“Uma vez um amigo, que é policial, disse que prendeu um rapaz, usuário de drogas, que contou que era assim porque a mãe dele tentou abortar. Ele tinha nascido sem uma perna. Minha mãe nunca tentou me abortar. Eu vim dessa maneira, com essa má formação congênita na mão direita, mas nã...Continuar leitura
“Uma vez um amigo, que é policial, disse que prendeu um rapaz, usuário de drogas, que contou que era assim porque a mãe dele tentou abortar. Ele tinha nascido sem uma perna. Minha mãe nunca tentou me abortar. Eu vim dessa maneira, com essa má formação congênita na mão direita, mas não vou me deixar levar pelo o que aconteceu. Se toco violão, pandeiro, fiz curso de cabeleireira e tudo – claro que da minha maneira – eu me sinto perfeita. Para mim, não há deficiência.
Minha mãe desde cedo me ensinou a não depender das pessoas. Lavava louça, fazia comida, varria a casa, ajudava como qualquer pessoa. A casa era humilde, não precária. Meu pai sempre lutava pra poder dar o melhor pra gente. Ele foi uma pessoa que não recebeu carinhos dos meus avós, mas transmitia para gente, para mim e meus dois irmãos mais velhos. Eu tinha com ele até uma espécie de chamado, de um filme de lobos que a gente tinha assistido: ele assobiava e eu respondia, como um uivo. Quando eu comecei a procurar emprego, meu pai já me advertiu que as pessoas não iriam querer me dar emprego por causa da aparência. Na minha primeira entrevista, eu estava bem adiantada no processo, mas eles não tinham visto a minha deficiência. Quando viram, falaram “Não tem vaga porque você é deficiente. Como é que você vai carregar a caixa de blusas, como é que você vai limpar uma prateleira de vidro?” Cheguei chorando em casa e meu irmão dizendo que era pra eu pôr na Justiça, que ele ia quebrar tudo. Fomos lá pra conversar. Eles acabaram me contratando, mas só pra eu não pôr na Justiça. Passado o fim de ano, não me contrataram pra ser efetiva na loja. Mas aí comecei a gostar de trabalhar com o público, e até hoje é o que eu faço.
Mas fiz também faculdade de Turismo. Na época, impulsionada por uma tristeza. Eu tive uma criança que gerei até os nove meses e na hora de nascer, tive que esperar o anestesista acabar de jantar e a criança engoliu água do parto e veio a falecer em três dias. Foi como se tivessem tirado o meu coração. Pensei “Vou lutar para ter algo melhor”. Passei em três faculdades e comecei a fazer.
Foi durante esse período que trabalhei na rodoviária, fiz o curso de informática da Chevron, pra ter um certificado pro meu currículo e conseguir coisa melhor, e foi lá também que conheci meu esposo. Eu estava com o coração muito ferido, mas aí foi indo, indo, ele é uma pessoa compreensiva, que me apoia e reconhece... na época, eu fazendo faculdade, trabalhando na rodoviária, acordando às três e meia da manhã pra poder apanhar o ônibus e chegar lá às cinco horas. Até que casamos. Às vezes ele diz “Poxa, você faz muitas coisas, mais do que nós, pessoas que temos as duas mãos. Eu falo: “São pessoas que não conhecem elas por dentro, elas não querem lutar”. Hoje sonho em ter minha casinha própria e trabalhar na área de Turismo. E ainda vem um neném por aí, então, tem que dar tudo do bom pra essa criança. Sem contar o maior sonho de todos, que é da minha infância, que é cantar, gravar o meu CD. Mas isso é uma outra história...”
P - Stela Tredice
R - Luana Alves Pessanha
P – Então, eu queria que você começasse dando o seu nome completo, local e a data de nascimento.
R – Meu nome é Luana Alves Pessanha, nasci no dia 21 de fevereiro de 1983. Foi em Bangu, na clínica particular em Bangu. Minha infância foi boa, tranquila. Minha mãe, quando ela estava me tendo ela não imaginava que eu iria nascer sem a mão direita. Mas depois os médicos começaram a falar que ela teria que me tratar como os meus irmãos, que eu tenho dois irmãos mais velhos. E que se eu fizesse bagunça, era pra corrigir mesmo. R ao decorrer da minha infância, aos sete, oito anos, aprendi a lavar louça - ela começou a me ensinar. Pra aprender e não depender das pessoas, pra eu poder aprender a fazer as coisas sozinha, sem estar dependendo deles. E aí foi, até então que eu comecei a estudar, eu fiz...
P – Mas vamos devagarzinho. Deixa eu te fazer uma perguntinha antes de entrar no estudo. O que seus pais faziam, ou eles fazem?
R – Meu pai era motorista de ônibus e minha mãe era do lar mesmo. Meu irmão mais velho, ele tinha aquelas kombis lotadas, naquela época, não existia, como hoje em dia existe, aquele procedimento, documentos. E lá era lotado, assim, às vezes ia pro Guanabara, Mercado, levava compras, e ganhava aquele dinheiro até ajudar porque a intenção do meu pai era trabalhar com caminhão, aquelas S10, na época. Ele queria sair de motorista, parar de ser motorista de ônibus pra trabalhar por conta própria.
P – Seus pais são aqui do Rio mesmo?
R – Meu pai é de Campos, Campos de Goitacazes, e minha mãe é de Minas Gerais.
P – E eles se conheceram aqui?
R – É, se conheceram aqui.
P – Então, é você e seu irmão?
R – Eu e mais dois irmãos.
P – Homens?
R – É.
P – O que seus irmãos fazem hoje?
R – O mais velho seguiu pelo mesmo caminho que o meu pai . Ele começou como motorista de caminhão, trabalhando por conta própria, mas não quis, começou a se estressar, e virou motorista de ônibus. Foi o caminhão, ao contrário do meu pai. E o outro, que é o Luciano, ele continuou no mesmo caminho que o meu pai com o caminhão, ele é motorista de caminhão; vai nas marmorarias, pega aquelas chapas de pedra mármore, mesas - ele faz esse trabalho mesmo.
P – Luana, o que você gostava de fazer quando era criança?
R – Por não ter amigas, coleguinhas, brincava de bola de gude, porque eram os meus irmãos, só eles, e isso não era o fato da minha mãe prender a gente, mas era o fato mais de proteger os filhos. E eu brincava com meus irmãos, jogava bola. Como eu sempre era cobaia, sempre ficava goleira, e eles treinando os chutes, eu tinha que agarrar. Então, ficava cheia de hematomas, de vermelhos. Mas foi engraçado. Soltava pipa. Quando ficava em casa, brincava de boneca, mas não gostava mais de ficar na rua porque eu ficava muito tempo sozinha. Mas aprendi bastante coisa na minha infância. Gostei, brinquei com meus irmãos. Não fui aquela criança como se fosse algo que não podia ser tocado, minha mãe me criou já bastante independente.
P – E como era a casa da sua infância, onde você cresceu?
R – A casa era humilde. Não era precária, não, porque meu pai sempre lutava pra poder dar o de melhor pra gente. Ele quase não passava momentos próximos com a gente, mas o pouco tempo que ele passava, quando ele chegava em casa, ele dava carinho, me dava atenção. E ele não deixava faltar nada pra gente; a coisa que nós, como filhos, aprendemos, é sempre dar atenção às pessoas que estão próximas da gente.
P –Você se dá bem com sua família?
R – Dou, me dou bem com meus irmãos, com meus sobrinhos - tenhos três sobrinhos. Todo mundo, a gente se dá bem.
P – E como é que foi a sua ida pra escola, você se lembra do seu primeiro dia de aula?
R – Meu primeiro dia de aula, como toda criança, eu nunca queria ir pra escola. Aí, quando a minha mãe me deixava sozinha, eu começava a chorar porque era algo diferente. E assim, o decorrer, das crianças, algumas se adaptavam no que elas viam, no meu braço, e outras acho que não, inventavam apelidos, começavam a zombar. Aí, falavam alguns apelidos que eu ficava triste; chegava em casa e comentava com minha mãe, com meu irmão mais velho. Então, minha mãe falava algumas coisas, que até a minha adolescência eu iria ouvir isso, que era para eu me acostumar. E o meu irmão chegava e falava: “Ó, se alguém chegar e começar a apelidar você, bate nele”. Só que eu não fazia isso, mas fui acostumando. Aí, com o decorrer das aulas, eles ficaram falando que o tubarão tinha comido a minha mão e eu falei: “Eu posso não ter uma mão, mas eu tenho inteligência maior do que a de vocês”. É algo que a gente tem que se superar. É assim.
P – E teve alguma professora que foi marcante pra você na sua infância?
R – Teve a Maria Julieta, uma professora bem rígida. Se a gente não prestasse atenção, ela pegava um pedacinho de giz e tacava na gente pra gente poder prestar atenção. Mas ela era uma professora muito carinhosa, muito amorosa. Ensinava, tinha aquela paciência, e já era uma senhora, sabe, de idade mesmo. Na época, lá pelos meus sete anos, ela deveria ter seus 50. Tanto que ela deu aula pro meu irmão mais velho, pro outro que é o Luciano, e depois deu aula pra mim. Todos os três tivemos aula com ela.
P – Você tava contando que em casa sua mãe te ensinava a fazer muitas coisas. O que você aprendeu a fazer desde criança que a sua mãe...
R – A minha mãe ensinava como varrer a casa, como lavar roupa, a fazer arroz, porque feijão ela tinha medo por causa da panela de pressão. E, assim, ela já ver que eu não dependia mais dela pra poder colocar minha própria comida, tomar banho. E eu aprendi várias coisas. Aprendi também a passar roupa. No tempo que ela operou, aí não tinha ninguém pra poder fazer a comida. Eu fazia o essencial e quando chegava no feijão, meu irmão mais velho que ajudava.
P – Vocês ajudavam sua mãe.
R – É.
P – Você tava me falando do seu pai, que era uma pessoa muito especial.
P – É, o meu pai era bastante... Ele não recebeu carinho dos meus avós, sabe? Mas ele transmitia carinho pra gente. Uma pessoa que, pra mim, era presente. Às vezes eu fazia alguma arte e quando a minha mãe ia lá pra me corrigir mesmo, aí eu me escondia debaixo da perna dele e ele não deixava ela bater. Mas meu pai sempre buscava tudo, até a minha adolescência mesmo - tudo era pra Luana, porque eu era a caçula. E quando a gente ia passear em Minas, na casa da minha vó, a gente tinha um chamado um com o outro, que ele assobiava e eu respondia. Era um filme que nós assistimos que era o lobo, que era o pai, que chamava o filho, e o filho atendia com o uivo. Então, a gente era assim, pra se comunicar.
P – Você e seu pai, uma coisa sua?
R – É, eu e meu pai. E teve uma vez que eu tive pavor de boi, só, que ele tinha falado história que o boi atacava, mas eram bezerros, eram todos novinhos. E eu fui em Minas; até hoje é assim: você pega leite, são dois litros de leite em uma garrafa de refrigerante. Hoje em dia, deve ser 80 centavos, um real, e naquela época era 50 centavos, dois litros era um real. E na volta, indo pra casa da minha vó, os bezerros começaram a correr atrás de mim, e eu, assim, já, na casa da minha mãe tinha um pé de goiaba, então, eu subia muito nesse pé de goiaba pra comer goiaba, e até pra fugir de apanhar da minha mãe também. Só que lá eu vi uma árvore, peguei o chinelo, larguei a garrafa lá que tava tampada mesmo e subi. E a casa da minha vó é daquelas casas antigas, meu pai estava com o som ligado bem alto. E eu comecei a gritar, gritava: “Pai! Pai!”, e chorava. Eu berrava mesmo com medo, e nada do meu pai vir. Só que meu pai sentiu. Ele tava na cozinha ajudando a minha mãe a fazer o almoço e ele sentiu - “minha filha precisa de mim”. E ele foi caminhando pela estrada e ele olhando, olhando, e eu soluçando, falando: “Pai! Pai! Socorro! Você não me ajudou”. E ele: “Eu tô aqui”. Aí, mandou eu descer, desci e ele falou: “Isso aí é bezerro, não é boi, não. Não é aqueles bois que atacam, não”. Aí foi aquela coisa de que, ele mandou eu tocar no bezerro e passou aquele medo. É como se ele fosse o meu herói, a pessoa me protegendo.
P – Foi bonita essa história. E o que mudou da sua infância pra sua juventude? Infância, quando você entrou na adolescência?
R – Olha, a minha adolescência foi um pouquinho mais difícil até na parte de tudo, tinha pessoa que não aceitava a maneira de eu ser. Crianças, adolescentes mesmo, também. Mas, na época da minha adolescência, eu era meio brigona também. Aí, eu já me defendia como podia, mas minha mãe sempre naquela forma de proteger, ela mandava meu irmão ir me levar pra escola, me buscava, com medo de que algo fosse acontecer. Mas, eu comecei a estudar, sempre fui uma pessoa inteligente, sempre corri atrás dos meus objetivos. Mas a adolescência não foi tão triste como a infância, porque os apelidos, na adolescência já não tinha isso.
P – E você tinha um sonho de ser alguma coisa assim, especial, alguma coisa quando crescer? “Ah, quero ser [‘x’] quando crescer”, imaginava isso?
R – Assim, eu tinha um sonho de ser advogada. Mas como hoje eu vi que a faculdade de advocacia é muito mais difícil e tem que estudar bastante, aí aquele sonho foi se perdendo. Mas eu tenho um sonho maior que é cantar. Eu canto, gosto de cantar. Eu acho que é igual um carro que tem pouca gasolina: você vai lá, coloca gasolina e ele anda. É como se fosse a minha vida, entendeu? Se eu não cantar, parece que é uma bateria que tá enfraquecendo, então, tem que cantar.
P1 – O que você gosta de cantar?
R – Eu gosto de cantar músicas românticas, gostava muito da Whitney Houston; gosto de cantar músicas evangélicas também. Mas, assim, eu canto mais as músicas evangélicas, mas o meu sonho mesmo é, quem sabe um dia, aparecer lá no Raul Gil cantando. Mesmo que eu não ganhe. Mas, meu sonho vai se tornar realidade, eu vou concretizar esse sonho! Eu tô cantando em um lugar que... Porque eu vejo o programa [e] choro porque a minha vontade é de estar lá. Eu gosto muito de cantar. Fiz aula, como disse antes, de teclado por sete anos, e de canto por dois anos e meio. Aí aquela vontade mesmo, da música.
P – O que te motivou a procurar música, estudar canto, teclado...?
R – Porque eu acho que a música em si é uma forma de você expressar seus sentimentos. A música, tem pessoa que canta, ela demonstra a sua angústia, a sua alegria, coisas que você vive, entendeu? É igual um escritor - eu só não lembro o nome, mas ele fala assim: “A música é para machucar os corações e não os ouvidos”. Porque tem pessoas que sabem cantar, e tem outras pessoas que não cantam. Não desfazendo de outros ritmos de música, mas a pessoa tem que saber transmitir coisas boas numa música.
P – E você tava me contando de um professor que desenvolveu uma técnica de tocar com a mão esquerda.
R – É. Por causa de um tecladista que sofreu um acidente, ele viu essa reportagem. Esse tecladista perdeu a mão esquerda e com o tempo foi se adaptando a tocar teclado como se estivesse a mão esquerda. Ele tocava com a mão direita como se; assim, ele fazia as notas graves e a esquerda fazia as notas, só acompanhava. E ele aprendeu a fazer isso com a mão direita. Esse meu professor, ele começou a me ensinar. Eu aprendi cifras e depois comecei a partitura. Partitura é um pouco mais difícil, e ele começou a me ensinar. Eu chegava lá, estalava os dedos, e ele: “Não é assim. Tudo o que você esquentou tocando o teclado, os seus nervos, você está desfazendo tudo isso”, porque conforme você vai tocando, os nervos dos seus dedos vão se contraindo. Quando você estala, aí acabou os exercícios que você fez com os dedos. Aí eu aprendi a não ficar estalando os dedos.
P – E voltando um pouquinho lá na sua adolescência, você gostava de fazer o quê? Você começou a música ali, o que você gostava de fazer na sua adolescência?
R – Não, na minha adolescência, eu comecei cantando na igreja. Quando era fora da igreja, a gente passeava muito. Eu gostava muito de conhecer lugares e passear. E uma das coisas que eu fazia era desenhar também, gostava muito de desenhar tudo. Não fiz nenhum curso, mas eu desenhava coisas que eu sentia, entendeu? Porque, assim, minha mãe, com medo que eu viesse a ter amizades ruins, ela me deixava em casa. Às vezes quando alguma colega que, queria brincar ou fazer um trabalho, teria que ser lá em casa. Aí, até no sentido de proteger, proteção. E eu desenhava, brincava. Brincava de pique-esconde; até tinha a árvore lá que meu pai não deixava subir, às vezes subia. Quando minha mãe ia me bater, eu ficava lá em cima da árvore, ficava na parte de cima do telhado assim. Tinha uma casinha, assim, pequenininha, e eu ficava ali dentro até minha mãe ficar mais calma; aí eu descia. Ou então, eu corria, pulava o muro, que tem a cisterna e o muro da vizinha menor, que é a dona Zizica. E quando minha mãe tava brava mesmo, eu pulava o muro correndo, ia lá pra casa dela, e ela não deixava minha mãe me bater. Quando o meu pai não estava em casa, aí eu fazia isso .
P – Você era meio moleca?
R – Era.
P – E Luana, quando foi o seu primeiro trabalho?
R – O meu primeiro trabalho foi com meus 19 anos. Eu queria trabalhar e meu pai começou já a me advertir em algumas coisas. Porque falou que as pessoas, empresas, lojas, pela minha aparência, eles não iriam querer me dar emprego. E eu falei: “Não, eu vou tentar”. Eu vou dizer que eu tinha praticamente tudo. Meu pai me dava tudo, eu vou dizer isso, mas eu queria trabalhar, ser independente, ter o meu dinheiro. E o meu primeiro emprego foi na Tok Magazine, no calçadão do Bangu. Agora não existe mais. Eu fiz a prova, passei na prova direitinho [e] fui na entrevista. Até no primeiro momento, o supervisor não tinha visto a minha deficiência. Aí quando ele chamou as meninas na sala pra poder dizer que tinha que comprar o uniforme, a blusa - que a gente pagava, descontado do salário -, aí ele viu que eu não tinha a mão direita. Aí, ele falou assim: “Passa na sala da Rosana que ela vai conversar com você”. Eu falei: “Tá bom”. Só que eu achei estranho. Aí, ela falou assim: “Ah, eu queria falar com você que pra você não tem vaga porque você é deficiente. Eu queria saber como é que você vai carregar a caixa de blusas, como é que você vai limpar uma prateleira de vidro? Você vai deixar cair, você não vai dar produtividade pra gente”. Aquilo ali foi um choque muito grande. Eu fui pra casa, chorando. Na época, eu apanhava muita kombi. Eu fui pra casa e minha mãe falou assim: “E aí, como é que foi?”. Eu falei: “Eles negaram o trabalho pra mim, e eu tirei a nota mais alta lá na prova”. Ela falou: “Eu já sabia”. Aí, eu chorando, falei: “Por que a senhora não tinha me avisado? Porque eu não iria me iludir”. Aí meu irmão pegou e perguntou por que eu tava chorando e ela falou. Aí, meu irmão falou assim: “Vamos lá porque é lei, você tem o direito. Se eles não te derem a vaga, a gente põe na Justiça. Ou então eu quebro tudo lá”, ele é meio esquentadinho. Chegou lá, ele conversou com o supervisor, que falou: “Ah, eu tenho que esperar o dono chegar de viagem”. E nesse tempo eu fiquei esperando, e eu tinha uma amiga da escola, que ela trabalha lá e falou: “Põe na Justiça”, e outras pessoas me incentivaram também. Mas eu comecei a perceber: "Eu quero provar que sei fazer as coisas, quero provar que eu tenho condições de dar produtividade à loja". Passados três dias, eles reviram o meu currículo, a minha nota, viram que eu tinha cursos de informática e tudo, aí minha mãe foi comigo e eles falaram: “Ó, a gente ia te botar no setor de vendas, setor masculino, que eram poucas pessoas e lá ganha por comissão, pelo que a pessoa vendia, mas eu vou colocar você no crediário porque eu vi o seu currículo e você tem curso de informática”, e no crediário era fixo. Aí eu fiquei lá no período de Natal e Ano Novo, e falaram: “Se vocês se derem bem, a gente vai contratar vocês”. Só que eles fizeram aquilo somente para eu não botar na Justiça. Acabou o período de Natal e Ano Novo, eles me dispensaram e não me chamaram mais. Desde então, eu comecei a procurar outras empregos e não conseguia devido que tava terminando o segundo grau ainda; e também por causa da deficiência, porque naquela época a lei de cota de pessoas com deficiência não era rígida como hoje. E o meu pai tinha amigos, conhecidos, em lojas e começou a falar de mim, botou currículos. Ele conhecia um senhor [que] tinha uma loja evangélica, e lá eles me deram um emprego, nessa loja evangélica. Eu fiquei um ano e oito meses lá. Depois, esse senhor veio a falecer, veio a filha dele e modificou tudo lá. Como eu não queria ficar mais lá, queria outras coisas, diferentes, comecei a trabalhar lá como auxiliar de escritório. De lá, ela viu a minha facilidade de vender livros, então me botou como vendedora. Aí eu passei a ganhar um pouco mais e, desde então; ela me demitiu, mas ela queria corte de despesas. Porque já não tava vendendo tanto. E desde então eu comecei a fazer um curso, participar. Eu vim aqui na cidade, coloquei currículos nas agências, e participei de uma aula pra poder entrar na Casa & Vídeo. Entrei, trabalhei também na Casa & Vídeo um ano, um ano e oito meses. Aí lá, eles cortaram também porque houve esse problema na Casa & Vídeo por causa dos impostos e eles começaram a cortar as despesas. Lá eu era Maestro - eles falam Maestro -, a gente conhece que o maestro que conduz um coral dos instrumentos, das pessoas tocando. Mas lá não, lá é de loja, anunciando - que a gente conhece como locutor. Só que locutor roda a Guanabara inteira, a loja inteira, e eu não, eu ficava na frente da loja. Então, eu comecei a aprender ali, e comecei a gostar de trabalhar com o público. E até hoje eu tô trabalhando com o público.
P – E hoje, o que você faz?
R – Hoje, eu sou atendente comercial da Cedae; até outro público, apesar de ter as divergências, mas eu gosto. Eu gosto de conversar com as pessoas, gosto de saber do que elas estão precisando. Muitas vezes elas não vão lá só pra resolver os problemas, de falta de água, ou o hidrômetro está parado. Às vezes, elas até contam os próprios problemas da vida delas. As pessoas falam, os outros atendentes falam: "Ah, isso é historinha, não escuta, não”, mas às vezes a pessoa precisa daquilo. Uma palavra que a gente dá para aquela pessoa, até uma explicação, um bom tratamento, a pessoa retorna, sai dali mais alegre e esquece daquele problema que está afligindo ela.
P – E voltando um pouquinho, quando você recebeu o positivo que você foi aceita no seu primeiro trabalho. Como você se sentiu?
R – Olha, eu me senti até mais feliz. Vi que eu poderia me encaixar naquele local. Mas assim, eu tava tentando demonstrar que com uma mão só eu poderia trabalhar, poderia fazer tudo o que as pessoas com duas mãos fazem. Porque, aparentemente, as pessoas de empresas, elas não acreditam na sua palavra, é como eu já ouvi uma pessoa falar: "Palavras, ventos levam". E, no caso, você tem que demonstrar o seu trabalho, tem que demonstrar que é capaz. E outras pessoas não me mostram isso. Eu até tenho um exemplo que eu vi de um colega meu que é policial, ele falou que o rapaz que ele prendeu, usuário de drogas, falou que a mãe dele tentou abortar ele quando tava na barriga dela, e ele era assim por esse motivo. E eu comecei a conversar com esse colega: “Olha, eu, minha mãe nunca tentou me abortar, minha mãe não tomou remédio nenhum. Eu vim dessa maneira, eu poderia muito bem fazer igual a esse rapaz, mas eu pensei diferente. Não, eu sou capaz, eu posso demonstrar que com uma mão só eu faço coisas melhores e que posso me superar a cada dia; e esse rapaz não. Esse rapaz se deixou levar pelo que aconteceu, por ele não ter uma perna - ele andava com uma muleta, ele nasceu mesmo sem um membro -, e ele se sente, sabe, inferior às pessoas. A gente não deve se sentir inferior. Até mesmo uma pessoa que já nasce assim, como eu nasci, com a má formação congênita; tem pessoas que a mãe de repente toma um remédio, eles falam talidomida. O meu não foi esse caso, mas as pessoas se sentem menosprezadas, entendeu? No caso, até escondem o braço. Eu tive uma época assim na minha adolescência, de esconder o braço, mas, depois, quando eu fui ver que pessoas que eram mais velhas que eu e tinham algumas más-formações eram felizes, eu comecei a falar: “Por que eu vou esconder?”. Eu não pedi pra nascer assim, mas já que eu vim, vou ter que demonstrar que eu sou diferente, entendeu? Nós temos que mostrar que somos diferentes”. Até uma pessoa que é normal. Só eu não consigo um emprego, mas ela tem que botar na cabeça que ela consegue, entendeu? Se ela falar "eu não consigo"; aí pronto, não vai conseguir mesmo, entendeu? É igual a pessoa feia. Eu sou feia, cabelo feio, nariz grande. A pessoa é perfeita. Pra mim, eu me sinto perfeita, pra mim, não há deficiência. Até hoje eu não encontrei o que não posso fazer. Toco pandeiro, toco teclado, toco violão, aprendi algumas músicas, até do Michael Jackson. Mas assim, eu não consigo tocar fluentemente como uma pessoa que tenha as duas mãos, mas eu tive uma curiosidade e fui aprendendo, fui olhando como é que faz, e com o braço, bracinho; eu tocando, faço as notas. Eu fiz também curso de cabeleireiro, faço escova, deixo o cabelo super liso. E assim, a minha mãe até falou assim: “Você vai trazer problema pra sua coluna, você fica toda torta”, porque eu pego o secador com esse braço e faço a escova com essa mão. Então, sai perfeitamente bem. Eu trabalhei até num salão de cabeleireiro, então eu quis fazer coisas diferentes. E hoje, se um dia eu sair da Cedae, sei que eu posso fazer escova no cabelo de uma pessoa. Eu posso ganhar meu dinheiro em casa, entendeu? Eu posso fazer outros tipos de coisas.
P – E você estava me contando que você fez faculdade.
R – É, fiz faculdade de Turismo. Foi um fato meio, assim, triste da minha vida, sabe? Eu falo que essa criança, ela é o meu primeiro filho ou filha, não sei ainda, porque é um fato da minha vida hoje que eu sou feliz. Porque, na época, eu conheci uma pessoa e gostava muito dela. E o meu problema mesmo é ter um coração muito bom, de querer ajudar as pessoas e gostar fácil de alguma pessoa, não importa se é mulher ou homem - tem sentimentos diferentes; sentimentos de amiga e sentimentos de uma mulher para um rapaz. E, no caso, eu falo que essa criança é a primeira, mas eu tive uma outra menina. Eu tive uma criança, uma menina, que eu gerei até os nove meses e quando chegou no hospital público, eles esperaram, eu tive que esperar o anestesista jantar pra depois ele aplicar a anestesia e eu ter a minha filha. E, infelizmente, ela respirou água do parto e veio a falecer depois de três dias. Então, foi um fato, sabe, como se tivesse me tirado o chão, como se eu não tivesse ninguém. Não adiantava mãe, irmãos falarem alguma coisa, mas, foi algo de mim que foi tirado, como se tivessem tirado parte do meu coração, entendeu? É igual o meu pai, é como se tivessem tirado o meu pai do meu coração. (emocionada) Então, eu comecei a prosseguir a minha vida (chora) e lutei, sabe? Quando eu perdi a minha filha, falei: “Essa criança vai ser a primeira e única, e eu vou lutar pra poder ter algo melhor”. E daí, fiz a prova na faculdade no Realengo, na Castelo Branco, na Faculdade São José e na Faculdade Universidade Veiga de Almeida. E eu passei nessas três provas, só que eu comecei a analisar as parcelas e nessas três, na Castelo Branco e aqui na Veiga de Almeida, estavam muito caras, e não estava ainda no meu orçamento. E até então eu não tava ainda trabalhando, eu falei assim: “Eu vou começar a fazer essa faculdade na São José, que é a mais barata”, e eu fui fazendo com, no caso, a herança que meu pai deixou pra mim. Eu fui pagando, até arrumar um outro emprego. E no que eu passei, comecei a prosseguir. Estudando, comecei a gostar, comecei a conhecer certos lugares diferentes, e eu falei assim: “Poxa, é algo diferente pra mim, é algo novo”. E o sofrimento na minha vida começou a ficar mais suave. Sentir falta, a gente sente, mas eu falei: "Não, eu tenho que prosseguir, tenho que lutar. Eu tenho que melhorar, que ela tá num lugar melhor que eu. Eu ainda estou aqui, mas tenho que prosseguir, tenho que seguir a minha vida". E as pessoas da minha família achavam que eu tava ficando doida, mas eu falei assim: “Não, vou lutar”. E até que apareceu um trabalho na rodoviária, foi algo assim, sabe, algo de Deus. Porque eu não tinha colocado mais currículo em lugar nenhum. E quando eu vi o meu currículo, eu tava com 27 anos. Eu falei assim: “Poxa, muito tempo mesmo”. Aí eu comecei a trabalhar lá e foi lá que eu conheci o meu esposo, na rodoviária.
P – Como foi esse encontro?
R – Olha, por eu estar muito magoada, muito machucada, o que aconteceu, eu não tava com força pra esse negócio de namorar. A minha meta era terminar a faculdade, trabalhar no Turismo, ganhar bastante dinheiro, ir pra fora do país - essa era a minha meta. Não pra morar lá, mas sim pra conhecer. Porque são certos lugares lá que são diferentes, pessoas diferentes. E as pessoas lá são, acho que são mais desconfiadas, a pessoa não abraça, não tem aquele calor do ser humano. Aí, a gente acha aquele contato, um choque térmico muito grande. Então, eu estudei com a professora Natália, muito mais nova do que eu, ela tava com 24 anos, ela tava lecionando lá - já tinha feito duas faculdades e tava pra fazer uma pós-graduação -, e uma pessoa super inteligente. E eu falei assim: “Poxa, tenho que colar com essa pessoa”, e comecei aprendendo. Tenho a minha faculdade de Turismo, pretendo prosseguir. Falo um pouco de inglês, não fluentemente. Aprendi espanhol na rodoviária, que tinham vários americanos, vários espanhóis lá. Tinha até um que queria me levar lá pra França, que gostou muito de mim, e falou que lá na França eles dão muita oportunidade pra pessoas que são deficientes. E eu vi que lá tem cada lugar que é diferente do outro. Aí, eu falei assim: “Eu não vou largar o meu Brasil pra ir pra um lugar que eu não conheço”. E trabalhando lá, porque lá a gente olhava passagens - e nesse tempo o meu esposo passou. Eu não tava com intenção. Ele parou um tempo comigo, começou a conversar, aí começou a falar que eu era muito bonita. “Ah, obrigada, já me disseram isso”, eu tava com o coração muito ferido. E com o tempo ele foi conversando e falou comigo que tava procurando uma casa pra alugar, uma quitinete, e eu falei assim: “Poxa, a minha mãe tem”. A parte de trás da casa dela é uma quitinetezinha que ela fez pra ter uma forma dela ganhar um dinheirinho. E ele alugou aquela quitinete. Só que ele não tinha quase nada. E como eu falei, mesmo, eu tenho o coração bom [e] comecei a ajudar ele. E foi aí que foi entrando um carinho, e a gente começou a conversar. A gente tinha pensamentos iguais, as metas parecidas, e foi aí que a gente começou a namorar escondido. Eu levava o meu cachorro pra passear e a gente ficava na praça conversando. A gente não tinha aquela coisa de, igual adolescência, como se fosse algo escondido, mas não era aquele namoro de agarrar e beijar ainda não, a gente estava se conhecendo. Até que ele falou assim: “Olha, vou pedir a sua mãe pra casar com você”. E minha mãe, como era muito ciumenta por ser a única menina, ela não queria deixar por nada. Porque quando o meu pai faleceu, eu falei pra ele que uma iria cuidar da outra. Parecia que ele sentia, sabe, que ia acontecer alguma coisa com ele. E eu falei que ia cuidar da minha mãe. No entanto, até hoje, quando eu saio pra um lugar longe, eu ligo pra ela, aviso - ligo pra ele também. Aí ele pegou e falou assim: “Vamos casar”, e ela não queria deixar. Meu irmão mais velho até foi o gosto dele, mas o outro, o Luciano, não gostou dele também. E eu pensei: "E agora, o que eu vou fazer?". Aí eu falei: “Mãe, eu gosto dele”, aquela coisa toda, e eu decidi, no dia do meu aniversário, falei que eu ia embora de casa porque ela não queria deixar eu casar com ele. Ela foi e me deu o "notebook" de presente para eu ficar em casa . Aí eu falei: “Não, vou ficar”. Aí, foi indo, e eu fazendo faculdade, trabalhando na rodoviária, acordando às três e meia da manhã pra poder apanhar o ônibus e chegar lá às cinco horas. Até que no dia do meu aniversário, eles fizeram bolo, aquela coisa toda; e no dia 22, eu fui embora. Já tinha arrumado uma casa pra alugar, pra ir morar com ele. E estamos até hoje, estamos bem. Ele é uma pessoa que é um pouco mais velha que eu, é uma pessoa compreensiva, que liga pra saber como eu estou lá no trabalho. “Não tem ninguém mexendo com você? Não tem ninguém implicando com você?” Sempre preocupando; e estamos até hoje. E ele sempre me dá forças, ele reconhece, fala: “Poxa, com as suas limitações você faz muitas coisas, faz coisas do que nós, pessoas que temos as duas mãos. Porque tem pessoas que não têm duas mãos e se sentem inferior às outras. No caso, a pessoa se sente menor”. Eu falei: “São pessoas que não conhecem elas por dentro, elas não querem lutar”. Porque a minha forma de dizer, quando me disseram que vocês viriam e tal, eu pensei: “Poxa, se todas as pessoas vissem esse vídeo, as pessoas que também se sentem menosprezadas por serem deficientes, deficiente físico, deficiente auditivo, ela teria uma forma de lutar, teria mais forças pra lutar”. Porque não é ver uma pessoa ter seu espaço, uma pessoa que é cadeirante tentando ter seu espaço no prédio, ter um elevador só pra eles, rampas pra eles. Uma pessoa que é deficiente visual, um cão guia. Não é só isso; é pessoas de fora, entendeu? Eu conheço uma pessoa que se esconde, ela esconde o braço; ela é igual a mim, uma menina linda, sabe? Uma menina muito bonita, faz faculdade também, mas tem vergonha do braço dela. E eu fui em Matipó, que é esse lugar, essa menina mora lá, e eu demonstrei, enchi a bola, que era aniversário da menina. Eu amarrava com o braço, ela ficava olhando. Mas não adianta, tem pessoas que põem na cabeça que ela é inferior à outra. Mas assim, teria que abrir a mente dela pra ver, pra ela pensar: “Poxa, eu posso. Sei que consigo, eu sei que lá na frente posso ter algo melhor”. E até as pessoas que são hoje governadoras poderiam até dar mais credibilidade a gente. Não é só a lei.
P – E Luana, como é que você ficou conhecendo aqui o IBDD?
R – IBDD foi que, no caso, eles apanharam o meu currículo de alguma outra agência, a agência passou pra eles. Eu não conhecia por vir aqui, mas quando eles me ligaram: “Ah, tem cursos, vem aqui pra você conhecer, que a gente dá oportunidade pras pessoas trabalharem em outras empresas”. Eu estava trabalhando, mas queria conhecer. E vim aqui, fiz a minha inscrição e fiz um curso; e desse curso, eu comecei a conhecer outras pessoas.
P – Que curso que você fez?
R – Eu fiz um curso, na época, que era de informática. Mas eu fiz pouco tempo porque era muito distante também. Aí, quando eu tava trabalhando na rodoviária, surgiu a vaga. Porque a rodoviária estava me cansando muito. Eu fazia faculdade, tudo, e tinha uma folga por escala - e trabalha de domingo a domingo, feriado. Eu falei: “Poxa, quero algo melhor”. E surgiu o curso da Chevron. Ela falou: “Você quer fazer esse curso, quer essa vaga?”. Eu falei: “Quero”. E desde então eu participei do curso que a Chevron proporcionou pra gente. Gostei muito, conheci as professoras, a Adriana Natala - ela é formada em Turismo também. De vez em quando, a gente entra no e-mail, ela me dá várias dicas, e eu aprendi, gostei. E, assim, é algo que já tinha o curso de informática, mas eu queria ver coisas novas. Quanto mais a gente aprende, melhor fica. E também a parte de, até hoje eu lembro, o Eduardo falando, ele explicou pra gente que na empresa eles procuram o verdadeiro funcionário, o famoso CHA. "Chá" que eles falam é Conhecimento, a letra C. A letra H é Habilidade, e a letra A é Atitude. Então, isso eu aprendi e tenho colocado em prática: o meu conhecimento, a minha habilidade e a minha atitude.
P – E dessas disciplinas que você viu, teve alguma coisa que foi muito interessante ao ponto de fazer você conhecer coisas novas que você não tinha visto?
R – Olha, foi na parte da aula da Adriana mesmo. Ela mostrava vídeos [de] como que a gente deveria tratar uma pessoa, como que a gente deveria atender numa loja, ou em um hotel, se a gente fosse atendente, ou secretária no escritório. Ela foi ensinando tudo aquilo pra gente. E coisas que eu não sabia. Até no caso de uma pessoa que é vendedora, é algo que eu aprendi e tenho aprendido sempre, e que meu esposo fala também. Nós nascemos com dois ouvidos pra ouvir, significa pra gente ouvir mais e falar menos. Tanto que se fosse pra gente falar mais, a gente tinha duas bocas. Pra mim ia ser horrível, eu já falo bastante. Então, eu aprendi que a gente tem que ouvir o cliente, tem que ouvir as pessoas, porque às vezes ela está com aquela coisa, aquela angústia, querendo saber. É igual uma loja, a gente levou uma roupa que não serviu e tá querendo falar com você, e você, "ah, tá bom", não dando importância. E eu aprendi isso, eu me coloco no lugar daquele cliente; que um dia eu vou também ser cliente e a pessoa não vai me dar importância. Foi o que aprendi.
P – E o que você sente que esse curso tenha sido importante pra você? Hoje, agora, profissionalmente, você sente que ele tenha agregado coisas pra você?
R – Olha, tem me ensinado muito. Até então eu não sabia, porque eu atendia o cliente, mas não tinha aquele conhecimento. Nunca tinha feito curso pra isso. Eu já passei de empresa por empresa e a gente não tinha curso, nem treinamento. Então, com esse curso, já me proporcionou, abriu a minha mente mais, ampliou mais, sabe? Como eu ouvi dizer, uma visão panorâmica de tudo, de como eu tenho que agir, de como eu tenho que proceder com o cliente, tratamento, falar senhor, senhora. E as pessoas gostam muito disso. O que a pessoa presta mais atenção, quando você pergunta o nome dela, e você explica pra ela e fala: “É isso daqui, senhora Denise”, “Dona Denise”. A pessoa vai falar: “Poxa, ela gravou meu nome”. Então, ela vai se lembrar de mim. E não só atender, mas fazer uma boa amizade com o cliente. Não que você vai receber algo em troca, mas sim que você venha a receber a amizade daquele cliente. Um dia passar, você passar na rua: “Ah, foi você que me atendeu em tal lugar. Puxa, eu te conheço, você é daquela loja”, isso acontece comigo. Aí, as pessoas me param: “Poxa, tá lembrada de mim?”. Eu digo: “Poxa, são tantas as pessoas que eu atendo, que eu não me recordo muito bem”, “Ah, você me atendeu na loja tal”. E eu falo: “Ah sim, a senhora é a Eliana”. E ela fala: “Puxa, você gravou meu nome!”. Porque a gente pode não gravar a fisionomia, mas sim, tem casos que a gente grava. Aí, a gente grava o nome pra poder lembrar.
P – E você falou que você conheceu muita gente no curso. Como que foi? Você fez amizade?
R – Conheci. Conheci pessoas assim, deficiente auditivo, aprendi a fazer alguns gestos, aprendi a ler lábios também porque eu sempre tive curiosidade. Até que se alguém estiver falando mal de mim lá embaixo, que eu vou saber que estão falando mal de mim. Mas, é um aprendizado novo, porque às vezes você tem a pessoa que é deficiente auditiva, quer alguma coisa, está precisando de algo, e você não sabe lidar com aquela pessoa. Então, na rodoviária, eu passei por muitos apertos por causa disso. As pessoas, deficientes auditivas, elas não falam porque não ouvem. Então, comecei a perceber, comecei a aprender. E quando eu tava fazendo o curso e trabalhava na rodoviária, tinha algum deficiente auditivo, eles falam “oi” no gesto do dedinho, assim. E eu fui e fiz esse gesto pra um deficiente auditivo. Ele também me corrige quando eu falo no “oi”. Ele pegou e ainda deu tchau. Eu falei: “Poxa, pelo menos eu aprendi alguma coisa”, e fiquei, sabe, super feliz. E tem outros gestos também. Conheci uma outra menina também que fez curso com a gente, teve um pouquinho de dificuldade na informática, mas a gente, escondido, assim, ajudava ela. Aí conheci a Sandra, a gente foi trabalhar junto na mesma Cedae, em Campo Grande. Hoje, eu fui transferida pra Campinhos, e quando a gente estava nessa daí, em Campo Grande, era uma ajudando a outra, sabe? Quando ela começou, ela estava sem o aparelho auditivo nela. Ela passou a ficar sem audição por causa de “walkman”, que ela utilizou e era muito alto. Ela não tem essa audição boa e [a] outra também não tá tão legal, então, ela usa aparelho só no lado esquerdo. Então, ela brinca muito, tem horas que eu tenho que desligar meu motorzinho porque as pessoas falam muito. A pessoa super alegre, sabe? A gente vê que as pessoas, independente das suas deficiências, são felizes. Não são todas, mas, são poucas que são felizes. A gente tem que tentar contagiar as outras pessoas, e é com a nossa alegria, com o nosso modo de viver. E lá não tem só pessoas com deficiência auditiva. Tinha o Jorge também, ele sofreu um acidente que paralisou as pernas dele e usa muletas, e acho que um tipo de uma bota pra poder movimentar. Tem também a outra menina que é deficiente visual, que a mãe dela gostava muito de gato e teve aquela doença, não lembro agora o nome; ela tava grávida dela e nasceu sem a visão. A [visão] esquerda dela é muito difícil, sabe, ela usa o óculos, mas não enxerga. E até então eu tava ajudando cada um deles, ajudava porque quando eu tinha as minhas limitações pra algumas coisas, tinha pessoas que me ajudavam, entendeu? Então, eu peguei e falei assim: “Vou ajudar também”.
P – E com isso que você viu aqui no curso, você acha que esse trabalho que você foi fazer no Cedae foi meio que graças ao curso também, que você conseguiu esse trabalho? Como é que foi?
R – É, através do curso a gente consegue trabalho porque o curso em si é mais um certificado, algo que você tem pra mostrar pras empresas. Porque a empresa vai falar: “Poxa, ela fez curso disso, disso e disso. Então, vamos ver, vamos dar uma oportunidade”. É como eu tava pensando, vou terminar o curso de inglês e vou fazer mandarim porque quando a pessoa for ver o meu currículo: “Poxa, garota é fera! Tem mandarim! Garota é fera, vamos contratar ela!”. A gente vê, eles veem uma coisa que é mais difícil; eles querem ver se você é capaz mesmo.
P – Bacana. E hoje pra você, Luana, quais as coisas mais importantes na sua vida?
R – Olha, a coisa mais importante da minha vida é minha família, meu esposo e pessoas, são as mais importantes. Porque tem pessoas que precisam ser assistidas, tem pessoas que precisam, no caso, como eu falo: “Você precisa de mim e eu preciso de você”, porque sem a união de pessoas, não tem como você lutar contra as dificuldades. Ou tem pessoas que precisam de você para falar algo mesmo que você ache aquilo ali chato, mas você tem que ouvir. É igual. Na semana passada, eu vindo do serviço de ônibus, apanhei o ônibus achando que eu ia chegar na metade do caminho da minha casa. E já tinha uma senhora lá dentro e aquela senhora falava... Eu falei: “Meu Deus do céu, a mulher fala muito!”. Eu já escuto todo dia o que o pessoal fala, fui escutando e conversando com ela. E vi que ela não, por causa da catarata na vista esquerda, ela operou e ficou cega. Na direita, ela já não tava enxergando direito. Ela: “Ah, minha filha, eu tenho que chegar lá às cinco e meia porque senão se escurecer eu não enxergo mais”. Nós duas, como eu falo pra mim, é coisa de Deus mesmo, chegou que eu apanhei o ônibus errado também. O ônibus passava não totalmente errado, mas eu iria andar mais. E ela tinha dificuldade também. E o ônibus que ela queria pegar, deixava ela na metade do caminho dela, ela só pegaria uma kombi e deixava próximo a casa dela; ela só iria andar um pouquinho. Mas com esse ônibus que ela pegou, iria andar muito mais. Eu soltei e falei. E ela: “E agora, minha filha?”, “A senhora tem um telefone para eu ligar?”, “Eu tenho o da minha casa”. Eu liguei, não tinha ninguém. E começou a tocar no meu coração assim, eu falei: “Vou levá-la em casa. Onde é a rua que a senhora mora?”, “Ah, é a rua tal”. Eu pensei, pertinho de onde eu estudei, onde eu fiz o meu segundo grau. Eu vou andar devagarinho, conversando. E ela: “Minha filha, se não fosse você, eu não ia chegar em casa”. E passou na filha dela: “É, ela que me trouxe”. Depois ela falou obrigada, a filha dela agradecendo. “Não, não tem de quê”, aí fui levar ela em casa. O filho dela já tinha saído, procurando ela: ela tinha fugido, ela foi pegar o cartão lá de ônibus dela e os filhos todos preocupados. Quando o filho viu que eu tinha levado ela até em casa, ele agradeceu, e eu falei: “Da próxima vez, o senhor amarra ela no pé da mesa, hein?”. Aí, ela começou a sorrir. Eu fui embora pra casa; fui até mais feliz, porque eu ajudei uma pessoa que tava precisando.
P – Legal. E assim, seus sonhos, quais são seus sonhos?
R – Meu sonho é ter a minha casinha, mais ou menos, reformar ali, precisa de algumas coisas, algumas reformas. O meu sonho hoje é de terminar o meu curso de inglês e trabalhar na parte de Turismo, porque na empresa, no Cedae, eu não ganho tanto quanto eu preciso, mas eu tô lutando, sabe? Tô estudando, tô querendo estudar pra fazer outro curso. Não tô dependendo só de uma coisa, [então] tem que prosseguir, tem que lutar, ter uma visão ampla. Eu faço vários cursos, então, eu tenho que correr pra alguns dos lados do que eu aprendi, de tudo o que eu fiz, pra ter o meu dinheirinho, pra poder estar conseguindo. E ainda vem um neném por aí, então, tem que dar tudo do bom e melhor pra essa criança. E o maior sonho de todos é cantar mesmo. Como eu falei, cantar e ainda tenho o sonho desde criança de gravar o meu CD.
P – Olha, depois você me manda um, hein?
R –
Tá ok.
P – Quero ouvir, quando ficar pronto.
R – Tá bom. Se eu ganhar no Raul Gil, aí eu mando.
P – Você me avisa quando você foi cantar lá. Então tá, Luana, como que foi pra você contar a sua história?
R – Olha, foi muito bom. Foi bom, [e] foi bom conhecer vocês. É algo que é gratificante, que outras pessoas possam assistir, ler também, pra poder ter mais força de lutar. Porque não são só pessoas deficientes, mas pessoas, não vou falar pessoa normal, todo mundo é normal, mas sim, pessoas que tenham certas dificuldades, que acham que não vão conseguir; e ver a nossa história, a minha história e a história de outras pessoas e vai falar: “Poxa, se ela tá lutando com a deficiência dela, eu também vou conseguir. Mesmo não tendo deficiência nenhuma, mas eu vou conseguir”.
P – Legal, muito bom. Foi muito bom conversar com você. Obrigada! Sucesso pra você e bom parto, que esse nenenzinho venha bem!
[Fim do depoimento]Recolher