IDENTIFICAÇÃO Meu nome é José Carlos Avellar. Eu nasci no Rio de Janeiro, em 18 de dezembro de 1936. FAMÍLIA / PAIS Meu pai chamava-se Armando Salles Avellar e minha mãe Nair Machado Avellar. Ambos eram operários. Meu pai trabalhava na Light e minha mãe em uma tecelagem, m...Continuar leitura
IDENTIFICAÇÃO Meu nome é José Carlos Avellar. Eu nasci no Rio de Janeiro, em 18 de dezembro de 1936.
FAMÍLIA / PAIS Meu pai chamava-se Armando Salles Avellar e minha mãe Nair Machado Avellar. Ambos eram operários. Meu pai trabalhava na Light e minha mãe em uma tecelagem, mas não tenho maiores informações. Quando meus pais se casaram, minha mãe deixou de trabalhar. Quando meu pai faleceu, eu tinha apenas sete anos de idade. Eu tenho a lembrança de ir com ele ao local de seu trabalho, ver o que ele fazia, mas é como um filme, é mais uma fantasia do que algo que eu possa dizer com clareza, o que meu pai fazia. Minha mãe viveu até pouco tempo. Mas as lembranças que tenho são essas coisas de pai com o filho.
INFÂNCIA Eu me recordo também que meu pai me levava para ver coisas: navios, avião, linha de trem. Por isso, tenho uma forte lembrança de meu pai. Ele também me levava ao cinema e um dia ele me disse: “Agora você pode ir ao cinema sozinho.” Deveria ter uns seis ou sete anos de idade. Como ele havia me ensinado a ler algumas coisas, achava que não precisava mais me explicar os filmes e os desenhos. Essa foi minha primeira sensação de adulto enquanto criança. Não era difícil ir ao cinema sozinho, mesmo aos seis anos de idade. Desde que não fosse no cinema que existia do outro lado da rua. Morávamos na Zona Norte, na Abolição. Todos os bairros tinham cinemas. Por contarmos com muitos cinemas, eu não precisava sequer atravessar a rua, apesar de ser uma tentação. O filme que passava do outro lado sempre me parecia mais interessante. Ainda assim, eu tinha a possibilidade de entrar em dois cinemas, que ficavam do mesmo lado em que morávamos. Pelo que me lembro, existiam quatro salas de cinema. Duas do lado em que eu morava e duas do outro lado. Havia o Cine Ridan, o Terra Nova, o Abolição e o Monte Castelo. O Ridan ficava em frente à minha rua. Meu sonho era poder atravessá-la, mas enquanto meu pai viveu eu não pude realizá-lo, visto que ele morreu muito cedo.
FAMÍLIA Eu tinha duas irmãs mais novas do que eu e, com a morte do meu pai, minha mãe voltou a trabalhar, mas como empregada doméstica, lavando roupa, cozinhando, ia em casa de família. E nós conseguíamos, as minhas irmãs e eu, continuar os estudos em escolas públicas.
ENSINO FUNDAMENTAL Existiam escolas públicas no meu bairro, mas eu tive a possibilidade de entrar no Pedro II. As escolas eram grátis, eu não precisava pagar e pude terminar os estudos. E minhas irmãs tiveram a sua formação garantida por escolas ou bolsas para estudantes que não tinham condições de pagar mensalidades.
BRINCADEIRAS DE INFÂNCIA Na minha idade, todos gostavam de jogar bola. O futebol era uma brincadeira comum. Talvez hoje a atração pelo cinema possa ser algo diferente, mas naquela época todos iam ao cinema. Era como chegar em casa e ligar a televisão. Íamos ao cinema, para ver qualquer que fosse o filme que estivesse em cartaz. O cinema era um ponto de encontro social e era o assunto das conversas dos dias seguintes. Não tenho nenhuma particularidade por que ia ao cinema, afinal, toda a minha geração freqüentava o cinema, tanto os mais velhos, quanto os jovens. O simples fato de existir um grande número de salas nos bairros, o que hoje é impensável, nos dá uma dimensão do que era a
freqüência dos cinemas.
COLÉGIO E CINEMA Eu me lembro de quando comecei a estudar no Colégio Pedro II, aqui na cidade. Em frente ao Colégio, existia o Cinema Primor e um cinema “poeira”. Nos intervalos entre uma aula e outra, eram as duas escapadas das aulas. Inclusive, o cine “poeira” tinha um filme por sessão. Então, podíamos chegar e assistir um filme após outro. As salas eram bem diferenciadas. Havia as salas dos circuitos lançadores, dos circuitos repetidores, cinema popular com variedade de preços e programação. Os cinemas da Cinelândia apenas lançavam filmes. Tempos depois, esses filmes chegavam aos subúrbios da cidade do Rio de Janeiro. A presença do cinema era forte. Como lazer, tenho a impressão de que isso pode ter sido uma particularidade do grupo em que eu me encontrava.
INFÂNCIA E LAZER Existiam as histórias em quadrinhos. Isto potencializou a nossa relação com o mundo visual. Ainda que se lesse muito, ainda que existissem as revistas, ainda que a escola estimulasse a leitura de livros, existia de qualquer modo uma comunicação muito forte através da imagem entre os garotos da minha geração. O futebol existia e todos saíam para jogar futebol na rua. Era a forma que encontrávamos de fazer uma atividade física. Não existia a idéia de uma criança em uma academia de ginástica ou na praia, então o futebol era o divertimento. Lembro-me de quando a escola incentivava o basquete, o vôlei, mais o que realmente gostávamos, e acho que prevalece até hoje a era do futebol.
ENSINO FUNDAMENTAL Fiz o primário em escola pública. Depois, estudei um ano como bolsista. Isto era concedido apenas aos alunos que obtinham notas razoáveis. Estudei um ou dois anos em um colégio que ficava no Engenho de Dentro, um ginásio chamado Colégio Independência. A partir dali, fiz um exame de transferência para o Colégio Pedro II. O curioso foi que, mais tarde, esse colégio, o Independência, foi agregado ao Pedro II. O Internato ficava em São Cristóvão, apesar de fazer parte do Pedro II, que ficava no centro. Posteriormente, abriram uma seção que ficava na Zona Norte e que seria o Colégio Independência. Tenho boas lembranças do Colégio Pedro II. Lembro-me muito dos meus colegas de colégio, porque ficamos juntos até chegarmos ao Pedro II. Depois disso, formamos outra turma, tendo em vista que, ao término do primário, alguns se dispersaram naturalmente. Alguns foram para colégios diferentes, outros para colégios técnicos ou profissionalizantes. Me lembro muito de colegas no primário. Havia um grupo que era fanático por cinema ou especialmente dedicado ao cinema. Sempre íamos acompanhar os filmes em série, pelo menos duas vezes por semana. A programação mudava às quintas-feiras. Sendo assim, havia um filme na segunda-feira, um na terça-feira e outro na quarta-feira, quando chegava a quinta-feira, era exibido um filme em série.
FILMES DA JUVENTUDE Um filme que me chamou muita atenção na época foi: “Por quem os sinos dobram”. Não saberia explicar o porquê. É possível que eu tivesse visto e dado uma atenção especial, porque ele não era um filme recomendado para minha faixa etária. Mas isso foi uma lembrança forte, como tantas outras. Lembro-me dos primeiros filmes neo-realistas. Assisti “Sciuscià”, “Roma cidade aberta”. Já não era tão criança, entretanto, tive naquele momento uma surpresa muito grande, porque até então só havia tido contato com filmes norte-americanos, que se passavam em um universo de fantasias, de invenções, de imaginação. Muito diferente da proposta neo-realista italiana.
A sensação que tínhamos ao assistir um filme neo-realista era a de que a realidade não era diferente daquilo. O personagem central era um ferroviário, então pergunta-se: “Como um condutor de trem pode ser herói de cinema?” Isso era uma coisa surpreendente. Em alguns filmes italianos, como o “Sciuscià” [Vítimas da Tormenta, 1946], os personagens eram garotos de nossa faixa etária. Alguns deles trabalhavam como engraxates, um outro era
sobrevivente dos rigores da guerra. Isso trazia uma sensação estranha. Conversava muito sobre cinema com meus colegas e nós sonhávamos em fazer algo para entrar naquele mundo. Me recordo que pensava: “Se isso é cinema, nós também podemos fazer um, com base em nossas experiências.” Não era mais um western, não era mais um filme de capa e espada, havia naquilo algo muito parecido com o que nós encontrávamos, por exemplo, a idéia do trem. Quando vimos “O Ferroviário”, a idéia de trem era algo muito vivo, pois morávamos perto da estação do Engenho de Dentro, havia um longo espaço onde se colocavam os trens. Então, passar por ali de bonde, caminhando ou saindo em bandos com garotos, era ver um ferroviário, um trem sendo reparado. Descobrir que isso poderia ser assunto de um filme foi uma informação importante naquele momento, foi uma surpresa.
FILMES E SIGNIFICADO É claro que existiam filmes que a gente tinha visto sem saber exatamente o seu significado. Existiam também as comédias americanas e, de quando em quando, toda garotada ia ver Chaplin. Mas o que realmente me marcou foi o filme “Por quem os sinos dobram”, sem contar os filmes de guerra e, muito especialmente, os filmes neo-realistas italianos. Não tinha nada a ver com filme sério, com “Os Demônios do círculo vermelho”, para citar um filme sério que me veio à memória agora, ou o “Homem Morcego”.
CINEMA COMO OPÇÃO Apesar de ter me marcado bastante, não foi a partir dos filmes neo-realistas que comecei a pensar em trabalhar com cinema. Acho que já pensava nisso antes, sem saber o que era. De certa maneira, queria continuar fazendo parte daquele mundo. Não passava pela minha cabeça a possibilidade de passar uma semana sem ir ao cinema. E quando alguém assistia a um filme primeiro que o outro, virava o centro da conversa, porque ele começava a falar sobre o filme que tinha assistido. Dessa forma, queríamos estar sempre presentes neste mundo, sem ter idéia disto como uma forma de trabalho.
PRIMEIRO TRABALHO Quando fui procurar um trabalho, pensar em uma atividade profissional, a primeira coisa que quis fazer era trabalhar em jornal. Podia ter tentado, de alguma maneira, trabalhar com cinema.
CINEMA NACIONAL Lembro-me que os primeiros contatos com cinema brasileiro foram um pouco antes da Vera Cruz. O que nós tínhamos aqui eram a Atlântida, os shows, as chanchadas. Quando eu revi “Amei um bicheiro”, já interessado em cinema, eu disse: “Essa imagem eu já vi.” Aquela coisa que fica na memória, não saberia contar a história novamente, mas algumas imagens, certamente lembraria. Me lembro de ter visto “Obrigado Doutor”, “Tiradentes”, “A Inconfidência Mineira”. E as comédias, evidente que íamos ver o Oscarito, o Grande Otelo, as chanchadas da Atlântida, que não deixaram uma marca especial na minha memória, não era nada que se comparasse ao universo dos filmes norte-americanos. A minha maior surpresa no cinema foi descobrir que o cotidiano também podia fazer parte do cinema. E os filmes brasileiros, naquele momento, não tinham essa perspectiva. Lembro-me de quando vi “Rua sem sol”, “Agulha no palheiro”, do Alex Viany. Muitas vezes, brinco com as pessoas que dizem: “Eu queria fazer cinema, mas é tão difícil” Na minha época, se eu tivesse falado para meu pai que gostaria de trabalhar com crítica de cinema, ele acharia que eu estava duplamente louco, porque não existia cinema que justificasse. Claro que existia um grupo brigando pelo cinema brasileiro, mas isso eu só vim descobrir mais adiante. Não me lembro de ter visto filmes do Humberto Mauro, não me lembro de ter assistido, na época do lançamento, os filmes que marcaram a década de 40. “Também somos irmãos”, se vi não me recordo.
AMIZADES / JUVENTUDE Não creio que algum amigo meu tenha ido trabalhar de alguma forma com cinema. Alguns dos meus colegas se profissionalizaram em Jornalismo. Havia uns que desenhavam bem e ficaram fazendo ilustração em alguma coisa. Nós desenhávamos, fazíamos histórias em quadrinhos, não sabíamos ao certo o que queríamos fazer. Como costumo dizer, o cinema poderia ser desmembrado para desenho animado ou, simplesmente, continuar vendo filmes até o resto de nossas vidas. Muitos de nós começamos a fotografar nesse período, uma espécie de aprendizado até chegar no cinema. Dessa forma, estávamos sempre ligados à questão da imagem.
BRINCADEIRAS E IMAGENS No período de guerra, existia o racionamento de trigo. O pão já vinha misturado com trigo, milho ou raspa de mandioca. O normal era que comêssemos broa de milho ou trigo misturado. Para tanto, as crianças iam fazer fila na porta da padaria, cedo, antes que ela abrisse, para que seus pais ou nós mesmos pudéssemos comprar o pão para levar para casa. Uma brincadeira extremamente comum naquele tempo consistia em pegarmos um desenho impresso qualquer, uma história em quadrinho, um pedaço de jornal, e colocar no trilho do bonde, para que, por pressão da passagem da roda do bonde, o desenho se imprimisse no papel em branco. Como as padarias ficavam em frente à linha do bonde, comprar pão sempre foi divertido. Era uma brincadeira ingênua. Hoje, quando pensamos no tipo de invenção de imagem da televisão, muitas vezes não paramos para analisar que, mesmo antes da televisão, já brincávamos com a reprodução de imagens. Fazíamos teatros de sombra, com uma folha de papel manteiga e projetávamos a imagem. E esta é uma brincadeira muito antiga. Na verdade, não existia nenhuma intenção por trás dessas brincadeiras que não fosse a de estar perto do cinema. Gostávamos de assistir os filmes e discuti-los.
AMIZADES E FILMES Da mesma forma que eu tive surpresas com o cinema, meus amigos também tiveram as suas, cada um de forma singular. A surpresa para uns veio, talvez, no momento em que assistiram ao primeiro filme de terror, levaram um susto nunca imaginado. Para outros, pode ter sido quando se apaixonaram por uma estrela de cinema que era mais bonita do que uma menina do bairro. As experiências eram diversas e nós trocávamos essas informações. Era uma forma de aprendizado do mundo.
JUVENTUDE E TRABALHO Quando sai do Colégio Pedro II, precisei ir trabalhar, por razões econômicas. Era o irmão mais velho e meu pai já havia falecido há 10 anos.
FAMÍLIA /IRMÃS A diferença de idade que existe entre eu e a minha irmã do meio são de três anos, e para a mais jovem são de oito anos. Uma se chama Maria da Glória e a outra Vera Lúcia. Quem mantinha a casa era minha mãe, com a pensão que meu pai havia deixado e que iria diminuir quando eu completasse 18 anos. Sendo assim, quando completei 18 anos, minha mãe precisava complementar nossa renda com trabalhos domésticos. Fui trabalhar por uma questão de gosto, não foi uma imposição. Sentia-me responsável, por ser o único homem da família.
TRABALHO EM JORNAIS Por querer me sentir adulto, comecei a trabalhar. Minha primeira tentativa foi na área de desenho do jornal. Comecei a fazer retoques de fotografias, pois os jornais ainda não tinham uma boa qualidade de impressão. Não estávamos na rotogravura. A impressão ainda era em chumbo. Era precária. Começavam a chegar ao Brasil as primeiras fotografias transmitidas por rádio, com muitas imperfeições que deveriam ser retocadas para não aparecerem. Comecei fazendo desenhos e retoques em fotografias, era o que eu gostava de fazer. Comecei no Diário Carioca, mais regularmente. Mas também passei pelo Última Hora e pelo Correio da Manhã. A partir desses, fui trabalhar no O Jornal do Rio de Janeiro, que era um dos jornais dos Diários Associados, que tinha naquele momento outros jornais, como O Matutino e O Vespertino, que era o diário da noite. Os dois no mesmo prédio. Comecei a trabalhar no O Jornal, fazendo retoques, montando algumas ilustrações e, logo em seguida, comecei a diagramar o jornal, a desenhar a página, definir onde deveriam ser postas as informações nas páginas. Me aproximei do trabalho por uma habilidade desenvolvida na escola. Não sei se é habilidade, mas isso me aproximou da imagem.
JUVENTUDE / FOTOGRAFIA Nessa época, eu ainda não tinha uma máquina fotográfica, mas me lembro de um colega que tinha. De vez em quando, saíamos para fotografar. Um de meus colegas tinha uma irmã ou irmão, cuja professora de piano tinha um laboratório fotográfico. Entrávamos no laboratório para ver como se fazia uma revelação. Eu tinha uma noção pequena, tanto quanto pode ter um garoto, do processo fotográfico.
TRABALHO DE DIAGRAMAÇÃO Comecei a acompanhar o trabalho, no laboratório fotográfico, com os fotógrafos da redação. Ia ver na oficina como se montava as páginas em chumbo. Por isso, logo comecei a trabalhar dentro da redação como diagramador, desenhando as páginas, selecionando as fotos e enquadrando-as para serem publicadas. Nisto, meu primeiro trabalho fixo foi no O Jornal, onde fiquei cerca de cinco ou seis anos, antes de ir para o Jornal do Brasil. Neste, já comecei como diagramador, no final de 1961, quando resolvi entrar na Universidade.
ENSINO SUPERIOR Uma vez que estava trabalhando em um jornal, decidi estudar jornalismo. Sendo assim, em 1962, quando comecei a faculdade, já trabalhava no Jornal do Brasil. Na verdade, eu tirei férias para estudar. Nesse período, fui chamado para trabalhar no Jornal do Brasil. Estudei na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na época, o curso era Jornalismo e não Comunicação. O curso tinha uma estrutura extremamente dinâmica e muito agradável para mim. Quem estudava Jornalismo, tinha um currículo mínimo para cumprir e uma possibilidade de selecionar, no quadro da Universidade, algumas áreas que nos interessavam, para fazermos como matérias opcionais e complementarmos nosso currículo. Eles imaginaram que o jornalista poderia se especializar em jornalismo econômico, em jornalismo esportivo, entre tantas outras opções. Lembro-me que nesse período discutia-se muito sobre a reforma agrária. Resolvi fazer Geografia agrária como uma das matérias opcionais e uma outra matéria opcional que fiz, Literatura Brasileira, tinha como professor o Alceu Amoroso Lima. Depois, fiz Geografia econômica. Como atividade profissional, nunca trabalhei nessas áreas, mas tive como formação o que me permite uma visão mais ampla sobre o assunto. Fizemos também História Contemporânea do Brasil, o professor era o Manoel Maurício. Tínhamos boas possibilidades na Universidade nesse momento pré-golpe de Estado. Havia no Jornalismo uma possibilidade de abertura muito grande.
CRÍTICA DE CINEMA - INÍCIO Entrei no Jornal do Brasil em 1961 e já no segundo ano da universidade escrevia com alguma regularidade sobre cinema, o que eu já tinha feito antes, no O Jornal e em algumas revistas de cinema que circulavam, como Cine Revelação, Cinemim. Tudo isso eu fazia paralelo ao trabalho de diagramação. Em O Jornal, eu conversava muito com o Pedro Lima, que era o crítico de cinema. Conversávamos sobre cinema, falávamos e discutíamos os filmes. Quando o Pedro Lima tirava férias ou quando tinha um filme que ele não julgasse muito interessante, ele me perguntava se eu queria ir ver e escrever sobre o filme. Em 1960, realizou-se em São Paulo uma convenção de crítica de cinema. O Pedro Lima me perguntou: “Você não quer ir fazer a cobertura para o jornal?” Fui para São Paulo, acompanhei a convenção e mandava matérias para o jornal. A partir daí, comecei a escrever com uma certa regularidade para O Jornal.
REVISTA CINE REVELAÇÃO Naquela época, já colaborava em uma revista de cinema chamada Cine Revelação. Era uma revista mensal. Escrevia alguns textos de cinema. Nunca mais voltei a ler. Profissionalmente, isso não tinha muito significado. Nunca planejei ser crítico de cinema. Hoje eu tenho segurança de que comecei a escrever sobre cinema porque eu lia muito sobre filmes nesse período. A leitura dos textos do Eisenstein me impressionava muito, porque me dava a sensação de que tão bom quanto ver filme era ler o que ele escrevia. Então, pensei que talvez escrevendo sobre cinema eu poderia sentir o mesmo prazer em fazer. Era uma leitura prazerosa. Era como se alguém tivesse percebido, no mesmo filme que vi, uma série de outras coisas que não havia percebido. Isso foi um impulso. Eu pensava: “É tão bom escrever sobre filme, conversar ou ver cinema” Então, me perguntava: “Por que a câmera está ali?” “Por que o sujeito mexeu no zoom?” No primeiro ano de faculdade, eu tive um professor de História, a cadeira dele era de Pré-história. Em suas aulas, ele costumava utilizar-se de objetos e desenhos pré-históricos. Um colega meu comentou e eu passei a assisti-las. Um dos trabalhos que fiz ao longo da faculdade de Jornalismo foi exatamente sobre desenho e pintura primitiva. Li um texto do Eisenstein sobre imagens e, paralelo a isto, estudava história primitiva com desenhos em cavernas e assistia filmes. Essa junção do visual com o textual me levou a escrever.
GOLPE DE 1964
Fiz a faculdade antes de 1964. Nós sempre chamamos de Golpe de Estado, o termo Revolução era empregado por outros segmentos da sociedade. Existe uma série de recordações divertidas, outras não, de trabalhar em um jornal naquele período. Lembro-me de que trabalhar no jornal nessa época era muito bom. Eu já tinha três anos de trabalho no Jornal do Brasil, que naquele momento era uma empresa muito particular, pela própria natureza do trabalho naquele tempo. Eu acho que ainda hoje é assim, jornalista só tinha amigo jornalista, porque não dava para fazer outra coisa. Trabalhávamos de noite. Começávamos a trabalhar às cinco ou seis horas da tarde e terminávamos de madrugada. De qualquer forma, estávamos sempre de prontidão, a qualquer hora da madrugada. Dependia um pouco dos fatos que estavam ocorrendo e do nosso envolvimento com a notícia. Naquele instante, todos nós queríamos as informações, até porque depois veio a censura. Por isso, estávamos sempre por ali, atrás de notícias, antes que elas fossem censuradas.
TRAJETÓRIA / JORNAL DO BRASIL
Não eram tantas pessoas assim que trabalhavam no Jornal do Brasil. A redação não era tão grande quanto se pode imaginar. Mas todas essas pessoas faziam muitas coisas. Nunca fui um fotógrafo profissional, apesar da fotografia estar relacionada com o cinema. Adoro fotografar e faço isso até hoje, em grandes coberturas como o carnaval, por exemplo. Lembro-me quando houve um incêndio no Edifício Astória, quando o Charles de Gaulle veio ao Brasil. Pela necessidade, começaram a distribuir pessoas que não eram fotógrafos necessariamente para fazer a cobertura fotográfica. Neste episódio, consegui uma foto especial. Havia uma comunidade. Todos eram jornalistas e, de vez em quando, a atividade dentro da redação se modificava um pouco. Alguém que não era fotógrafo ia fotografar, o redator ia fazer a revisão, o editor ia redigir um título, o diagramador ia mexer um pouco no texto. Era um grupo coeso e muito afinado, de modo que complementávamos uns aos outros. Isso na redação era extremamente positivo.
DITADURA MILITAR Na universidade, a pressão era muito grande. Os diretórios acadêmicos, daquela época, eram de esquerda. Isso não significava que não existia uma luta ideológica partidária dentro das universidades. Existiam diretórios de direita e diretórios de esquerda, mas existia uma possibilidade de discussão aberta, livre. Evidentemente, isso acabou em 1964, principalmente pela pressão imposta pelo Ato Institucional número cinco, em 1968. Lembro-me até hoje de um colega que estudou comigo e foi preso. Ainda hoje ele é extremamente reconhecido. Eu e mais dois colegas escrevíamos cartas para ele quando estava na prisão e fomos recebê-lo quando ele foi solto.
Havia, evidentemente, uma pressão muito forte e um receio muito grande. Foram tempos loucos. Existem vários depoimentos a respeito, poderíamos contar histórias infindáveis. Por isso, eu tinha a impressão de que a pressão que era exercida sobre o jornal era muito maior. Ao mesmo tempo, era mais fácil de suportar, porque éramos uma espécie de família profissional. Na universidade, a maior parte das pessoas, quando saíam, não tinham uma vida profissional definida. E a perspectiva profissional se deparava com um paredão, que não deixava enxergar nada adiante. Eram tempos difíceis. Quando terminei a faculdade em 1964, pediram para que eu continuasse como Instrutor, mas a vida universitária naquele momento era muito complicada.
CRÍTICA DE CINEMA – UM PRAZER Em um determinado momento da minha vida, eu não me imaginava sem escrever sobre filme. Isso ocorreu por volta de 1964 e 1965. Já estava escrevendo regularmente, para ser publicado ou para mim. A idéia de pensar o filme era altamente prazerosa. Fazendo isso, eu estava me exercitando, uma vez que nunca escrevi com facilidade. Dava-me um extremo prazer sair do filme e conversar, pensar e anotar algumas coisas sobre ele.
DOCUMENTÁRIOS: IAÔ; ORLANDO SILVA; DESTRUIÇÃO CEREBRAL Curiosamente, nesse mesmo período, comecei a fazer filmes. Hoje, vendo isso, penso que, da mesma forma que de vez em quando um diretor de cinema escreve, eu de vez em quando saio para filmar. Não era meu prazer maior. Gosto muito de ver, de fotografar e montar filmes. Gostava muito de fazer documentários. Era algo instigante para mim.
Um dos que mais gostei de fazer foi Iaô, que fiz com Geraldo Sarno. Filmamos a formação de três filhas de santo em um terreiro, em Cachoeira, na Bahia. Iaô significa filha de santo, é a sacerdotisa, digamos, antes dela se formar. É quando ela recebe uma mensagem, uma manifestação do santo querendo que ela se forme enquanto sacerdotisa no candomblé. Além disso, fotografei um filme para o Oswaldo Cadeira, chamado “Orlando Silva”, um documentário sobre ele.
Também fiz com um grupo de colegas um documentário sobre um operário paulista que se suicidou em Belém do Pará, um filme chamado “Destruição Cerebral”. E fomos acompanhando o trajeto desse operário, como uma pessoa sai da região do ABC paulista para se matar em Belém do Pará? É uma história trágica. E, de certa forma, esse episódio trouxe uma inversão. Afinal, ele saiu de uma metrópole para o interior, foi exatamente isso que me chamou a atenção. Ele fez o caminho invertido. O curioso é caminho, quer dizer, nada é curioso na história, tudo é trágico. O característico dessa história é que ele saiu de São Paulo, foi para Brasília e depois para Belém. Era um acompanhamento de uma rota simbólica da situação.
DOCUMENTÁRIOS – IAÔ Em suma, esses filmes eram, para mim, metade expressão e metade aprendizado. Havia uma necessidade de entender a sociedade. Como é um terreiro de candomblé, como as pessoas vivem ali, o que une aquela comunidade? Por que Cachoeira e São Félix foram cidades que tiveram uma certa pujança econômica, na época em que o rio servia como estrada para levar produtos do Recôncavo Baiano até Salvador? Mas, uma vez que a estrada foi realmente construída, essas cidades perderam sua expressão econômica. E quando nós fomos filmar já não eram, sequer, centro da produção de charutos, que haviam sido durante algum tempo. À margem disso, havia uma comunidade negra que havia montado sua cultura em um terreiro de candomblé. Como eles sobreviviam às pressões?
Esse aprendizado é o que me encanta no documentário. Era sempre mais interessante ao vivo, porque algumas coisas nós não conseguimos colocar no filme. Por isso, a lembrança é sempre mais forte do que a imagem que a gente assiste no filme. Isso foi uma coisa que continuei fazendo, quase que como uma conseqüência de um trabalho de reflexão do cinema, que se tornou minha vida principal. Por isso mesmo, quando estava filmando, continuava escrevendo.
TRAJETÓRIA PROFISSIONAL / CINEMATECA DO MAM
Fui dar um curso de cinema lá em 1968 ou 1969, junto com o Joaquim Pedro. O Joaquim dava a parte prática e eu a parte teórica. Esse período ficou caracterizado como o período de maior pressão da ditadura militar. O Diretor da Cinemateca, Cosme Alves Neto, foi preso em uma confusão e a Cinemateca ficou sem ninguém. Eu e o Joaquim chegamos um dia para dar aulas e estava tudo fechado, porque o Diretor não havia aparecido para abrir. Fomos falar com a Diretoria do Museu e abriram o prédio. Conseguimos dar aulas durante uns 15 dias. Já conhecia bem o Cosme. E para as coisas não pararem de funcionar, eu e o Joaquim ficamos ali tomando conta, claro, com o devido consentimento do Maurício Roberto, que era o Diretor do Museu de Arte Moderna naquele momento. Quando o Cosme retornou, tudo voltou a funcionar normalmente. Fui incorporado à Cinemateca como Vice-Diretor e fiquei muito tempo trabalhando com o Cosme. O Joaquim não, porque voltou a fazer cinema, mas o Ronald Monteiro entrou e nós dois começamos a fazer cursos e cuidar de arquivos que não fossem de filmes. O arquivamento de filmes continuou nas mãos do Cosme. Nós cuidávamos dos arquivos de papéis: revistas, documentos, recortes de jornais, fotografias, cartazes, press-books. Fiquei trabalhando ali e no Jornal do Brasil, onde eu trabalhava à noite. Na Cinemateca, eu ficava uma parte da tarde, coordenando com o Ronald os arquivos de papéis. Às vezes, pela manhã, dava cursos. Fizemos isso até 1986, mais ou menos.
TRAJETÓRIA / EMBRAFILME Em um certo período, me ausentei do Jornal do Brasil, pedindo licença, e trabalhei durante um ano e meio na Embrafilme como Diretor Cultural. Também precisei sair do Museu de Arte Moderna. Foi um período em que conseguimos, entre outras coisas, organizar a retrospectiva do cinema brasileiro na França, no Centro Pompidou.
JORNAL DO BRASIL – CINEMATECA DO MAM / DIRETORIA Terminado esse período na Embrafilme, voltei para o Jornal do Brasil, onde fiquei até o final da década de 80. No começo da década de 90, dirigi a Cinemateca do MAM por um ano. Como havia trabalhado por muito tempo no Jornal do Brasil, naturalmente tive muito contato com o Nascimento Brito, que era o Diretor da Empresa. Posteriormente, o Nascimento Brito foi ser Diretor do Museu de Arte Moderna e me convidou para dirigir a Cinemateca. O Cosme continuava lá. Na verdade, nós dois dirigíamos. Havia apenas uma relação funcional dentro da Empresa, em que eu era o Diretor e ele passou a ser Vice-Diretor, invertendo o que ocorreu entre 1969 e 1985.
As condições do Museu eram bem diferentes das que existiram entre os anos de 1969 e 1985. Após o incêndio do MAM, houve uma série de dificuldades, apesar da Cinemateca não ter sido atingida, entre todos os setores do Museu. O Museu foi construído na época em que todas as películas eram em nitrato, um material naturalmente inflamável. Sendo assim, ele foi construído para se proteger da Cinemateca. As paredes desta, por sua vez, eram triplas, por isso não sofreu nada.
ESTADO DE SÃO PAULO / ÚLTIMA HORA Também colaborei no jornal Estadão, na mesma época em que trabalhava no MAM. Escrevia suplemento literário. Fazia um texto longo a cada sábado, em um suplemento que tinha tradição desde a década de 1960 de publicar longos textos de cinema. Não cheguei a colaborar no jornal diário do Estadão. No Última Hora, também colaborei na década de 1990. Minhas publicações eram editadas no Segundo Caderno. Ali eu colaborava duas ou três vezes por semana. Na época, quem dirigia o Segundo Caderno era a Helena Salem. A Helena me chamou para fazer crítica de cinema.
JORNAIS BRASILEIROS Nos últimos anos, senti uma mudança no jornal. Para simplificar muitas coisas, os jornais se americanizaram. No período da Ditadura Militar, a crítica de artes era um espaço razoavelmente privilegiado nos jornais. A discussão sobre a situação política, cultural e econômica do país era feita através da crítica de arte. Era o que se exigia. Havia o espaço destinado às críticas. Não digo só de cinema. Havia o Yan Michalski, que fazia críticas de teatro, as crônicas da Clarice Lispector e do Carlos Drummond de Andrade. Era um jornal que “chamava” para o Segundo Caderno, destacando o quadro cultural através de uma reflexão crítica da expressão artística que, por sua vez, expressava a sua crítica sobre o país de um modo geral.
Quando digo que os jornais se americanizaram, quero dizer que, ao contrário dos jornais europeus – jornais mais de reflexão do que de informação –, eles passaram a reduzir a reflexão a um espaço mínimo. Hoje interessa muito mais colocar, em um suplemento literário, uma relação de livros mais vendidos do que discuti-los. Sobre cinema, interessa mais dar cobertura aos produtos da grande indústria cinematográfica do que propor uma reflexão ou uma discussão com o leitor.
Eu não acredito que o leitor tenha mudado muito. Não sei se essa mudança foi uma opção do leitor. O conflito de opiniões entre leitores e a opinião do jornal
sempre existirá em todas as áreas e é absolutamente saudável. Nós brincávamos dizendo que metade de nossos leitores ia ver os filmes que nós gostávamos e a outra metade ia ver os filmes que não gostávamos. Mas era uma forma de se relacionar com a reflexão. Você sabia que o crítico A, B ou C tinha um gosto cinematográfico que podia “bater” com o seu ou ser completamente diferente. Era uma forma de opção, quer dizer: “Eu não gosto do que ele gosta, se ele gostou desse filme, provavelmente eu tenho grandes possibilidade de não gostar.” Mas, de qualquer modo, existia nos jornais naquele momento uma proposta de montar uma reflexão sobre cinema que hoje não existe mais. Acho que essa proposta não acontece mais em nenhuma área. Eu falo de cinema porque é a minha área. Hoje, o que percebemos é uma preocupação em privilegiar o produto industrial padrão. À medida que você nega a discussão, somente o produto que tem grande difusão e que repete um modelo academicamente estabelecido tem possibilidade de ser visto.
RIO FILMES - DIRETORIA Trabalhei como Diretor-Presidente. Foi um trabalho extremamente agradável. De certa forma, a criação de uma distribuidora de cinema em um órgão de cultura municipal foi uma decisão audaciosa e ousada. Tudo estimulava a ousadia. Fomos procurar trabalhos com novos realizadores e tentamos fazer algumas ações que não eram comuns no mercado de cinema. Era uma situação extremamente curiosa, porque nós estávamos no centro da atividade enquanto éramos distribuidores. Mas a grande descoberta naquele momento foi que, para distribuir filmes, você precisava primeiro ajudar a fazê-lo, depois precisava explicar a proposta do filme. Não era como, por exemplo, ser distribuidor de maçãs, bananas ou laranjas, onde o sujeito vai ao mercado e sabe exatamente o que quer. Tínhamos que formar a pessoa para que ela soubesse escolher o produto e ajudar a fazer o produto, para encaminhá-la ao mercado. Nesse sentido, tivemos uma possibilidade de realizar um trabalho muito estimulante.
RIO FILMES Um dos trabalhos desenvolvidos na Rio Filmes foi o de levar o cinema à escola
ou à universidade. Fazíamos isso nas estréias dos filmes. Podíamos fazer uma semana de cinema brasileiro numa universidade. Nos primeiros dias, levávamos dramas ou comédias de anos anteriores e, no último dia, fazíamos uma pré-estréia. Nos dias anteriores, discutíamos o filme e, no dia da pré-estréia, levávamos o Diretor para debater o filme com o público presente.
Montamos “A Escola vai ao Cinema” junto com o Cineduc, que é um órgão de educação para o cinema de primeiro nível, para escolas de primeiro grau do município. Fizemos acordos com linhas de ônibus e com o metrô. Enchíamos um ônibus ou um carro de metrô com estudantes e os levávamos para uma sala de cinema. Após isso, enviávamos um professor à escola para dar aulas de cinema e, ao mesmo tempo, estimulávamos algum professor da escola a aproveitar o tema cinema para suas aulas, fosse exibindo filmes inspirados em um romance ou de uma questão histórica, geográfica, enfim, uma questão social qualquer. Essas duas ações foram muito importantes para a formação de um público de cinema. O que pudemos verificar na prática, como resultado, é que o maior público para cinema brasileiro, no final da década de 1990, estava concentrado no Rio de Janeiro, independente da produção ser do Rio de Janeiro ou de São Paulo. Os filmes produzidos em São Paulo tinham mais público no Rio de Janeiro.
Isso aconteceu porque existiu uma formação de público. Quem vai ao cinema desde aquele período - e ainda hoje - é um público que está numa faixa etária entre 15 e 25 anos, ou seja, final de ginásio e começo de universidade. E essas foram as duas áreas que nós atacamos para formar esse público. Nós não fizemos apenas cinema na universidade, nós íamos às escolas na Zona Norte, na Zona Sul. O critério para a escolha dos filmes nesse programa era a faixa etária. Montávamos uma programação que tivesse o mínimo de coerência de acordo
com um filme que ia ser lançado. Por exemplo, afinidade de temas e de estilos. Se íamos lançar o filme “Central do Brasil”, procurávamos mostrar filmes parecidos com este. Se fossemos lançar um filme adaptado de uma novela, procurávamos outros filmes adaptados dessa mesma novela. Algumas vezes, colocávamos uma solicitação de atenção maior do que se imaginava que as crianças poderiam ter. Quando exibimos um filme como “Vidas Secas” para crianças de primeiro grau, alguns professores tiveram receio: “Não é uma história um pouco complicada para crianças de oito e nove anos de idade compreenderem?” Quando recebemos os trabalhos que as crianças fizeram sobre o filme – porque elas sempre faziam trabalhos –, eles eram absolutamente surpreendentes, na medida em que as crianças viam a história de dois meninos e uma cachorra. Era um menino mais velho, um menino mais novo e a cachorra Baleia. Tinha o pai e a mãe, mas a história se deslocava do Fabiano e da Sinhá Vitória para os dois meninos e a cachorra. Tudo o que se passava entre os meninos e a cachorra era o centro do filme para eles. O que suspeitávamos era que, antes de a criança ir ao cinema hoje ou mesmo antes de ler o primeiro livro, ela já teria assistido a horas de televisão. Tentávamos, então, com uma linguagem simples, porém sofisticada para essa faixa etária, fazer com que a criança conseguisse acompanhar o filme, sem subestimá-la.
Além disso, na Rio Filmes, conseguimos montar uma estrutura de trabalho que permitiu a abertura do Espaço Unibanco de Cinema, estabelecendo uma parceria com o circuito, que passaria os filmes primeiro no Rio de Janeiro, depois em São Paulo, Belo Horizonte e finalizava no Ceará, fornecendo equipamento de projeção. E ainda garantindo, como parte do pagamento pelo nosso investimento, a construção das salas. Os cinemas desse circuito teriam que exibir, todos os dias de ano, um filme brasileiro distribuído pela Rio Filmes. O que permitiria ter sempre um filme brasileiro em cartaz e dar rotatividade e planejamento à estréia dos filmes.
GOVERNO COLLOR Um fato marcante foi a interrupção da produção cinematográfica entre os anos de 1990 a 1992. Com o retorno dos primeiros filmes em 1993, parte da imprensa começou a se perguntar: “Para que esse negócio de cinema brasileiro de novo, ninguém sente falta” Então, o que nos cabia era formar uma visão crítica, uma consciência a respeito da produção, de modo que as pessoas pudessem discutir os filmes, sem recusá-los a priori. Nesse sentido, o trabalho que realizei na Rio Filmes me trouxe grande satisfação. Não que tenhamos sido os únicos responsáveis, mas o trabalho que realizamos nesta Empresa gerou um espaço de interesse pela apresentação dos filmes brasileiros.
ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE CRÍTICOS FEDÉRATION INTERNATIONALE DE LA PRESSE CINEMATOGRAPHIQUE Minha atividade sempre foi a de crítico. Desde 1971, comecei a freqüentar festivais internacionais de cinema. Em 1970, estive no festival de Cannes, mas somente em 1971 comecei a freqüentar com regularidade. Pelo Jornal do Brasil, fui várias vezes ao Festival de Cannes. Praticamente todos os anos, desde 1972, tenho acompanhado esse Festival. Também participei dos Festivais de Veneza e San Sebastián, além de outros. Naturalmente, nesses festivais temos contatos com outros críticos.
Eu comecei a escrever para jornais e para revistas de cinema, sobre cinema brasileiro e sobre o cinema latino-americano, além de participar de alguns encontros internacionais. Por exemplo, comecei a me interessar muito pelo Eisenstein*, fiquei lendo muito sobre ele e, num certo momento na década de 80, fizeram um encontro sobre o Eisenstein, na Europa, e eu participei. Naturalmente, a gente começa a conhecer outros críticos de outros países e a conversar, discutir e confrontar impressões e idéias. Preciso dizer também que havia interesse em conversar sobre o cinema brasileiro. Eles se surpreenderam com os filmes do Cinema Novo e com os posteriores. Havia um grande interesse das pessoas sobre isso.
No começo da década de 80, a Associação Internacional de Crítica de Cinema, uma instituição fundamentalmente européia, começou a se preocupar em abrir seu leque. Começou a buscar uma ponta na Ásia, trazendo críticos japoneses, uma ponta na América, mais especificamente na América Latina. Nesta, já existia um trabalho regular de crítica cinematográfica, especialmente no México e no Brasil. Então, as possibilidades de contato eram com um mexicano ou com um brasileiro. Por acaso, os dois críticos mexicanos, que costumavam acompanhar os festivais de cinema, eram meus amigos. Nos víamos sempre, até mesmo pelo fato de sermos latino-americanos, estávamos sempre em contato discutindo filmes. Por isso, os mexicanos me indicaram para ser o Vice-Presidente para a América Latina. Após essa indicação, fui reeleito pela segunda vez. O fato é que coincidiu com o prêmio da crítica que o filme “Memórias de um Cárcere” havia ganhado no Festival de Cannes, por isso havia um certo interesse na minha permanência. Além do filme de Eduardo Coutinho, “O Cabra Marcado para Morrer”, que ganhou o prêmio da crítica no Festival de Berlim, havia uma retomada do espírito do Cinema Novo. Os primeiros sinais de uma abertura democrática no país começavam a aparecer. Isso permitiu um interesse natural pelo cinema brasileiro.
Recebi o convite para participar da Federação Internacional de Críticos de Cinema, como Vice-Presidente. Nessa ocasião, o presidente era o Marcel Martin, um crítico francês. Depois, entrou o Derek Malcolm, um crítico inglês que continua sendo Presidente desta Associação. Criaram dois cargos de Vice-Presidente: o Tadao Sato representando o Japão, e eu representando a América Latina. Este trabalho nos motivou a estimular associações na Argentina, Chile e Peru para que se filiassem à Associação Internacional.
CONSULTORIA A PETROBRAS Trabalho prestando consultoria para a Petrobras desde 1999. Havia uma preocupação da Petrobras em organizar sua área de patrocínio nas artes. Quando essa foi criada, fui convidado para desenhar o programa de cinema, em 1999. A idéia era saber que características deveriam ter os programas de apoio à música, às artes plásticas, ao teatro e ao cinema. Durante as conversas com a área, sugeri que ela apoiasse o cinema brasileiro, através da produção de curta-metragem. Não porque o curta-metragem tivesse algum destaque especial, mas pela possibilidade que nós tínhamos de trabalhar inteiramente apoiando a produção, a distribuição e a exibição.
Começamos a discutir, por sugestão minha, que somente o apoio à produção não bastaria. Da metade dos anos 90 para cá, o problema principal do cinema no Brasil é a distribuição. Ainda que seja difícil produzir, distribuir um filme é muito mais difícil. A gente quis reproduzir alguma coisa que, de certo modo, fosse bem vivo na Empresa. A idéia da Petrobras existiu antes da própria Empresa, quer dizer, a idéia de uma empresa de petróleo gerou a Petrobras, não foi uma atividade econômica, foi um investimento, não foi uma reivindicação cultural. No cinema acontece mais ou menos da mesma forma. Antes de pensarmos em qualquer possibilidade econômica, o que nos interessa é que temos que fazer cinema e a vontade de fazer de forma independente. Ou seja, primeiro vem a vontade de fazer, depois cuidamos do resto. Não se trata de falta de atenção ao “como é que se faz”, mas sim de uma vontade cultural. Comecei a trabalhar partindo do seguinte princípio: “Temos que tentar fazer uma atividade global e estimular a reflexão.” Se conseguirmos apoiar a produção, mas investindo um pouco mais na distribuição e exibição dos filmes, daremos um impulso à reflexão do cinema brasileiro, conseguiremos fazer uma movimentação grande. Havia uma preocupação de estimular, através do curta-metragem, a produção, especialmente onde não existisse condição industrial, onde não tivesse laboratório, estúdio etc. Quando fui chamado para participar já existia o apoio à produção de filmes de longa-metragem, promovido pela BR Distribuidora. A Petrobras queria fazer algo diferente e sistematizar esse patrocínio.
Então, nós começamos a discutir o patrocínio exclusivo a filmes de curta-metragem, apoiando a produção de filmes de curta-metragem para sala de cinema, para as novas mídias digitais. Daqui a pouco, eu vou começar a poder passar filme na internet. Hoje quase todo mundo pode ter uma camerazinha. Pode ser um exagero, mas digamos que é menos complicado para um grupo fora do eixo Rio - São Paulo ter uma câmara digital do que ter uma câmera 16 ou 35. Por isso abrimos a possibilidade de apoiar a produção de filmes em 35 milímetros e filmes digitais e ainda a distribuição de curta-metragem como complementos dos filmes de longa-metragem ou reunidos em programas, para formar o Curta às Seis. Além disso, houve ajuda para a publicação de livros de cinema. Esse foi o nosso primeiro pacote. Mais recentemente, em 2003, a Petrobras decidiu unificar seu sistema de apoio à atividade cultural, incorporando aos filmes de longa-metragem as mesmas características de apoio que ela dava aos de curta-metragem. Ou seja, estes passaram a ser escolhidos através de licitação. Abríamos o concurso e os filmes inscritos são avaliados por uma comissão de profissionais da atividade cinematográfica.
PATROCÍNIO / CINEMA Hoje a Petrobras oferece apoio aos filmes de longa-metragem e aos de curta-metragem, sem distinção. São linhas de apoio diferentes. Hoje temos para serem julgados filmes de longa-metragem, filmes de curta-metragem em 35 milímetros e curta-metragem em mídia digital. Além disso, continua existindo o programa de circulação dos filmes para o projeto Curta às Seis e o Curta a Petrobras às Seis. Como consultor do programa, não participava diretamente do processo de seleção. O que eu faço é indicar um certo número de profissionais que poderão ser convidados para compor as comissões de seleção. Essas comissões de seleção indicam e põem em ordem um determinado número de projetos, que posteriormente será encaminhado ao Conselho Petrobras Cultural, criado em 2003. Desse conselho, fazem parte representantes do Ministério da Cultura, representantes da Petrobras e pessoas que são consultoras da Petrobras, como eu. Contamos também com o José Miguel Wisnik, que é consultor da área de música, e a Jurema Penna, consultora da área de patrimônio material e imaterial.
PATROCÍNIO / CONSELHO Junto com os representantes do Conselho, discutimos os projetos que são encaminhados pelas comissões de seleção. Os consultores apenas indicam pessoas que possivelmente farão parte da comissão de seleção. Sempre temos comissões diferentes a cada processo de seleção. É preciso que essa comissão se renove e que tenhamos representantes de áreas distintas, para garantir uma multiplicidade de gostos nas escolhas dos projetos e não concentrar demasiado poder e demasiada capacidade de decisão em poucas mãos.
PATROCÍNIO PETROBRAS / CINEMA O patrocínio da Petrobras tem sido fundamental para o cinema - talvez eu diga especificamente sobre o cinema, por uma deformação profissional. Tenho a impressão de que o processo de apoio da Petrobras à atividade cultural no Brasil é algo muito particular na história do patrocínio deste país. Acredito que há uma presença extremamente forte, benéfica e aberta a atividade cultural com o apoio da Petrobras. Até mesmo porque a Petrobras não exige que o artista tenha limitação de temas ou de assuntos. Ele pode tratar do que quiser. O poder de decisão do patrocínio ela delega aos profissionais que fazem parte da comissão de seleção, até por serem profissionais do meio artístico. Essa é uma relação extremamente nova e que acaba por influenciar outras áreas de patrocínio no país. Essa relação de trabalho, que existe entre consultores e patrocinados, é extremamente benéfica para a produção cultural. Na medida em que você não tem nenhuma indicação prévia, nenhuma obrigação além de fazer seu filme ou sua peça, com um patrocínio extremamente aberto, isso traz um volume enorme de projetos. Em cinema, tenho a impressão de que deve chegar uma média de 300 a 400 projetos de filme de longa-metragem por ano. A mesma proporção ocorre para os curtas-metragens. Existe uma grande preocupação para que a Petrobras receba uma série de projetos fora dos eixos de produção já conhecidos. Naturalmente, o maior número de projetos que chegam são do Rio de Janeiro e de São Paulo. Entretanto, recebemos muitos projetos fora do eixo Rio-São Paulo atualmente. Da forma como o Programa Petrobras Cultural está estruturado, podemos atuar em várias faixas, com diretores estreantes e diretores experientes, com filmes de curta-metragem ou longa-metragem, e uma outra faixa, destinada a projetos mais caros, permite que você atue em todas as áreas de atividades. Temos a opção de apostar em um diretor estreante, ao mesmo tempo em que estamos reforçando o projeto de um diretor consagrado. Temos essa flexibilidade, a idéia de que podemos correr riscos, apesar de correr risco estar longe de ser a expressão ideal. A idéia de que podemos ajudar um diretor a começar a fazer seu filme. Não se faz arte sem correr riscos. Não existe atividade criativa que não tenha risco em si, senão não é criativa, não é invenção, não é algo novo. A possibilidade de podermos apoiar um projeto que, a priori, não tenha uma recepção garantida no mercado é muito estimulante. Sabemos que a Comissão pode trabalhar à vontade e dizer assim: “Gostei dessa história. Acho interessante esse roteiro. Quem é o diretor? É pouco conhecido? É do Rio de Janeiro, São Paulo ou do Rio Grande do Sul? É de Pernambuco ou é de Fortaleza?” Não importa. O primeiro critério para avaliação e seleção dos projetos é a sua qualidade intrínseca. Claro que isso é muito subjetivo. Mas vale lembrar que estamos trabalhando com uma subjetividade de pessoas, que estão ligadas a uma atividade que, em princípio, tem maiores possibilidades de indicar alguma coisa nova. Um exemplo bem claro disso foi a decisão do Conselho no ano passado de dar apoio a projetos de realização de documentários e pequenos filmes de curta-metragem e ficção da Cufa – Central Única das Favelas, organizando cursos de cinema para eles. Coisas assim são realizadas com outros projetos, e o mais interessante é a resposta que eles trazem. Um dos primeiros filmes entregue a Petrobras foi de um diretor homenageado pelo Programa, o Nelson Pereira dos Santos, que fez “A compra do Zé Kéti”, e o filme de um diretor estreante de Pernambuco, que fez um desenho animado chamado “O Lobisomem e o Coronel”. Os dois filmes foram premiados em vários festivais e não foi pelo fato de terem sido patrocinados pela Petrobras, mas sim por serem dois produtos culturais de qualidade. Isso traz uma grande satisfação, afinal é um resultado prático.
FAMÍLIA / CLÁUDIA Minha esposa se chama Claudia. Ela gosta de cinema, mas normalmente, não como eu. Geralmente, ela não me acompanha aos festivais de cinema alegando o seguinte: “Gosto muito de ver filmes, mas um por dia, talvez dois, mas ver quatro, cinco filmes em um dia só não” Tenho dois filhos de outro casamento, o Bruno e a Luciana. Eles não fazem cinema diretamente, mas fazem música. A Luciana desenha e faz coisas com imagens também.
CINEMA NACIONAL / HOJE Acho que realmente houve uma retomada da produção do cinema brasileiro. Acho que ela só existiu porque o cinema não parou como forma de expressão cultural. Tivemos um apoio da Rio Filmes. Veio o Projeto Resgate, promovido pelo governo Itamar Franco, pegando o dinheiro que sobrou da Embrafilme e devolveu às atividades cinematográficas. Acredito que a cultura cinematográfica brasileira não tenha se interrompido, ela apenas não pôde se manifestar durante um certo período. Creio que, na década de 60, se estabeleceu uma divisória na atividade cultural cinematográfica brasileira. Tudo ocorreu em torno do Cinema Novo, ele definiu nosso passado e apontou nosso futuro. Definiu o passado, porque até então ninguém, além das pessoas envolvidas com cinema, havia definido que tipo de filme estava fora do contexto cinematográfico. O que ocorreu, por exemplo, com “Terra em Transe”, em 1967, quando a Tribuna da Imprensa publicou um mês antes do filme estrear uma página inteira com uma crítica do Hélio Fernandes. Ainda que não fosse crítica de cinema, era uma crítica ao filme. A crítica a um filme, na primeira página de um jornal, que não tinha um objetivo cultural e feito por uma pessoa que não fazia críticas de cinema, isto era impensável antes do movimento empreendido pelo Cinema Novo. Foi exatamente nos anos de 1960 que houve uma mobilização geral em torno da produção cinematográfica. Este fato permitiu que olhássemos para o passado e nos questionássemos acerca de quem havia feito filmes antes. Isto foi tão forte que os anos 60 marcam essa retomada. Não que os filmes fossem iguais. Vamos ver que o Glauber, o Nelson, o Joaquim, o Leon e o Diegues fizeram a mesma coisa, entretanto, existia um ponto de referência. Até a década de 60, não tínhamos referências. Como haviam trabalhado antes? Nem a rigor se conhecia muito. Essa força que se montou, neste período, continua viva. Mesmo que, a partir da metade da década de 90, as produções cinematográficas não sejam iguais às da década de 60, mas elas pertencem a uma mesma comunidade, uma mesma atividade cultural. Somente a existência dessa atividade cultural explica o fato de, em 1963, termos produzido quatro novos filmes, que foram exibidos comercialmente. E, em 1994, uns seis ou oito filmes. Hoje produzimos 50 filmes por ano. Há 10 anos, tínhamos 0,0% de público assistindo filmes brasileiros. Hoje, nós temos em torno de 15 a 20%. Percebemos dessa forma que as coisas se processaram de forma rápida. E em um momento relativamente importante, onde a concentração hegemônica, o grande mercado de produção industrial dos Estados Unidos controla não apenas a produção, mas a distribuição e a exibição dos filmes, em níveis mundiais. Por isso, entrar nesse mercado era muito difícil, no entanto, houve uma invasão, uma entrada nesse espaço. Isso porque existia uma cultura cinematográfica nesse país escondida, latente, impedida de se pronunciar, quando algumas pessoas começaram a produzir, fazendo um cruzamento entre a tradição dos anos de 1960, a televisão e o cinema industrial hoje, trabalhando com as possibilidades do digital e o que ocorria lá trás com a película. Para mim, isso é uma demonstração da atividade cultural brasileira, que se expressa muito bem em um fato pouco destacado, mas fundamental. Boa parte da produção cinematográfica brasileira depende de uma relação de investimento direta do Estado. Em um espaço grande como o nosso, mas que tem poucas salas de cinema, cerca de 1.500, são exibidos majoritariamente produções norte-americanas. Um filme brasileiro não tem as mesmas condições de competição. Ele necessita de uma inversão, de uma organização do mercado para suas características. Da forma como esta sendo conduzido, tudo é preparado para privilegiar o produto industrial dominante. No entanto, sempre existiram filmes com características cinematográficas mais populares ou menos populares, fazendo apelos às outras áreas de consumo ligadas ao lazer. Às vezes, o rádio, como se fazia no tempo da chanchada de carnaval. Em outros momentos, o teatro e a revista e, hoje, a televisão. Todos esses veículos conseguem vender uma produção cinematográfica através de uma vedete de televisão, de uma personalidade, alguma celebridade. Em princípio, esses filmes não necessitam e nunca necessitaram de apoio do Estado, porque o investimento neles volta da parcela do mercado. No entanto, nenhum desses filmes foi feito no período em que o Collor terminou a Embrafilme e que não existiam os chamados filmes culturais. Por exemplo, um filme dos Trapalhões não precisava de apoio da Embrafilme, na década de 70, ou da Rio Filmes, na década de 90, ele já tinha um público garantido. Desde que o investimento na produção seja razoável, ele consegue se manter através de sua popularidade na televisão, para um determinado segmento de espectadores. No entanto, nenhum filme dos Trapalhões, da Xuxa ou de qualquer outra celebridade, capaz de garantir um determinado número de telespectadores, foi produzido entre os anos de 1990 a 1994. Essas produções só foram retomadas em outro momento, quando surgiram filmes com interesses culturais evidentes. E também, a partir do momento em que uma parcela menor do público, menor que a desses filmes, criou-se uma idéia de cultura cinematográfica, capaz de garantir o desejo de ir assistir àquele filme também. O natural seria que diretores dos anos de 1970 e 1980 voltassem a produzir, como o Diegues, Walter Lima Junior, o Jabor e o Coutinho. No entanto, surgiu uma nova geração de diretores, representados pelo Tata Amaral, o Beto Brandt e a Rosane Svartman, vindos do Nordeste e do Sul, fazendo cinema. Então, me pergunto: “De onde surgiram essas pessoas?” “Por que elas se interessaram em fazer cinema?” “Por que, em um momento em que o mercado de cinema brasileiro estava tão fechado, explodiu uma série de novos documentários?” Em todo o mundo, documentários são exibidos pela televisão. No entanto, aqui no Brasil, não encontramos documentários sendo exibidos por esse canal. Dificilmente os documentários exibidos em outros países conseguem atrair tantos expectadores como no Brasil. Ainda é uma herança do cinema dos anos de 1960, que estavam diretamente ligados à realidade. Existe uma característica na tradição áudio-visual brasileira muito particular. Em todo o mundo, a televisão é um canal dominantemente informativo, está mais ligada ao documentário do que à ficção. A ficção da televisão é, na maior parte dos casos, o cinema, séries, filmes independentes, produzidos para o consumo na televisão. Mas a televisão é, principalmente, a produtora de modelos de informação, modelos de documentários, reportagens e jornais televisivos. No Brasil, a televisão se tornou um modelo de produção de ficção. O que caracteriza, principalmente, a televisão brasileira não são seus documentários, são suas novelas, suas ficções e suas séries. Paralelo a isso, o cinema fica preso à idéia de que é uma obra de ficção, apesar de ser documental. É uma inversão curiosa. Recentemente, os filmes que apresentaram maior aceitação de público foram “Cidade de Deus” e “Carandiru”. São filmes baseados em fatos reais, as pessoas entravam no cinema com a sensação de que iriam ver algo que realmente aconteceu. “Diários de Motocicleta” é mais um exemplo. Apesar de ter um tom de documento, ele tem uma linha de ficção, que vai passando por algumas situações documentais na América Latina. O “Carandiru” é abertamente composto pelo Babenco como uma ficção, quase um melodrama. Mas o que desperta o interesse das pessoas em assistir àquele melodrama é o fato de saber que ele já aconteceu. Eles vão para ver quem eras aquelas pessoas que foram massacradas no Carandiru. O livro do Drauzio Varella tem algumas histórias romanceadas e personagens adaptados. Dois, três personagens foram reunidos em um só. De qualquer modo, aquilo transmite a sensação de que, de alguma forma, o que está sendo apresentado é um documento. Acredito, realmente, que houve uma retomada do cinema, senão porque os jovens escolheram fazer exatamente cinema, e não televisão, escrever, fazer poesia, música?
PATROCÍNIO PETROBRAS O critério principal para a escolha de uma produção é a qualidade apresentada. Porém, cada comissão vai definir isso à sua forma. E esse critério pode apresentar várias vertentes, pode ser um produto de um realizador jovem ou de um realizador consagrado. Pode ser um produto caro ou barato. Pode ser um produto que apresente certa viabilidade de mercado para nós ou não. Pode ser um produto que apresente uma sofisticação técnica ou não. Na verdade, é preciso que esse produto apresente algo que te emocione. Pode ser um filme em preto e branco, em cores, digital, isso não é significativo. Quando deixamos esse critério na lista de questões que podem influir na escolha de um projeto, estamos afirmando que essa escolha não tem um pré-requisito cinematográfico. Seria o mesmo que dizer: “Vou apoiar esse filme, porque tais atores vão trabalhar nele. Isso vai dar uma boa resposta.” Ou então: “Não vou fazer esse filme, porque ele está defendendo uma idéia que interessa a Empresa”. É preciso deixar que os projetos que são apresentados te indiquem uma linha criativa. Esse é o ponto forte dessa forma de seleção. Recebemos um conjunto de filmes e de repente nos surpreendemos: “Engraçado, vimos uma série de filmes baseados em novelas.”
Os projetos que são pré-selecionados pela comissão eu vejo, os outros projetos inscritos vou verificando por curiosidade pessoal, de onde vêm e quais são os temas. Isso a Petrobras apresenta. Recebemos X projetos, tantos do Rio de Janeiro, tantos de São Paulo e tantos de Minas Gerais. A partir daí, é feito um mapeamento de onde chegaram os projetos e outro mapeamento indicando quantos diretores novos, quantos diretores estreantes. A última leva de projetos selecionados abrigou entre 70 e 75% de projetos apresentados pelo eixo Rio-São Paulo. Houve poucos projetos da região Sul. Alguns projetos do Nordeste, principalmente de Pernambuco, Bahia e Ceará e alguns de Brasília. O Estado do Rio Grande do Sul tem um mecanismo de apoio cinematográfico. Isso faz com que os filmes se resolvam por lá mesmo. Esses projetos são bem diferenciados. Na Bahia também existe um projeto desse nível, o Faz Cultura. Esse projeto acabou despertando a vontade de outras pessoas fazerem cinema. Apareceram alguns projetos de produtores baianos na Petrobras, pode ser que este ano apareça mais projetos do Rio Grande do Sul, pois o processo é muito dinâmico e muda anualmente. A comissão é composta por sete pessoas, entre diretores, atores, roteiristas, produtores, exibidores e críticos de cinema. Entre os selecionados, procuramos convidar alguém para participar do projeto seguinte como selecionador, isso nos permite uma renovação das comissões. Todas as comissões são diferentes, nunca repetimos pessoas nas comissões, mas existe a possibilidade de convidarmos alguém que tenha sido premiado para participar de uma comissão seguinte. Sempre que se termina uma comissão de seleção, é feita uma análise do processo de trabalho, que posteriormente é encaminhado para o Programa. Todas as sugestões e críticas que recebo sempre leio, mesmo antes de colaborar para a Petrobras.
ROTEIROS Na Rio Filmes, participei de muitos roteiros de amigos meus que estavam produzindo filmes. Participei de laboratórios de roteiro fora do Brasil, onde lia e discutíamos roteiros. Certa vez, quando ainda trabalhava na Rio Filmes, tive a oportunidade de montar um laboratório de roteiros aqui no Brasil, em parceria com o Instituto Sundance. Reunimos um grupo de roteiristas e pelo menos duas outras pessoas que não sejam roteiristas para ler, dar palpites e discutir o projeto. Por isso, é relativamente comum eu receber em minha casa roteiros de amigos. Às vezes, de amigos de um amigo. Parte dos roteiros que são inscritos na Petrobras, eu conheço pelo menos uma versão. Nunca interfiro nas discussões, secretario sempre as reuniões, mas espero que eles mesmos decidam. Os projetos que são selecionados por eles procuro ler depois.
LAZER Eu ainda diagramo. Para mim, é uma diversão. De vez em quando, diagramo o livro de um amigo ou uma revista. Faço parte do Conselho editorial da revista Cine Mais, onde também trabalho como diagramador. Além de ouvir música, gosto muito de fotografar. Divirto-me fotografando. Hoje em dia, ouço mais música do que fotografo, porque quando saio para fotografar eu me concentro muito e acabo fazendo outra coisa, menos passear e fotografar. Hoje, quando viajo, minha tendência é a de não levar a máquina fotográfica. Lembro-me de experiências visuais com fotografias muito curiosas. Muitas vezes, tinha a sensação de que estava fotografando uma coisa e, quando via a fotografia, era outra. Isso era uma grande surpresa, porque me perguntava: “Como não vi aquilo que estava no caminho da imagem?” Essas coisas são muito gostosas. Gosto muito de música contemporânea e gosto de clássico moderno.
TRABALHO / COLABORAÇÕES Faço muitas colaborações para publicações fora do Brasil. Escrevo para uma publicação on-line no México, escrevo também para a publicação on-line da Federação de Críticos de Cinema, escrevo para uma revista de cinema na Alemanha e tenho escrito ensaios mais largos para livros coletivos sobre cinema latino-americano. Essa é a minha principal atividade atualmente. Sou colaborador de alguns festivais, como o Festival de Berlim. Sou um informante de filmes brasileiros e latino-americanos. Sou um indicador. Vou sempre ao Festival de Guadalajara, ao Festival de Buenos Aires e, às vezes, vou a Lima. Na última edição do Festival de Berlim, apresentamos a versão em película do filme “Terra em Transe”, fizeram três exibições em salas e horários diferentes, em seguida, um debate com o público. Houve uma mesa em torno da apresentação do “Encouraçado Potenkim”, do Eisenstein. Fizeram uma exibição com uma orquestra ao vivo e depois um debate com o público, estava presente nessa mesa. Essas são umas das atividades que estou envolvido hoje, mas a principal delas é escrever sobre cinema para revistas.
PROJETO MEMÓRIA PETROBRAS É muito interessante quando conseguimos usar o nosso trajeto como forma de explicar algo que presenciamos. Às vezes, eu brinco com a minha mulher, dizendo assim: “Tenho a ligeira impressão de que, daqui uns 100 anos, as pessoas vão olhar para o tempo em que vivi e vão dizer: aquele cara, foi um privilegiado Viu o Pelé jogando, viu o Garrincha jogando e viu o Glauber Rocha filmando”. Essas coisas me trazem uma enorme satisfação pessoal. Acredito que trabalhar em projetos como esse da Petrobras nos permite crescer. Acredito também no trabalho de uma equipe. Não gosto de falar: “Na Rio Filmes eu fiz isso.” É claro que não foi somente eu, tínhamos o amparo de toda uma equipe. É importante que, quando formos falar algo de nós mesmos, nos lembremos daquele poema do Brecht, “Idéia Inesquecível”, onde ele falava das descobertas de Alexandre, o Grande, e questionava o seguinte: “Será que ele não levou nem um cozinheiro, será que fez tudo sozinho?” Ninguém faz nada sozinho. Todos nós que fazemos alguma coisa temos milhões de cozinheiros para nos ajudar.Recolher