IDENTIFICAÇÃO Meu nome é Iwao Jouti. Nasci em Rolândia, no Estado do Paraná, em oito de abril de 1946. FAMÍLIA Os meus avós não vieram para o Brasil, não lembro dos seus nomes. O nome do meu pai é Shinobu Jouti e da minha mãe é Tatsu Jouti. O meu pai foi militar no J...Continuar leitura
IDENTIFICAÇÃO Meu nome é Iwao Jouti. Nasci em Rolândia, no Estado do Paraná, em oito de abril de 1946.
FAMÍLIA Os meus avós não vieram para o Brasil, não lembro dos seus nomes. O nome do meu pai é Shinobu Jouti e da minha mãe é Tatsu Jouti.
O meu pai foi militar no Japão. Deve ter vindo pra cá com 32 anos. Ele veio quando o meu irmão mais velho ainda era neném, por volta de 1932. Ele era militar da cavalaria. E, digamos, pelo que eu senti, ele era agressivo, porque lá no exército parece que a promoção era em função da agressividade. E consta que ele era o equivalente a um sargento. Não sei o que minha mãe fazia, deve ter sido do lar, porque não tenho histórias dela. Eles vieram pra cá como todos os imigrantes, pelo menos os da raça japonesa, foi mais ilusão. Deve ter tido algum intermediário interessado nisso, para ganhar muito dinheiro aqui e voltar com a grana, mas nada disso aconteceu. Aí eles chegaram e todos foram pra lavoura.
Não foram diretamente para o Paraná, eles foram pra São Paulo. Eu me lembro da minha mãe falando em Sorocaba, mas não sei se era o nome da cidade ou da região para onde eles foram. E também não sei como é que uma turma foi para o Paraná. Depois, eles foram pra Rolândia, no Paraná, onde eu nasci. Eu não sei como foi a trajetória, mas, no início, eles eram empregados, aliás, me falaram que trabalharam três anos pra pagar a passagem da vinda pra cá. As condições eram bem ruins. Não sabiam a língua, costumes, hábitos, comida, enfim, era tudo diferente. No Paraná, eu não lembro de que eles tenham mudado de cidade, tenho a impressão de que eles foram direto para Rolândia. Quando eles vieram pro Brasil, já tinham um filho, meu irmão mais velho, e todos os outros nasceram aqui. Nós somos em sete irmãos, sendo cinco homens e duas mulheres.
EDUCAÇÃO / ENSINO FUNDAMENTAL A infância foi nessa cidade Rolândia. Eu fiquei lá até 11, 12 anos. Fiz o primário, na época, chamado grupo escolar. A cidade era pequena e a gente morava a cerca de um quilômetro e meio da cidade. E, eu acho que era tradição da raça, a gente primeiro aprendia a falar na língua japonesa, aliás, em casa só se falava em japonês no início. Aí na escola aprendi a falar em português. Eu me lembro que tinha oito anos quando fui para a escola. Então, com oito anos você já fala normalmente, mas tudo em japonês. Na escola, eu aprendi a falar, a ler e a escrever em português. Eu caminhava um quilômetro e meio até a escola. Eu sou o último dos sete irmãos. Então, os meus irmãos no início me acompanhavam, mas como a cidade era no interior e ninguém sabia o que era violência, roubo, passei a ir sozinho. Não tinha como errar. Os pais também deixavam todo mundo livre. Ninguém pensava assim: “Ah, má companhia, voltou tarde, alguém poderia fazer isso ou aquilo.” Não tinha disso. Saía de casa, sabia que ia voltar. Então, não tinha essa preocupação.
CASA Eu diria que minha casa era normal. Não me lembro de muito detalhe, mas, para a época, era uma casa normal. Hoje alguém poderia estranhar. Era sítio, então simplesmente não existia, por exemplo, casa de tijolo. Era de tábua, como tudo que tinha na região. Acho que não tinha grandes novidades. Devia ter uns ¬¬¬¬¬seis dormitórios, tinha assoalho,
não tinha eletricidade. É até bobagem falar, mas, às vezes, os patrões hoje têm que mencionar essas coisas, aliás, o meu pai nunca viu eletricidade, luz elétrica na resistência. A casa era confortável. Você nem sabia o que era confortável ou desconfortável porque, quando você não tem, você não sabe o que está faltando. Não tinha rádio, não tinha televisão, não tinha telefone, não tinha nenhum recurso de eletrodoméstico, geladeira, fogão. Isso nem passava pela minha cabeça nem dos meus irmãos, de meu pai, de ninguém. Não existia. É como todo interior: tem casinha, tem fogão à lenha, tem uma chapa em cima, panela eu acho que era de alumínio. A lenha cada um tinha que fazer. Gás também não existia. E, como era sítio, eu me lembro que brincava, saía de estilingue para caçar. Os vizinhos não eram tão perto assim, porque era sítio, era isolado. Você tinha que andar, sei lá, 500 metros pra achar um vizinho.
BRINCADEIRAS DE INFÂNCIA
Eu não me lembro dos brinquedos, deviam ser os normais da época. Lembro só que eu não tinha carrinho pra puxar. Eu ia pra escola, voltava, ajudava os pais. Caçar era eventual, você não perdia tempo fazendo isso, era muito eventual. É interessante que não lembro o que eu fazia. Mas não senti falta de nada, tipo: “Puxa, quero fazer isso, fazer aquilo.” Acho que ficava em casa estudando. Isso eu tô falando de quando estava no primário. Tinham outras crianças que brincavam com a gente. Nós tínhamos alguns animais lá em casa. Tinha cachorro, coelhinho, porquinho da Índia. Eu tinha um bocado de porquinhos da Índia, que eu criava. Tinha coelho e galinha também. Eu realmente me distraía com essas coisas. Nunca pensei em cinema, nem sabia o que era isso. O que tinha em casa era aquilo e estava tudo bem. Pra mim, não faltava nada.
INFÂNCIA EM ROLÂNDIA - PARANÁ Lá na colônia tinha pouca gente e se brincava pouco. Eu acho que não tinha brasileiros na vizinhança. Eu acho que os colonos, os dois vizinhos próximos também eram de origem japonesa. A gente ia na casa de um, na casa do outro, e falava em japonês mesmo. Nessa idade, falava em japonês. Hoje até parece estranho, mas se falava em japonês. Na escola, a gente aprendeu a falar português com o tempo, mas aprendi rápido. Foi coisa de um, dois anos. Passei a falar português e nem percebi a transição. Os pais continuavam falando em japonês, mas entre a rapaziada já mudava a língua, naturalmente, sem perceber.
FAMÍLIA Meu pai era muito bravo. Não diria tão rigoroso, mas era muito bravo, disso não tenho
a menor dúvida. Meu pai batia em todo mundo, indiscriminadamente. Não tinha nem minha mãe, nem filho, mulher, homem, não tinha nem colono. Eu nasci depois.
Quando eu tava crescido, ele já tinha alguma coisa. Quando eu saí de lá, o sítio era nosso, era dele. Então, tinha colono – lá não se chamava “colono”, é gozado, se chamava “camarada”. Hoje, camarada tem outra conotação, camarada é colega. Lá colono era o cara que não valia nada. Chamava-se de camarada. Era gente de cultura mais baixa possível. O meu pai obrigava, chegava a avançar, batia também. Era um bicho total, era ignorante. E também contava essas histórias de que andava batendo em gente por aí. Eu via batendo na minha mãe. O meu irmão apanhava. Até eu, que era mais obediente, apanhei. Eu era o último da turma. Mas era assim, de manhã, chamou pra levantar e eu demorei um pouquinho... Ah, não deu dois minutos. Então não tinha de ficar nhem nhem nhem não. Tinha que ser na hora.
RELIGIÃO Eu, pra falar a verdade, nem sei qual a religião dos meus pais. Imagino que seja budista porque, entre eles, só se falava nesse assunto. Mas não freqüentava essa religião, não tinha igreja. Em casa, tinha um negócio lá, acho que era o oratório. O pessoal usa muito aquilo. Aí acendia a vela, rezava de vez em quando, quando tinha algum motivo. Eu acho que era budista. Eu mesmo sou católico, mas católico sem saber, porque todo mundo é, então você vai ser também, nessa base. Religião, na verdade, você teria que ter opção. Mas aqui, em outros países também deve ser assim, você não tinha opção. É ou não é. Então, lá na escola todo mundo era. Foi assim que eu me tornei católico. Se perguntar a minha religião, sou católico. Mas hoje eu nem sei, porque isso nem é importante aqui. Não faz diferença o tipo de religião a qual você pertence.
EDUCAÇÃO – ALFABETIZAÇÃO EM PORTUGUÊS / TABUADA EM JAPONÊS Quando iniciei os estudos, não senti impacto por começar a conviver com outra cultura. A gente já se preparava pra isso. Eu achei normal, ia para a escola, no primário. Eu não era exceção, porque todo mundo de origem japonesa ia pra escola lá, ficava misturado aos outros que falavam a língua portuguesa. Eu não percebi esse impacto, não me senti diferente da turma. Porque a fala, talvez, não seja tão importante pra ensinar as primeiras letras. Se você escreve a letra “A” e grita “A”, você nem precisa saber que língua está falando. Deve ser por isso que realmente eu não senti esse impacto: “Puxa, eu não entendo essa língua, o que eu vou fazer aqui?” Eu nunca pensei nisso, achei normal.
Tem um negócio interessante que é a tabuada, porque você aprendeu a ler e escrever antes, em casa. Na escola, eu já sabia tabuada. A tabuada você aprende numa língua e nunca muda. Isso é muito interessante, se você quiser saber de que origem uma pessoa é, manda fazer tabuada rapidinho e vê com que língua ela fala. É a origem dela. Se você só escreve uma língua, você não aprende outra porque não tem necessidade, você traduz. Eu, na escola, falava devagar a tabuada de um a não sei quanto e nunca errava, porque eu sabia na outra língua, mas ficava traduzindo cada número. Demorava, mas não errava. É interessante. A tabuada era decorada mesmo, em português. Até hoje, no fundo, é em japonês, traduzo na hora.
MUDANÇA PARA TOLEDO - PR Entrei na escola com oito anos e fiquei até 11, 12 anos, porque são quatro anos de primário. Aí nós mudamos pra Toledo, no interior do Paraná. Eu tinha 12 anos, aí já me lembro bem o que aconteceu. Toledo fica no oeste do Paraná, era uma cidade muito do fundo, era o velho oeste mesmo. Ficava perto do Rio Paraná, acho que a 50 quilômetros. E Rolândia ficava no norte. O norte era um local civilizado, tinha cafezal e não sei o que lá. Naquela época, o limite normal era Maringá, que está mais ou menos no meio. Quem saía de Maringá para o oeste já era aventureiro. E bem distante tinha o tal de Campo Mourão. Era considerado meio maluco quem fosse para Toloedo, não tinha muito amor à vida quem fosse pra lá. Então, era mato mesmo. Até eu falo assim: “Roça coisa alguma, rapaz. Eu sou do mato. Esse negócio de roça aí você tá querendo é enfeitar um pouco.” Eu passei a minha juventude no mato mesmo, não é roça. A cidade tem esse aspecto que você vê as casas de tábua e vê o limite da clareira, ou seja, sabe-se que derrubaram árvores e lá fizeram as casas. Se você tira foto pra qualquer lado, dos quatro cantos da cidade, você vê o limite, uma parede de árvores altas. A terra é fértil, dá pra ver na foto. Então, a gente foi pra lá.
FAMÍLIA / PAI Quando meu pai foi pro Paraná, deve ter sido assim no início. Ele plantava café. Eu nasci no meio de cafezal. O cafezal já tinha produzido e tinha dado algum lucro. Então, ele comprou as terras lá em Toledo, quando a região ainda era mato. Deve ter sido barato, comprava-se terras, áreas grandes, a um custo relativamente barato. Eu imagino que ele fez isso pra ganhar a vida lá. Começou num lugar, saturou, já não tinha novidade, então resolveu ir mais pro interior. Hoje eu diria que o pessoal normal não faria isso, porque, quando ele foi pra lá, ele tinha 58 anos e nessa idade a tendência geralmente é pensar em se acomodar. Mas o espírito dele era começar. Ir para uma região onde não tem nada é começar uma vida. Realmente, não tinha nada. Prova disso é que, quando nós chegamos em Toledo, de caminhão, andávamos oito quilômetros e não tinha estrada. Literalmente, não tinha estrada, mas fomos morar lá assim mesmo.
TOLEDO – PARANÁ Em Toledo, nós ficamos na cidade, numa casa alugada, esperando o trator abrir uma estrada para poder construir a casa para a gente morar. Foi derrubada uma mata, carregou-se madeira e foi feita a casa, que ficava a oito quilômetros da cidade. Esse trajeto era mato puro, não se via uma pessoa no caminho. A escola ficava a oito quilômetros de distância da casa. A região é de terra roxa. Terra roxa é o seguinte: quando não chove, aquilo vira poeira, um pó fininho. Quando passa um carro e você está a pé, você tem que parar algum tempo pra poder enxergar, senão você não enxerga a tua mão, porque aquilo cobre de fumaça. Eu não sei por que o pessoal não teve problema no pulmão. Um carro não pode ir logo atrás de outro por causa da nuvem de poeira. É literalmente quando se fala assim: “Oh, você comeu poeira.” Ali come poeira mesmo, não é cheirar fumacinha não. Quando chove, essa terra roxa se torna lama, uma lama lisa, e o carro não anda no plano. Eu ia pra escola de bicicleta e, quando chovia, a bicicleta andava um pedaço, mas a lama entrava entre o pneu e o pára-lama. Aí, ao invés de montar na bicicleta, tinha que carregá-la. Eu pegava a bicicleta, jogava no meio do mato e marcava onde ficou, pois ninguém roubava, não passava ninguém lá. Na volta, eu pegava e ia amassando lama. Lá não passava ninguém mesmo. “Oh, a minha bicicleta tá ali. Na volta eu pego. Eu vou a pé.” Mas era longe, uns oito quilômetros, demorava um bocado.
EDUCAÇÃO
Estudava num colégio religioso, tinha aula de manhã, depois tinha hora do almoço e mais aula à tarde. Em dia normal, conseguia voltar pra casa na hora de almoço. Mas quando chovia não tinha essa chance, tinha que ficar por lá mesmo, ficava o dia inteiro na escola. Eu era o único estrangeiro nessa escola, no ginásio, todo mundo devia pensar: “Ah, porque você tem cara de japonês.” Mas era o único estrangeiro porque eu era o único paranaense. Todo mundo era gaúcho e de Santa Catarina. Eles vieram de não sei onde, Pelotas, daquela região do Sul. Os padres também vieram do Sul e não sei por que se instalaram lá. Então, no colégio também tinha pouca gente, uns 12, 13 alunos. E a disputa era de quem era o melhor: “Ah, porque gaúcho usa bombacha, o outro Catarina não sei o quê.” Um ficava caçoando do outro, mas eu era o único estrangeiro porque era paranaense. O curioso é que os padres não mexiam comigo, porque os outros, se faltassem à missa, eram perseguidos, tinha aquele negócio. Mas os professores nunca me perturbavam. Eu acho que me consideravam muito estranho e que não tinha jeito. Não me cobravam, eu não ia à igreja mesmo. Aliás, muito pelo contrário. A gente morava no meio do mato e o vizinho mais próximo ficava a dois quilômetros. O cara podia dar um tiro no vizinho que você não escutava. Era uma clareira e você só sabia que ali mora fulano, anda mais dois quilômetros até fulano, depois vai pra lá, mora fulano. Você não escutava de jeito nenhum. O cara podia fazer o que quisesse que não dava pra ouvir. Era longe pra burro. Tudo era mato.
RELIGIÃO / LAZER Eu não era religioso, pelo contrário. Sei que tem religião, seita, mas misturo tudo. Japonês tem a tal de Seicho-no-ie, tem a Igreja dos Santos dos Últimos Dias, dos americanos, e tem não sei o quê. Aí vinham esses, não sei se eram pastores, pregadores, missionários, e todo mundo passava por lá, senão não tinha graça. O cara ia sair de uma cidade do norte do Paraná ou São Paulo pra visitar uma só família? Então avisavam, mandava dar recado: “Oh, vai o pastor não sei o que, o bispo, o diabo que for, tal dia.” Aí todo mundo se reunia. O cara rodava uma semana fazendo a pregação. Mas eu não estava interessado em religião, tinha 12, 13 anos, e achava que a graça era juntar a turma. Naquela época, não tinha luz elétrica, essas coisas todas. Muitas vezes, à noite, a gente se reunia num cinema que tinha lá, o pessoal trazia filme. Tinha uma maquininha de motor que projetava aqueles filmes. As reuniões de religião também eram à noite, o cara trazia uma lamparina de querosene e iluminava. De dia, o pessoal tinha que trabalhar. Então, juntava o pessoal, que ia geralmente de bicicleta e, quem tinha, ia de trator. Aquele trator que tem duas rodas grandes e vem puxando uma carreta atrás. Ali colocava a família, enchia de vizinho. E reunia a turma ali. Eu olhava
a rapaziada, olhava pras meninas e vice-versa. Você paquerava, depois não se encontrava mais. Eu não paquerava muito. Eu tinha essa idade de 13 a 14 anos. Eu só ficava olhando mesmo. Não cheguei a conversar com ninguém. Para Toledo, eu devo ter ido com 12 anos. Lá no colegial são três anos. Então, deve ter sido 12, 13, 14, por essa faixa de idade.
EDUCAÇÃO / AULA DE EDUCAÇÃO FÍSICA Era colégio de padre. Tem uma coisa interessante também, era o seguinte: eles estavam construindo a escola e aula de Educação Física não era com aquele uniforme bonitinho, com som e música, de jeito nenhum. Aula de Educação Física era assim: um pegava o carrinho de mão, outro pegava uma enxada, outro pá, outro pegava a foice, e um dia ia fazer a cerca, outro dia fazer a escada. Tinha que fazer um corte no terreno, carregar tocos pra fazer cerca, coisa assim. Isso era a aula de Educação Física. Mas lá ninguém precisava de Educação Física. A gente passava o dia inteiro no meio do mato, aquilo era bobagem, você até ficava sedentário com aquela aula lá.
LAZER - CINEMA Cinema? Não, lá não ia filme Era aquele filme de rolo. Tinha de todo tipo, mas não é desses conhecidos. Devia ser de graça aquilo. Acho que o cara que mandava pra lá, pegava de graça por aí, ninguém ia gastar dinheiro com aquilo. Nenhum filme me marcou,
tudo era bobagem. Ninguém prestava atenção.
EDUCAÇÃO – ENSINO FUNDAMENTAL Eu acho que tinha uns 12, 13 alunos. O ginásio não te dá nenhum diploma, você não é profissional em nada. Você não é eletricista, não é nada, é uma continuação do primário, você não se forma em nada. E quando terminou o ginásio, depois de quatro anos, tinha muito pouca gente que quisesse continuar os estudos. Então, o nível parou aí. Quando eu cheguei lá, o nível mais alto era exatamente o primeiro ano do ginásio, o anterior era o quarto ano primário. Eu peguei o topo da região ali, aí foi crescendo, foi subindom, quem estava no primeiro ano foi pro segundo. A maior escolaridade da região era segundo ano ginasial, terceiro ano ginasial, quarto ano ginasial. Aí parou porque não tinha quem quisesse prosseguir. Quem quisesse estudar, tinha que ir pra fora. Aí eu fui pra Curitiba.
DISPERSSÃO DA FAMÍLIA
Quando nós saímos de Rolândia, onde fiz o primário, os meus irmãos eram maiores. Só um irmão foi comigo pra Toledo. Os outros estavam estudando fora, em Londrina, que era a maior cidade que tinha no norte do Paraná. Não me lembro se tinha alguém em Curitiba, acho que não. Eles ficaram lá no norte do Paraná, em internato. Eu tinha uma irmã logo acima de mim que também ficou em Londrina e um outro irmão maior, que tinha uns 16 anos, que foi lá pra Toledo. Então, só fomos eu, esse meu irmão de 16 anos, o meu pai e a minha mãe. Meus irmãos estudavam fora e, nas férias, alguns iam pra Toledo. Mas, desde aquela época, a família toda não conseguiu se juntar, porque era muito difícil. Naquela época, estava mais próximo, mas transporte era difícil. Hoje estão mais longe, apesar do transporte ser mais fácil. Então, juntar a família toda é quase impossível.
ENSINO PROFISSIONALIZANTE Acabando o ginásio, fui pra Curitiba, onde eu tinha dois irmãos. Entrei na escola técnica, onde fiz Eletrotécnica. Como é que foi isso? No Brasil, na época, tinha um programa dos americanos chamado “Aliança para o Progresso”. A coisa era mais ou menos assim: os americanos e o outro lado, o principal rival, que era a Rússia, queriam apoio dos paises subdesenvolvidos. Isso eu estou imaginando, parece que a história é assim, porque eu era bem pequeno, não entendia isso. Então, era aquela história, a turma dos americanos e a turma do contra, que era comunista. Os americanos, pra ter maior apoio possível dos países subdesenvolvidos, davam um apoio financeiro para esses países em desenvolvimento, como o Brasil. Essa escola técnica em que estudei tinha apoio financeiro dos americanos e, de vez em quando, pintava um americano lá, devia ser auditor, alguma coisa. Tinha comida de graça, café da manhã, almoço, jantar e ainda ganhava uma mesada. Você passava o dia todo na escola e essa mesada dava pra pagar a pensão. A despesa era quase zero, basicamente só com roupa. A minha mãe costurava as roupas, que duravam um ano, então não tinha despesa. Meus sapatos duravam dois anos. Hoje não dura tanto. Naquela época, não sei por que, eu caminhava pra caramba, não pegava ônibus e durava dois anos um sapato. E a roupa que a minha mãe costurava durava também de umas férias pra outras.
COSTUMES Naquela época, tudo era normal. Por exemplo, não ligar pra casa. Não tinha uma pessoa que ficasse ligando pra casa, mandando carta, pode ser que alguns mais chegados até mandassem carta todo dia, mas da minha turma não. Nessa pensão em que eu morava, ninguém mandava carta, os pais não sabiam se nas férias de julho iriam voltar ou não. Em dezembro, eram dois meses de folga, então falavam: “Ah, meu filho deve voltar.” E também o número de filhos era grande, não tinha muito essa preocupação. Eram sete, oito filhos. Era normal, minha mãe tinha sete filhos. Todo mundo era assim. Tinha um monte de criança e cada um estava num canto. “Ah, fulano deve voltar nesse verão.” Era assim, ninguém não se preocupava com isso.
JUVENTUDE EM CURITIBA Não foi diferente morar sozinho, nem com pessoas estranhas, talvez porque eu tivesse muitos irmãos. Porque filho único fica na saia da mãe o dia todo e quando separa sente aquela tristeza. Mas não sei se porque tinha bastante irmão, os meus irmãos também viviam fora, então eu não sentia nada. Eu ia pra fora, achava aquilo legal. Ficava na pensão, não tive problema nenhum, todo mundo era a mesma coisa. Eu achava que todo mundo fazia aquilo. Então, não estranhava nada. Todos eram bem comportados. Eu não lembro de alguém lá da minha pensão, da escola, que dizia que teve problema, que tem droga, que roubava. Nunca vi esses comentários.
Em Curitiba, foram três anos de Eletrotécnica. Não tinha muito horário livre porque era o dia todo. Você já levantava, se arrumava e ia pra escola. Lá você ia tomar café e ficava o dia inteiro. Tinha aula teórica, aula prática. Almoçava, ficava por lá mesmo, tinha aula à tarde e saía. Eu me lembro que a gente ia pra cinema, tinha desconto pra estudante. Eu acho que cinema não era caro, porque eu conseguia ir. E também não tinha despesa nenhuma. Na escola técnica tinha uma bolsa e minha família nunca mandou mais de meio salário mínimo por mês, nem precisava. E com isso eu conseguia ir pro cinema. Eu não comprava absolutamente nada. Eu acho que não tomei um refrigerante na minha vida, nessa fase. Não me lembro, talvez na faculdade. E a gente mudou de pensão algumas vezes. Tinha o meu irmão e o cara que estava comigo também tinha um irmão que estava estudando lá. Eu sei que, uma vez, nós mudamos de uma pensão pra outra sem consultar o irmão do outro e ele deu uma bronca desgraçada, não me lembro o motivo.
BOLSA DE ESTUDOS Lá eu não fiz exame não. Eu não sei por que e como é que eu entrei, acho que era só ir e matricular. Não fiz nenhum exame. O meu irmão foi lá e arrumou isso. Acho que tinha vaga à vontade, tinha pouca gente, não era concorrido. Na Eletrotécnica, eu acho que não tinha 10 alunos na minha sala. Você conhecia todo mundo.
ENSINO SUPERIOR Fiz Eletrotécnica e aí, realmente, eu teria uma profissão. Mas os meus irmãos já tinham feito faculdade. Tinha um que fez medicina e um que fez agronomia. Ele estava cursando quando eu estava lá e se formou nessa época. E eles também não falavam muito em opções. O que é faculdade pro cara que sai do interior? O que é doutor? É médico, advogado, engenheiro civil e agrônomo. Eu acho que não sai disso. Pra quem está no interior, fazer um curso superior não passa dessas opções. Eu falei: “Ah, vim da roça mesmo, vim do mato. Então, tem que ser agrônomo.” Aí eu ia fazer agronomia. Quando já estava mais próximo do vestibular, falaram que tinha a tal de Engenharia Química e que isso daria futuro. Na verdade isso é papo de, não sei nem se é amigo, de quem foi, porque lá no Paraná não tinha indústria química. Quem se formasse em Engenharia Química não sabia nem pra onde ir, porque era um Estado essencialmente agrícola. Só tinha uma indústria de chumbo no norte do Paraná e uma de celulose, que faz papel Klabin. Mas só tinha essas duas empresas e não era perto de Curitiba, era distante e não ia conseguir absorver aquela turma toda. Mas quando eu entrei, nem sabia que tinha isso aí. Falaram que era Engenharia Química e que dava dinheiro. Aí eu fui, mas sem muita convicção, estava fazendo e quase ia desistir. Depois, falaram que o bom era Eletrotécnica, não sei o quê. O que eu lembro da escola técnica é mais ou menos isso. Então, voltando ao vestibular, eu estava me preparando pra Agronomia e, já nos finalmentes, resolvi mudar pra Engenharia Química. Tinha que estudar uma outra matéria que não aprendi na escola técnica, não me lembro qual era. Uma dessas cadeiras não existia, não sei se era Geografia, História, Português, alguma coisa assim. Aí estudei em cima da hora. Mas a concorrência não era muito grande, era coisa de três por um, e eu consegui entrar.
FAMÍLIA Os meus pais achavam que a gente tinha que estudar, mas não faziam a menor idéia do quê. Porque o que se tinha na memória daquela pessoa do interior era isso aí mesmo que eu falei: medicina, direito, engenharia civil e agronomia. Então tinha que, mais ou menos, optar por uma dessas carreiras. Não existia esse leque de opções de cursos que tem hoje. Aliás, eu fiz Engenharia Química e meus pais morreram sem saber o que é isso, eu não consegui explicar também. Porque, com aquele diálogo de até oito anos de idade, não tinha condições de explicar pro pai o que é uma Engenharia Química. Depois dos oito anos, eu parei de avançar em japonês, então não consegui explicar pra eles o que eu estudei, nem consegui explicar o que faço na Petrobras. Meus pais nunca aprenderam a falar português, não teve jeito, porque não precisava naquela época. Falavam muito mal, totalmente errado. No interior, no meio da roça, eles sabiam o básico mais pelo gesto e grito do que pela teoria, não precisa ficar explicando. Então, eles não aprenderam, falavam muito mal.
LÍNGUA JAPONESA
Não mantive o idioma japonês. Eu regredi, porque só aprendi até oito anos, depois só praticava quando falava com os meus pais, nas férias, um mês por ano. Depois da faculdade, entrei na Petrobras e ia pra casa deles, mais ou menos, uma vez por ano. Então, fica um ano sem falar, aí fala um mês, vai regredindo.
PRIMEIRO TRABALHO Quando consegui meu primeiro trabalho, eu estava no segundo ano de Engenharia Química, em 1966. Apareceu num jornal recrutando Eletrotécnico na Copel. A Copel é Companhia Paranaense de Energia Elétrica, como a Light. Isso foi em novembro. Daí eu pensei: “Dezembro, janeiro, eu tenho férias.” Esse emprego dava uma grana, aí eu fui fazer a entrevista, mas não falei que eu estava estudando. Como eu tinha me formado em Eletrotécnica dois anos antes, cheguei lá e falei que fiz Eletrotécnica e estava meio à toa, ajudando o meu pai. Aí eu entrei na Copel, em novembro de 66. Trabalhei basicamente dois meses. Ainda tinha um bocado de provas a fazer, prova final, essas coisas, e larguei tudo porque o salário era bom. Eu trabalhei novembro, dezembro, e deu pra pagar meio ano de despesas de estudo na faculdade. Não era mais escola técnica, não tinha moleza de americano, eram condições próprias mesmo. Eu consegui pagar meio ano de meus custos com dois meses de trabalho. Então, pra mim foi bom. Mas a companhia também não perdeu, porque eu fiz alguma coisa, não foi só treinamento. O treinamento foi uma coisa muito rápida, porque estavam eletrificando uma região que não tinha luz. Me mandaram lá pro interior pra puxar fio do poste e montar a subestação – subestação é o local que faz a distribuição da energia que vem da usina. Apesar do pouco tempo, eu cheguei a trabalhar na montagem da subestação, levantei poste, fiz força pra caramba. Na época, não tinha aquele caminhão que tem hoje. Era tudo no braço mesmo. O cara fazia buraco no chão com pá, colocava uma tábua num lado de lá, tinha um poste de uns 12 metros, e o pessoal com quatro, cinco homens, levantava aquilo, puxava fio e fazia a coisa funcionar. Fazia a subestação funcionar pra dar energia nas cidades do interior. Eu trabalhava andando com o carro dos chefes, de um supervisor, mas muitas vezes andava de carona. Uma vez, um cara mandou eu avisar pra desligar a luz num local porque ia mexer, fazer uma obrazinha. E depois que terminar tinha que religar. Só que não tinha telefone, não tinha comunicação, rádio nenhum. O cara contava que eu já tinha chegado lá e tinha mandado desligar pro cara meter a mão. Aquilo era um suicídio.
ENSINO SUPERIOR / ENGENHARIA ELÉTRICA Quando estava no segundo ano de Engenharia Química e já estava dizendo que não era grandes coisas, eu pensei: “Puxa, então eu vou ser outro Engenheiro, eu vou ser Engenheiro Elétrico. Já tenho base, até achei um emprego por aqui.“ Eu trabalhei novembro, janeiro, e o vestibular era em fevereiro, março. Eu cheguei a fazer vestibular de Engenharia e lá dentro tinha a opção de Eletricista, só que ia perder um ano. Eu estava no segundo ano, mas um ano se aproveitava, porque tinha matérias básicas, dava pra aproveitar. Então, eu ia voltar, perder um ano, e depois mudar de ramo na Engenharia. Mas eu desisti porque já estava naquela dúvida desgraçada, se vale a pena, vou perder um ano, não sei o que, e quando vi a taxa de matrícula eu caí fora. Falei: ”Não, fiz um trabalho danado aqui, eu não vou pagar essa taxa. Eu vou continuar onde eu estava mesmo.” Eu saí da Copel quando começaram as aulas pra valer. Eu fiquei pouco tempo, não completei nem três meses. Mas a minha consciência não pesa tanto porque realmente eu estava precisando de dinheiro e também eu trabalhei, não fiz só estágio. Se fosse só pra aproveitar, realmente eu seria muita malandragem, mas foi meio termo. Eu ajudei a montar um bocado de coisa ali, instalar fios e puxar. Eu montei algumas coisas, fiz o que tinha que ser feito.
Continuei a faculdade sem trabalho formal. Mas eu dava aula, dava aulas particulares de física, matemática. Eu dava reforço lá na pensão para o pessoal que ia fazer cursos pré-vestibular e não aprendia no cursinho. Mas era bico. Basicamente tinha um, dois alunos. De vez em quando, ficava sem ninguém, uma coisa assim. Meus pais também mandavam alguma coisa, meio salário mínimo, de vez em quando. Atrasava, mandava, e ia se virando.
TRAJETÓRIA PROFISSIONAL / ESTÁGIOS EM SÃO PAULO Quando eu estava me formando, já no último ano, a Petrobras chegou na faculdade fazendo propaganda. E eu fiz o concurso estudando ainda. Mas, durante a faculdade, fiz alguns estágios em São Paulo. A minha escola era no Paraná. Eu tinha que sair do Paraná, porque lá não tinha nem estágio. Eu saía de lá, pegava um ônibus, chegava em São Paulo e ficava rodando. Eu fiz um estágio na Kim Brasil, que era uma fábrica de fertilizantes. Fabricavam matéria prima também, ácido sulfúrico. Eles pegavam minério, fosfato, não sei o que lá, faziam aquela mistura, botavam na proporção e faziam fertilizantes. Isso foi o estágio na Kim Brasil, numa dessas férias aí.
Outro estágio que eu fiz foi na refinaria. É interessante, pois hoje a refinaria é da Petrobras. Naquela época, se chamava Refinaria de Petróleo União, ficava em Capuaba, São Paulo. Era refinaria de petróleo normal, particular, naquela época quase não tinha monopólio. Eu fiz estágio lá, foi coisa de um mês, estava de férias. Mas com tudo pago, com salário, carteira assinada.
Nas férias, você saía de lá, pegava um ônibus e ficava andando naquelas indústrias de Cubatão. Tinha muita empresa ali. Batia de porta em porta mesmo, ia batendo, batendo, batendo, e arrumava esses estágios. Foi bom porque foi nos últimos anos, do quarto pro quinto ano ou do terceiro pro quarto. Depois, no último ano, já veio essa notícia da Petrobras. Aí eu resolvi fazer o concurso.
INGRESSO NA PETROBRAS Não conhecia ninguém que trabalhasse na Petrobras. De petróleo mesmo, eu só sabia a parte de refinaria, porque fiz estágio. Esse negócio de ir pra poço de petróleo eu não tinha a menor idéia. Eu acho que, nessa época, a Petrobras nem sabia que tinha poço de petróleo. E se falava muito em Fronape, que tinha petroleiro transportando petróleo. Eu acho que era só isso, basicamente. Quando o pessoal veio, falou que tinha tais opções, eu pensei: “Puxa, esse negócio de petróleo, poço de petróleo, é interessante.” Era mais espírito de aventura, porque eu não gosto muito de ficar trabalhando em escritório e fazendo fórmulas matemáticas, isso eu detesto. Então, o cara dizia que tinha que ter personalidade, era coisa de aventureiro mesmo, negócio de se enfiar no meio do sertão lá da Bahia, eu falei: “Isso aí acho que tá pra mim.” O pessoal da Petrobras ia nas escolas fazer propaganda e mostrava o que era a Petrobras. Aí eu falei: “Oh, isso aí é uma boa.” Nunca gostei de ficar num escritório, sempre gostei dessas coisas de aventura, então foi bom.
O concurso deve ter sido difícil, mas eu não me lembro de sair apavorado. Também não me lembro de ter achado que eu ia passar, pela concorrência, passar é coisa de sorte. Se falava muito em Petrobras, eu não me lembro desse negócio de poço de petróleo, mas entrar na Petrobras era o sonho de qualquer um, sem dúvida.
OPÇÃO PELA PETROBRAS
Não tinha opção praticamente, ainda mais no Paraná. Era Petrobras ou sub-emprego. Entrar na Petrobras era um sonho. Engenheiro tinha que entrar na Petrobras, quer dizer, ter sorte na vida era entrar na Empresa, era trabalho garantido, ganhava bem. Só que, lá dentro, eu não sabia que tinha esse negócio de mexer com poço, não sei o que lá. Não sabia exatamente o que era. Tinha turmas anteriores, já nos últimos anos, que falavam assim: “Oh, fulano entrou na Petrobras.” O cara dizia: “Puxa vida, como é que o cara fez?” Ficava essa impressão.
ESPECIALIZAÇÃO EM ENGENHARIA DE PETRÓLEO Me formei em 1969. Em janeiro de 1970, me matriculei. Mandaram o aviso em casa, onde eu morava. Aí eu fui lá no escritório e falaram que tinha que ir pra Bahia fazer um curso. Passou mais um comigo, nós fomos em dois. O outro não era da minha turma, não o conhecia. Aí lá no escritório o rapaz falou assim: “Você vai pra Bahia. Como você não conhece o lugar, é melhor você entrar em contato com o outro, porque tem mais um.” Deu endereço, não sei por que não deu telefone, acho que naquela época telefone era raro. O cara me deu o endereço: “Oh, fulano mora não sei onde, você acerta com ele pra ir no mesmo dia.” Fui na casa dele e nós fomos juntos pra Bahia. Ficamos no hotel, acho que uns cinco dias. E deram uma carta de referência tipo fiador, uma carta de fiança, um negócio desse, para cada um arrumar um apartamento. Acho que éramos em 19. Aí nós ficamos em quatro num único apartamento que, inclusive, era longe do curso. Esse rapaz que foi do Paraná ficou comigo. Tinha dois casados e cada um pegou um lugar qualquer, não me lembro onde. O restante do pessoal, solteiro, ficou num único lugar. Então, imagino que os outros devem ter ficado em nove ou 10 num único lugar. Era bagunça total O curso era em Salvador. A Petrobras ficava na Graça, na Rua Padre Vieira, eu acho, e o curso era lá. Hoje está na Pituba. Eu morava no bairro de Matatu, longe pra diabo. Estudava pra caramba. O curso é muito puxado, um trauma desgraçado. Nossa Senhora Saí do mato e fui morar em Salvador. Fiquei um ano e não vi praia. Não dava tempo pra nada. Não vi nem Igreja, nem sei o que é São Francisco. Só estudava, todo mundo tinha medo de ser demitido. Aliás, minha turma tinha mais razão ainda, porque na aula inaugural o cara chegou lá e avisou que nós fomos contratados por engano, ou seja, se alguém reprovasse, a Petrobras ia dar graças a Deus. “Poxa, com um salário bom desse, reprovar... Isso aqui é guerra” Aí não tinha jeito. E é verdade, a história era mais ou menos assim.
CONTRATAÇÃO POR ENGANO Não era trote. O cara explicou, mais ou menos, como é que era. Tinham feito um dimensionamento da necessidade e, não sei por que razão, estavam num impasse, “aprova ou não aprova o concurso”. Numa dessas, saiu no jornal o edital, concurso público, aí não podia mais cancelar. Quando viram que não precisava mais, já estava muito longe. Quer dizer, se cancelasse, poderia ter gente que abandonou o emprego, mudou o plano da vida, que ia entrar na justiça e alegar mil danos. Então: “Bom, agora não tem mais jeito.” Podem até ter pensado: “Vamos apertar no curso. Os bons ficam.” Foi o que nós imaginamos, porque o cara realmente falou: “Vocês foram contratados por engano.” Eu falei: “Meu Deus do céu, aqui vai ser uma guerra.” Aí a gente estudou pra caramba. Todo dia a gente estudava até meia noite. De manhã, nós saíamos cedinho e, na volta, íamos direto pra casa. Era só estudo, mas teve alguns reprovados. Foram três reprovados, dos 19. Tem aquela história: “Puxa, você foi último lugar de 19. Então você é fraco.” Mas se perguntar: “Mas quantos concorreram?” Falava: “Milhares.” Então, em milhares, de primeiro pra décimo nono lugar é a mesma coisa.
E esses reprovados foram pra casa. O curso era puxado mesmo, o cara ficava doido ali. Na verdade, era concurso também. A gente entrou na corda bamba e estava arriscado a cair fora a qualquer momento.
No curso tinha um período introdutório, de poucos meses. Ficamos um mês no campo. Não tinha mar, não tinha Bacia de Campos, o campo era o Recôncavo Baiano. A gente andou lá pela região, no interior, e eu gostei muito. Terminamos o curso e pronto, passou o primeiro sufoco.
TRAJETÓRIA PROFISSIONAL / ÁREA DE PRODUÇÃO No curso, não havia separação entre Engenheiro de Perfuração e Produção. Era uma coisa só. Como acontece ainda hoje, tem aquela divisão, tem vários critérios, classificação, de que região era. Às vezes, considera um pouquinho a personalidade da pessoa, se o cara tem jeito pra ficar estudando, se é cara de tocar obra. Tem algumas considerações e as suas preferências, você fala das suas opções. Opção um, opção dois, opção três, não sei o que. Na época, essas opções eram a Bahia e Sergipe, pra ficar no campo, e tinha a opção do Cenpes, aqui no Rio. Acho que ninguém foi pro Cenpes. Tinha que escolher entre Bahia e Sergipe e produção e perfuração. Então, misturava essas coisas e você era selecionado. Eu acho que fui para a minha primeira opção.
A minha escolha foi produção, mas dentro da produção tinha a completação. A divisão grande é entre produção e perfuração, mas tem a completação que é a parte de poços. A produção em si engloba separador, transferência, bombeio e outras coisas mais.
COTIDIANO DE TRABALHO / ÁREA DE PRODUÇÃO NA BAHIA A produção de petróleo começa com estudo do reservatório. Então, o óleo está impregnado no meio poroso, dentro da rocha, e aquilo vem fluindo. Lá tem óleo, tem gás, tem água. Às vezes, tem gás com H²S, que é tóxico. E aí tem a parte de completação, que é pegar o poço bruto, perfurado, e equipar para produzir. Tem o preparo do poço, descer o tubo onde você vai produzir e, em cima do poço, é instalada uma árvore de natal. A parte de completação do poço seria pegar a perfuração e dar um acabamento para produzir. Da árvore de natal sai uma linha, chamada linha de surgência ou linha de produção, que vai até a plataforma. Isso não é completação, já é produção, processo. Aí vai para uma planta e lá é feito o tratamento, separa o gás do óleo, água do óleo, faz análise e manda pra estoque. Se for em terra, pode ser um estoque local, se for muito pequeno. Ou é transferido por uma linha pra uma outra estação. No mar é bastante sofisticado porque essa linha já é submarina. Pode ir pra uma plataforma, onde o navio-petroleiro encosta e recolhe esse óleo ou pode bombear da plataforma para a terra. Em Macaé, isso seria em Cabiúnas. E de lá pode bombear pra outros locais de consumo. A produção é mais ou menos isso. Escolhi trabalhar com a parte de produção, que é completação e produção, mexer com poço. O meu negócio é mexer com poço.
Na época, eu escolhi a Bahia. Tinha umas sub-divisõezinhas lá, tinha área sul, norte, tinha duas áreas principais, de vez em quando separava, depois unificava etc. No início, eu acompanhava, tinha um setor de operações especiais. Eu fiquei nesse setor talvez uns dois anos. E você tinha que assistir algumas operações que eram executadas por companheiros contratados. Só que essa operação podia cair a qualquer hora do dia, madrugada, noite, e podia ser em qualquer lugar da Bahia. Aí eu ia dar assistência nessas operações e rodava o Recôncavo todo, ia pra locais bem distantes. O local mais longe deve ter dado umas duas horas de fusca. E tinha também o mar na Bahia, que era mar raso, o Dom João Mar. Tinha setor terra e mar. Então, uma vez que eu trabalhava nesse Dom João Mar, a gente ia em uma embarcação qualquer. Aí navegava até esse poço, que era uma plataformazinha. Lá ficavam os equipamentos e o bombeio era feito por uma companhia contratada. Eu não me lembro, acho que era Halliburton, basicamente tinham essas duas companhias. Eu andava muito de fusca no interior da Bahia, especialmente no Recôncavo.
PRODUÇÃO OFFSHORE NA BAHIA/ CAMPO DE DOM JOÃO MAR O mar ali era muito raso. Começava do zero e ia, sei lá, pra cinco, 10, 15 metros. Eu nem sei se chegava a isso. O poço era de produção. Se comparado com hoje, era irrisório, produzia muito pouco. O poço em si, fora a água, era raso e produzia pouco. Mas ainda tem dois poços na Bahia. Não tenho notícia recente, mas deve ter muitos poços nesse campo de Dom João Mar. Era totalmente diferente do que tinha aqui, as operações mais pareciam com terra, porque, apesar de água, foi construída uma plataforma com estacas e tipo um mezanino. Então, lá virou terra, como se você tivesse aterrado, e os equipamentos são iguais ao da terra. Quase não justifica dizer que aquilo era mar.
COTIDIANO DE TRABALHO / BAHIA O regime era bem diferente. Por exemplo, não tinha essa regra de trabalhar tantos dias e folgar tantos, uma coisa bem definida, tudo acertado com o Sindicato. Não sei se o pessoal reclamava e a Petrobras mudava um pouquinho. Onde eu trabalhava, a regra era assim: cada seis horas que você trabalhasse fora do expediente normal, dava direito a um dia de folga. Isso equivale, mais ou menos, a dizer que você antecipava. Em vez de trabalhar no dia seguinte oito horas, você trabalhava seis horas à noite e equivaleria ao trabalho do dia seguinte. Mas, em termos de dinheiro, não era nada extra, ou seja, você conseguia acumular folgas se trabalhasse vários dias à noite. É como se fizesse hora extra direto e aí, depois, já trabalhou o equivalente a uma semana, duas semanas. Então, tinha direito a gozar as folgas correspondentes. Mas não se ganhava nada extra. Já foi um avanço, porque antes de mim era pior. Você trabalhava à noite e era obrigado, porque não dava direito a nada. Você trabalhava à noite, mas no dia seguinte você tinha que estar lá cumprindo o horário do escritório e ficava por isso mesmo.
BACIA DE CAMPOS / POÇO DESCOBRIDOR A Bacia de Campos ainda não tinha descoberto petróleo comercial, por volta de 1971. Em Sergipe tinha alguma coisa. Eu acho que foi em 1968, por aí, não me lembro bem. Lá já tinha alguma coisa, mas era água rasa também. Não era esse Dom João sem vergonha que tem na Bahia. Lá era mar, não sei qual a profundidade, mas é coisa rasa. Eu sei que tinha no mar ali, mas era tudo fixo, não tinha nada balançando, navio, essas coisas, não. Em 1974, se descobriu óleo comercial na Bacia de Campos. Voltando um pouco, em 1973, eu cheguei a embarcar na plataforma no sul da Bahia, mas não houve descoberta. Eu fui testar um poço, que era parte de completação. Eu só iria quando houvesse indício de que já tinha descoberto, poderia ter petróleo lá, depois de perfurado. Então, lembro de ter participado de um teste em 1973 no sul da Bahia, na chamada base DAS, base 28, mas não deu petróleo. Aí, quando descobriram a Bacia de Campos em 1974, eu participei da descoberta.
MACAÉ E CAMPOS / ESTRTUTURA DA CIDADE Eu ainda não estava lá, só tinha a Bahia. Da Bahia a gente pegava avião, helicóptero, e ia direto pra plataforma. Porque, enquanto você não tem óleo descoberto, a base é somente suficiente pra fazer uma perfuração, não tem essa estrutura que existe numa região produtora. Em 1974, estava tudo ainda a descobrir. Então, se não descobrisse, simplesmente desativava a instalação, o aluguel de não sei o que lá, e ia tirando o time. Isso aí era coisa de um ano, dois anos.
Hoje no mundo inteiro é assim. A Petrobras só dessa forma, bem como outras companhias. Você monta uma estrutura para fazer um determinado número de poços. Se furou e não deu nada, desmonta o circo e vai embora.
Eu vim para participar do teste do poço que descobriu petróleo. Então, em estrutura não tinha nada, nem em Macaé, nem em Campos, nem Vitória, não tinha nada. Você saia da Bahia, todo mundo que trabalhava embarcado saia da Bahia e de lá pegava o avião, o helicóptero não sei o que e chegava na plataforma e voltava pra lá.
BACIA DE CAMPOS / POÇO DESCOBRIDOR O poço descobridor chama-se 1-RJS-9A, foi com o navio Petrobras II, no final de 1974. Eu embarquei nessa sonda, em dezembro de 1974, pra testar o poço. A escala era parecida com a de hoje. Você ficava 15 dias e aí desembarcava, subia outra turma. Então, como um trabalho desses demora meses, foram várias equipes. Eu ficava, passava meio período, vinha um outro. Passava o período dele, vinha outro, vinha um outro. Eu poderia, eventualmente, voltar. O período que eu fiquei lá foi de dezembro de 1974 a janeiro de 1975. O navio era da Petrobras, o pessoal ficou muito orgulhoso porque tinha uns gringos perfurando lá e quem descobriu foi a sonda da Petrobras. Poderia não ser, porque de acordo com as diretrizes, qualquer um podia furar, por acaso foi um da Petrobras. Se tivesse outra companhia perfurando também, ia achar da mesma maneira.
PERFURAÇÃO DE OUTRAS COMPANHIAS A gente não enxergava se tinha, não tinha certeza. Mas não faz muita diferença. Eu acho que não tinha. Tinha um outro navio, mas não sei onde é que ele estava, pode ser que estivesse na Bacia de Campos, que era o Ciclone. Eu me lembro que existia esse aí, mas você não enxergava. Lá onde eu estava era isolado no mar e tinha muita expectativa porque isso era descoberta do primeiro óleo no Estado do Rio de Janeiro, no mar. Tinha muita expectativa, os jornais tinham publicado, tinha um monte de recorte de jornal lá nos corredores da plataforma.
BACIA DE CAMPOS / POÇO DESCOBRIDOR Eu fiz parte de um teste, mas foram vários testes. Porque é o seguinte: faz-se a perfuração do poço, nessa fase de perfuração tem um geólogo acompanhando. Aí vai acompanhando os cascalhos que saem e corre o perfil também. Então, sabe se tem, não tem ou pode ter, já tem indicação. Coloca-se em fluxo pra sentir mesmo que tem óleo, depois vem a parte de avaliação, que era parte da produção. Dentro da produção, tinha essa completação e tinha avaliação também, mas era muito parecido. Completação e avaliação eram tão interligadas que teve época que virou uma coisa só, depois separaram. Hoje acho que está conjunto de novo. Então, quando estava perfurando, tinha só um engenheiro, que se chamava de Engenheiro de Perfuração. Quando chegava na hora de testar se tinha petróleo, subiam dois engenheiros. Era um de completação e um de avaliação. Então, eu fui como engenheiro de completação, junto comigo subiu um engenheiro de avaliação. O cara era muito mais antigo do que eu, era do tempo do Conselho Nacional de Petróleo. Ele era anterior à fundação do petróleo, já trabalhava nessa área. Eu não me lembro direito como é que foi. Estava na fase de preparativo, preparando o poço pra fluir. Aliás, a gente botou pra fluir, mas o equipamento falhou e não produziu. Umas três vezes o equipamento falhou e não chegou a fluir. A gente coletou pouca amostra de óleo e não chegamos a fluir e medir quanto produzia Os engenheiros seguintes, que nos substituíram, é que mediram realmente a potencialidade. No meu período, foi mais preparativos e tentamos produzir, mas o equipamento falhou.
COTIDIANO DE TRABALHO Nessa época, esse tipo de trabalho era muito eventual, o meu trabalho só ocorria quando achavam que tinha alguma coisa. Depois desse poço, é possível que eu não tenha vindo, durante um período grande, para testar o poço seguinte, deve ter demorado bastante essa descoberta, porque as descobertas não eram seguidas. E também não tinha muita sonda, naquela época não se investia muito. O pessoal deve ter ido com um certo receio porque sai caro o custo de uma sonda. Então, não ia encher de sonda pra achar que lá tem petróleo, o pessoal ia devagarzinho, assim como faz hoje em toda parte do mundo. Naquela época, já se furava no Paraná, se furava na Amazônia, se furava não sei aonde. Mas, primeiro, mandava uma sonda lá para ver como era, para tirar a primeira base, e depois que achava que a área era quente, digamos assim, promissora, aí colocava mais equipamentos.
PRODUÇÃO OFFSHORE: EQUIPAMENTOS Quase todo mundo sabia trabalhar em terra e quem não se habituou no mar costuma dizer que lá é igual. Mas quem ficou só no mar, em termos de equipamentos, sabe que não tem nada a ver com terra. Os equipamentos de teste de terra e mar são diferentes. E a falha no meu teste ocorreu exatamente porque era a primeira vez que esse equipamento para mar estava sendo usado no Brasil. Tinha algum problema de operação e o operador cometeu alguma falha, não funcionou acho que umas três vezes.Todos os equipamentos eram importados, ainda são. A companhia era a Dowell e foi pedido que trouxessem o melhor cara da empresa. Dowell é uma multinacional muito grande, subsidiária da Dow Chemicals. A companhia trouxe, supostamente – porque você não vai saber –, o melhor cara que ela possuía. Pelo jeito, o cara parecia realmente um grande mestre, já de idade, e veio da Noruega. Era o melhor ou era o único que entendia daquele equipamento, então todo mundo tinha que acreditar nele. A coisa não funcionava, aí ele mostrava catálogo. O catálogo tinha peça na escala um por um, ou seja, era o tamanho da peça do jeito que ela é, equivalente. O cara botava no chão aquele papel enrolado e dizia assim: “Tá vendo esse pino aqui? Aqui que entra o fluxo. Aí ele vem por aqui, a pressão entra, vai lá não sei aonde, flui pra não sei o que lá.” A gente saía andando pra ver: “Por que aqui não deu? Será que entupiu lá?” E não funcionava. Eu me lembro que colocaram até um boneco enforcando o cara, representando: “Ah, vamos enforcar esse cara lá, esse operador tal da companhia.” Ficou uma expectativa desgraçada e nada daquilo produzia.
HISTÓRIAS / CAUSOS / LEMBRANÇAS Tem um fato interessante. Não posso dizer o nome de todo mundo, mas eram três engenheiros. O engenheiro de perfuração ficava sempre com o navio e toda a equipe com ele, então era o dono do navio. Quando suspeitava-se que tinha óleo, aí vinha o engenheiro de completação, que na época fui eu, e o engenheiro de avaliação, que também teve seu substituto depois. Portanto, eram três. Bom, mas a equipe, todo mundo, só lembra do cara. “O cara é o dono, aquele lá veio depois. Um é não sei o que de produção, outro não sei o que de produção.” O chefe mesmo era aquele cara ali. Pela regra, não podia e não pode ainda fluir poço à noite, por questão de segurança. Eu e esse outro engenheiro estávamos no mesmo camarote dormindo e foi combinado que, quando clareasse, abriria o poço. Mas o pessoal lá, esse outro engenheiro e a turma, não conseguiu esperar: “Puxa vida, já está pronto aqui, não vamos esperar clarear pra abrir isso aí. Vamos adiantando.” Aí mandaram um homem da área, o plataformista – é o cara que fica na sonda e é o mais inferiorzinho lá –, chamar o engenheiro de avaliação, que era o cara que estava dormindo comigo no camarote. O cara bateu lá e falou: “Doutor, estão te chamando lá em cima.” Como já tinham combinado que só se abriria à luz do dia, o meu companheiro olhou pela janela, viu tudo escuro e dormiu de novo, porque não estava na hora. Mas estava aquela expectativa desgraçada: “Pô, Rio de Janeiro produzindo petróleo, todo mundo.” Depois que o cara bateu na porta, eu não consegui mais dormir. Aí não tive dúvida. Eu peguei bota, capacete, e subi. Tem o deck principal do navio e a plataforma fica na parte mais elevada. Lá estava cheio de gente, pessoas envolvidas com a operação e curiosos. Devia estar cozinheiro, todo mundo lá, porque ia produzir petróleo e tal, havia aquela expectativa. Estava escuro ainda. Tem uma escada que deve ter uns seis, sete metros, bem inclinada, e eu fui subindo pra esperar lá em cima o momento de abrir o poço. O responsável ficou dormindo, mas ele estava com a razão. Quando eu apontei a cabeça, aquilo não tinha mais vaga, estava todo tomado por gente e o chefão lá do outro lado gritou comigo. Em 1974, eu ainda parecia muito menino. O cara gritou: “Você aí, vai chamar o Alexandrino” Eu pensei: “Puxa vida, o negócio aqui é bravo.” E vi o pessoal tirar um pouquinho de sarro, olhei pra trás, tinha uma escada que vai lá pra baixo e o resto é tudo mar. Aí todo mundo olhando pra mim, eu olhei pra trás e falei assim: “Você falou comigo?” Ele ficou vermelho, nervoso, pegou um cara que estava ao lado e gritou: “Você aí, vai chamar Alexandrino” E nada do Alexandrino chegar, porque ele olhava no relógio, olhava na janela, via tudo escuro e o combinado era de manhã, então ele estava tranqüilo. O pessoal adiantou alguma coisa lá e o poço abriu sem o responsável estar olhando. Isso não pode, porque você tem que cronometrar tudo que aconteceu, sopro, descrever todo o início, porque ali é a parte mais crítica. Essa operação era perigosa, mas a gente se virava. Mas não podia, porque você perde o dado mais importante. O responsável não estava lá, não podia acontecer isso. Daí a pouco, ele apareceu, reclamou com o cara que fez a operação, que era da companhia contratada, foi uma gritaria desgraçada. “Quem mandou fazer isso?” Foi até interessante. Abriram antes do horário, mas o equipamento falhou, não me lembro se foi nesse momento, e o poço era fraco. Não chegou a produzir óleo, não deu em nada, mas não devia ter feito aquilo.
UM POÇO EM PRODUÇÃO
É bom, é muito bom. Eu já fiz vários, dezenas, centenas. Então, você já tem expectativa, você já tem os dados do que vai acontecer, tem noção, não se surpreende muito. Eu acho que quem mais gosta de ver é o povão que está ali, porque a gente não consegue explicar tecnicamente o que está acontecendo, por que está demorando. Não tem como saber. Mas ele enxerga o óleo queimando e ele só quer saber disso. Às vezes, você vai lá, nem é o objetivo queimar aquele óleo, mas a primeira coisa que perguntam é: “Quando é que vai queimar o gás aí?” Às vezes, não é nem gás. Mas ele não vai saber se é gás que está queimando, se é óleo. Aí fica todo mundo na expectativa. Às vezes, você queima um, dois dias, fica queimando, passa a noite toda com aquela chama desgraçada ali e aquilo anima todo mundo.
COTIDIANO DE TRABALHO / TRABALHO EMBARCADO Em 1973, eu participei de um teste no sul da Bahia, que não deu nada. A primeira plataforma realmente marca. Quem nunca embarcou, fica impressionado. É muito ferro e tudo grande. No sul da Bahia, foi a primeira plataforma que eu fui testar. Mas era plataforma fixa, porque a água era mais rasa. A descoberta da Bacia de Campos foi em 1974. Era um navio, acho que foi a segunda vez que eu fui ao mar. Ai demora algum tempo, porque tem que vir um outro poço e na condição de ter potencial de produzir. No início, era muito esporádico, era um aqui, alguns meses depois tinha outro. Depois, fica só na expectativa: “Ah, o poço está furando, vai terminar não sei quando. Será que vai dar? Será que não vai dar?” Devagarzinho. Nessa época, eu fui uma vez em Amapá. Lá também não deu, não produziu nada. É diferente. Lá era longe, então, por questão de segurança, metade do helicóptero era combustível. A distância era grande e tinha que ter três helicópteros pra alguém poder ir pra plataforma e voltar. Era um esquema bastante complexo, não podia ter um helicóptero só para ir na sonda e voltar. Isso não podia porque, em caso de acidente, acabou, aquele cara foi lá e ninguém sabe onde é que ficou. Tinha uma escala. Eu não me lembro bem como era, mas entravam três helicópteros no jogo pra poder ir a uma plataforma. Era mais ou menos assim, eu posso estar errado, depois a gente pode ver a seqüência. Saía o primeiro helicóptero, quando este estava no meio do caminho, saía o segundo. E eu tenho a impressão que, quando o primeiro chegava na plataforma, acho que saía o terceiro. Na volta também tinha essa escala. Estava tudo combinado, quando o primeiro estiver em tal posição, o segundo sai. Porque, caso algum caísse, ainda dava tempo de ir lá socorrer. Tinha a questão de combustível, autonomia, esse sistema todo em jogo. Era complicado.
HISTÓRIAS / CAUSOS / LEMBRANÇAS Teve um caso em que saiu o primeiro helicóptero e eu ia no terceiro. Quando o segundo estava saindo, uma proteção da hélice caiu – na ponta hélice tem uma chapinha. Quando isso cai, o helicóptero perde o equilíbrio e começa a tremer. Então, teve que voltar, mas não conseguiria chegar até o aeroporto de onde a gente iria partir e pousou no meio de uma ilha. Acho que era Ilha de Marajó, mas não tenho certeza. O segundo helicóptero trouxe o pessoal que tinha ficado num brejo. Ficou todo mundo atolado. Quando eles chegaram na base onde eu ia pegar o terceiro helicóptero, veio um cara carregado, em choque. O cara estava de olhos abertos, mas ele não piscava e não falava. E adivinha quem era? O enfermeiro. Aí o colocaram na horizontal e era gozado porque não sabiam o que fazer com ele. Era palpite: “Não, dá água com açúcar.” Outro falava: “Não, café resolve isso aí.” E todo mundo dava palpite Era gozado.
OPERAÇÃO DE CONTENÇÃO DE AREIA EM SONDA FLUTUANTE O reservatório, às vezes, pode ser calcário, arenito, tem vários tipos de formações. É como rocha, tem granito, tem vários tipos de rocha. Tem formações que, quando produzem, soltam areia, grãozinho de areia. E se deixar essa areia produzir, no caminho onde passar, ela vai comendo o ferro, a linha, tudo. Então, você tem que segurar essa areia, ou seja, filtrar, colocar um filtro e só produzir óleo sem areia. Na Bacia de Campos, hoje, acho que a maioria dos poços tem que ter essa proteção contra produção de areia. Essa operação de contenção de areia chama-se Gravel Packed. Foi a primeira no mundo. Quem nunca fez, fala assim: “Oh, terra e mar é tudo a mesma coisa.” Não é a mesma coisa, o equipamento é diferente. Fazer uma determinada operação em cima de um navio balançando é diferente de estar em terra, porque em terra você fala assim: “Desce mais meio metro.” Aí você desce um tubo meio metro. Depois fala: ”Agora puxa um metro e 15.” Você puxa um metro e 15, o tubo sobe um metro e 15. Mas quando você está em cima, com o navio balançando, esse negócio não funciona. Então, como foi o primeiro do mundo, os fabricantes de equipamento também não sabem desses detalhes todos ou acham que dá-se jeito na hora. Por isso que eu mencionei. Acho que foi em 1978 pra 79, tinha que fazer essa operação e o pessoal só tinha tecnologia em terra firme. Aí nós discutimos com o fabricante, programamos a operação, planejamos. E veio o técnico, fabricante, era Baker, e fizemos essa operação. E no começo, claro, deu tudo errado. Estou mencionando porque a gente teve que descobrir por que dava errado. Perdia-se muito tempo e dinheiro, evidentemente. Hoje essa operação existe em quase todos os poços na Bacia de Campos. Isso aí é apenas uma operação de dezenas de centenas de outras.
DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO Essas operações nunca tinham sido feitas em outro lugar, isso era mais questão de sobrevivência, porque não tinha nada de errado. A gente fez coisa pela primeira vez porque foi necessidade. E daí? Alguém tinha que fazer. Então, tem mérito. Essa é uma das operações. E têm inúmeras, como essas árvores de natal, árvore de natal molhada, em tudo nós estamos na frente, porque lá fora não precisou. Se lá fora estivesse na nossa situação e tivesse descoberto petróleo, poderia estar na frente. Mas lá não teve essa necessidade. Aqui se descobriu petróleo no mar, água profunda, e a gente tinha que produzir de qualquer maneira, não dava pra ficar esperando alguém fazer lá fora ou ficar fazendo aqueles testes tradicionais de laboratório, que é o normal. O normal é você testar no laboratório exaustivamente, que nem peça de carro. Cada invento tem uma idéia. Pega aquilo, testa, testa, testa, testa. Testa a confiabilidade, aí coloca na prática. Se a gente ficar fazendo isso, puxa, nós estamos importando petróleo pra caramba. Na época a gente estava lá embaixo. Eram 160 mil barris por dia, coisa dessa ordem, e cada poço nosso aumentava essa produção em 10%. Você não pode ficar testando muita coisa no laboratório. Todo mundo tem pressa, isso é pioneirismo. Em vez de ficar conversando muito, tinha que experimentar pra ver como é que ficava. Ia lá, via, se não dava certo, não deu. Então, qual a novidade? Vamos tirar e ver como é que faz pra dar certo. Não adiantava querer consultar lá fora porque o fabricante também nunca tinha feito. Você, junto com o fabricante, fazia as suas improvisações. Lá na sonda, a gente dizia assim, perguntava: “Como é, soldador, aí é bom?” “Não, soldador aqui faz qualquer trabalho.” Aí você já ficava tranqüilo porque ali ia começar a montar, e teria improvisações direto. E funcionava. Era laboratório na raça. Era tudo pela necessidade. Os fabricantes, que são americanos e mais cheios de teorias, ficavam apavorados, porque eles tinham um milhão de recursos, tinham tecnologia, tinham gente, laboratório. E, de repente, vão num país, pra eles sub-desenvolvido, e vêem tudo diferente, tudo doido. O cara resolve por rádio, porque não tem nem com quem discutir. E você não tem nem como explicar ao teu chefe, a um especialista, o que está acontecendo lá, porque comunicação era difícil. Era tudo na raça. O cara falava por rádio, o outro nem entendia direito e já mandava fazer uma coisa que ninguém fez. Os americanos ficavam assustados Mas isso era comum. Tem dezenas de outras operações que foram feitas assim. Não dava tempo de ficar inventando muito teste de confiabilidade, fazer estudo com cálculo no Cenpes, o fabricante fazia lá mesmo. Isso aí era comum, era rotina.
CRIAÇÃO DA BASE EM MACAÉ Eu estava na Bahia, na verdade, quando descobriram a Bacia de Campos. Foram descobrindo Garoupa, Namorado, Enchova, Badejo etc. “Opa, o negócio está bom, vamos ter que concentrar esforço lá.” Eram poços bons, em relação à terra. Então, tinha que concentrar esforços lá e resolveu-se criar uma base – você pode chamar de região, distrito, base, não sei. Tinha que sair da Bahia, fazer algo independente, alguma coisa pra cá. Tinha muita polêmica, porque poderia ser em Campos, Macaé, ou outro lugar. Antes de decidir onde realmente seria a base definitiva, a gente fez uma escala em Vitória. Não é que tinha petróleo em Vitória, é que a base poderia ser lá, talvez pelo tamanho da cidade, tinha estrutura e tinha porto. Macaé era bem menor e não tinha porto, mas poderia ser feito e isso era importante. No início, o porto era em Vitória. Os barcos saíam do porto de Vitória e vinham até aqui, tinha que pegar água, diesel, cimento, não sei o quê. Pegavam todos os produtos em Vitória e vinham pra cá, então realmente tinha sentido a base ser em Vitória, mas sabia-se que isso era provisório, porque de Vitória pra cá é muito chão. Eu cheguei uma vez a fazer essa viagem de barco, mas isso é espírito de aventura mesmo. Tinha um helicóptero no dia seguinte para eu ir da Bacia de Campos para Vitória, mas tinha um barco saindo na noite anterior, indo pra Vitória. ‘’Ah, vou experimentar essa viagem aí.” Foram 14 horas e meia, balançando muito. O barco era menor do que esses convencionais, era muito pequeno. A cama tinha cinto de segurança, porque, se você não amarrasse, não ficava de jeito nenhum na cama. O trajeto foi muito ruim porque passei mal a noite toda. De manhã, ficou bom porque já era sul do Espírito Santo, tinha uma paisagem boa. A entrada de Vitória é uma maravilha, valeu a pena pra conhecer. Em Vitória, lembro que tinha algumas dificuldades. Eu não sei que diabo que tinha lá, o pessoal do porto não estava olhando com boas caras a Petrobras. Não entendi por que também, poderia fazer o contrário, devia tentar cativar a Petrobras. Eu sei que lá era complicado pra ir no porto. Pra entrar no porto, você tinha que ter uma licença que valia por um dia só, era muito ruim. Eu me lembro que uma vez eu fui ver material no porto e entrei escondido embaixo de lona, em uma Kombi. Era um absurdo isso. Tinha alguma coisa errada, acho que não era bem quisto lá. Mas sabia-se que era provisório. E aí foi decidido que a base definitiva seria em Macaé.
MACAÉ / COMEÇO DOS TRABALHOS Eu vim para Macaé assim que a base ficou pronta, ou seja, antes de mim só tinha o pessoal que montou a base. Tinha o porto onde encosta o barco e a construção onde tem escritório. Assim que ficou pronto, eu fui da primeira turma, assim como em Vitória. Eu fui da primeira leva que saiu da Bahia e foi pra Vitória. A primeira vez que nós chegamos lá era uma residência, uma casa. Naquela época, era separado: produção, perfuração, geologia, eram três áreas bem distintas. A partir daquele dia, eu já estava separado. Mas a atividade era pouca, então era tudo isso numa casa só e a secretária era comum. Uma secretária atendia geologia, produção, tudo. E você conhecia todo mundo pelo nome. O motorista chamava-se Celso (Gomes) o segurança chamava-se Machado (João), o cara que ia fazer compra lá, agora eu não me lembro o nome. Você chamava tudo por nome: “Ah, chama o Celso aí pra fazer isso aqui não sei onde.” “Ah, isso aí você deixa que o Machado passa e pega.” Então, você conhecia todo mundo pelo nome, desde secretário, chefe, rádio operador. “Ah, manda o Fernando transmitir essa mensagem pra não sei onde.”
COTIDIANO DE TRABALHO Na época, não tinha definição, um ponto fixo para ficar, porque era pela necessidade e porque cada campo, no início, não tinha nada. Um campo tinha um trabalho e acabava ali. Aí descobria-se outro poço, outro campo, e era um trabalho lá. Eu rodei todos o campos da Bacia de Campos e fora também.
O campo em si não é o que marca. É o poço que te dá o trabalho. Cada poço você lembra de algumas coisas porque, até hoje, você não repete, não tem a mesma rotina. Em cada poço você chega, não sabe o que vai encontrar e que surpresa vai trazer.
Uma surpresa pode ser uma montanha em erupção pegar fogo. Isso se chama erupção, blowout, é comum. Todo poço tem blowout, mas aí é surpresa. Onde eu estava trabalhando, não houve início, não ocorreu essa erupção, mas eu fui resolver problemas de erupção. Tem uma outra parte que é ameaça de erupção. Isso aí também assusta, eu fui em várias. Já saí de Macaé e fui pra outras regiões para resolver esse problema. Fui duas vezes a São Mateus, porque tinha um poço de gás lá que estava ameaçando. Estava folgando em casa e tive que ir lá pra controlar esse poço.
HISTÓRIAS / CAUSOS / LEMBRANÇAS Se eu começar a contar, é história que não termina mais. Mas teve uma que é interessante. Eu tinha vindo para Macaé sozinho, deixando família em Vitória. Aí, nas folgas, sexta feira eu ia pra Vitória. Ocorreu um problema e saiu o avião de Macaé pra me pegar em Vitória e levar até São Mateus. Você não sabe o que vai fazer, eu fui. O piloto, como seria uma operação rápida, levou o filho. Era final de semana, sábado ou domingo, e ele levou o filho pra passear. Quando terminou o trabalho em São Mateus, na hora de voltar, ele tinha até comprado um passarinho na gaiola, aí o piloto falou: “Bom, nós vamos daqui direto pra Macaé porque nessa altura eu não posso fazer escala em Vitória.” Eu falei assim: “Mas eu tenho que passar em Vitória porque estou sem chave do apartamento de Macaé, não posso ir direto de jeito nenhum.” E o piloto falou: “Mas se descer lá eu tenho que dormir em Vitória, porque não vai dar tempo.” “Não tem jeito, se você quiser vai. Eu tenho que passar em Vitória.” Ele teria que realmente dormir em Vitória para, no dia seguinte, ir pra Macaé. E assim foi. Eu dormi em Vitória, peguei a chave do apartamento e no dia seguinte saí cedinho. Eu não sei onde ele se arranjou pra dormir com o filho. Chegando em Macaé, a mulher do piloto estava esperando no aeroporto. Acho que não gostou muito porque o trato era voltar naquele dia e o cara dormiu lá. Eu sei que a mulher estava com a cara fechada, não conversou nada no trajeto. Eu peguei carona com ela
COTIDIANO DE TRABALHO / TRANSMISSÃO DO CONHECIMENTO A atividade de ensinar é difícil, muito difícil. Teria que ficar contando cada caso porque aquilo não é linha de montagem, teoria, tudo certinho. Você vê a bronca no local. Tem problema de equipamento, tem problema de relacionamento com o pessoal, tem mil outros problemas. Então, o melhor mesmo é você pegar no serviço. Alguém já me falou que eu até deveria dar aula lá na Bahia, numa dessas turmas novas. Eu falei: “Não, lá eu não quero voltar.” Mas é o seguinte: lá se ensina o básico, mas pra pessoa se virar sozinha, assumir, tem que ter algum tempo. Tem muitas coisas que não se aprende na escola. Eu até brinco. Quando chega uma turma nova, eu sei que aquilo que estou falando pra ele é surpresa. Conto um bocado de caso, principalmente de relacionamento, coisa assim. Aí eu falo assim: “Olha, se tiver alguma coisa que você não viu lá no curso, você anota.” Ele dá risada porque eu tenho certeza que ele nunca viu aquilo na vida. A gente faz na prática. É o pessoal que embarca comigo. E isso aí demora algum tempo, desde sempre os novos geralmente têm assumido na raça mesmo. O pessoal chama treinamento de impacto. O pessoal, psicologicamente, não tem a menor chance de assumir aquilo, mas a gente fala assim: “Bom, não tem opção, só tem você. Realmente, não tem jeito. Qual a tua opção?” A opção é não fazer, mas não fazer não pode ser. O pessoal assusta um pouquinho. Mas como hoje tem telefone, não tem muito problema: tem dúvida, liga. Eu passei um tempo, por volta de 84 ou 86, que eu ficava como chefe de operação de completação em Macaé. E tinha muitos engenheiros novos. Eu tinha um ramal da Petrobras na minha casa, na cabeceira, acho que era 489. E era o telefone que mais tocava, tocava a noite toda. Porque os caras que estavam lá tinham dúvidas demais. E era pra ter mesmo. O cara nunca tinha feito aquilo na vida, achava que é perigoso. Cada coisa que ele fazia, não estava seguro. Aí ligava pra ver o que está faltando.
MANUAL DE COMPLETAÇÃO Eu fiz um Manual de Completação porque era necessário, o que se ensinava no curso não era suficiente. Era muito diferente. Você ia escrevendo aos poucos pra ir treinando, depois você juntava aquele negócio todo e treinava os engenheiros novos que chegavam. Tem outro aspecto: a equipe da sonda, que pode ser brasileira ou contratada – tem várias empresas contratadas –, também não entende de completação no mar. Não entendia porque lá fora não tinha. Eles entendiam de perfuração. Se o engenheiro que estiver lá não dominar o assunto, aí que não sai nada mesmo. Os caras não conheciam. Se o cara da Petrobras não ensinasse como fazer, não tinha jeito. Aí tinha que ligar lá em casa. Eu fiquei não sei quantos anos direto. Eles ligavam a noite toda O manual ajudou bastante. Quando eu terminei o manual, já tinha uma turminha boa, mas ajudou bastante.
TRAJETÓRIA PROFISSIONAL Antigamente, gratificação de chefia era meio fraca. Eu também não gostava do escritório, então voltei a embarcar, mas em termos de hierarquia, de status, essa função é a mais inferior que existe. Os recém-chegados, depois de um ano, já estão no papel exatamente na minha função. Já fui chefe de setor de operação. Eu entrava em contato com o pessoal da sonda, mas esse setor fica dentro de uma divisão. Dentro da divisão, tinha setor de equipamento, compra de equipamento, setor de fluidos, setor de arame – para fazer operações com arame –, setor de planejamento e setor de operação, obviamente. Eu passei uns três anos no setor de operação. Mas isso ficou bastante fora da minha personalidade, porque chefe de divisão não fala com a sonda. Caí num trabalho burocrático, foi uma desgraça. E o adicional de chefia, na época, era muito ruim. Hoje, vale a pena ser chefe, tem um adicional bom. Começou com o Reichstul (Henri Philippe Reichstul). Eu até me lembro que ele deu uma entrevista na televisão e o repórter perguntou: “Qual é o seu salário?” Ele falou: “Puxa, eu estou até com vergonha de dizer o meu salário. O meu salário é 13 mil.” Nas empresas desse porte, multinacionais, no Brasil, não era nada disso. É gozado que logo depois aumentou o salário dele, acho que foi pra 24 mil, aí melhorou, todo o resto veio colando atrás e o salário de chefe melhorou bastante.
Eu não gosto de trabalho de escritório, por isso voltei a embarcar. Já tem tempo isso, voltei a embarcar em 87. O trabalho embarcado não é monótono, sempre tem novidade. E dá problema também. Não tenho mais o ramal 489. A coisa mudou bastante. Hoje está bem mais estruturado. Há uns 10, 15 anos, vem mudando e não se precisa mais ficar concentrado numa só pessoa. Está dividido em várias pessoas.
COTIDIANO DE TRABALHO / JORNADA DE TRABALHO Hoje tem uma escala, não rígida, mas proporcional. A cada 14 dias de embarque, tem o direito de 21 dias de folga. Estou nessa escala. É claro que, quando tem algo especial, você foge dessa escala, faz uns trabalhos extras. Mas, grosso modo, a minha rotina é essa. Agora tem campo definido, tenho ido pro Campo de Marlim, desde que dividiram em campos. Ativo Marlim, ativo não sei o que lá, eu estou nesse ativo. Antigamente não tinha esse local definido, ia pra Santa Catarina, pro exterior também, pra qualquer lugar.
LAZER Hoje, para a hora de lazer, eu terminei arrumando muita dor de cabeça. Dor de cabeça não, é boa ocupação, digamos. Eu estou ampliando a minha casa. O problema é que comecei no ano 2000 e ainda faltam uns dois anos pra terminar. É como obra de Igreja. Mas me ocupa bastante tempo e me distrai. Quando eu volto, tenho que refazer o que está errado porque os pedreiros ficam à vontade. Eu pego na marreta também. Quando o mar está bom, eu faço pesca de mergulho, mas nessa região é muito raro ter água limpa e para mergulhar tem que ter água limpa e o mar não pode estar batendo. Aí eu fico na expectativa de pescar. Fora isso, eu fico na obra, dou palpite, coloco o dedo lá. É basicamente isso. Eu leio pouco, porque me cansa. Eu tentei ler vários livros, mas não consegui, ou divaga demais e a coisa fica chata, ou quando é muito interessante eu paro no meio. Eu leio uma página e fico pensando: “Mas esse cara é terrível.” Fico pensando assim, o tempo passa e demoro muito pra ler um livro. Então, não leio muito. Basicamente, assisto o noticiário, algumas coisas da Discovery Channel e algumas aventuras. Eu preencho o tempo assim.
FAMÍLIA Eu entrei na Petrobras, fiz o curso em 71. Depois, em 72, eu me casei. O casamento foi
na Bahia, mas ela não é baiana. Tenho 33 anos de casado e dois filhos já adultos.
Eles trabalham, já são independentes. São engenheiros e estão em São Paulo. Um deles até pensou em ser engenheiro químico, mas isso deve ser porque eu sou. Aí falei: “olha, esse negócio aí”, desestimulei um pouquinho. Ele foi ser engenheiro mecânico e o outro é engenheiro de computação.
PROJETOS FUTUROS Eu vou me aposentar logo, dei entrada agora. Mas se você ficar à toa, morre logo. Então, eu não pretendo morrer ainda, quero viver bastante. Eu tenho que achar alguma ocupação. A princípio, eu estou pensando em continuar na área de petróleo, desde que não traga muito stress. Mas stress tem que ter, pra ter aventura também, senão não tem graça. Mas não pode aborrecer e sair gritando. Eu pretendo continuar na minha área, fazendo mais ou menos o que faço agora. Quero ver se continuo mais algum tempo trabalhando. Estou pensando em continuar o que estou fazendo como embarcado, até que esses engenheiros novos tenham mais experiência, se isso for útil. Se a Petrobras achar que não precisa mais, eu invento outra coisa. Ela deve precisar porque tem bastante trabalho, alguma coisa deve ter. Mas, pra falar a verdade, eu não estou muito preocupado com isso, porque tem aposentadoria. Não tenho dependente. Então, não tenho muito com o que me apertar. A questão é pouco melhor ou pouco pior. Não tem como me apavorar, por exemplo. Posso até pensar: “Bem que eu podia ter feito aquilo, podia estar fazendo isso.”
A diferença não vai ser grande.
PROJETO MEMÓRIA PETROBRAS Eu sabia que tinha esse Projeto Memória, mas não tinha muita idéia do que seria. Depois que eu fui convidado é que descobri que dá pra ler na Internet as entrevistas. Isso foi anteontem. E foi uma pena, porque eu tentei ler algumas entrevistas das pessoas que conheço e não deu tempo de ler todas. Eu comecei a ler a entrevista do Alfeu (de Melo Valença), que estava na frente. Aí eu fui pegando a lista, mas perdi muito tempo porque, de vez em quando, eu botava no meio e vi alguns que eu não conhecia também, perdi bastante tempo. Eu peguei todos que já tinham trabalhado em Macaé. Ontem à noite, lá pelas 10 horas, é que eu fui ver a do Vilarinho (Sebastião Henriques Vilarinho). Pena que eu não consegui ler todo. Fiquei até impressionado com um detalhe. Eu vi que devo ter morado na casa que ele morou anteriormente, se não fui vizinho, lá em São Sebastião do Passé. Mas eu fiquei impressionado com o detalhe que ele lembra da casa, do rio Pitu, até que tinha piaba, cheio de coisa ali. Como eu falei, foi pena ter descoberto isso muito tarde. Eu até fiquei curioso porque existem muitas pessoas que têm muito a dizer, coisas boas, e não estão incluídas. Não sei se vão conseguir pegar. Pelo menos da minha área e que passaram por Macaé, eu conheço alguns que não podem ficar de fora de jeito nenhum e não estavam naquele site. Não sei qual foi o critério da escolha. A princípio, eu achava que devia ser por tempo de serviço. Realmente, pessoa antiga tem mais coisas pra contar e que, para os novos, eu sei que é surpresa. Às vezes, eu digo alguma coisa e o pessoal fica assustado: “Puxa vida, como é que você veio parar aqui?” Até recomendaria a quem está entrando na Petrobras hoje que lesse. Eu vou recomendar que leia alguns desses depoimentos dos antigos, pois acho fundamental. O pessoal chega aqui já com Internet instalada na plataforma e reclama de tudo. Eu fico pensando: “Puxa, essa gente tem que tomar uma lição.” Eu acho que tem muitas pessoas importantes ainda a entrevistar e não pode deixar passar a oportunidade.
Eu gostei de ter participado. Mas tem muita gente que tem coisas melhores do que eu, que não deveriam perder. Eu não vou saber por que fiquei numa área em Macaé. O trabalho é grande. A Petrobras tem 50 anos e já teve ter 60 mil funcionários. Não sei o que o pessoal do Rio fazia, o pessoal da refinaria, transporte etc. Mas eu acho que vocês deviam pegar pessoas de destaque. Não é questão de hierarquia, mas de destaque. Pode ter qualquer função. E, pra ter destaque numa entrevista dessa, eu acho que o cara tem que ter tempo, tem que narrar o início pra ser memória. Se pegar uma
pessoa nova, não é bem memória, é uma rotina, dia-a-dia. Só vai interessar a ele próprio, a namorada ou a mãe dele. Não sei qual o critério de seleção para a entrevista, mas eu acho que não pode faltar alguns nomes, porque vão perder muito dessa memória. A entrevista foi boa. Fiquei à vontade. Pena eu não ter conseguido ler a entrevista de alguns colegas, mas quero ler integralmente, porque a gente aprende muita coisa. Gostei muito. Foi muito bacana.Recolher