela tinha 37 anos e ele 21. Aquilo foi a gota d’agua pra um casamento que não funcionava há muito tempo. Ela então se reuniu com o meu pai e minha irmã na sala e anunciou a separação. Pelo o que eu soube depois, ela queria sair de casa e meu pai não deixou para não deixar a Flávia e eu sem casa. Foi ele quem saiu, mas soube que era ela quem queria sair. Ele saiu meio atordoado e foi para a casa da minha avó, com isso esse vizinho se mudou pra casa, da noite pro dia! Na época ninguém comentava nada sobre isso. Como minha mãe era muito manipuladora, as pessoas fingiam que nem estavam sabendo.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – 15 e a minha irmã 12. Ele é uma pessoa que está até hoje com ela, apesar dela estar muito doente e idosa, não foi fogo de palha. A gente se dá muito bem com ele e, apesar de ter só 21 anos, foi muito homem, porque sustentava a casa com o salário merreca que ele recebia do clube. Inclusive ele pagou a minha faculdade de medicina. O meu pai havia se casado de novo, e dizia não ter dinheiro para pagar as duas casas, aquela briga por dinheiro de sempre. A gente se habituou, mas logo ele foi chamado para jogar no exterior e eles foram, mas nós ficamos.
P/1 – Ficaram com o seu pai?
R – Sim. Como o meu pai não tinha mais casa, tivemos que ficar na casa da minha avó paterna, que eu não tinha nenhum contato. Minha avó morava num apartamento não muito pequeno na Rua Rouxinol. Tivemos que morar no quartinho da empregada. . Mas nessa época a gente nem questionava muito. Hoje eu me pergunto se não haveria a possibilidade de colocar um colchão em algum dos quartos, ou no escritório que mal era usado.
P/1 – Quanto tempo vocês ficaram lá?
R – Acho que um ano. Uma temporada de basquete.
P/1 – Vocês se comunicavam com a sua mãe por cartas ou telefone?
R – Olha, eu não lembrava, mas ontem quando eu fui procurar as fotos eu achei duas cartas dessa época. Uma falando que em Lisboa estava muito gostoso, que ela estava comendo muito bacalhau e sentia saudades.
P/1 – Você respondeu?
R – Ah sim. Tenho certeza. Nunca deixei de responder cartas.
P/1 – Nesse um ano você estava na escola?
R – Estava! Ninguém veio perguntar pra gente como iríamos fazem nessa nova situação. Me lembro de perguntar para o porteiro do prédio qual era o ônibus que eu tinha que pegar para ir a escola. Não tinha acessória nenhuma e eu tive mesmo que me virar muito rápido, por conta da ausência da minha mãe, então as pessoas partiam do pré suposto que eu iria me virar! . Eu tinha 16 e a minha irmã 13 anos. Fui me virando. Íamos e voltávamos de ônibus.
P/1 – E o que vocês faziam como diversão nessa época?
R – Era complicado, porque morávamos num quartinho que não dava nem pra tirar as roupas da mala, quanto mais se arrumar. Lembro de uma vez, uma amiga que tinha carro foi me buscar. Lembro do meu pai, quando eu cheguei, me chamar pela janela porque já estava tarde. Eu tinha ido num barzinho, sei lá, mas não tive muita vida social nessa época. A gente tinha um amigo da escola, muito engraçado, que tinha uma mobilete. Ele ia em casa para alegrar o nosso dia. Eu lembro do Bola, ele era bem gordão.
P/1 – Depois desse um ano a sua mãe voltou de Portugal?
R – Voltou e depois foram pra Itália. Ficaram 10 anos lá.
P/1 – E nesse período, vocês moraram com quem?
R - A gente foi pra casa da nona.
P/1 – E ai melhorou?
R – Pra mim melhorou! Eu era mais próxima dela e me sentia em casa. Ela era o meu aconchego. Toda a relação difícil que eu tinha com a minha mãe, tinha de simples e gostosa com ela. Quando a minha mãe se fixou definitivamente na Itália a minha irmã ficou um ano lá. Eu fiquei sozinha aqui. Ela entrou na faculdade, trancou matricula e foi pra lá.
P/1 – Você sentia vontade de voltar a morar com a sua mãe?
R – Nenhuma. Eu achava ótimo que ela tinha ido embora. Não sei o que teria acontecido se tivéssemos continuado morando juntas.
P/1 – O seu pai visitava vocês?
R – Não muito. A gente se via pouco, depois o meu pai casou de novo e então nos víamos menos ainda. Nessa época aconteceu uma desgraça porque o meu pai se casou de novo, teve uma outra filha e no dia que ela nasceu o meu pai foi internado com câncer e três meses depois morreu. Foi muito traumático. Foi um câncer de pulmão fulminante. Do diagnóstico para o óbito foram três meses.
P/1 – E a sua irmãzinha, vocês chegaram a visitar?
R – Quando ela era bem pequenininha sim, mas a esposa do meu pai falou que não queria que nós fossemos lá porque a gente fazia mal pra ela. Proibiu nossa visita e nunca mais nos vimos. Com essa história de Orkut a minha irmã Flávia foi atrás da garota e ela não quis saber de conversa. Disse que só tinha o sobrenome do meu pai, mas que o pai dela mesmo era uma outra pessoa, que se casou com a esposa do meu pai logo após o falecimento. Tanto é que essa minha meia irmã tem o sobrenome desse padrasto, ele conseguiu arrumar o registro da menina no cartório.
P/1 – Você tinha quantos anos quando o seu pai morreu?
R – 20 anos.
P/1 – Antes disso você ia a shows, festinhas, bailes?
R – Ia na época da faculdade, com uns 18 anos. Antes disso eu frequentava muitos jogos de basquete. Como eu era amiga do pessoal do Monte Líbano, frequentava muito a boatinha de lá. Eu não era sócia, então não era a minha turma. Os meus amigos me acolhiam quando dava. Tinham uns jogadores negões que dançavam super bem! Mas não fazia nada cultural.
P/1 – E o que você escutava de música neste momento?
R – Muita MPB. Um pouco antes de se separar da minha mãe o meu pai chegou em casa com um três em um, aquele aparelho de som que era o aparelho e as caixas. Eu ficava até de madrugada ouvindo rádio FM, toda feliz porque não era mais AM. Eu sempre adorei música.
P/1 – Tem alguma que te marcou? Que seja a cara da sua adolescência?
R – Eu ouvia muita música de rádio, americanas, sabe?! Koll And The Gang, gostava muito dessas bandas, uns negões! . Era música de negro, eu adorava. O primeiro show que eu fui foi o do Earth Wind and Fire, no ginásio do Ibirapuera. Eu adorava esse som. Queria ser uma negona, com certeza! .
P/1 – Você já tinha namorado?
R – Namorado mesmo, não. Aquela minha primeira paixão não deu certo, ele se casou e até foi em casa levar o convite para a minha mãe. Eu lembro de me trancar no banheiro e chorar a noite inteira.
P/1 – Ele sabia que você gostava dele?
R – Sabia! Já tinha ficado com outros garotos, mas namorado mesmo, só no cursinho, com 17 pra 18 anos.
P/1 – E você já tinha tendência a seguir alguma profissão?
R – Eu gostava de medicina. Talvez por influência da minha mãe, que gostava muito da área de saúde, mas eu gostava muito de ver aqueles Globo Repórter, com o Sérgio Chapelin que tinha coisas de coração. Eles mostravam cirurgia cardíaca, adorava! E fui fazer cirurgia cardíaca mesmo. Mas dessa época até decidir fazer faculdade de medicina se passou muita coisa. Um dia eu encontrei uma amiga do Colégio Tabajara e ela me disse que eu sempre quis ser médica. Eu não lembrava, tinha só 10 anos! Eu sempre gostei muito de viajar, mas só gostava, porque nunca tive dinheiro. Só quando eu tive o meu primeiro salário como residente médica é que eu fui fazer uma viagem. Até então eu vivia com mapas, tanto é que eu entrei na faculdade de turismo, e em primeiro lugar. É claro, com a nota de medicina, entraria mesmo! .
P/1 – Aonde?
R – Na atual UNISA (Universidade de Santo Amaro), que antes era Osec (Organização Santamarense de Educação e Cultura). Quase eu fui pra área de turismo, gostava dessa área.
P/1 – Você saiu do colégio e fez cursinho?
R – Isso. Fiz no Universitário. Fiz três meses junto com o colégio, não passei, e no ano seguinte fiz um ano.
P/1 – Como foi esse período pra você?
R – Muito legal! Conheci gente de todas as tribos. Eu era muito família, bairro, nunca me enfiei no centro, conheci periferias, não sei, era meio certinha. Lá eu tive contato com tudo. Desde alunos do Dante, que era almofadinha e ia com uniforme da escola, até um pessoal super riponga que ia lá pra tentar entrar em agronomia. Eu ficava mais com os ripongas! .
P/1 – Foi no cursinho que você teve esse namorado?
R – Sim. Ele também prestava medicina e entrou, mas em outra faculdade, ai o namoro acabou. Eu fui pra uma faculdade, ele foi pra outra.
P/1 – No primeiro ano, já?
R – Isso!
P/1 – Nesse período você estava morando com quem?
R – Então, quando eu entrei ela estava nesse processo de ida e vinda pra Lisboa. Tanto é que ela foi quem fez a minha matrícula. Ela me ligou e eu estava viajando com o nono e a nona, então ela me ligou dizendo que eu tinha passado na faculdade, ficou super feliz. Mas no quarto ano de medicina ela foi definitivamente pra Itália. Nesse período ficamos morando no apartamento dela.
P/1 – Sozinhas?
R – É, praticamente, porque eles iam e voltavam.
P/1 – E quem mandava dinheiro pra vocês?
R – Ela. Mas não éramos nós quem administrávamos o dinheiro, era o irmão dela, o Dedé, que ficou responsável pelas contas da casa: pagar empregada, supermercado, ele que via essa parte. Mas quem fazia o supermercado era a minha irmã. Eu estava na faculdade de medicina e integral, não tinha tempo. Ela fazia trainee, tinha um horário mais maleável então era quem dava as ordens na casa, vamos dizer.
P/1 – E como você ia para a faculdade?
R – De ônibus, FAC – OSEC. . Era um ônibus que passava na Avenida Santo Amaro. Então eu tinha que ir a pé da Rua Sabiá até a Santo Amaro e lá eu pegava o ônibus. Tínhamos que estar na faculdade as sete horas, o ônibus demorava uma hora e meia, então você imagina o horário! Nesse ônibus tinha de tudo! Só faltava ter galinha e urubu. Depois de um tempo a gente começou a se organizar com carona. Quem tinha carro dava carona e as pessoas dividiam a gasolina.
P/1 – E com foi chegar à faculdade de medicina?
R – Eu adorei. Também tinham pessoas muito diferentes, me encontrei lá.
P/1 – Como você conheceu o seu marido?
R – Ele era da minha classe. Eu me atrai por ele porque ele era muito palhaço! Eu achava ele muito divertido. A turma era muito boa, temos amizade até hoje, mesmo passando mais de 20 anos de formatura.
P/1 – Como vocês começaram a namorar?
R – Nem sei dizer. Ele tinha uma namoradinha do cursinho e eu também, mas estávamos muito próximos e a coisa parecia que ia dar certo. Demorou, não foi nada rápido. Eu terminei com o meu namorado porque já estava muito apaixonada por ele, mas ele ainda ficou enrolando a menina! . Depois terminou com ela e então ficamos juntos. Mas foi um relacionamento de idas e vindas. Disso até casar passou muito tempo!
P/1 – Quais professores te marcaram na faculdade?
R – Que mais me marcou foi o Veloni, professor de patologia, que era o anti-herói. Ele fumava na aula, era grosso. Dizem que ele jogava as provas e as que caíssem no chão era zero, as outras era cinco. Ele não tinha o menor critério para corrigir prova! Ele era totalmente fora do que deveria ser o certo! Como eu era acostumada com tudo certinho, achava ele uma figura! Me lembro de uma conversa que eu tive com ele quando o meu pai ficou doente. Fui lá e falei pra ele que o meu pai estava com um câncer de pulmão tipo tal, e ele me disse que ele ia morrer. . Ele fumando e dizendo isso. Ele foi duro, eu fiquei chocada, mas foi verdade.
P/1 – E qual matéria que você mais gostava?
R – Ah, quando Clínica Médica entrou pro lado da cardiologia eu adorei.
P/1 – Você já tinha essa ideia.
R – Já! Sempre achei fascinante.
P/1 – E como você pagava a faculdade?
R – Eu consegui uma bolsa de 25% no diretório acadêmico explicando a minha situação. Essa faculdade até hoje é a mais cara de São Paulo. E não dá pra trabalhar fazendo faculdade de medicina. O diretório da faculdade era muito forte. Em uma das grandes greves que tivemos eu fui pra Brasília, acampamos na frente do palácio e eu até conversei com o Ulysses Guimarães. Nessa época descobrimos que o dono da faculdade era um grande estelionatário e não queríamos mais ele como mantenedor. Ninguém queria saber porque era uma faculdade pequena e privada, o MEC (ministério da Educação) não podia fazer nada. Essa foi a primeira vez que o MEC interveio em uma situação como esta. Abrimos um precedente, fizemos manifestação, entramos no Palácio do Planalto e deitamos no tapete vermelho. . O Ulysses Guimarães passou e o nosso representante puxou ele, o negócio foi pra votação, teve intervenção federal e tiraram o cara de lá, foi lindo! Foi a minha primeira experiência política. Na primeira greve, um ano antes, não deu em nada.
P/1 – E a residência?
R – Fiz no hospital do Servidor Público Municipal.
P/1 – Como você foi para lá?
R – A gente presta todos os tipos de prova. Quem quer cárdio, quer HC (hospital do coração). Eu fui muito bem na primeira fase e quando saiu a lista da segunda fase, foi muito doido. Fui consultar a lista, que estava na faculdade de medicina da Avenida Doutor Arnaldo e tinha uma risca vermelha em cima do meu nome. Eu teria sido a seguinte, mas não entrei. Eu me matava de estudar, sempre fui boa aluna. Esse era o foco, o resto era apenas o entorno. Mas enfim, fui para o Hospital do Servidor Público, depois me especializei, acabei indo para a Escola Paulista de Medicina, onde fiquei 18 anos. Sai há pouco tempo de lá. Entrei em 1983 e sai em 2011.
P/1 – Como você entrou?
R – Já tinha acabado a minha residência e estava fazendo especialização na minha área, que é imagem. Fui absorvida. Fiz mestrado, doutorado. Vivia de bolsa. Quando terminei o meu doutorado, passei num concurso público mas que me deslocou da minha área. Fiquei então quatro anos e não aguentei, pedi exoneração e sai. Uma pena, porque é um cargo público e tal, mas tinha muita política e tal.
P/1 – Como foi a experiência desta residência no Hospital do Servidor Público?
R – É um baque! Você sai de seis anos de teoria pra cair num pronto socorro lotado. Você sempre tem um supervisor, mas a linha de frente é você. Era muito puxado e com horários desumanos. Trabalhava 12 horas de dia. Fazia plantão a noite, no dia seguinte tinha que continuar. Você tem que rezar pro plantão estar tranquilo pra você dar uma dormidinha no sofá. A gente dividia entre os outros residentes, um atendia da meia noite às três, o outro das três às sete e se apertasse, chamava o outro. Era puxado.
P/1 – Você já tinha carro?
R – Não. Ia de ônibus e metrô. Morava em Moema, pegava o Santa Cruz, ia de ônibus até a estação e lá pegava o Vergueiro. Eu demorei muito pra dirigir.
P/1 – Você se lembra do seu primeiro desafio como médica?
R – No quarto ano a gente já tinha que fazer parto. Uma coisa que me marcou foi um parto que tive que fazer com uma amiga porque o médico não chegava e a paciente já estava em trabalho de parto. A criança saiu e quando a minha amiga e eu olhamos ela estava com a circular de cordão, que é o cordão umbilical todo amarrado no pescoço. Eu olhei pra cara dela e falei: “vamos ter que fazer!”. Eu segurava a cabeça e ela tentava desamarrar. Lembro até hoje da gente tremendo. A gente tinha que puxar o cordão umbilical pra fora da cabeça da criança e estava muito apertado.Foi horrível. Quando o médico chegou a criança já tinha saído. Quando você vai para o pronto socorro, você já passou por essas coisas e está preparado pra tudo. O que mais me marcava em pronto socorro eram as coisas mais sociais, coisas do mundo cão: crianças estupradas com dois anos de idade, tentativa de aborto, de suicídio, pessoas baleadas e esfaqueadas, criança alcoolizada porque a mãe põe pinga na mamadeira, mundo cão que as pessoas não tem ideia! Essas questões sociais me marcavam mais do que a doença. Quando eu fui trabalhar num hospital privado, no Albert Einstein, eu percebi que a doença não tem classe econômica. Ela pega rico e pobre igualmente. Eu não achava que isso aconteceria quando entrei lá. Então as questões sociais são as que pegam mais.
P/1 – Na residência você cuida de tudo?
R – Tudo. Eu, por exemplo, estava fazendo clínica, mas se chega um caso desse, você não vai deixar só o cirurgião atender. Você tem que ajudar. Cada um faz a sua parte.
P/1 – Nessa época você já estava convicta que era isso que você queria?
R – Ah sim.
P/1 – Ai você foi fazer mestrado, é isso?
R – Isso. Fiz especialização, mestrado e doutorado na Escola Paulista de Medicina, tudo na minha área.
P/1 – E porque você escolheu imagem?
R – Eu sempre gostei de ver o coração mas nunca quis operar porque não tenho habilidade manual pra cirurgia. Não gosto muito do ambiente do centro cirúrgico. O cirurgião tem que ser mais agressivo, mais imediatista. Eu gosto mais de conversar com o paciente. A imagem sempre me fascinou. Ver o coração! O gostoso pra mim é brincar de Sherlock Homes e fazer o diagnóstico.
P/1 – Em qual época da sua vida você foi fazer o mestrado?
R – Eu já estava casada mas ainda não tinha filhos.
P/1 – E vocês namoraram quanto tempo?
R – Eu fui morar na Itália com 28 anos, quando eu acabei o estágio na Escola Paulista. Eu tenho uma ligação com a Itália muito por conta da família. Além disso o meu namoro não engatava, era uma coisa meio assim. Eu arrumei um eségio numa faculdade de lá e ganhei bolsa do governo italiano, o brasileiro não me concedeu a bolsa porque achou que o que eu ia fazer lá era irrelevante.
P/1 – Pra que foi a bolsa?
R – Pra minha área mesmo.
P/1 – Ficou quanto tempo lá?
R – Um ano.
P/1 – Você se correspondia por carta?
R – É. Naquela época não tinha internet. Era cartinha e telefone.
P/1 – Você ainda tem essas cartas?
R – Não. Eu guardei cartas dele da época da faculdade.
P/1 – Essas cartas eram enviadas por correio ou entregues.
R – É, bilhetinhos. . Apesar de falar muito bem a língua e ter feito muitos amigos, eu sentia muita falta do Brasil. È engraçado, a gente xinga tanto esse país, mas quando está fora tem algo que me faz querer voltar. Estava tudo OK lá, mas era uma tristeza, não só por causa dele, por tudo.
P/1 – A sua mãe já estava morando lá?
R – Estava sim, mas em outra cidade.
P/1 – Você a visitava sempre?
R – Quando a solidão apertava, eu pegava o trem e ai pra lá. Era uma maratona pra chegar, mas eu ia!
P/1 – Ela ia te visitar?
R – Não. Eu é que ia.
P/1 – E a Flávia?
R – A Flávia estava morando sozinha no apartamento de São Paulo. Sentíamos muita falta uma da outra. Sempre fomos ligadas.
P/1 – Quando você foi para a Itália, tinha esta perspectiva de ficar só um ano?
R – Eu até achava que se me convidassem pra ficar, eu ficaria. Quanto mais chegava a data de retornar para o Brasil, mais eu queria acelerar a volta! Ai eu já não aguentava mais. E não tem nada a ver com a Itália. Eu já fui pra lá várias vezes depois disso. Eu volto de lá e quero ir de novo. É uma coisa muito louca. .
P/1 – Quando você voltou já tinha alguma coisa de trabalho engatilhada?
R – Nada. Tive que ir a luta! E não é que você volta do exterior e todo mundo te contrata. Pelo contrário. Todo mundo fica com o pé atrás. Meio médico é concorrido. Fui trabalhar na periferia, tive que aceitar o que tinha.
P/1 – Como assim?
R – Pelos títulos que eu tinha, já poderia ir para um hospital de ponta, mas não é assim que funciona. Na época também não tinha tanto mercado. Então peguei empreguinhos. Trabalhei em Osasco numa clínica, trabalhei no Largo 13...mas não durou muito. Logo o pessoal começou a me ajudar.
P/1 – Mas você vivia com o seu dinheiro?
R – Não. Vivia às custas da minha mãe, que mandava dinheiro. Eu tinha o meu salário mas era salário de residente, imagina! Até eu sair de lá ela segurava a onda. Depois disso eu fui morar com o Fábio.
P/1 – Como ele te pediu em casamento?
R – Não pediu! . Ele nunca foi muito habilidoso com palavras. Ele se casou muito por ajuda da mãe dele, que já estava colocando ele pra fora. Ela tinha um apartamento alugado, tirou as inquilinas e falou que o filho dela ia se casar. Foi assim! .
P/1 – Ele verbalizou alguma coisa ou foi acontecendo?
R – Foi acontecendo! Para ver o piso, a janela, tudo ela que ia vendo o que eu queria! Ele sempre foi molecão!
P/1 – Aonde é o apartamento?
R – Em Higienópolis. Um puta apartamento enorme! Gigante, antigo.
P/1 – E como foi morar lá?
R – Foi legal. É um bairro gostoso. Dá pra fazer muita coisa a pé. Pena que não tinha área recreativa. Quando a minha filha nasceu tinha-se que ir até o parque Buenos Aires ou a praça Vilaboim, que é pequenininha. È um bairro charmoso, a única questão é que o acesso pro trabalho era ruim.
P/1 – Nessa época você estava trabalhando aonde?
R – Nossa, em mil lugares! Tinha mil empregos. Até em Santos eu trabalhei. Duas vezes por semana eu ia pra Santos. Acordava às cinco da manhã, pegava a Anchieta com caminhão e ia pra lá. Tocava o hospital das oito às oito. Era o meu melhor emprego. A gente precisava de grana pra se sustentar, então o que aparecia eu pegava. Demorei pra ir pra um hospital de ponta. Na medicina você come osso mesmo com mestrado e doutorado. Esse emprego pagava muito bem e eu gostava de Santos, achava que tinha um ar provinciano, com pessoas mais simples. Não sei dizer, mas são pessoas que olham o médico com um respeito que você não vê mais. Nos hospitais privados, ainda mais com a internet, o paciente to coloca em cheque o tempo inteiro. É complicado. Você tem que fazer o paciente entender que aquilo que você está fazendo é o melhor. A relação com o paciente socioeconomicamente melhor é mais difícil. Eu acho. Em Santos era muito gostoso.
P/1 – Você já tinha engravidado?
R – Já, a minha filha já tinha dois anos!
P/1 – Como foi na gravidez?
R – Foi ótimo. Eu fiquei um pouco assustada, mas foi tudo maravilho, não tive nenhum problema. Problema foi quando ela nasceu. Eu não tive uma mãe próxima, não tinha manual de instruções e nem ninguém pra ficar perto e dizer como fazer. A pessoa mais próxima era a minha irmã, que também não sabia nada! Hoje eu sei que tive uma depressão pós parto, mas na época não soube.
P/1 – Você não sabia como lidar?
R – Não sabia se o que eu estava fazendo era certo. Eu sempre fui muito metódica, certinha, regrada, e aquilo fugia do meu controle. Mesmo sendo médica, não sabia o que fazer com aquele bebê. Eu parecia um bicho, não deixava ninguém chegar perto do bebê. Eu tive depressão pós parto e síndrome do pânico também. Eu não deixava ninguém chegar perto do berço, uma sensação muito estranha.
P/1 – E o Fábio?
R – Perdido, coitado! . Mas isso tudo era muito interno, estou contando pra vocês mas eu não falava pra ninguém. Eu me lembro do aniversário de um ano dela, que eu fiz uma festa e tive que fazer uma força danada pra ser simpática e receber as pessoas. Depois isso passou. Acho que esse susto foi o que me fez não ter outro filho. Como tudo vem a tona com a maternidade, a relação com a minha mãe surgiu novamente
P/1 – E com ela pequenininha você ia pra Santos?
R – Ia. Deixava chorando ela com a babá. Eu trabalhava na Paulista, na Cardiológica, no IGESP, eu tinha um monte de empregos, um monte de plantão. Detestava deixar ela com a babá mas não tem jeito. Os dois trabalhavam muito, os dois davam plantão. Deu todo certo, ainda bem! Muita gente em volta ai vê-la e eu tive sorte com a babá.
P/1 – Quanto tempo você ficou em Santos?
R – Quatro anos. Foi puxado mas eu gostava. Fiquei triste de não ir pra lá. Eu pedi pra sair porque fisicamente eu estava exausta.
P/1 – Como foi a decisão de comprar a casa na Barra do Sahi?
R – Foi antes da minha filha nascer, foi em 1996. Não foi uma decisão minha, foi dele. Ele queria uma casa na praia e eu achava uma loucura ter uma casa na praia se a gente não tinha nem móvel na casa de São Paulo ainda. Ele pediu o dinheiro emprestado pra um amigo pra comprar a casa. É que ele e a mãe dele sempre tiveram muito essa história de fazer negócio com imóvel. Ele tinha um know how que eu não tinha. Eu sempre fui muito medrosa com gastos. Muito pé no chão. Ele dizia pra eu ficar tranquila que daria tudo certo, e deu mesmo. A gente pagou em sei lá, cinco meses. Foi tudo muito tranquilo, ainda bem! Eu adoro aquela casa.
P/1 – E como vocês descobriram a Barra do Sahi?
R – Um amigo disse que tinha um condomínio lá. A gente visitou outros. Eu achei árido demais lá, não tinha planta nenhuma. A decisão de comprar foi dele.
P/1 – Adriana, voltando nessa formação musical que você teve, você chegou a fazer aula de alguma coisa?
R – De canto. Sempre gostei de cantar mas não tinha técnica nenhuma. Fiz há uns cinco anos.
P/1 – Na adolescência e juventude não?
R – Quando o meu pai ainda morava com a gente ele chegou a gravar uma fita K7 com nós dois cantando. Ele levou o material pra RCA, que era uma gravadora boa da época. Eles queriam que eu gravasse e me chamaram, mas eu não quis.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – 15 anos.
P/1 – E porque não quis?
R – Eu tinha medo de fazer daquilo uma profissão. Era um hobbie. Além disso eu morro de medo de público, aquilo não era pra mim.
P/1 – Você saiu do hospital de Santos e foi canalizando o seu trabalho?
R – É. Me chamaram pra fazer cobertura de plantão no Albert Einstein. Quando virei uma médica terceirizada lá, aos poucos peguei mais plantões e eles foram me contratando pra trabalho definitivo, fui largando o resto só pra ficar lá.
P/1 – Como foi o processo de entrar lá?
R – O mesmo médico que me chamou pra trabalhar em Santos, saiu de lá pra ir pro Einstein e me chamou novamente. Ele confiava em mim e eu no trabalho dele. Ele é amigo meu da Escola Paulista de Medicina, um pouco mais velho. Ele deixou Santos na minha mão e quando surgiu a vaga no Einstein ele me chamou.
P/1 – Quando você começou a fazer cobertura você tinha desejo de ficar totalmente no Einstein?
R – Total! Na profissão médica você pode trabalhar de várias formas. Você pode ter um consultório e fechar as portas as seis horas da tarde. Pode ganhar muito dinheiro e trabalhar com menos qualidade e muito volume. Eu nunca achei que isso era o certo. Eu sempre preferi qualidade, fazer a medicina que eu acho que é certa. Então todo mundo falava que no Einstein era muito cansativo, muita regra, muita exigência, mas eu achava que era tudo bem se eu pudesse fazer o meu trabalho direito. O médico que vai pra lá tem esse perfil. Não é o melhor salário, está longe de ser. Mas eu tenho tudo o que eu preciso pra fazer a coisa direito para paciente.
P/1 – Nesse período você participou de congressos?
R – O Einstein e a Escola Paulista são instituições acadêmicas. Exigem que você faça uma educação continuada. Se você não tive X pontos em um ano, é descredenciado. Esses pontos você consegue indo a palestras, cursos, congressos. Agora eles estão criando até aula on line, pra facilitar.
P/1 – Como foi o primeiro congresso?
R – Acho que em 1995. São trabalhos acadêmicos que a gente fazia na Escola Paulista. Foi duro pra mim porque eu não gosto de plateia.
P/1 – O que mudou na sua área desde a época que você começou?
R – Muita coisa. Eu trabalho com aparelhos tecnológicos. Então todo semestre as coisas vão mudando. As industrias fazem o que fazem, da mesma forma que é com máquina fotográfica: vão lançando um atrás do outro com uma coisinha a mais. Só que são máquinas muito caras, só hospitais conseguem comprar. Por isso que o meu trabalho depende tanto de ter dinheiro para se comprar uma máquina boa.
P/1 – Tem algum caso que te marcou?
R – Tem, vou te contar o caso da semana passada. Não sei se você sabe, mas o Einstein tem uma área de filantropia que é a que eu mais gosto de fazer. A gente atende no mínimo quatro pacientes do SUS (Sistema Único de Saúde) por dia, dois de manhã e dois a tarde. Chegou um paciente pra fazer o eco cardiograma comigo às 18 horas, um rapaz de 37 anos que está na fila do transplante cardíaco. Eu perguntei pra ele qual era a história dele. Então vou contar aqui a história do Agnaldo. Ele tem 37 anos, passou a vida toda no Mato Grosso sentindo uma “ruinzeira”, ia de hospital em hospital com a mãe e o mandavam pra casa. Ele adulto tinha muito cansaço e sentia vergonha da família e dos amigos, porque ele cansava rápido. Ele ia ao hospital e diziam que ele estava com pneumonia. O mandavam de volta pra casa com antibiótico. Com 37 anos, alguns meses atrás ele resolveu juntar um dinheiro pra ir a um médico particular no Mato Grosso, não sei em qual cidade. Esse médico olhou pra ele e disse que ele precisava vir pra São Paulo porque ele tinha poucos dias de vida. Ele disse pra mim: “o médico foi duro, doutora. Mas eu acho que ele me salvou”. E foi mesmo, porque o médico viu os exames dele que, obviamente mostravam um coração gigante no raio X e ninguém falava nada. Ao chegar aqui, por sorte ele conseguiu ser encaminhado ao Einstein.
P/1 – Como é essa chegada até lá?
R – Eu não sei como funciona. Mas ele vai ser operado no Einstein, hospital de ponta e tudo pago pelo SUS. A história de vida dele é ridícula. Ele está indo para o transplante porque não olharam pra ele, porque a saúde nesse pais é uma desgraça. Ele disse pra mim: “nossa, como esse hospital e bonito, como as pessoas são educadas. Não são só os médicos. A moça da porta também é educada”. E eu fiquei pensando: “ele deveria ser bem tratado em todos os lugares”. Ele foi buscar o remédio do SUS que ele pega de graça em um dos postos de saúde e a mulher xingou ele porque ele estava indo a tarde buscar os remédios. Só que ele vai a pé e tem que parar para descansar porque ele não consegue andar sem cansar. A pessoa que tem o mesmo nível socioeconômico dele trata ele assim. Esse é o nosso funcionário público. Porque ele precisa ir ao Einstein para ser bem tratado? Porque esse maltrato com a saúde pública? A história dele me marcou muito. Agora ele tem que morar em São Paulo com a mulher e os dois filhos pequenos, está numa casa emprestada da igreja congregação cristã, que tem uma sede em algum lugar na periferia e os pacientes que precisam ficam lá. Ele me disse esses dias que traria o filho para conhecer o estádio do Morumbi, que é na rua do hospital. Então essas histórias são aquilo que me marca. Apesar de trabalhar em um hospital onde se vê muita gente rica doente, o que me toca são essas pessoas que chegam lá com este descaso. Foi isso que me fez ir na segunda feira a passeata, sinceramente.
P/1 – E esse gosto pela literatura, quando começou?
R – Desde pequenininha eu já gostava. Com oito anos eu já lia livros. Livro mesmo. Tinha aquela coleção colorida, livrinhos de capa dura, eu lia aqueles livros lá. “mulherzinha”, “beleza negra”, “sem família”.
P/1 – E quem te incentivava?
R – A minha mãe. Ela lia pra mim. Sempre gostei de ler. É um dos meus passatempos preferidos.
P/1 – E como começou esse grupo musical lá da praia?
R – A Denise, que é bem próxima, tinha um violão e gostava de cantar. Uma vez eu a vi na praia e comecei a cantar com ela. Ela me ensinou umas músicas e assim começou. Passei a ir a casa dela a tarde aos sábados pra gente cantar e tocar. Depois disso que veio o Alexandre e o Gabriel. Mas a gente não consegue manter muito, com a rotina do dia a dia, faz tempo que a gente não se reúne.
P/1 – Olhando a sua trajetória, tem alguma coisa que você querida deixar registrado e que a gente não tenha falado?
R – Acho que não. Acho que está tudo ai.
P/1 – Se você pudesse mudar alguma coisa na sua história, você mudaria?
R – Que dependesse de mim não. Acho que eu fiz o que quis. Quando eu era pequena não porque não era eu quem decidia. .
P/1 – Qual é o seu maior sonho hoje?
R – Acho que é ver a minha filha crescer e vÊ-la fazendo as coisas que ela gosta. Que ela seja feliz com o que ela faz e com as escolhas dela e que ela faça tudo isso em um mundo mais igual. Outro dia eu vi uma propaganda em que usaram uma frase do Tom Jobim em que eu fiquei pensando: “é impossível ser feliz sozinho”. Acho mesmo que é impossível. Não no sentido de não ter ninguém, mas sim no sentido de só você ser feliz, entendeu?
P/1 – O que achou da experiência de dar o seu depoimento ao Museu da Pessoa?
R – Achei legal. Eu falo muito, gosto de conversar, contar as coisas. Tenho um pouco de vergonha com plateia, mas da forma como foi, foi tranquilo. E vim também para valorizar o seu trabalho, você que é minha amiga. Não entendi muito bem quando fui chamada porque achei que eu não tinha nada de interessante pra contar, mas como é o Museu da Pessoa comum, e não da pessoa VIP (very important person), então foi ótimo! .
P/1 – Super bonito o depoimento. A gente agradece.Recolher