IDENTIFICAÇÃO Isaac Karabtchevsky, nasci em 27 de dezembro de 1934, São Paulo capital. MÚSICA EM CASA Quando as carreiras se manifestam, existe sempre uma razão qualquer. Em geral, ou é o meio ambiente, ou uma conjugação familiar. No meu caso, eu tinha uma mãe cantora, f...Continuar leitura
IDENTIFICAÇÃO Isaac Karabtchevsky, nasci em 27 de dezembro de 1934, São Paulo capital.
MÚSICA EM CASA Quando as carreiras se manifestam, existe sempre uma razão qualquer. Em geral, ou é o meio ambiente, ou uma conjugação familiar. No meu caso, eu tinha uma mãe cantora, fugida da Rússia. Na década de 1920, eles aportaram em Santos, ficaram entusiasmados com Brasil e se radicaram aqui. Ela era cantora lírica em Kiev, na Ucrânia. Então desde a fase uterina que eu “ouço” música. Eu me lembro dela, à janela, fazendo exercícios com o diafragma, aquela imagem ficou muito latente no meu inconsciente.
O processo de aproximação com a música já estava realizado, mas até o desejo de me tornar um músico profissional houve um longo percurso. Eu diria que o fator básico que me levou à música foi essa estrutura familiar, o que os alemães chamam de hausmusik música em casa. De lá para frente, houve todo o sentido orgânico, quase dialético, que faz com que as pessoas se interessem, mesmo que não sejam profissionais, mas que se interessem por ouvir música. Por essa razão os povos na Europa nascem com esse sentimento da hausmusik, com ele crescem e se constituem no público que freqüenta os teatros, mesmo sem serem necessariamente profissionais. Foi assim que começou a minha vida.
TRAJETÓRIA PROFISSIONAL A voz, através da minha mãe, sempre a voz, estabelecia em mim um fascínio enorme, ela era um ponto de referência em música. Depois de ter cursado todo o universo da música instrumental, eu acabei caindo na voz, quando eu fui diretor do Teatro La Fenice, em Veneza, isso foi na década de 90. Então, fechou-se um círculo. Eu comecei com a voz, ouvindo a minha mãe e criando um coral, porque o coro era a extensão daquilo que eu julgava um elemento estético importantíssimo.
Então eu fui para Belo Horizonte, fundei o Madrigal Renascentista, em 1956. Eu era um jovem regente que procurava, através do coro, plasmar toda a minha vocação musical. É o que eu sempre digo aos meus alunos, na ausência de uma orquestra, trabalhe com coro, porque o coro é vital, é voz, e a voz humana é o símbolo da musicalidade. Existe uma diferença entre se criar tocando um instrumento e através da voz. A voz te dá essa grande amplitude que é a música interna, e foi pela voz que eu comecei minha carreira.
Fui pro Madrigal, ele fez várias turnês, inclusive na Europa, nos EUA. Na época foi um conjunto padrão aqui no cenário musical brasileiro. Em 1958, eu recebi uma bolsa de estudos do Departamento Alemão de Intercâmbio Cultural. Através dessa bolsa eu fui para Alemanha e, aí sim, comecei a me desenvolver como regente sinfônico. Quer dizer, o coro foi um passo para música sinfônica. Tive minhas primeiras aulas e estudei com excelentes professores, fiquei lá cinco anos, saí do conservatório ganhando a sua lauda máxima. Eu terminei o meu curso em 1963.
ORQUESTRA SINFÔNICA BRASILEIRA Retornei ao Brasil e continuei trabalhando com o Madrigal Renascentista, mas logo fui chamado como maestro assistente da Orquestra Sinfônica Brasileira. Na época, o titular era o maestro Eleazer de Carvalho. E comecei a desenvolver o prolongamento da minha atividade através da Orquestra Sinfônica. Foi um novo universo, claro que não tem nada a ver com coro, mas parte de um mesmo princípio, emana de um mesmo impulso que é o fraseado, que é a respiração, que é a dicção, que é a articulação. Enfim, mesmo tocando um instrumento, você tenta sempre reproduzir a voz humana. A voz está presente como o Id freudiano, como o ego, a voz é o elemento que te norteia.
Quando comecei a fazer regência sinfônica, eu comecei a aprender uma nova linguagem, um novo gestual, porque enquanto com o coro você desenha os contornos melódicos, com a orquestra você aprende a ser rígido, especialmente com a mão direita. Como se trata de um conjunto com no mínimo 90 músicos, todos eles têm que ter uma referência gestual, e o gestual da orquestra é diferente do coro. No coro, você pode brincar, pode desenhar a linha melódica. Na orquestra você tem que ser inflexível com a mão direita e desenhar com a mão esquerda. Eu também ensino isso aos meus alunos: “Vocês estabeleçam um critério de absoluta simetria com a mão direita, mas deixem que o coração norteie a mão esquerda”. Isso é uma prática que me ajudou muito, daí se vê que o coro exerceu um fator preponderante na minha formação como regente sinfônico.
Eu fui alçado à posição de diretor musical da Orquestra Sinfônica Brasileira, em 1969, e fiquei durante 26 anos. Foi um período imenso que passei trabalhando com a Sinfônica, foi também um período em que eu alicercei a minha vocação como regente sinfônico e foi aí, concomitantemente, que me chamaram para reger na Europa, na qualidade de diretor musical.
VIENA E VENEZA Fui para Viena, nada mais do que Viena, no ano de 1988, e lá fiquei nove anos. Na Europa as coisas são alavancadas por um processo de exposição. Quando você se expõe em Viena, tem alguma pessoa que te vê regendo, na época foi o diretor musical do La Fenice de Veneza. Ele me viu regendo na Viena Staatsoper, na ópera estadual, e me convidou imediatamente para assumir o La Fenice em Veneza.
Fui para Veneza em 1996 e foi uma vivência incrível, porque o teatro pegou fogo – foi o famoso teatro que se incendiou, uma jóia do século XVIII, houve um curto-circuito e pegou fogo. Nós estávamos em Varsóvia dando concertos quando vimos a notícia pela televisão. Mas foi um aprendizado, porque no retorno da nossa turnê à Polônia nós fomos obrigados a continuar com a atividade musical do teatro. Armou-se então um grande tendoni, que para nós é um circo sofisticado com camarins, com ar-condicionado e, principalmente, com aquecimento, porque lá é fundamental. Nós fazíamos, numa concha interna montada no interior do circo. Nós fizemos uma temporada que durou sete anos, e ali eu pude observar que é inquebrantável a disposição do homem em relação à música e à arte, é uma forma de auto-superação, porque realiza mesmo em condições adversas. Eu me lembrei das ruínas da Segunda Guerra mundial, onde as pessoas faziam músicas em cima de escombros. Essa experiência infelizmente não vivemos aqui no Brasil, mas tê-la vivido lá fora aumentou e enriqueceu a minha carga, não só humana, mas com ela também enrijeceu a minha determinação em continuar a trabalhar pela música, mesmo em condições adversas.
CULTURA BRASILEIRA Nós nos defrontamos aqui no Brasil, especialmente naquilo que se refere às sinfônicas, com um problema que faz parte da própria forma de ser brasileira, eu diria até uma forma de ser do continente latino-americano, onde a cultura, especialmente a música sinfônica, erudita ou clássica, como quiserem, é determinada, em geral, por um orçamento baixíssimo. As poucas orquestras que existem aqui no Brasil, confrontadas com as 1200 americanas, são absolutamente ridículas, mesmo que algumas sejam boas. Mas não é esse o problema, o problema é que a qualidade se instaura a partir da quantidade, é uma lei que norteia a atividade dos homens; para haver qualidade é necessário quantidade. E aqui, as poucas orquestras sinfônicas que existem – hoje nós temos doze – num país imenso como o nosso, de dimensões continentais, doze orquestras não são nada. Elas são pavimentadas sobre uma estrutura jurídica que as atrela ao Estado ou ao poder político. Atreladas a essa estrutura, elas obedecem a um arco político também que varia de quatro em quatro anos. Então, por exemplo, uma orquestra de um teatro cujo governador ou prefeito goste de música, ela vai ser beneficiada, mas depois entra um outro eleito que não gosta de música, e aí? Aí a atividade musical passa a ser secundária. Eu acho que esse é o grande estigma que orienta as orquestras brasileiras, e o fato delas não terem uma estrutura jurídica que permita sair desse círculo perverso que é o da descontinuidade.
As orquestras e os músicos têm que ter uma relação tranqüila de saberem que durante um tempo determinado eles vão ter a paz de espírito para poder exercer condignamente a sua profissão. Além disso, os salários são baixos. A única orquestra que hoje está pagando muito bem é a OSESP - Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. E nós estamos caminhando, porque com a Orquestra Petrobras Sinfônica no mesmo percurso, partindo do conceito que só estruturando bem a base salarial dos músicos é que nós vamos permitir a estabilidade e um rendimento máximo. Eu noto que no meio musical brasileiro existem os verdadeiros guetos que se instauram a partir de diversas realidades. Uma realidade é a do norte e nordeste, e outra realidade é no sul e centro-sul. Não há um aspecto unitário como em alguns outros países em que a cultura é permeada por todos os setores, então, o pessoal do teatro se comunica com a música, com o pessoal da arquitetura, das artes. Enfim, estão todos ligados e até trabalham juntos. Aqui, como eu disse, são guetos diferentes e cada um trabalha por si, esse é o grande entrave que impede um desenvolvimento ainda maior da cultura brasileira em todos os níveis.
O VALOR DA MÚSICA
Eu agora estou na França, regendo a Orquestra Nacional do Vale do Loire, baseada na cidade de Nantes. Essa orquestra tem 130 elementos e o processo que eles exercem para atrair a juventude são concertos que começam para os jovens mesmo. Desde a mais tenra idade o jovem é exposto à música. O que nos falta aqui é um problema de exposição, o maior absurdo que se fez em relação à música brasileira foi terem desativado o plano idealizado por Villa-Lobos, o Canto Orfeônico.
Eu mesmo e toda uma geração de músicos fomos formados dentro dos moldes do canto orfeônico, ele era matéria de currículo escolar, então, todos nós éramos obrigados a cantar. O coro já é um prenúncio de uma atividade coletiva e integrada, onde há uma disciplina, onde há vozes que se justapõem. Está implícita na forma do coro um sentido de organização social. Não se deram conta da importância do coro. Na década de 1970, o Ministério da Educação, em prol das matérias que eles consideravam nobres, extirparam do currículo escolar uma das coisas mais lindas que já foram implementadas, o Canto Orfeônico. O Canto Orfeônico, em si mesmo, era uma estrutura que conseguia motivar e galvanizar toda uma geração de músicos, de futuros músicos. Era uma estrutura que foi destruída. Agora, já que eu não sei qual poderá ser o ministro que volte a recompor a antiga situação, cabe aos organismos culturais, especialmente às poucas orquestras sinfônicas, realizarem planos de grande alcance ao nível popular, como aqui no Rio, por exemplo.
PROJETO AQUARIUS Com a Sinfônica Brasileira, eu implementei junto com Roberto Marinho – a idéia foi evidentemente do Dr. Roberto – o Péricles de Barros e o pianista Jacques Klein, fomos apenas a moldura que deu estrutura ao Projeto Aquarius. O verdadeiro sentido a que ele se propunha, isto é, galgar aquelas escadas por vezes íngremes que afastavam o povo da chamada música clássica ou de concerto. Então, o Projeto Aquarius também foi um elemento motivador e foi essencial nesse processo de aproximação. Eu quero crer que, agora, com a Petrobras e as organizações Globo esse projeto ganhe a sua antiga dimensão e possa vir a se constituir em um elemento referencial para, exatamente, aproximar o grande público, que é ansioso, que é sedento de música, das orquestras sinfônicas aqui. Antigamente nós podíamos fazer consertos na Quinta da Boa Vista, que é um lugar emblemático, em frente ao Museu, um lugar lindo. Tem uma concha natural; as pessoas sentavam na concha e tinha um lago no meio, uma acústica natural, a água e a concha, mas hoje está muito difícil fazer concerto lá, pelo grau de instabilidade que se transformou a cidade do Rio de Janeiro. Hoje é considerado um local perigoso, então, nós temos feito consertos na praia de Copacabana, no Forte. O último que nós fizemos foi na praia mesmo, onde o Mick Jagger fez o concerto dele. Nós fizemos um grande Projeto Aquarius, já nessa relação Petrobras–Globo e trouxemos quase 200 mil pessoas para ouvir a Oitava Sinfonia de Mahler. Eu espero que tenha uma nova edição do Projeto Aquarius ainda este ano. É um projeto ambicioso que mobiliza técnicos, músicos e etc., e precisa de tempo. Mas a julgar pela disposição dos diretores da Petrobras e da vocação do Globo nesses grandes empreendimentos, eu acho que ele vai continuar.
PATROCÍNIO CULTURAL Eu começo a pensar em quantas organizações que se dedicam à prospecção de petróleo no mundo que hoje financiam as artes. O primeiro pensamento que me ocorre é a Fundação Calouste Gulbenkian, em Portugal, que construiu um belíssimo teatro, fez uma ótima orquestra, que hoje é referência. A Orquestra da Gulbenkian é conhecida em todo o mundo. Há também a relação da Exxon Corporation, nos EUA, com a televisão e com todas as manifestações veiculadas pela televisão. E tem ainda a British Petroleum, que financia a Orquestra Sinfônica de Londres. São os projetos ligados à música, me ocorre sempre. Por que as organizações de petróleo? Me vem a mente logo uma imagem poética: das profundezas da terra emanam aqueles incentivos que se destinam ao espírito do homem, que alça vôo. O espírito alça vôo e, sem a menor dúvida, o que está se fazendo aqui no Brasil, a Petrobras como maior financiadora e produtora cultural desse país em relação a sua orquestra, é uma coisa belíssima, que só tende a se cristalizar e a se perpetuar no tempo.
ORQUESTRA PETROBRAS SINFÔNICA Aqui, nós estamos já num outro campo, porque a Orquestra Petrobras Sinfônica, que antigamente se chamava Orquestra Pró–Música, tem vinte anos, portanto ela não obedeceu a nenhum arco político da perversidade dos quarto anos. Ela se manteve durante vinte anos incólume, graças à visão dos presidentes e diretores da Petrobras, que mesmo mudando o governo, jamais perderam de vista o enfoque de que uma orquestra é o símbolo da empresa. E para uma orquestra representar uma empresa, ela deve ser revestida da mesma qualidade que a empresa ostenta. É nesse sentido que nós estamos trabalhando. Eu estou muito orgulhoso de estar nesse projeto, porque eu acredito que ele venha a se constituir numa forma inteiramente nova de junção de recursos provenientes da prospecção com o espírito humano. Eu estou à frente da Orquestra desde 2004. Nós mudamos o nome há um ano, até mesmo como uma forma de simbiose, porque não tinha muito sentido ser Orquestra Pró-Música. A Orquestra é Petrobras, ela tem a cara da Petrobras, ela aspira à mesma qualidade e à mesma eficiência.
ESCOLHA DO REPERTÓRIO Quando eu trabalhava na Sinfônica Brasileira, naqueles 26 anos, eu estava condicionado a um determinado repertório, porque era um público assinante com um determinado gosto musical, e eu não podia avançar muito. Eu tinha que parar em alguns compositores, que eram do agrado daquele público assinante, que mantinha a orquestra basicamente.
Com a minha ida para a Orquestra Petrobras Sinfônica, esse conceito mudou radicalmente. Então, eu comecei a aplicar dentro do nosso repertório obras mais ousadas, porque eu não tinha coragem de fazer enquanto regente da Orquestra Sinfônica Brasileira. Por exemplo, a abordagem de todo o ciclo Mahler, que foi um compositor emblemático do século XX. Ele morreu em 1911 deixando um legado enorme de 10 sinfonias. São poucas orquestras no mundo hoje que se propõem a divulgá-las e nós estamos fazendo isso esse ano. Eu faria a sexta e a nona, e no ano que vem nós terminamos o ciclo. Mas, além disso, a nossa maior vocação é com a música brasileira mesmo, porque a empresa é brasileira.
DVD “FLORESTA AMAZÔNICA” Nós acabamos de gravar um DVD sobre a “Floresta Amazônica” do Villa-Lobos. Foi a primeira vez que uma obra absolutamente genial como a “Floresta Amazônica” foi gravada por uma orquestra brasileira. É uma suíte fantástica, inclusive, até premonitória, porque num determinado momento o Villa-Lobos descreve o incêndio da floresta. Foi uma obra que ele escreveu no fim da sua vida, ele morreu em 1959, quando a floresta ainda existia completa, sem desmatamento. Como uma premonição, ele descreve o incêndio dessa floresta – falando nisso, eu fico completamente arrepiado porque é um dos trechos mais comoventes da obra. Então, nós resolvemos fazer um DVD. Como não existia nada, existiam duas gravações: uma feita por uma orquestra da Eslovênia, de péssima qualidade, e uma outra gravada pelo próprio Villa-Lobos, com a Bidu Sayão, na década de 50, um pouco antes da sua morte. Mas agora uma orquestra brasileira, com espírito brasileiro fez a gravação, incorporando imagens – porque um DVD te propicia isso, aliar música à imagem. Nós resolvemos estruturar esse DVD com a música e com aquelas imagens que provêm da floresta, que são riquíssimas, para embelezar o disco, para dar até uma nova dinâmica ao disco. Ele vai sair este ano, espero que até fins de 2007 todo mundo tenha a oportunidade de ter o seu disco. Vai ser um ponto referencial, sem a menor dúvida.
CICLOS DE COMPOSITORES O ciclo propõe uma lógica, uma arquitetura, ele não privilegia só algumas peças, aquelas que são determinadas pelas companhias fonográficas, como a Quinta Sinfonia de Beethoven, a Nona, que todo mundo conhece, a Sétima, que quase todo mundo conhece, a Terceira, a Heróica, que alguns conhecem. Mas existem algumas que estão no ouvido e totalmente esquecidas, como a Primeira Sinfonia, a Segunda é raramente tocada, a Quarta, a Oitava. A idéia do ciclo é propiciar ao público a oportunidade de entrar em contato com o compositor na sua integralidade.
Quando nós fizemos as Bachianas Brasileiras aqui no ano passado, junto com todas as sinfonias de Tchaikovsky – todas as Bachianas Brasileiras –, num ciclo onde os dois compositores se completavam, a fim de estabelecer os parâmetros, as afinidades entre eles, porque os dois se utilizaram do elemento folclórico em suas composições: o Tchaikovsky, o folclore russo, sempre presente, e Villa-Lobos, mesmo se remontando a Bach, se apoiava no folclore brasileiro. Essa justaposição dos dois compositores foi absolutamente fantástica, porque revelou ao público – aí é uma coisa subliminar – as afinidades entre os dois compositores, mesmo tendo vivido em épocas completamente diferentes, mesmo sendo um russo e outro brasileiro. Mas eles tinham afinidades e, exatamente, o folclore uniu esses dois compositores.
A idéia do ciclo é exatamente revelar aquilo que ninguém tem coragem de revelar, nem as próprias gravadoras, porque são elas que impõem o chamado “gosto popular”. Você já ouviu a Terceira Sinfonia de Tchaikovsky? Nunca. Você ouve a quarta, a quinta e a sexta, que são as sinfonias decantadas pelas companhias, pelo público e pelas orquestras sinfônicas. A Terceira, nem os próprios músicos que tocavam comigo conheciam. O ciclo tem essa grande vantagem, ele expõe de forma unitária, de forma compacta o que o compositor quis exprimir. Então para quem assiste ao ciclo, há um desenvolvimento dialético entre uma obra e outra, o que permite você compreender melhor.
COTIDIANO DE TRABALHO Nós temos um regime de trabalho que este ano, com a implementação de novos conceitos impostos pela própria natureza da nossa profissão, vai exigir um período duplo de trabalho. Os músicos serão exclusivos. Essa exclusividade nos permite um trabalho mais aprofundado, mais orgânico, em dois períodos, porque até então o músico trabalhava três a quatro horas por dia e se deslocava entre uma orquestra e outra. Isso é péssimo para a saúde do músico, em primeiro lugar, e é péssimo para o seu rendimento artístico. Então, este ano, nós estamos implementando junto com a diretoria da Petrobras essa nova prática, que promete restabelecer à orquestra a sua dignidade e a sua capacidade de trabalho.
Você não pode exigir trabalho se não estabelecer uma recompensa. O músico, não por culpa dele, se desmembrava em várias orquestras para atingir um nível salarial condigno. Ele dava aulas, por exemplo, e trabalhava em mais duas orquestras. Chega no fim do dia estourado, cansado. É o caminho do infarto. Eu trabalho em três orquestras: Porto Alegre, Nantes e a da Petrobras. Mas no caso de um regente é bem diferente, porque eu trabalho em blocos. Eu tenho meu bloco europeu e meu bloco brasileiro. Aqui no Brasil trabalho no Rio de Janeiro e em Porto Alegre, e na Europa trabalho com a Orquestra Nacional do Vale do Loire, em Nantes e outras orquestras onde sou convidado. Agora estou indo para Madri, onde vou reger a Orquestra Nacional da Espanha. No caso do maestro, o fundamental é ter uma equipe. Tendo uma equipe azeitada, que funcione de acordo com seus critérios e com a sua visão de como deve funcionar uma orquestra, então, vai tudo bem.
A relação maestro com a estrutura administrativa é da maior importância, porque uma pode emperrar a outra. Todo o trabalho de uma orquestra se vê comprometido quando o diretor administrativo não se afina com o diretor musical. Graças a Deus, nas três orquestras que estou agora, a estrutura é absolutamente perfeita. Às vezes, eu fico me perguntando: “Cheguei na minha idade e, de repente, eu me vejo confrontado com três orquestras, por que isso não aconteceu há trinta anos atrás quando eu era muito mais forte e tinha muito mais energia?”. Acontece algo misterioso com os maestros. É como o vinho: há certas safras, pode ser até de 2002, de 2003, de 2000, que eu não tomo imediatamente, eu deixo na adega até o vinho adquirir consistência, o perfume que dele emana, e só abro quando tenho certeza de que aquela safra corresponde à maturidade do vinho. Como eu vivo numa cidade perto de Bordeaux, essa analogia vem muito a propósito. Com um maestro acontece o mesmo, quer dizer, quanto mais velho você fica mais é chamado para exercer atividades. Isso coincide com a faixa etária, não é só o meu caso, é o caso de quase todos os maestros. Exatamente depois de adquirir a experiência, a maturidade, a profundidade, você é mais requisitado. Muitas vezes o corpo reclama, no meu caso o meu corpo acompanha, mas em alguns casos é até fatal. Eu conheço muitos casos de maestros que simplesmente morreram dirigindo orquestras, durante os ensaios. Eu acho uma morte gloriosa; estar ensaiando e, de repente, ter um ataque e morrer. É melhor que morrer na cama.
A LINGUAGEM DA MÚSICA A música, por ser uma linguagem abstrata, não é palpável, como um objeto que você apalpa, você determina qual a sua forma, qual a sua matéria. A música não, ela entra e se propaga pela sua sensibilidade, pelo seu sistema nervoso e, além disso, ela tem um fator de maior impacto sobre um jovem que é o ritmo. O próprio ritmo está diretamente relacionado à pulsação do coração. Porque quando um jovem ouve uma percussão, não é um barulho estranho, ele só é confrontado com um ambiente estranho quando se põe diante de uma pintura onde ele é obrigado a refletir sobre aquilo. No caso da música não, ela é telúrica, ela provém de um instinto quase animal. Ela também é lúdica. E por ser lúdica, provavelmente, é porque se colocam aqueles guizos na cama dos bebês, eles ficam agitando aquelas sonoridades de guizos e de sininhos. Então, existe uma ligação total e integral entre o ser humano e a música, porque ela é orgânica, você pode ver isso através dos índios, das tribos primitivas. E pelo fato de assim ser é que a ela se deveria dar um valor ainda maior, Ao invés de extirpá-la do currículo escolar, ela devia ser incentivada.
MÚSICA NA AMÉRICA LATINA Está se fazendo um movimento também muito importante de resgate da música em vários países. O que está mais próximo de nós é a Venezuela, apesar do Hugo Chávez. Lá, durante trinta anos, se propuseram a estabelecer um grande movimento de aproximação da música com os jovens da favela. Eu vi um tape e quase chorei, fiquei emocionado. Ver um movimento dessa magnitude ser exercido e montado por jovens sem recursos e como tocava a orquestra de lá Semana que vem eu estou indo para lá reger a famosa Orquestra Juvenil Simón Bolívar, só com o Festival Villa-Lobos, e onde vou tocar a “Floresta Amazônica”, que é parte desse extrato geográfico cultural. Eu tenho certeza que vai ser uma grande emoção ver aqueles garotinhos de cinco, seis, sete, oito, nove, dez anos tocando violino, e muito bem.
Esse era um trabalho que deveria ser começado aqui no Brasil também, eu vi o tape e fiquei impressionado porque a estrutura geográfica daquelas favelas lembra muito o Rio de Janeiro, lembra muito o norte e o nordeste brasileiro. Eles são venezuelanos, mas poderiam ser brasileiros. Acho que faltou continuidade com o que Villa-Lobos, como uma espécie de premonição, já implementava na década de 1940.
AÇÕES SOCIAIS Nós temos uma orquestra mirim, uma orquestra de jovens. Nós nos preocupamos no sentido social, só que isso deveria ser feito em escala nacional, criando em cada cidade o que na Venezuela eles chamam de núcleos. Isso, evidentemente, é um projeto de longo alcance e que exige muita determinação. Essa orquestra mirim é composta por jovens pobres e nós temos vários projetos assim. A própria Petrobras tem vários projetos sociais que seriam ainda mais enriquecidos se os jovens fossem expostos ao fenômeno musical. Haveria uma força maior nos projetos sociais. Mas já existente, em várias favelas do Rio de Janeiro, uma implementação do estudo da música, da prática instrumental. Eu acho que nós deveríamos fazer muito mais, esse é o único caminho possível dentro da realidade latino-americana.O que é uma orquestra? Uma orquestra é um extrato social, é um mini-organismo, é um microcosmo que reflete tudo, mas é bem organizado. Nele existem várias tensões, mas elas sempre são derivadas em função de uma realização musical sólida, ou seja, orquestra é um embrião de uma atividade social bem organizada e bem estruturada.
ORQUESTRA PETROBRAS SINFÔNICA /MÚSICOS No momento em que você se propõe a fazer um trabalho de qualidade, é obrigado a buscar jovens talentos. A nossa preferência é que eles sejam brasileiros. Nós esgotamos todo o mercado brasileiro à procura desses talentos, e existem muitos. Não nos iludamos com essas orquestras que aparecem com um manancial de instrumentistas que vem do leste europeu. Nada contra, mas eu acho que a nossa prioridade é estimular o jovem talento nacional e integrá-lo à prática da música sinfônica, porque então estaremos fazendo jus ao título de uma orquestra brasileira; caso contrário, é um aglomerado de músicos que vêm de várias partes do mundo sem nenhuma identidade cultural com o país. Existem músicos ainda da época do maestro Armando Prazeres, um grande amigo meu que há vinte anos atrás fundou a Orquestra com o então presidente da Petrobras. Ele foi um visionário, ele foi um homem que conseguiu plasmar dentro de um organismo sinfônico a estrutura de uma grande empresa. Foi através dele que tudo começou. Nós estamos apenas colhendo os frutos dessa visão espetacular que ele desenvolveu. O grande mérito da empresa foi de ter acreditado sempre neste trabalho, quer dizer, mudava presidente, saía diretor, e sempre os presidentes e as diretorias aceitavam a realidade de que a orquestra era a projeção natural da empresa. É um elemento de ação até política da empresa, porque ela resgatava a imagem da empresa inserida num contexto humano e não apenas da prospecção, não apenas da energia, mas dimensionava a empresa em moldes humanos.
Isso nos leva também a uma responsabilidade: não nos interessa encher a orquestra de músicos estrangeiros, o que nós queremos é buscar o talento, mesmo que não seja algo parecido com um músico que provenha de grandes centros culturais. A nossa obrigação é tratá-lo como se fosse uma flor, como dizia Saint-Exupéry, regá-lo, criar o terreno para que ele cresça e se desenvolva. Essa é uma das missões básicas que tem a Orquestra Petrobras Sinfônica. Os músicos chegam por concursos. Agora, por exemplo, esse ano, nós iremos fazer um grande concurso nacional para preenchimento de vagas. Quando chegam, são submetidos a um exame, depois eles freqüentam todos os ensaios e passam por um período experimental, até que nós decidamos se ele fica ou sai.
AUTOGESTÃO A Orquestra Petrobras Sinfônica não é determinada só pela vontade de uma pessoa, nós temos uma comissão artística, que me assessora, formada pelos melhores músicos da orquestra, eleitos pela orquestra. Esse é o elemento diferencial da orquestra, ela sobrevive através de um sistema de autogestão. É a orquestra que escolhe os seus maestros, é a orquestra que discute comigo os programas, é a comissão que elabora planos de concertos etc. Enfim, é uma estrutura democrática que, para mim, até então, era desconhecida, porque em todas as orquestras, em todo mundo, existe uma linha vertical da direção administrativa e do diretor musical que é imposta. Isso em todos os lugares do mundo.
A nossa orquestra é uma das poucas no mundo que tem esse princípio da autogestão, eu só vi em Viena, na Orquestra Filarmônica, que também obedece a esse mesmo critério. Qual a grande vantagem da autogestão? É que para sobreviver, você tem que estimular a qualidade, e só através da qualidade é que você se impõe, não há outro caminho, seja em Viena ou no Rio de Janeiro. E é isso que nós tentamos aprimorar, transmitir aos jovens músicos: que eles têm que trabalhar na sua qualidade, porque é através dela que nós vamos nos impor como a maior orquestra brasileira, talvez a maior da América Latina. Mas esse conceito de maior ou menor, isso não me importa, importa sim exercer com dignidade o critério de qualidade, impô-lo para que as pessoas não se iludam. O povo não é burro, o povo ainda que não tenha tido nenhum contato com música, é capaz de saber se uma orquestra é desafinada ou não. O povo sabe, intui, reconhece a qualidade e é esse o caminho que nós estamos buscando.
MEMÓRIA PETROBRAS Acho fundamental, como qualquer pessoa consciente do que é a empresa. E, especialmente, trabalhando nela como eu há bem pouco tempo, espero que essa união possa se fortificar ainda mais e dar seus frutos.Recolher