Projeto: Instituto Ethos
Entrevistado por: Cláudia Leonor
Depoimento de: Josmar Tadeu Inácio
Local: São Paulo
Data: 28/05/ 2008
Realização: Instituto Museu da Pessoa.net
Código: ETH_ CB006
Transcrição: Vanuza Araújo Ramos
Revisado por: Brígida Veiga Batista
P/1 – Bom, Josmar, pra gente começar nossa entrevista, vou pedir pra você falar de novo seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R – O meu nome é Josmar Tadeu Inácio, eu sou jornalista e sou paulistano convicto, nessa cidade maravilhosa que pode oferecer a todos o acolhimento.
P/1 – Josmar, fala um pouquinho da origem da sua família, que a gente estava conversando sobre o pessoal que veio de Minas gerais, como é que é isso?
R – Sim. O meu avô, Marcelino Inácio, ele era jongueiro da cidade de Guaxupé. Meu avô foi filho de escravo e por muitos anos ele contou a história da frente negra de Guaxupé. E acabou sucedendo que o meu pai, como filho mais velho, acabou se tornando um músico de uma orquestra aqui em São Paulo. E o neto, que passou a chamar Josmar Tadeu Inácio, que sou eu, acabou a pesquisa enveredando para o lado das manifestações populares como o jongo, lundu, congada, moçambique. E engraçado que aconteceu uma coisa, assim, na minha vida. Eu me dou muito bem com instrumentos de percussão...
P/1 – Você aprendeu sozinho?
R – Aprendi sozinho, foi dom.
P/1 – Conta como foi o aprendizado.
R – Engraçado, o que eu sempre tive, sempre quis aprender a tocar instrumentos de corda e eu encontro muita dificuldade pra tocar um instrumento de corda, inclusive através da Universidade Livre da Música, da Pauta Musical, eu sinto dificuldade e acabo largando o curso. Mas na percussão é uma coisa de, que vem de gerações anteriores e que dá muito bem certo. Acredito que com os meus netos também vai acontecer o mesmo. Mas, eu atribuo isso aos antepassados, onde a raça negra, ao mesmo tempo em que ela era prejudicada, ela tinha um jogo de cintura pra suavizar um pouco essa sensação de descaso que o negro sofria aqui no Brasil.
P/1 – Josmar, qual é a sua atividade hoje?
R – Ah, hoje eu faço um voluntariado. Eu sou jornalista e faço um voluntariado. Há oito anos sou voluntário em uma favela em Heliópolis e comecei com uma rádio comunitária dentro da favela que pra mim foi muito importante. De dois anos pra cá, comecei a aprender a fazer justiça restaurativa, onde a gente aprende a acolher as pessoas, seja o réu ou seja a vítima. A gente aprende a equilibrar as duas partes numa forma de ouvir para compreender, criar uma cultura de paz. Na verdade, a gente tem que diminuir um pouco essa violência
que ocorre nos grandes centros e também que a mídia impõe dentro da nossa casa, você tem que andar com tranqüilidade. Mas, a mídia diz que você tem que andar com muito cuidado, que qualquer pessoa é um estranho e pode acontecer o pior. Na verdade não é isso. Todos nós somos carentes, a gente precisa se acolher. Nós somos semelhantes, portanto eu acho muito interessante. Acabei de sair de uma palestra do educador, o Mário Cortella, e ele dizia dessa importância de que como a gente vive melhor, porque somos ímpares e aprendemos a ser mais humilde a partir do momento que
acolhemos o outro.
P/1 – Essa tensão da mídia, ela colabora com algumas coisas? A gente tem da grande mídia que Heliópolis é uma das maiores favelas de São Paulo, né? Você que estar lá dentro e conhece bem a comunidade, como você descreveria essa comunidade?
R – Eu me sinto muito melhor dentro da favela de Heliópolis do que na Granja Viana. A verdade é o seguinte, aprendi a lidar com esse público, essa comunidade onde são pessoas muito simples, mas são muito acolhedoras. Eu me lembro do início da Orquestra do Baccarelli, onde os meninos da Orquestra do Baccarelli sempre queriam mostrar um pouco do que sabiam. E graças ao Baccarelli que essas crianças tiveram oportunidade pra se destacar. Fico muito feliz aqui, inclusive de dizer que o Adriano Costa, um menino de 15 anos que há dois anos tava no ostracismo, é um menino persistente, perseverante. Ele, durante seis, sete horas, tocava um instrumento de contrabaixo acústico, que é o pai do violão. E esse moleque tinha muita dificuldade dentro da favela pra se deslocar com esse instrumento grande dentro da favela. Enquanto isso, os companheiros, que eram do pagode, ficavam nas esquinas e achavam que ele era um burro de carga, porque quando ele passava: "Meu, olha o tamanho do instrumento que o cara carrega!". E todo mundo não valorizava ele. E Deus é muito justo, porque há um ano e meio atrás, o Zubin Mehta teve aqui em São Paulo, foi convidado pelo Baccarelli pra conhecer o espaço, dentro da favela, da orquestra do Baccarelli e ele ficou, assim, lisonjeado pela performance desse garoto de 15 anos. E ele falou: "Eu quero esse menino e vou levar pra Israel". Hoje, Adriano Costa, faz parte da Orquestra Filarmônica de Israel. Isso é uma das coisas que não sai na grande imprensa. Que as coisas bonitas que têm em São Paulo são mais difíceis de sair. Mas a gente fica muito feliz por ter acontecido isso. Outras coisas que têm lá dentro, tem um pedreiro que fez uma casa nos moldes de Gaudí. Tem a lavanderia comunitária, para as pessoas, que inclusive a Ana Maria Braga é a madrinha. E as pessoas vão lá, agendam pra poder lavar a roupa. Porque é tudo muito próximo uma casa da outra, são casas de alvenaria e posso lhe dizer: são 135, 136 mil pessoas que moram dentro da favela de Heliópolis, que poderia ser considerado um bairro, uma cidade, mas que as pessoas vivem muito bem. Fico muito feliz de ver que... Inclusive eu posso citar um caso aqui que diziam que o PCC [Primeiro Comando da Capital] tá atacando em São Paulo. Engraçado que tinha mais segurança dentro da favela do que nas avenidas principais de São Paulo. Porque é um povo muito ordeiro, é um povo muito profissional e eles não querem encrenca com ninguém. Eles só querem ter oportunidade de estar mostrando alguma coisa. Então agora, é uma cidade que os próprios... É uma comunidade onde os próprios governantes não dão muita atenção. São poucos aqueles que dão atenção pra comunidade de Heliópolis.
P/1 – Agora aqui na conferência do Instituto Ethos, qual é a tua expectativa? Você veio participar pensando em...
R – Eu tenho uma grande expectativa porque pra mim é muito importante essa questão da sustentabilidade. A sustentabilidade hoje, as pessoas têm que saber que ser sustentável até o ser humano tem que ser. Se a gente... uma relação a dois, tem que ser sustentável, porque se a gente não passar pela sustentabilidade, vamos acabar
definhando. E a coisa mais importante é que as pessoas têm que saber que reciclar um produto, seja ele plástico, seja ele borracha, não é só fazer isso dentro de casa. Porque na verdade eu escuto falar, ou então, como caminheiro, andando 25, 30 quilômetros, seja em cidade, ou no caminho do sol, no caminho da fé, ou no circuito das frutas, a gente encontra casas suntuosas de, às vezes, 800 metros quadrados, com aqueles muros elevadíssimos e inclusive com arame farpado, cercando como se fosse uma fogueira. E aí, perguntando pra alguns, eles acham que a casa deles é do muro pra dentro, só que esquecem que do muro pra fora também pertence a nossa casa. E na verdade a mãe terra é o globo e temos que aprender a respeitar a sustentabilidade. A natureza está mostrando aí em vários países o que acontece, as geleiras. Então as pessoas têm que ter essa consciência de que sustentabilidade é muito mais do que a sua própria casa. Ou então: "Ah, eu não jogo toco de cigarro aqui dentro de casa", mas na rua ele joga. Isso é uma coisa rara: “Não, papelzinho de bala aqui não. Minha casa, olha pra você ver, minha casa é maravilhosa". Mas no lado de fora, se ele está num ambiente, ele acaba jogando um papelzinho, seja lá um papelzinho ou descarta... Ou ele vai fazer uma compra, compra em excesso e isso vai prejudicando cada vez mais o planeta. E essa questão da responsabilidade social, também é muito importante, as pessoas já estão aprendendo a se conscientizar. Inclusive, hoje, as pessoas estão muito mais atentas às empresas que fazem um retorno através da responsabilidade. Eu só compro um produto determinado se essa empresa faz uma responsabilidade social, isso já é uma conscientização. Ainda é um trabalho de formiguinha, mas e acho que num período tão próximo, a gente já pode falar um pouco mais com tranquilidade com relação à sustentabilidade. E eu fiquei sabendo de uns dados, ontem, que 40% das famílias já praticam algum tipo de ação social, fiquei muito feliz em saber isso. Quarenta por cento
das famílias, é muito bonito. Porque, por exemplo, na favela de Heliópolis antigamente as pessoas jogavam tudo, descartavam tudo no muro do vizinho. E isso acarretava uma série de problemas, inundações. E hoje não, tudo é recolhido. Inclusive, uns produtos em saquinhos separados, reciclados. E a coisa mais importante, que foi uma coisa muito simples que eu vi, principalmente, nas pessoas de mais idade, onde elas não carregam sacola de plástico, é sempre aquela sacolinha de sisal, que elas vão buscar o leite, vão buscar o pão. Que é uma coisa que a gente já tinha, há 30 anos e que tá voltando novamente, essa é uma forma também de ajudar a natureza.
P/1 – E lá em Heliópolis quais os grandes desafios pra sustentabilidade? Pra desenvolver a sustentabilidade? O que você consegue imaginar?
R – Na verdade pra sustentabilidade é a questão do consumo. As pessoas hoje, estão muito mais envolvidas nessa questão de respeitar a natureza. Porque se começa a comparar tudo muito supérfluo, você acaba deixando em casa e não dá a mínima para as coisas. Então não tem necessidade de você comprar um produto de alta tecnologia, você tem que comprar um produto que te satisfaz dentro de casa pelo tempo que você fica em casa. É o seguinte, nós somos ciganos. A gente vive oito horas no trabalho, três horas dentro da condução e aí pra você conseguir passar oito horas dentro de casa vendo televisão, escutando som, MP3, entendeu? Ninguém vai. Então, meu, você tem que aprender a diminuir. Acho que as pessoas estão muito mais atentas, que a coisa mais importante hoje é você estar compenetrado numa música diferente. Isso dá a vida pra você, você não se envolve tanto nos seus problemas de sofrimento. A questão de você tá lendo um livro, que é muito importante pro conhecimento. Hoje o conhecimento não tem profissão. Você tem que ser polivalente, tem que aprender um pouco de cada coisa. A mesma coisa é religião, aprenda um pouco de cada coisa, desde que te satisfaça. Tudo que é bom vale a pena se a alma não é pequena. Então, a pessoa acaba sendo mais acessível, sendo mais tolerante, ela aprende a acolher melhor as outras pessoas. E isso acaba ajudando a comunidade.
P/1 – Josmar, como a comunidade recebe essas informações novas? Por que é mudar o seu jeito de ser um pouco, né? Como é que ela recebe isso, demora pra internalizar os processos pessoais de consumir menos, consumir conscientemente? Como elas estão assimilando?
R – Hoje a comunidade, ela tem vários acessos, né? A comunidade está sempre sintonizada no que está acontecendo, além de ter a rádio comunitária lá dentro. Acho até salutar, porque a gente tem um programa saúde, que inclusive era vinculado à Faculdade de Saúde Pública da USP. Então essa questão também do conhecimento, são vários, têm pedagogos, educadores, médicos, que estão sempre falando sobre um determinado tema e eles vão buscar isso também lá fora. Porque hoje você não tem necessidade... Ah, outra também, acho que não basta ter só um computador na sua casa pra você, é mais um aparelho que vai ficar entulhado na tua casa. Não, se você não tiver um computador, usa o do Telecentro, usa do amigo, usa da escola. Você aprende a mesma coisa. A coisa mais importante é você poder buscar o conhecimento, ir atrás, porque ninguém vai poder descobrir você dentro de casa. Um encontro como esse daqui, uma conferência internacional, que mesmo se a pessoa não puder fazer a inscrição, mas que venha como ouvinte, tem muita coisa importante aqui. Tem aqui a exposição, tá tendo aqui cada palestra, uma melhor do que a outra. Acho que é uma coisa valiosa, o Instituto Ethos está de parabéns! Conheço muitas ações do Instituto Ethos e cada vez que passa, acho que é melhor a gente tá sintonizado no Instituto Ethos numa responsabilidade, numa sustentabilidade. As pessoas ficam: "Ah, a novela da Isabela, Isabela, Isabela", todo dia a mesma coisa. Meu, desliga a televisão e vai procurar um outro tema. Eu não me conformo com isso, porque já estava se tornando uma situação crítica, várias famílias não conseguiam mais desligar a televisão, era a Isabela 24 horas. Não é possível que isso existe, é esse tipo de coisa. E a sociedade não precisa disso, a sociedade precisa de tranquilidade. Eu indo à Praça da Sé, muito tranquilo, seja qualquer hora, em qualquer lugar da minha cidade vou muito tranqüilo. Aprendi a conversar com as pessoas, a respeitar e a cumprimentar também. Quando você fala bom dia, você tá desejando o bem pra outra pessoa, que é coisa mais importante. É uma forma: "Putz, o cara falou bom dia pra mim, acho que aquele cara é louco". Não, ele não é louco, não, ninguém fala bom dia, ninguém olha pra cara do outro. Você entra no ônibus, as pessoas se escondem, como se fosse acontecer... Meu, uma cidade grande como essa e não é só São Paulo, não. Tenho uma vivência em outros estados e
fico impressionado com o estresse das pessoas. Com tudo isso que existe aqui na minha cidade de São Paulo, vou daqui pra qualquer estado e me sinto muito bem, com a maior tranquilidade. Não sou de falar mal de São Paulo, não, acho que São Paulo tem muita coisa boa que pode ser mostrada, mas que a grande mídia não mostra isso, esconde. Então as pessoas, acho que precisam se abrir mais, descobrir novos horizontes.
P/1 – A conferência te traz isso, novos horizontes em termos de conteúdo?
R – Não só novos horizontes, como novos modelos de vivência, mudança de paradigma que é uma coisa muito importante pra essa questão da sustentabilidade. E no meu íntimo também. A gente aprende a ser mais amigo, com as pessoas, é outro nível. Você começa: "Puxa vida, eu tenho uma, eu sempre, toda vez que encerro uma correspondência, digo lá "eu desejo prosperidade" e tem algumas pessoas que perguntam... Falam: "Ele é diferente, ele deseja prosperidade". Digo que prosperidade não é só dinheiro não, a prosperidade é você sair de cabeça erguida, é você estar sorrindo para as pessoas. E isso é legal. Ontem vi uma situação que me chamou atenção.O João Dória Júnior, que abriu a Casa Cor, agora, na semana passada, é um cara muito perseverante. E ele aprendeu a tratar melhor as pessoas. E, às vezes, a distância, a gente fica com aquela ojeriza, "Ah, porque ele tá na TV, ele é isso, ele é aquilo". Mas olha, no tratamento ele é totalmente diferente, é mais um paulistano que aprendeu a ter uma forma diferente de tratar as pessoas. Às vezes, a gente nem olha na cara, sai correndo, não cumprimenta. Depois, encontra no ônibus "Ah, eu conheço aquele cara mas não sei de onde".
E aqui no Instituto Ethos a gente se sente como numa família e isso é muito importante pra mim e pra minha comunidade.
P/1 – Josmar, em nome do Museu da Pessoa e do Instituto Ethos eu quero agradecer demais a sua entrevista. Obrigada!