IDENTIFICAÇÃO Eu me chamo Eduardo da Luz Moreira, nome artístico Eduardo Moreira. Sou de 30 de março de 1961 e nasci no Rio de Janeiro. FORMAÇÃO Minha formação vem de vários cursos. Eu sou um dos fundadores do Grupo Galpão, que completa esse ano 25 anos. O Galpão ...Continuar leitura
IDENTIFICAÇÃO Eu me chamo Eduardo da Luz Moreira, nome artístico Eduardo Moreira. Sou de 30 de março de 1961 e nasci no Rio de Janeiro.
FORMAÇÃO Minha formação vem de vários cursos. Eu sou um dos fundadores do Grupo Galpão, que completa esse ano 25 anos. O Galpão foi fundado em 1982. Antes disso, a minha formação veio muito do teatro em universidade e movimento estudantil. Eu fiz faculdade de filosofia e comecei a fazer teatro com o movimento estudantil, dentro da universidade. A partir daí, comecei a fazer teatro profissional e semi-profissional no final da década de 70, em Belo Horizonte. Meu pai foi trabalhar em Belo Horizonte em 1974. Fui com 13 anos de idade. Passei minha infância no Rio. Segundo grau, estudei em Belo Horizonte. Comecei minha carreira artística lá. Primeiro dentro da Universidade, depois através de cursos. Comecei no teatro profissional até fundar o Galpão. A minha história se confunde muito com a história do próprio Galpão. Eu trabalhava muito com teatro. Tinha grupos de teatro, na época, muito ligado à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, em Belo Horizonte, na época do regime militar – era um centro de resistência muito forte. Era um momento em que a sociedade começava a poder se expressar aos poucos. Então, a minha formação teatral e artística vem muito daí.
GALPÃO / FORMAÇÃO O Galpão foi assim: em 1982, vieram dois diretores de uma companhia alemã, que existe até hoje chamada Teatro Livre de Munique. Eles vieram a Belo Horizonte a convite do Goethe-Institut. Eles deram uma oficina de
duas semanas no Teatro Marília. Isso foi em março. Em julho, eles voltaram para uma oficina de um mês, em Diamantina – uma cidade histórica do interior de Minas –, no Festival de Inverno da Universidade Federal de Minas Gerais. Fizemos uma oficina de rua durante um mês com esses dois diretores. Nos meses de agosto, setembro e outubro, nós montamos o espetáculo “A Alma Boa de Setsuan”, do [Bertold] Brecht. Era um grupo de nove atores. Desse grupo, cinco foram embora. O espetáculo terminou, teve uma carreira muito curta. Nós sentamos e pensamos: “Como vamos dar continuidade a esse trabalho?”. Foi um trabalho muito intenso e marcante. Foi uma espécie de formação artística para todos nós, porque éramos muito novos, estávamos começando. Como foi um trabalho muito intenso, acho que ali criamos uma estrutura comum de grupo. Na época, eram cinco atores: eu, Antonio Edson, Fernando Linares, Wanda Fernandes e Teuda Bara. Inclusive, eu já tinha montado espetáculos com eles, com atores de elenco,que não eram de grupos fixos. Nós decidimos fundar um grupo que nos desse condições de dar seqüência a esse trabalho começado com esses dois diretores alemães. Fundamos o Galpão, que tem essa trajetória de 25 anos.
Essa trajetória é bastante longa, aconteceu muita coisa.
TEATRO DE RUA Essa oficina nos deu, além de um suporte técnico no trabalho de voz, um suporte técnico de corpo. Era um trabalho físico muito intenso, com muitas técnicas ligadas ao circo. Acho que isso abriu os nossos olhos para do teatro de rua. Esse é um grupo que existe até hoje, eles trabalham no mundo inteiro, já fizeram experiência na Rússia, em Israel e na Venezuela. São alemães que viajam muito pelo mundo todo e trabalham com teatro de rua. Aquele momento foi uma abertura de opção que não tínhamos. Fazíamos teatro normal, mas abriu possibilidade real, financeira e de sustentabilidade para o grupo. Na verdade, o teatro de rua foi, nos primeiros anos do Galpão, o sustentáculo. Era muito mais fácil, se você pensar Belo Horizonte no final da década de 70. Era uma cidade com pouquíssimos teatros disputadíssimos pela classe artística. Nós éramos artistas muito pouco conhecidos e teríamos poucas chances de ocupar esses teatros naquele momento. Foi uma decisão nossa, acho que muito aberta por essa possibilidade que esses alemães nos deram, de fazer teatro de rua. Quer dizer, se não havia casas de espetáculos, onde se poderia entrar, vamos fazer teatro na rua Eu acho que é uma opção importante. O que causa um pouco de estranheza é o Brasil ter uma população muito carente de cultura e arte, e ter muitas dificuldades de acesso ao teatro, às casas de espetáculo, ao cinema, à arte e à cultura, de uma maneira geral. Acho que tem um clima muito favorável, exceto pela questão das chuvas, porque nós temos uma época de chuvas bem marcada. Mas é um país que tem um clima excelente, não temos neve, inverno rigoroso. Por exemplo, na Europa, uma boa parte do ano fica completamente indisponível de ter eventos externos. No nosso caso foi uma decisão política mesmo e de sobrevivência. Nesse sentido, quando decidimos ir para a rua, era uma decisão radical de fazer teatro de qualquer maneira, mesmo que as condições fossem difíceis. Foi uma decisão acertada porque, na verdade, o que acontece na história do Galpão é que começamos a fazer espetáculos junto à sociedade civil, que estava começando a se organizar. Eram associações de bairro, prefeituras, sindicatos, empresas e festas de funcionários que compravam espetáculos para a gente fazer. Isso foi uma espécie de bola de neve, porque o nosso trabalho começou a ser conhecido e reconhecido. Começamos a trabalhar em Belo Horizonte e começamos a expandir o nosso raio de ação.
PRIMEIRA PEÇA A primeira peça chamava-se “E a noiva não quer casar”, era um esquete de circo com números bem circenses mesmo. Um grupo de pretendentes disputando uma noiva, era uma peça bem singela, na rua, mas que funcionava muito bem. Apresentamos em Belo Horizonte, em várias praças da periferia, no centro e em algumas cidades do interior também. Mas foi uma peça que ainda tinha um raio de ação restrito. Progressivamente, o grupo começou a ser reconhecido e começamos a ampliar o raio de ação geográfica no estado de Minas e no Brasil, até começar a viajar muito pelo exterior também.
DITADURA MILITAR Foi muito impressionante. Acho que já era um momento em que a ditadura dava provas de certo cansaço. Ela já não conseguia se impor totalmente à sociedade e a sociedade já demonstrava isso. Em 1982, lembro que a gente ia, por exemplo, a Praça Sete, no centro de Belo Horizonte, o marco zero da cidade, e nós reuníamos de 700 a 1000 pessoas. Era muito inusitado, ficávamos até com um pouco de medo, porque tinha uma pressão da polícia. Claro que um regime de exceção nunca gosta de aglomeração de pessoas ou reunião. Acho que o teatro tem esse poder ancestral que é, em torno de uma roda, reunir as pessoas para que elas se divirtam e acabem pensando também, mas fazendo essencialmente um encontro de uma coletividade que se reúne por algo agradável, que é ver um espetáculo de teatro. Isso é muito pulsante e mobilizador. E isso, definitivamente, não interessava. Lembro de que no começo o Galpão foi um grupo que participou muito da Campanha das Diretas, quando a população foi para a rua pedir as eleições diretas. A população foi traída pelos políticos que aprovaram o negócio do Colégio Eleitoral, a eleição do Tancredo... Mas foi um momento de mobilização da sociedade brasileira muito grande, que só veríamos no impeachment do Collor. E o Galpão participou ativamente.
Esse período, de 1982 a 1985, nós fomos presos várias vezes encenando ou depois da encenação. Normalmente, depois da encenação. Eles não chegavam a parar o espetáculo. Eles gostavam. Deixavam terminar, para depois... Mas tinha isso, o poder se sentia um pouco ameaçado. Acho que foi um momento muito interessante da sociedade, porque o que aconteceu a partir de 1968, principalmente com o AI5, foi que o teatro se tornou o centro da organização da sociedade brasileira, pelo menos da cultura brasileira. Era a classe mais forte, mais mobilizada e que discutia a sociedade. Eram movimentos muito fortes, o Oficina, o Arena, o CPC e essa turma toda que trazia uma discussão sobre a sociedade brasileira muito intensa e que foi dizimada e massacrada pela censura. Desmobilizada pelo período duro da ditadura.
No nosso caso, foram prisões formais, um fichamento. Claro que teve a morte do Herzog e daquele metalúrgico em São Paulo, mas foram quase acidentes dos órgãos de repressão. A gente já começava a perder um pouco do medo. Claro que tínhamos um pouco de medo, havia os desaparecimentos e a tortura, mas no nosso caso, graças a deus, foram prisões formais.
RELAÇÃO COM A SOCIEDADE O final da década de 1970 e o início da década de 1980 é o momento em que a sociedade e a cultura brasileira começam a se reorganizar. Acho que o Galpão faz parte desse momento. A opção foi pela rua e por um teatro popular; um teatro que discutia muito a sociedade brasileira e colocava em prática um tipo de estruturação, de relação com o público muito democrática, muito da rua, onde as pessoas se manifestam muito. É curioso, por exemplo, uma cidade como Belo Horizonte, que tem cento e poucos anos, ter o Galpão com quase um quarto da idade da cidade. O Galpão tem uma trajetória junto com a cidade, uma trajetória que descobre ou re-valoriza vários espaços públicos da cidade: a Praça Sete, a Praça da Liberdade, a Praça do Papa, a Praça JK. O mineiro já um povo muito caseiro e não se expressa muito publicamente, é um povo da casa, que te recebe muito em casa. Eu acho que a trajetória do Galpão, o teatro de rua, ajudou a criar um vínculo muito forte com a população da cidade com esses logradouros públicos.
PRIMEIROS ANOS O Galpão tem um período heróico: de 1982 a 1986, mais ou menos. É o momento em que o Grupo sobrevive. Ele tem uns três ou quatro anos de trajetória, montando espetáculos e, pouco a pouco, consegue ir se estruturando. Em 1986, com dois espetáculos, a comédia da Esposa Muda e o Corra enquanto é tempo. Eram espetáculos em que queríamos falar muito da realidade brasileira. Principalmente, o Corra enquanto é tempo, um espetáculo muito interessante, dirigido por um diretor de Belo Horizonte, o Eid Ribeiro. O espetáculo era sobre um grupo de crentes que iam pregar na rua, e eles cantavam músicas de Roberto Carlos. Era um espetáculo muito engraçado, tinha um falso cego, era uma família muito engraçada. Num determinado ponto, chegava um travesti. O conflito da peça se estabelecia entre o travesti e o grupo de crentes pelo ponto da rua. Era um espetáculo muito interessante, porque muitas vezes as pessoas achavam que não era teatro, era realidade. E, no final, de certa maneira o travesti desnudava a farsa daquela família de crentes que tinha um filho cego, um falso cego. É curioso, porque recentemente fizemos uma cena para um filme trazendo um pouco da memória desse espetáculo e houve uma reação muito agressiva na rua. Curioso isso, porque o Brasil foi tomado por essas religiões adventistas e protestantes de uma maneira muito forte e eles se tornaram cada vez mais agressivos nesse sentido. Na época em que fazíamos, claro que às vezes causava reações de descontentamento, mas era um espetáculo que as pessoas aceitavam. Chegamos, inclusive, a ser convidados para ir a uma igreja de crentes fazer um show ou uma pregação. Hoje existe algo mais agressivo por parte dessas religiões, que se tornaram muito contundentes na maneira de abordar as pessoas. Parece que estão tomando o poder mesmo, de uma maneira muito veemente, forte e autoritária. Eu sempre acho isso perigoso para a sociedade. Enfim, isso é um parêntesis. Começamos a sair de Minas, a ir para o exterior, fomos para o Festival do Peru. Esse festival era uma homenagem ao Grotowski, que é um diretor polonês, falecido na década de 1990. O trabalho desses alemães era muito influenciado pela estética do teatro do Brecht e pela preparação física do Grotowski. Conhecemos os grupos vinculados ao Grotowski através do Eugênio Barba. Esse foi o momento em que eles vieram para o Brasil também. Vários grupos italianos e grupos de onde o Barba trabalha, na Noruega. Fomos para Itália, França e fez uma longa temporada de três meses pela Europa.
COMPRA DA SEDE
Voltamos para o Brasil e, na época, o dólar estava valendo muito e conseguimos comprar um espaço próprio, uma sede, um galpão, com o dinheiro das apresentações na Europa. Isso deu outro estado para o nosso trabalho. Acho que um espaço próprio é extremamente importante para os grupos, onde eles possam desenvolver sua linguagem e proposta de trabalho. Até 1989 o Galpão não tinha. O Galpão trabalhou sete anos sem espaço próprio, ensaiando em diretórios acadêmicos da Arquitetura e da Escola de Filosofia, espaços emprestados. Isso tudo dava uma fragilidade na estrutura do trabalho, que ficava difícil. Normalmente, montávamos uma peça e não tinha o lugar para guardar o cenário, porque era tudo emprestado. Figurino chegava para a estréia.
A partir do momento em que conseguimos comprar um espaço, o primeiro trabalho que montamos foi um espetáculo dirigido pelo Eid Ribeiro, o Álbum de Família. A sede do Galpão, no bairro da Sagrada Família, na Rua Pitangui, 3413, é o espaço em que até hoje o Galpão monta as suas peças. Hoje o Galpão tem uma sede que é um espaço cultural , o Galpão Cine Horto, um antigo cinema transformado em teatro. Como o espaço era de 200 metros quadrados, não suportava muito público. Já fizemos apresentações ali para 70 pessoas, mas para um número maior nunca liberamos. Não tem realmente estrutura, é mais um espaço de ensaio. O Álbum de Família foi primeiro espetáculo que nós montamos lá, foram nove meses de ensaio. Desde o primeiro mês, já tínhamos uma concepção de cenário montado, para experimentar. Tudo isso deu uma outra dimensão de qualidade para o trabalho do Galpão.
RELAÇÃO ESPAÇO E MONTAGEM Montávamos espetáculos para a rua e esses espetáculos se adaptavam facilmente a teatros, quer dizer, tendo o espaço físico necessário. Já o oposto é mais difícil. Se você monta um espetáculo para teatro, para levar para rua normalmente as condições são mais precárias e difíceis. Quando se pensa um espetáculo para a rua a transposição dele para o teatro é mais fácil. É claro que muda, porque a rua tem uma relação muito intensa com a platéia, porque a platéia participa muito mais. A platéia não tem muito compromisso com aquilo e você estabelece uma relação muito mais espontânea. Ela participa, ela opina. No teatro, a própria arquitetura já impõe uma hierarquia. Um limite: quem faz e quem assiste. Normalmente, você tem um tipo de apresentação que passa a ser muito mais organizada nesse sentido. Nessa trajetória do Galpão, mesclamos muito as duas linguagens, alguns espetáculos são de rua e outros espetáculos são de palco.
JERZY GROTOWSKI Encontramos com o Grotowski, na verdade, duas vezes. Em 1988, quando fomos para o Peru. Estava o Eugenio Barba. Foi um encontro de 31 grupos do Canadá, Estados Unidos, América Latina e Europa. Eram grupos muito ligados à estética, à concepção artística do Teatro Pobre do Grotowski. Ele não foi porque estava doente na época. Mas fomos, nessa turnê pela Europa, nos apresentar em Pontedera, onde o Grotowski trabalhou até o final da vida. No centro de Pontedera, nos encontramos com ele. Foi o nosso primeiro encontro com o Grotowski. Foi muito importante. Na época, estávamos lá o Galpão do Brasil e o Yuyachkani, um grupo do Peru. O Yuyachkani é um grupo que existe até hoje em Lima, muito conhecido. Tinha outro grupo peruano, chamado Los Andes, acho que ainda existe também, e tinha um grupo chileno, que não me lembro o nome. Esses grupos foram escolhidos para fazer esse giro pela Europa, Itália e França. Em Pontedera, nós encontramos com o Grotowski.
Depois, ele veio ao Brasil, em São Paulo, dois anos antes de morrer, em 1996. Foi um encontro muito interessante. Em Pontedera foi um encontro mais festivo. Na verdade, a fizemos uma apresentação de uma música em homenagem a ele. Os quatro grupos o homenagearam de alguma maneira. Conversamos e depois fomos fazer um lanche, comemos com ele. Em São Paulo, em 1996, encontramos com o Grotowski já muito doente, com o grupo dele. Foram dois dias de encontro. No primeiro encontro, apresentamos as cenas de espetáculos para ele e para o seu grupo. No dia seguinte, ele apresentou um espetáculo com os atores dele e depois da apresentação nos reunimos numa mesa, comendo e bebendo vinho. O Grotowski era impressionante, porque ele já estava muito doente. Ele morreu, se não me engano, dois anos depois. Era um homem tão forte, tão fascinado com o teatro que, já muito doente, de repente começava a falar sobre o seu trabalho, sobre teatro e ele ia... Eu me lembro que nós nos encontramos 10 horas da noite para essa apresentação do grupo dele, uma apresentação de uns 40 minutos na Pinacoteca de São Paulo. Nós saímos de lá quatro ou cinco horas da manhã. Conversando e ele falando. A percepção dele era muita aguda, sobre trabalho que ele tinha visto. O Grotowski era mesmo uma pessoa muito apaixonada pelo teatro. Esse encontro foi muito marcante.
ROMEU E JULIETA / RECONHECIMENTO Acho que o trabalho do Galpão explode na mídia... Quer dizer, já era conhecido pelas pessoas de teatro, porque viajávamos bastante para Rio, São Paulo, Porto Alegre e Brasília. Mas o trabalho explode realmente com o Romeu e Julieta, que é direção do Gabriel Vilela. É um espetáculo que realmente estoura. No Rio teve uma apresentação muito marcante no CCBB, onde acabamos fazendo ali atrás, no espaço dos Correios. Em São Paulo também foi muito marcante, na Sé, em vários pontos de São Paulo, ali no Ipiranga. O espetáculo começou a ter uma trajetória de muito sucesso e realmente estourou. E tem uma segunda peça que estreamos aqui no Rio, no CCBB, a Rua da Amargura, também com direção do Gabriel Vilela, foi um momento de explosão muito grande do Galpão. Acho que o Galpão tem a característica, desde os primórdios, de ser um grupo de atores. Normalmente, os grupos de teatro se organizam e se consolidam a partir da figura central de um diretor. O Galpão tem essa especificidade de ser um grupo de atores sem um diretor fixo. Às vezes, tem pessoas do grupo que dirigem. Eu dirigi um espetáculo de muito sucesso do Galpão, que está em cartaz até hoje: Um Molière Imaginário. Outras pessoas também, o Chico Pelúcio dirigiu Um Trem chamado desejo. São espetáculos muito marcantes na trajetória do Galpão. Mas é um grupo de atores que convida diretores para vir fazer seus espetáculos.
DIREÇÕES E PROPOSTAS Primeiro, tem que ter uma afinidade com a pessoa que você vai convidar, tem que conhecer o trabalho. Sempre trabalhamos no sentido de que o trabalho dessa pessoa represente também um desafio para nós, enquanto atores e artistas. De lá pra cá, por exemplo, trabalhamos com o Cacá Carvalho, um ator que trabalha muito no Centro de Pondera do Grotowski. Foi um desafio muito grande trabalhar com o Cacá, uma pessoa de teatro importantíssima, fez Macunaíma com o Antunes Filho, tem esse trabalho com o centro de Pondera, grande ator realmente, um estudioso do teatro. Nós tivemos também o Paulo José, fizemos dois espetáculos com ele. O Paulo para nós é uma ligação também, um homem que começa a fazer teatro no sul, na década de 1940, e que tem toda essa formação do ator brasileiro da palavra. Isso é curioso, porque nós somos de uma geração do corpo. Acho que o movimento Hippie, a década de 1960, a contracultura, trouxe certa descrença da palavra, mas muito da imagem, do corpo, um corpo que quebra as barreiras. A palavra seria sempre tendenciosa e manipuladora. Eu acho que trazemos muito dessa marca da geração pós-1968. O Paulo é um homem de teatro que vem dessa escola da palavra. Foi um privilégio trabalhar com uma pessoa como o Paulo José. Ele traz muito dessa escola da palavra. Nós fizemos dois trabalhos com ele que foi O Inspetor Geral, do Gogol, e Um homem é um homem, do Brecht. Dois clássicos da dramaturgia mundial que montamos com o Paulo, porque eram exercícios do teatro da palavra.
Estamos estreando, no final do mês, um espetáculo com um diretor de Londrina, mas o grupo está sediado aqui no Rio, O Armazém. É com o Paulo de Moraes, estamos fazendo um trabalho com ele. Esses vários diretores vêm no sentido de que tipo de desafio ou que tipo de risco e de aprendizado trazem. Experiência nova para o trabalho do grupo. O Cacá vem muito com do trabalho do ator. Acho que o Paulo de Moraes vem agora, por exemplo, com uma proposta de um teatro mais urbano, uma temática urbana. Acho que nós vínhamos com uma temática muito universal nesse sentido. Estamos fazendo uma experiência muito interessante, inclusive, consultamos o Museu da Pessoa. Nós fizemos uma campanha nacional, mas acabou, até pela a nossa atuação muito presente em Minas. A campanha se chamou: “Conte sua história”, era para as pessoas mandarem histórias. Nós pedíamos que fossem histórias reais, que tivessem acontecido de fato. Elas deveriam ser contadas em duas páginas, no máximo. Deveria ser uma história que, de alguma maneira, celebrasse o milagre da vida, acasos, coincidências ou situações curiosas. Foi uma experiência muito interessante, porque nós recebemos 560 histórias. Foi um processo em que nos dispomos a ler todas essas histórias. Selecionamos umas 50, depois chegamos a 12, e o espetáculo vai chegar numa forma final com quatro histórias. Foi muito interessante, porque nos deu um painel muito curioso sobre como a sociedade brasileira se vê hoje.
“DIGERIR A REALIDADE BRASILEIRA” É uma proposta de ter uma radiografia, de enxergar como o brasileiro de hoje se vê, como vê o próprio país e para onde que o Brasil está caminhando. Nessas histórias que ficaram para o espetáculo, tem um painel muito interessante, muito curioso sobre o Brasil; um Brasil que se transforma rapidamente, que é cada vez mais urbano, que enfrenta um aspecto violento, uma urbanização muito rápida.
CINE HORTO O Galpão começa a dar muitas oficinas. Existe uma demanda muito grande por pessoas mais jovens que querem conhecer o trabalho do Galpão. Querem que o Galpão indique, muitos convites para dirigir espetáculos, para fazer espetáculos em outras cidades, em Belo Horizonte... O grupo enxerga – acho que é natural depois de constituir uma trajetória – certa preocupação em transmitir essa trajetória para outras pessoas, pessoas mais novas, ajudar a apontar caminhos e possibilidades. Acho que o Projeto do Galpão Cine Horto vem muito nesse sentido. O que acontece? O Galpão está nessa Rua Pitangui, 3413 e, a dois quarteirões da nossa sede, tem um cinema que está abandonado. Ele tinha virado uma casa de show que não deu certo e está fechado. Alugamos esse espaço, fizemos uma reforma e transformamos esse espaço numa sala multimídia para 220 espectadores, numa sala de cinema com uns 80 lugares e numas três salas onde podem ser dados cursos. Enfim, se instituiu esse espaço que é o Galpão Cine Horto. Ele está fazendo dez anos. Abrimos de 1997 para 1998. Tinha um projeto – o esqueleto da proposta se chamava Oficinão – de convidar atores que já tinham algum tipo de experiência para montar um curso de um ano. Esse curso era a montagem de um espetáculo. E era sempre dirigido por um integrante do Galpão. Foi uma forma de o Galpão passar a sua experiência e, ao mesmo tempo, aprender com esses atores que estavam vindo com outras experiências. Acho interessante, porque já está completando dez anos esse Oficinão. E sempre partia também de um projeto de estudo. Foi comédia de Shakespeare, melodrama, teve um ano que foi uma pesquisa sobre os 500 anos da descoberta do Brasil pelos portugueses... Eram sempre temas que sugeriam projetos de estudo. Era aberto mais para estudantes de teatro. Tinha uma seleção por currículo e algumas aulas. É sempre difícil esse processo de seleção, mas era feito. É um projeto que vingou. O projeto foi se consolidando cada vez mais e ficou ligado à Escola de Teatro Livre de Santo André, em São Paulo, buscando um tipo de teatro colaborativo, em que o texto era montado junto com os atores. E tinha um curso de dramaturgia.
O espaço também foi criando outros projetos alternativos. Hoje tem o Festival de Cenas Curtas, que é um festival aberto para o Brasil inteiro, onde as pessoas mandam projetos de uma cena curta de 15 minutos. Durante quatro dias são apresentadas 20 cenas curtas. Depois, o público vota e as quatro vencedoras cumprem uma pequena temporada lá no Teatro. Tem vários projetos. Agora tem um outro projeto que é Um pé na Rua, uma montagem de espetáculos com alunos que passaram por lá. Espetáculos de rua que também trazem essa tradição, esse berço do Galpão. Tem oficinas de dramaturgia. É um espaço que se consolidou ao longo desses dez anos, que é uma referência do ensino e da troca, do intercâmbio de artes cênicas em Belo Horizonte e Minas. É um espaço muito interessante, onde o Galpão consegue trocar com a comunidade, especialmente de Belo Horizonte. Mas vem muita gente de fora também.
PATROCÍNIO PETROBRAS Começamos com a Petrobras através da Regap. O nosso primeiro patrocínio com a Petrobras é via Regap. Depois, viemos para a Petrobras central, aqui no Rio, mandando projeto. Temos essa parceria com a Petrobras há mais de seis anos. É uma parceria de alto nível. A Petrobras viu no Galpão essa possibilidade – que eu acho muito bonita na trajetória do Galpão – porque certamente é o grupo que mais viaja pelo Brasil. Claro, com o suporte da Petrobras; sem esse suporte não seria possível. O Galpão viajou pelo Brasil inteiro, as cinco regiões do Brasil. E é um grupo que tem uma preocupação e uma filosofia de ir de fato ao Brasil profundo. São viagens pelo interior do Nordeste, interior do Centro-Oeste e pela região Norte. Fizemos uma temporada lindíssima com o Molière Imaginário pelo Vale do Jequitinhonha, viajando por uma das regiões mais pobres do país, e foi uma turnê maravilhosa. E pela região sul também. Esse ano nós vamos para o interior da região Sul. É esse tipo de encontro com um Brasil muito esquecido, porque o país está muito centralizado, principalmente, no Rio e em São Paulo. Acho que é muito importante, porque existe uma cultura pulsante nessas regiões e que, de fato, não conhecemos. Nos últimos anos, temos feito caravanas. Na região Centro-Oeste, viajamos por vários lugares. Região Nordeste, não só para as capitais, mas ao interior também como Caruaru, Mossoró, interior de Alagoas e Feira de Santana. Esse tipo de caravana é muito importante. São patrocínios como esse que a Petrobras nos dá que realmente possibilitam e concretizam nosso sonho de estar em contato com esse Brasil pulsante e muito desconhecido. A Petrobras nos dá uma liberdade ampla e irrestrita. Nunca tivemos nenhum tipo de sugestionamento de proposta artística. Somos completamente livres para fazer e dizer o que queremos. É claro que a empresa tem determinados interesses. Acho que ela tem um interesse de mostrar a cara para o Brasil. Por exemplo, esse tipo de projeto dessas caravanas para o interior do Brasil nos interessa muito e, obviamente, interessa muito a Petrobras. Acho que a política da empresa é muito acertada nesse sentido. A Petrobras é uma empresa que, não só para mim, mas para a população brasileira, que vem da campanha do “O petróleo é nosso”. É uma empresa profundamente vinculada e associada à soberania nacional, desde a época do Getúlio. É uma empresa que tem uma preocupação social, cultural e ambiental. Na cultura brasileira, em todo momento, você vê a Petrobras. Em todo filme brasileiro a Petrobras está presente. Ela tem uma política muito séria de retorno, como que por extrair algo do país, ela tem essa preocupação dar algum retorno. Você vê todo o trabalho da Petrobras com a memória, com a história do Brasil, com a cultura brasileira, com o meio ambiente. É uma política muito consistente mesmo. Não é porque o Galpão é patrocinado pela Petrobras – porque a Petrobras vê no trabalho do Galpão não só um trabalho de estatura do teatro brasileiro, mas um teatro que tem movimento no Brasil, que tem 25 anos e uma raiz muito profunda na cultura brasileira. Sem nenhuma falsa modéstia, acho que o Galpão é uma referência do teatro brasileiro, por tudo que construiu e por tudo que continua construindo. A Petrobras enxerga isso e é óbvio que as nossas linhas de ação estão muito coordenadas com os interesses da Petrobras: um grupo que vai para rua, que se apresenta, que é popular e que viaja muito pelo país.
Não nos interessa só fazer teatro, acho que é um compromisso com o país também. Isso é o que nos angustia. Claro que nós somos privilegiados por viver num país como o Brasil, mas vivemos um dilema: vamos conseguir constituir uma civilização brasileira, um país que tenha uma população com dignidade, que tenha acesso à cultura e à educação? Vivemos permanentemente esse dilema de conseguir com que a população tenha acesso a esses meios da arte, cultura, educação e saúde. Para nós não basta fazer um belo espetáculo e emocionar as pessoas, queremos lutar por um país em que o povo tenha acesso e que as pessoas se constituam enquanto cidadãos, e não enquanto uma horda de miseráveis que vivem no absoluto obscurantismo e na barbárie. O Brasil está permanentemente ameaçado pela barbárie. É só ver o que acontece: a violência e a miséria que assolam a sociedade. O nosso esforço na área da arte e da cultura é também para um projeto de país, para que possa de fato emergir, ser um país decente, onde as pessoas tenham acesso às coisas, que sejam cidadãos.
GALPÃO / PRÊMIOS O Galpão é um grupo muito premiado ao longo de sua trajetória, mas talvez o prêmio maior e mais significativo tenha sido o fato de ter sido convidado para fazer uma temporada de duas semanas no Globe Theatre, em Londres, com Romeu e Julieta. Foi uma experiência única para o teatro brasileiro, porque foi um sucesso muito grande. O trabalho foi visto por gente do mundo inteiro. Acho que Romeu e Julieta é realmente um marco do teatro brasileiro na década de 1990. Esse talvez tenha sido o grande prêmio, porque na verdade era um projeto do Globe, um dos principais teatros do mundo, onde está a herança do Shakespeare. Eles convidavam grupos no mundo inteiro que, de alguma forma, contribuíam para a compreensão do que era o Shakespeare. O próprio pessoal do Globe, dizia: “Olha, o que vocês fazem com Shakespeare, para nós é inimaginável. Isso é um sacrilégio, porque a temos muito respeito com Shakespeare. Mas é um espetáculo tão estranho e tão brasileiro”. Usávamos muitas músicas brasileiras debochadas, num certo sentido, e ao mesmo tempo uma linguagem muito ingênua e infantil, usamos modinhas e músicas românticas brasileiras do começo do século. Foi um espetáculo muito interessante porque montamos o cenário do espetáculo numa cidadezinha chamada Morro Vermelho, a 60 quilômetros de Belo Horizonte, onde só existiam trabalhadores rurais. Essas pessoas iam cortar cana, trabalhar no campo e chegavam ao final da tarde. Estávamos ensaiando na rua e essas pessoas ficavam em volta. Era um espetáculo feito para o interior do Brasil. Uma pessoa que não via televisão, que não tinha referencia cultural, mas que via aquilo, de certa maneira, se emocionava. E esse mesmo espetáculo foi para o principal teatro shakespeariano, responsável pela tradição shakespeariana no mundo, como principal núcleo. As pessoas ficavam emocionadas porque diziam – não obstante esse lado tão debochado e tão iconoclasta – era absolutamente fiel ao espírito de Shakespeare. Era shakespeariano na essência. Talvez esse tenha sido o maior prêmio.
MEMÓRIA PETROBRAS Gostei, achei ótimo.Recolher