P/1 – Bom, senhor Antônio, primeiramente muito obrigado por ter aceitado nosso convite e ter vindo dar essa entrevista aqui pra gente. Pra começar a entrevista, eu queria que o senhor falasse pra gente o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Meu nome é Antônio Pedrosa d...Continuar leitura
P/1 – Bom, senhor Antônio, primeiramente muito obrigado por ter aceitado nosso convite e ter vindo dar essa entrevista aqui pra gente. Pra começar a entrevista, eu queria que o senhor falasse pra gente o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Meu nome é Antônio Pedrosa de Vasconcelos, eu nasci em Recife, Pernambuco, em oito de novembro de 1966.
P/1 – E o nome dos seus pais.
R – O meu pai é Aquilino Pedrosa de Lima e minha mãe Maria de Lurdes Pedrosa de Vasconcelos.
P/1 – E você tem irmãos também?
R – Eu tenho mais cinco irmãos. Mais três irmãos e duas irmãs.
P/1 – E você é o irmão mais velho, mais novo, o do meio?
R – Eu sou um dos mais velhos. Depois de mim só tem mais um mais velho e depois os outros são todos mais novos do que eu.
P/1 – E a que seus pais se dedicavam lá em Recife na época do seu nascimento? No que eles trabalhavam?
R – O meu pai não tinha qualificação, ele não estudou, então ele fazia bicos. Nos anos 70, já era o final do grande êxodo de nordestinos tentando buscar uma condição melhor aqui no sudeste. O meu pai veio pra cá em 75 mais ou menos, conseguiu alguma coisa. Meu pai é uma pessoa inteligente e precavida, ele não fez como a maioria, que vinha já de qualquer jeito. Meu pai veio antes, deixou minha mãe lá com os filhos, a gente morava na casa da minha avó. Eu era muito criança, eu vim pra cá com oito anos, eu tinha acabado de fazer oito anos, então eu não me recordo muito, não tenho uma recordação... Já estou com 45 anos... Mas eu tenho uma leve lembrança. O meu pai inicialmente veio, conseguiu local, arrumou emprego... Porque ele ainda era inteligente mesmo sem ter a formação. Ele estudou até o quarto ano primário. Já conseguiu emprego logo, a maioria das pessoas, naquela época, que vinha não tinha nem leitura, ele já tinha. E o meu pai alugou uma casa, arrumou emprego e depois ele trouxe a gente. Então quando a gente chegou, ele já instalou todo mundo, até matrícula em escola pública ele já tinha conseguido. Ele cuidou de tudo.
P/1 – E qual foi o bairro, a região de São Paulo que seu pai conseguiu essa moradia, esse emprego?
R – Nós fomos morar na zona norte, onde eu estou até hoje, mas nós fomos morar num bairro muito ruim, era um bairro de periferia. Era no Jardim Brasil, local que até hoje é ruim, apesar de todas as melhoras, tudo. É um local ainda muito... Tem todos os problemas que tem a periferia. Nós fomos morar lá.
P/1 – E você lembra quanto tempo durou esse período em que seu pai estava em São Paulo sozinho pra arrumar as coisas e a sua família lá em Recife? Quanto tempo durou isso tudo?
R – Duraram dois anos. Duraram dois anos. Até ele conseguir tudo, porque ele não tinha nada. Ele fazia bicos, fazia pintura, fazia trabalhos que ele arrumava pra fazer: eletricidade, carpintaria, qualquer coisa. Ele não tinha um emprego fixo, e quando ele veio pra cá ele conseguiu. Então ele ficou dois anos, por volta de dois anos até conseguir, aí já arrumou um emprego e já se estabilizou.
P/1 – E apesar de você ser tão novo nessa época, como você imaginava que era São Paulo? Qual era sua expectativa quando seu pai estava aqui e vocês estavam pra vir? O que você pensava naquela época?
R – Olha, eu não fazia a menor ideia. Pra gente, pelo que as pessoas falavam, era uma coisa fora do comum, parecia bom. Parecia muito bom, porque ia ser uma guinada na vida da gente e realmente foi. Eu confesso. Porque se nós estivéssemos lá, a gente provavelmente não teria crescido como nós crescemos aqui, pelas oportunidades de... Primeiro de ele conseguir um emprego pra poder dar uma condição melhor e a gente estudar, por exemplo, talvez eu não tivesse estudado. Hoje eu acho que as pessoas lá devem estar melhorando. Mas eu não tenho conhecimento também, já que eu não vou lá.
P/1 – Você já falou que lembra pouco de Recife, mas o que você se lembra de lá? Como era a casa da sua avó, como era o bairro ali, as brincadeiras que vocês tinham quando eram crianças?
R – Olha, a gente vivia basicamente fora, na rua. Que o local era muito simples, então você não via carro, era uma coisa estranha, você via um carro... Porque nós viemos em 74, parece. Viemos em 74, acho que é, eu não me recordo direito. Às vezes eu confundo. Já está ficando muito distante. Imagina, em 74 não tinha asfalto, os carros eram tipo jipe, que era o local que acessavam lá, que conseguiam chegar ao local onde eu morava. E a gente vivia basicamente jogando bola nos grandes campos que tinham. Depois, com 18 anos, eu visitei lá e eu não conheci. Pra você ter uma ideia, eu vim com oito, com 18 eu fui pra lá, eu não conheci nada. As lembranças que eu tinha... Porque virou tipo uma grande favela. Não é uma favela, mas tipo becos, casas sem organização. E na época era tudo descampado, tinha uma casa aqui, outra ali, era uma casa bem simples, pequena. Inclusive, a casa, quando eu morava, não existia mais. A ideia que eu tinha era de uma coisa grande, mas depois quando a gente cresce, a gente vê que não é grande, a visão da criança é de que é grande, é tudo grande. Pra mim era tudo grande, mas depois que eu fui ver, não era tudo aquilo, o local não era tão grande assim.
P/1 – E todos seus irmãos nasceram lá em Recife?
R – Não. O mais novo, que tem por volta de 33 anos, o mais novo já é daqui.
P/1 – E você se lembra da escola lá em Recife, como era a escola lá?
R – Eu não me lembro da escola. Às vezes eu tento forçar assim, me lembrar, mas eu não lembro. Eu fiz lá o primeiro e o segundo ano. E quando a gente veio era porque exatamente tinha acabado o período escolar, meu pai se preocupava muito com isso de a gente estudar. Ele não tinha condições, mas falava: “Não, vamos estudar. Vamos estudar”. Ele dava muita importância pra isso e mérito dele que todo mundo estudou, era por pressão dele. Ele não ia admitir que ninguém parasse de estudar, pelo menos até o ensino médio. Eu lembro que quando a gente terminou o segundo ano, eu viria pra cá pra ir para o terceiro ano. Uma coisa muito interessante, quando começaram as aulas, eu fui para o terceiro ano, mas eu era muito atrasado e eu repeti aquele terceiro ano, não tinha condições. Naquela época era assim, era imperdoável. Eu tive muitos problemas de adaptação aqui, porque você sabe, a criança faz a gozação o tempo todo, apesar de que tinha uma leva muito grande de nordestinos, eu tinha sotaque. Eu lembro bem, hoje seria um bullying, hoje seria considerado um bullying de professor: “Menino burro. Caramba, você não aprendeu nada e já está no terceiro”. Eu repeti aquele terceiro e depois, numa reunião, foi uma coisa assim, absurda, hoje jamais fariam uma coisa dessas, me voltaram para o segundo ano. Então eu perdi... Nessa brincadeira, eu voltei para o segundo e aquele segundo ano eu repeti, porque realmente eu estava muito atrasado. Eu imagino, não tenho noção pra lhe dizer e comparar o ensino, nada, mas eu imagino que por causa disso dá pra gente ter noção que era bem defasado mesmo o nível. Aí eu repeti, mas depois eu passei, fui tocando meu barco.
P/1 – Então pra gente fechar essa série de perguntas sobre a sua primeira infância em Recife, vocês lembram como foi a viagem de Recife pra São Paulo? Como você foi? De ônibus, de trem?
R – Olha, foi de ônibus. Mas a minha memória não é minha mesmo, muita coisa foi formada pelo que minha mãe conta. Porque, como a gente não tinha grana, então minha mãe comprou duas passagens e ela tinha quatro filhos. Não, ela já tinha cinco filhos. Ela já tinha cinco filhos, só o meu irmão mais novo que nasceu aqui, então cinco filhos, um estava no colo, praticamente. Sabe? Aquela escadinha. E pelo que ela conta, dormiam dois num banco, um no chão, outro no corredor, porque ela só comprou dois bancos. Mas isso não é minha memória, é mais uma coisa influenciada por ela, por ela falar como foi, ela ia contando e eu acabo assimilando. Às vezes eu penso que sou eu, mas na verdade não é minha memória mesmo, eu não me recordo, pra mim foi uma grande brincadeira. Eu só vim ter noção disso, mesmo, maior, porque foi um grande choque, então tinha muita novidade, teve muita mudança, eu acho que nem tudo eu consegui gravar naquela vida nova.
P/1 – Mas você lembra quantos dias foram de viagem?
R – No terceiro dia, então dois dias inteiros. No terceiro dia você chega, é sempre assim. É uma coisa difícil, você passa mal, o ônibus não é moderno, é uma coisa que chacoalha, é barulhento, cheira mal, então as pessoas passam mal. Hoje tem uma estrutura pra se limpar, higienizar até numa viagem longa, mas naquela época não tinha. Então eu lembro que todo mundo ficou mal, criança então sofre mais ainda.
P/1 – Quando você chegou a São Paulo, você lembra qual foi sua primeira impressão? O que você viu assim e achou: “Nossa!”? Tem alguma lembrança que é mais antiga assim, de São Paulo pra contar?
R – Olha, sinceramente eu não me lembro de muita coisa. Eu lembro que a gente estava totalmente perdido. E houve um problema também, eu sei disso porque minha mãe conta, que ela não se encontrou com meu pai. O local onde eles marcaram era a antiga Rodoviária do Glicério e eles se desencontraram, foi uma confusão. Aí outros parentes... Me parece que outras pessoas que o conheciam, que pegaram a gente, levaram pra outro local e lá meu pai finalmente conseguiu se encontrar com a gente. Você não tem uma estrutura de telefone, celular, sinalização, não tinha, pra você ter uma ideia era de ônibus, meu pai foi lá buscar a gente de ônibus. Nós iríamos morar na zona norte, a Rodoviária do Glicério fica ali depois do Centro. Mas pra mim, eu não me recordo, pra mim era tudo brincadeira. Eu não queria nem saber, criança você sabe como é, acaba dormindo em cima das coisas. Minha impressão mesmo eu não me recordo, pra mim era tudo brincadeira, foi tudo divertido.
P/1 – E a sua casa lá no Jardim Brasil, essa casa que o seu pai comprou, como ela era?
R – Pra gente, quando a gente chegou lá, foi muito bom. Primeiro, que era uma casa de tijolo e lá não era de tijolo. Era muito estranho falar: “Nossa, vou morar numa casa de tijolo”. Lá, eu não tenho certeza, mas lá eu acho que era de pau a pique. Você sabe? Aquelas que têm as madeiras e põe o barro, que era uma coisa muito comum até os anos 70, não sei. Hoje acho que não tem mais, mas eu acho que até os anos 70, que é quando a gente estava lá, já era uma casa velhinha. E aí era uma casa de tijolo, só que ela não era rebocada, era só o tijolo à mostra, mas pra gente era uma coisa fantástica. Tinha iluminação, tinha água, era uma coisa fantástica, pra gente era fantástica.
P/1 – E a vizinhança ali, vocês se adaptaram rapidamente, como foi?
R – A gente, criança, se adapta rapidamente. A gente se adaptou, foi muito bom. Eu acho que foi uma infância pobre aqui já, que aqui eu já tenho recordação, mas eu fui feliz, a gente brincava na rua o dia todo, era na rua o dia todo. A casa era dois cômodos, você tem dois cômodos e um banheiro pra cinco crianças. Todo mundo ali dentro naquele local, aí na hora de dormir tinham aquelas camas que você abria, tomava conta de todo o espaço, todo mundo deitava ali, na hora de levantar tinha que fazer aquele acampamento pra levantar e minha mãe falando assim: “Vá lá pra fora”. O quintal era grande, meus irmãos... A gente jogava bola no quintal, colocava as traves e jogava bola, pra você ter uma ideia, naquela época era comum. Não tinha cerca, a casa não tinha cerca, as casas eram espaçadas, era um bairro que estava iniciando, tinham muitos problemas, problemas de violência, tudo. Mas a gente cresceu ali, eu só saí de lá com 18 anos.
P/1 – E dentre esses problemas, você mencionou que já tinha eletricidade e já tinha água encanada, mas já era asfaltado, já era organizado?
R – Não era asfaltado. Não era asfaltado. O asfalto para aquele local... Eu lembro que eu vi todo o processo de eles fazerem a tubulação, depois as guias, que era muito demorado, foram anos fazendo aquilo. Acho que quando finalmente teve o asfalto eu já tinha uns 15 anos de idade. E olha que eu cheguei lá com oito anos.
P/1 – E dentre seus vizinhos ali, muitos deles eram também imigrantes nordestinos? A população do bairro era formada mais por essa camada da população, como era?
R – Não. Não. Deveria ter uns. Porque também eu não me importava com essas coisas. Mas pra você ter uma ideia, eu acho que até que perdi o sotaque rápido em função disso, de você não ter pessoas assim que... Até faziam a gozação, aí você tentava se corrigir, aí eu perdi rápido o sotaque justamente em função disso. A maioria, que eu saiba, que eu me lembre, não tinha. Deveria ter, claro que deveria ter, a maior parte da periferia era composta de imigrantes nordestinos. Mas eu também não tenho muita noção, porque na época eu não ficava atento a esses detalhes.
P/1 – Ainda falando de infraestrutura no bairro, os serviços ali, por exemplo, escolas, o comércio... Como era o bairro nessa época em termos desse tipo de serviço?
R – O bairro era simples, estava em formação, não tinha o asfalto, tudo, mas ele tinha comércio, tinha escolas. Tanto é que tão rápido o meu pai não conseguiu uma matrícula no colégio mais próximo, mas já conseguiu outro que já ficava num outro bairro. E a gente ia a pé, a gente era criança, estava no segundo, terceiro ano, e tinha meu irmão que tava entrando, meu outro irmão que já estava indo para o primeiro. Porque naquela época não tinha pré, era direto no primeiro. Eu não sei se aqui em São Paulo já tinha, eu não passei por isso, não tenho noção. Depois eu fiquei sabendo de pré por causa das minhas irmãs, que começaram a entrar no período escolar e elas fizeram pré, talvez até já tivesse. Tinha comércio, você tem transporte, o sistema de saúde, eu me lembro dos postos que minha mãe levava. Ficavam no bairro, funcionavam. O INAMPS. Você tinha todo o tratamento que, quando a gente precisava, era feito pelo sistema de saúde público, que era o INAMPS, não era SUS. Ele funcionava, assim, não quero ser saudosista, mas acho que funcionava até melhor do que você tendo um plano de saúde hoje, mais ou menos, como eu tenho, por exemplo. Às vezes fico achando que naquela época eu era mais bem atendido. Porque funcionava, acho que não tinha tanta gente, é uma questão de lógica, muita gente sobrecarrega o sistema, tudo. E a coisa funcionava, eles foram felizes, conseguiram criar toda aquela filharada, porque você tinha uma escola pública ainda que não tinha sido totalmente destruída, por vários motivos. Nós estamos em 75, 74, a coisa ainda deveria ser remanescente de um período que foi o glamour da escola pública. Então eu ainda peguei esse pedaço aí e eles conseguiram tocar o barco, educar as crianças com isso daí. Hoje, por exemplo, acho que isso daí não seria possível mais.
P/1 – E em termos de comércio ali no bairro, como era?
R – Comércio? Tinha comércio, tinha transporte público.
P/1 – O que você lembra ali de comércio? Alguma loja específica que você tenha uma lembrança mais forte?
R – No bairro onde eu estava o comércio se reduzia mais a mercearias, tipo secos e molhados, que hoje a gente chamaria de mercadinhos. Tinham os botecos, que toda rua tinha, era mais para o pessoal beber. E tinham as padarias também, era um pouco mais longe, pra uma criança é longe, mas cinco quadras assim. Aí já entrava na avenida, que já tinha asfalto, era perigoso, passava carro, a gente tinha que ter um cuidado maior. Mas tinha comércio. Bicicletaria eu lembro bem, farmácia, terminal de ônibus, tinha uma infraestrutura. O comércio maior mesmo... Naquela época não existia shopping, o comércio maior mesmo era, por exemplo, ir para o Tucuruvi. Porque esse bairro, o Jardim Brasil, fica uma média de dez quilômetros, talvez até um pouquinho menos, do Tucuruvi. Então a gente tem aí uns três bairros de distância, o Jardim Brasil, depois a gente tem a Vila Constança, tem a Vila Gustavo, depois a gente vai chegando ao Tucuruvi mesmo. Aí, no Tucuruvi não, já era uma coisa fantástica, tem uma rua toda com lojas de... Que naquela época não era o que é hoje, era uma coisa muito bacana, era uma coisa muito legal. Tinha cinema, era uma coisa muito bacana. Depois com os shoppings aquilo degradou. Hoje eu vi o outro momento e eu sei como era diferente, era um centro, era muita gente, uma coisa muito bacana.
P/1 – Regionalmente, o Tucuruvi era um polo comercial que atraía gente de toda aquela região?
R – Era um polo. Se você queria uma referência, uma coisa maior, falava: “Vamos para o Tucuruvi fazer as compra do mês”. Depois, quando eu cresci e comecei a trabalhar, eu descobri que o Centro sim era legal, Rua Direita, Rua São Bento. E isso ainda não tinha shopping, aí eu vi: “Nossa, aquilo que é legal”. E a coisa mais fantástica do mundo era o Mappin. Quando eu conheci o Mappin, eu falei: “Nossa, é muito melhor até do que o Centro”.
P/1 – E na questão do transporte para o Tucuruvi ou para o Centro, era bem abastecido? Você lembra como você fazia pra ir?
R – Eu lembro. Você tinha um ônibus que ia direto para o Centro, lá no bairro onde eu morava você tinha um ônibus que ia pra Praça do Correio, para o Parque Dom Pedro e dali você ia a pé para o local que você queria. Você tinha o metrô... A linha Leste–Oeste ainda não tinha, mas a linha Norte–Sul já. Isso quando eu comecei a andar por minha conta, eu já tinha meus 16 anos, mas antes eu ia com meu pai. Era sempre isso, se você quisesse ir para um local que você ia utilizar o metrô, você tinha que ir até Santana, pegava um ônibus até Santana e de Santana você se perdia, ia embora pra onde queria em São Paulo, era muito bacana. Eu sempre conheci já com o metrô. O metrô, eu acho que ele começou a funcionar em 75.
P/1 – Na década de 70, né?
R – É. Eu não tenho certeza, mas eu lembro que ele estava começando a funcionar naquele momento. Eu cheguei até a ver maquetes ainda quando estava parte em construção, aí eles tinham região que tinham as maquetes, era uma coisa fantástica pra uma criança ver aquilo, falei: “Olha, um trenzinho enorme!” Que era toda São Paulo.
P/1 – E para o Tucuruvi também era um ônibus?
R – Tucuruvi também era ônibus.
P/1 – Uma linha direta?
R – Era ônibus. Meu pai não tinha carro, a gente ia sempre de ônibus. Normalmente os ônibus não paravam no Tucuruvi, eles iam pra Santana, eles iam para o Museu do Ipiranga e passavam por Tucuruvi. O Tucuruvi era um ponto de referência, não era tão longe, então ele sempre passava por ali. Pra você ir para o Tucuruvi, você pegava um ônibus perto de casa e ia ao Tucuruvi.
P/1 – Falando um pouquinho da sua infância ainda, então a gente vai falar um pouquinho do seu período na escola. Você teve que voltar uns anos, mas e depois, como foi o restante do seu período escolar? E o que você pensava, nessa época, em ser quando crescesse? Como era?
R – E não tinha a menor noção. Eu estudava porque o meu pai obrigava, todo mundo estudava, eu tinha que estudar também. Pra gente era sem cogitação o não estudar. A filosofia do meu pai não tinha outra chance, como algumas famílias tinham: “Ah, você não quer estudar, então não vá mais”. Ele não. Ele era uma coisa sagrada, pra ele, teria que terminar. Até isso eu sou grato a ele, de ele insistir que terminasse pelo menos até o ensino médio, tinha que ser feito isso, porque aí ele falava que enquanto você não terminasse aquilo você ainda era analfabeto, depois daquilo você estava alfabetizado. Aí você ia ver o que faria da sua vida. E ele fazia questão que estivesse alfabetizado, e alfabetizado pressupõe o ensino médio também. Eu adorava a escola. Depois que saí desse primeiro momento dessa escola que eu sofri muito e fui numa escola mais próxima da minha casa, já era o terceiro ano que eu estava fazendo depois de ter repetido o segundo. Passado o segundo e ali já era o terceiro, eu já estava engrenado naquele sistema, eu já estava bom, só que estava atrasado com relação aos meus amigos. Tem mais um detalhe, que eu faço aniversário no final do ano e comecei a estudar antes, com seis anos, e isso meio que compensou, eu era repetente só em dois anos, eu até dizia isso, porque eu estava na faixa etária, falava: “Eu sou repetente só dois anos”. Na verdade eu perdi três anos e isso pra mim era muito chato. Você sabe, quando você é criança perto dos seus colegas, dizerem: “Nossa, você é burro”. Porque naquela época repetia mesmo. E eu engrenei bacana, eu gostei, fiz meu círculo de amigos. Até hoje eu tenho contato com os meus amigos daquela época, a gente se reúne, se encontra. Pra você ter uma ideia de como foi forte, eu estou falando isso pra lhe dizer como marcou. Por exemplo, eu não encontro com o pessoal da minha faculdade, nem do meu ensino médio, eu encontro assim, a gente conversa, tudo, mas o pessoal do primeiro grau, a gente se encontra até hoje. Tá todo mundo bem, tá todo mundo bacana, a maioria deles. Mas a grande parte, a gente se reúne uma vez por ano, a gente se encontra numa churrascaria, numa pizzaria, é muito bacana. Pra você ter uma ideia de como foi importante pra mim e como eles também me ajudaram a me relacionar com o bairro. Foi muito bacana.
P/1 – E o seu pai tinha essa preocupação muito forte que vocês estudassem, mas ele tinha algum desejo que você se encaminhasse pra alguma profissão específica? Ou ele deixava isso muito à escolha dos filhos?
R – Não. Não. O meu pai nunca influenciou a gente assim, tipo, às vezes eu via essas coisas: “Ah, meu pai quer que eu seja médico”. Meu pai queria a questão da honestidade, ele tem aquele pensamento meio retrógrado: “Tem que ser honesto, não pode sair da linha, tem que caminhar certinho”. Agora, o que a gente ia ser, eu acho que nem ele também fazia noção de profissões e tudo. Pra você ter uma ideia, no ensino médio eu fui tentar por minha conta fazer matrícula em escolas técnicas, porque naquela época tinha Vestibulinho. Você tinha que passar... Eu fui sozinho, eu decidia na hora ali, eu não tinha noção nenhuma. Eu ia com meus amigos: “Você vai fazer o quê? Você vai fazer isso”. Exatas, Biomédica, ele nem sabia. Ele não participou disso. Ele fazia questão que fizesse, o quê não interessa, se fosse normal, se fosse técnico, ele não fazia a menor noção. Aí eu já ia começando a perceber também o ponto de vista dele, os dados que ele tinha, até que ponto eu podia contar com ele. Lógico que ele era uma pessoa inteligente, era crítico politicamente, não tinha formação acadêmica, mas ele meio que deixava, não tinha essa de ser médico, de ser advogado: “Ah, vê aí, faça o que você quiser”. É até bacana isso. Foi até bom.
P/1 – E você, quando é que começou a perceber em você mesmo, pender pra um lado, pra humanas... Quando é que começou a perceber quais matérias gostava mais?
R – Eu acho que no ensino médio eu me identificava mais com humanas. Eu até tinha um preconceito com pessoas que gostavam de exatas e de biomédica. É besteira, mas eu achava que cabeça, pessoas inteligentes eram pessoas de humanas. Quando a pessoa falava que queria ser engenheiro, médico, eu falava: “Ah, coitado, limitado, vai ser um tecnocrata, vai fazer só aquilo”. Mas tudo bem. Isso porque eu não tinha muito dado ainda. Depois, com o tempo, no meu ensino médio eu fiz curso técnico – hoje nem existe mais – Mercadologia, era um curso numa escola da prefeitura, uma escola que tinha... Comercial. Lá em Santana. Ainda tem essa escola, mas esse curso eu acho que não tem mais. Isso só ressaltou mais ainda minha postura, minha posição de que humanas era o legal, aí queria fazer todos. Teve um momento da minha vida que eu queria estudar muito, eu queria fazer História, Antropologia, Filosofia, Sociologia: “Ah, vou fazer tudo isso”. Mas a vida não é assim. E tinha a questão da deficiência no meu ensino médio, que eu fiz curso técnico, então eu não tinha muita formação de Física, Química, eu não sabia nada, mesmo. Português, Matemática, era tudo por alto. Hoje não é mais assim, mas naquela época você fazia tudo junto. O primeiro ano era tipo basicão, expresso do ensino médio, e o segundo, e o terceiro, eram a parte técnica. E por causa disso eu fiquei deficitário nas outras matérias, aí não tinha como passar no vestibular. Mas em compensação, eu também não queria perder mais tempo, que eu já tinha perdido muito tempo lá atrás. Falei: “Poxa, meus amigos... Eu já tenho essa idade, eu quero estar na faculdade”. Tanto é que eu passei, só que eu só passei em Mogi das Cruzes, que a gente falava que era o refugo aqui de São Paulo. Depois teve uma explosão de universidades, mas naquela época não tinha uma explosão, você tinha algumas faculdadezinhas assim, que eram caras, caríssimas. Mogi era uma Universidade... Era mais barato, porque ninguém queria ir pra lá, era de trem, um trabalho... Eu tava meio porra louca, falei: “Ah, legal”. Eu não cortava cabelo, não fazia barba, andava com a mesma roupa, era comunista, a minha postura era falar: “Que, eu vou estudar em Mogi”. Aí eu fui. Foi muito legal pra minha formação, eu tinha 20 anos. Acabou dando aquilo mesmo, eu acabei indo e eu fiz Jornalismo lá. Mas eu não estava muito certo do que eu queria, eu não tinha noção do que era o mercado. Nessa época... Eu fui bancário, eu trabalhei no Itaú durante cinco anos. Foi bom pra mim, pra eu aprender o outro lado, justamente isso me ajudou a não gostar do capitalismo. Quando eu saí de lá eu era caixa, eu atendia as pessoas, falava: “Desgraçado. Rico desgraçado”. E não era assim. Eu estava no ensino médio, terminando o ensino médio. Eu saí de lá quando eu entrei na faculdade, porque eu era caixa... Bom, talvez você queira ainda manter aqui e isso talvez já vá pra outro momento, né?
P/1 – Pode continuar falando à vontade.
R – Eu era caixa e comecei a trabalhar como office boy. Eu trabalhei dois anos como office boy, depois trabalhei dois anos como escriturário. Completei 18 anos e fui para o escriturário. Depois eu fui promovido. Eu era uma pessoa polivalente. Eu trabalhava em agência. E como eu era muito interessando, aí eu aprendia de tudo, então quando faltava um funcionário, vai, um funcionário de escriturário no setor de cobrança, aí: “Ah, chama o Toninho, vai ele pra lá”. Porque qualquer coisa da agência eu sabia fazer. E eu trabalhava com outro boy. O outro queria morrer, porque o serviço sobrava só pra ele. E o outro era desinteressado, eu era interessado. Eu só não ia para o caixa, mas eu era tipo um tapa-buraco, era muito legal. Quando completei 18 anos, aí eles me promoveram e depois de dois anos eu fui para o caixa, eu era novo no caixa, tinha 20. Até a maioria do pessoal era casado, tinha família, e eu era moleque ainda. Naquela época não era fila única, pra você ter uma ideia, não era nem eletrônico, eu vi o processo de ser eletrônico. Naquela época você ia lá no relatório pra ver o saldo da pessoa, era uma coisa bem arcaica. E eu fazia o meu almoço correndo pra fazer graça para as meninas. Eu fazia meu almoço correndo, vinha rapidinho, sentava no meu caixa e ficava ali conversando com o colega do lado e eu podia, colocava lá “Fechado”, aí quando vinha uma menina assim que eu estava de olho, falava: “Ah, vem aqui”. Aí o pessoal queria morrer, porque aquelas filas enormes, era horrível. Porque você fazia tudo no banco, não é como hoje que tem internet. Não sei se você sabe, se já ouviu falar, mas era horrível, o banco era o centro da vida das pessoas. Só pra falar ir ao banco, pra você fazer qualquer coisa, uma conta de água, luz... Aí eu fazia isso, era horrível, chamava atenção, o gerente vinha: “Não faça isso, pô, não sei o quê”. Eu continuava fazendo. Eu era muito moleque. Meu caixa dava muita diferença, eu era muito irresponsável. Quando eu saí do banco... Eu saí do banco porque o meu chefe, que era o tesoureiro, ele: “Pô, trabalhe direito”. Mas eu reconheço, a culpa era minha. Aí eu discuti com ele, falei: “Então dá minhas contas, me manda embora.” “Não vou te mandar embora”. O gerente: “Não, a gente precisa de você”. Que eu era tipo um tapa-buraco: “Olha, faltou um funcionário do setor. Tá bom, fecha seu caixa, vai pra lá, para o que faltou ali”. Eu ainda era isso. Mas aí eu discuti com ele, ele falou: “Não, não vou te dar tuas contas”. Eu falei: “Então eu peço minhas contas”. Eu já estava na faculdade, eu já me achava ‘o jornalista’. Já fazia um semestre e já me achava ‘o jornalista’. Aí eu pedi minhas contas, perdi todos aqueles direitos, eu tinha cinco anos, eu poderia convencê-lo a me mandar embora pra retirar tudo. Aí eu não tive direito a nada. Sem contar que eu tinha dívida no banco ainda, porque dava muita diferença no meu caixa e o banco fazia você assinar, o banco não perdoa. Eu era caixa: “Tá faltando?” “Tá” “Então assina aqui”. Quando eu saí, eu tive que pagar todas aquelas diferenças, que o certo seria ir lá procurar, ver onde eu autentiquei errado, mas eu não quis saber, não tava nem aí. Não tava me lixando mais pra dinheiro, não queria saber de dinheiro, dinheiro é uma coisa ruim.
P/1 – Então essa foi a sua primeira experiência profissional? No banco.
R – No banco. Eu fui bancário durante cinco anos.
P/1 – E como você começou lá? Você fez um teste, alguém te indicou? Como foi?
R – Ah, com 16 anos normalmente a molecada já começava, naquela época, trabalhar de office boy. Hoje eu não sei o que é. Hoje é telemarketing, talvez, não sei. Deve ter alguma coisa que te joga lá no meio do olho do furacão. E você não é gente, você é o office boy, na escala você está lá embaixo, é como um estagiário. Pronto, estagiário, esse é o exemplo hoje. O estagiário não é gente, pra gente tem um padrão, o estagiário não conta, tem outra regulamentação pra ele. Eu era boy e eu sofria, cara, sofria mesmo, pastava mesmo, todo mundo mandava em mim. A gente tinha medo, tá entrando no sistema, até o faxineiro mandava em você. E você tinha medo, tinha a questão do respeito com quem era mais velho... Então qualquer lado que viesse uma ordem você fazia. Todo mundo procurava emprego, a meninada toda com 16 anos, era legal. Até hoje eu utilizo o que eu aprendi naquela época pra entender as pessoas, os egos, porque você está ali no meio e você é o mais fraco, então você tem que ter o jogo de cintura pra poder também fazer suas coisas erradas. Tipo assim, ir a pé pra pegar o dinheiro do ônibus pra comer um churrasco grego. E ninguém vê, e tem que fazer isso sem ninguém ver. Você ser office boy era tipo padrão, era o primeiro emprego do garoto.
P/1 – E esse emprego de office boy te permitiu a conhecer a cidade inteira, ele deu novos caminhos pra você?
R – É. Exatamente. E era aí que aprendi muita coisa. Eu me orgulhava de saber, quando alguém chegava pra mim, falava assim: “Ah, onde fica a Brigadeiro, a travessa...” “Ah, você pega esse ônibus”. Eu sabia tudo. Hoje isso não vale, porque já mudaram as linhas, você tem metrô. Às vezes eu fico pensando: “Como é mesmo a rua?”. Às vezes mudou a rua. Porque nós estamos falando de 82, quando eu fui boy, 82, 83.
P/1 – E como você andava pela cidade? Nessa época você já tinha um transporte próprio ou você utilizava da rede pública?
R – Não. Era a pé. Era a pé. Eu só vim comprar um carro quando eu já tinha 23 anos de idade, aí eu comprei um carro velho, meu primeiro carro. Era a pé.
P/1 – Falando nisso, você lembra o que você fez com seu primeiro salário?
R – Meu primeiro salário? Eu ajudava em casa, tinha essa. Nessa época meu pai era ascensorista e trabalhava em feira livre também. Ele era ascensorista à noite. Meu pai sempre correu atrás pra tentar dar o mínimo. Ele trabalhava à noite de ascensorista e depois que chegava à casa de manhãzinha, a gente ia pra feira, ele trabalhava em feira livre, vendia gibis na feira livre. Isso que é a semente do sebo, trabalhar em feira livre vendendo revistas, gibizinhos. Depois ele começou a colocar livros também, tudo, porque as pessoas: “Ah, compra livro, troca aí”. Aí ele ia colocando, era tudo no chão. Isso eu tinha oito, nove anos de idade, a gente ia junto com ele. Daí pra dar uma força. Pra dar uma força, você era obrigado a ir também pra ajudar.
P/1 – E foi seu pai que organizou esse comércio de gibis? Ele que começou?
R – Por necessidade. Por necessidade. Aí ele começou, a gente ia pra feira livre, depois a gente foi crescendo, ele já tinha um carrinho, a gente ia com o carrinho. A gente era criança ainda, ele ia com o carrinho, a gente ia do lado segurando no carrinho. A minha infância, depois que a gente voltava da feira... A feira vai até o meio-dia, uma hora da tarde, era só a parte da manhã. Aí, à tarde a gente ia pra casa, jogava bola, e no período escolar, às três da tarde, você já tinha escola. Então sobravam duas, três horas pra você jogar bola, tudo, em parte até tirava a gente também de ficar no meio dos grupos que ele não achava legal, mas não tinha jeito, a gente acabava ficando. O dia que não tinha feira, final de semana, a gente acabava ficando. Mas depois ele pediu as contas do emprego dele, com o dinheiro que ele saiu ele comprou uma Kombi e já fez um negócio grande, começou com muito livro, tinha muita coisa. Nesse meio tempo, eu já tinha meus 15 anos, já era uma coisa grande da feira, era feira quase todo dia. Só que eu não gostava, eu queria trabalhar. O meu irmão mais velho, por exemplo, com 16 ele começou a trabalhar, aí eu falei: “Pô, quando eu fizer 16...”. Parecia um ritual de passagem, quando eu fizesse 16 eu ia também. Se ele foi eu também vou, aí eu saio da feira. Porque eu não gostava da feira, eu já queria outra experiência, queria andar de roupa social, queria me sentir...
P/1 – Adulto.
R – É, eu queria me sentir adulto, tem aquela coisa. Depois, tanto é que quando eu saí do banco, meu pai já tinha uma instalação, uma loja, um ponto comercial alugado e que já era sebo. E o nome “Sebolândia” foi ele quem deu. “Sebolândia”.
P/1 – E essa feira que ele começou esse comércio...
TROCA DE FITA
P/1 – Voltando a falar daquela banquinha do seu pai na feira, onde era essa feira? Era perto da sua casa?
R – Eram as feiras próximas ao Jardim Brasil, onde a gente morava. Todas as feiras do pedaço. E isso também ia aumentando o meu horizonte, porque aí eu já ia conhecendo, também ia com ele, aí ia me dando mais liberdade, autonomia. Porque na feira, uma criança da feira... Ainda tem feira hoje, se você vir uma criança andando sozinha na feira ali, já conhecendo tudo, senhor daquele local... Eu conhecia quase todas as feiras.
P/1 – E nessa época você chegou também a aprender a dinâmica do negócio? De repor um estoque, de comprar um livro que era mais procurado?
R – Na verdade não. Na verdade não. Eu não vou mentir, não. Eu brincava. Eu brincava. Eu ficava ali o tempo todo. É uma criança, por isso que não é legal uma criança trabalhar, porque tudo que eu fazia era brincadeira. Eu fazia, meu pai falava: “Fica ali. Olha lá”. Aí você olhava, aí passava uma pipa, você saía correndo atrás: “Volta aqui moleque”. Aí quando via, cadê? A gente sumiu, tá jogando bolinha de gude. Tinham feiras que tinham uma praça bacana, eu e meu irmão – porque eu ia com meu irmão – levávamos bola e ficávamos jogando bola. Meu pai: “Vem aqui”. Aí a gente atravessava a rua, ia lá, fazia o que ele queria, voltava pra lá. Era uma brincadeira, era uma extensão... Porque a criança tem isso. Hoje eu entendo as crianças, porque... Eu não tive uma infância infeliz, não, eu tive uma infância feliz, porque mesmo eu consegui levar isso numa boa. Eu acho que se eu fosse um pequeno negociante eu não teria tido uma infância feliz, mas não foi o caso.
P/1 – Você se lembra dos gibis que seu pai vendia, qual era o mais popular?
R – Lembro, e por causa disso... Não. Assim, a estatística de comércio, quanto vendia, eu não fazia a menor ideia.
P/1 – Mas qual você mais gostava?
R – Eu não fazia ideia se o dia todo ele não tinha vendido nada. Eu não ligava pra isso. Mesmo depois de velho, com 14, 15 anos, eu ainda não me preocupava com essa parte, falava: “Isso não é problema meu”. Lógico que eu já ficava mais centrado, já olhava melhor, já sabia fazer o troco, já estava maior, mas eu não tinha a responsabilidade de aquilo ali estar no positivo, estar no negativo, entendeu? Em função de um marketing, de alguma coisa que eu não fiz direito, não tinha isso. Agora, uma coisa serviu, eu lia tudo. Gibi a gente lia de tudo, tudo, desde coisa de terror... Pornográfico não tinha muito, porque naquela época ainda muita coisa era proibida. E nós estamos falando no final dos anos 70, até 81, porque depois eu saí da feira. Então você não tinha acesso, mas material tipo gibis, gibis antigos, Mandrake, Fantasma, tudo que é gibi. Tintim, Asterix, eu lia tudo. Tuma da Mônica, que no caso, na época não era tão famoso como é hoje. Mas Maurício de Sousa eu conhecia tudo. Super-heróis... Nossa, a explosão dos super-heróis na HQ, eu iniciei, eu peguei o início mesmo no final dos anos 70, quando a Abril comprou a Marvel e a DC, os direitos, e começou a publicar. E tem uma curiosa... Foi que eu aprendi a gostar de gibi, de HQ nacional, que naquela época era Espectro, Cripta; era uma coisa muito bacana, era dirigido por adulto. Tinha até uma coisa muito bacana... Agora que eu tenho um sebo, eu posso cruzar com isso, foi uma pessoa à minha loja que é um desenhista, Watson Portela, uma pessoa que depois eu fiquei muito amigo dele. É até interessante, porque ele chegou lá e disse assim: “Ah, você gosta de quadrinhos, que bacana, eu desenho”. Eu falei: “Ah, mais um desenhista.” “Ah, você já deve ter lido alguma coisa minha” “Qual é seu nome?” “Watson Portela”. Eu falei: “Ah, você não é o Watson Portela”. Eu lia história dele quando eu tinha 14 anos e ele estava ali. Eu falei assim: “Ah, sinto muito, mas eu não acredito. Você não é”. E ele tremia querendo me dizer que ele era. E ele morava lá perto da loja, ele estava morando lá. Eu falei pra ele: “O Watson Portela não mora nem aqui, ele mora no Paraná”. Aí ele: “Não, morei lá mesmo, morei um tempo”. Foi muito bacana. Depois a gente ficou amigo, ele saía de casa e ficava lá na loja o dia todo. Depois eu fui à casa dele, a gente ficou muito amigo. Aí ele me presenteou com uma gravura, era uma coisa que fez parte da minha infância. Eu falei pra ele: “Poxa, eu me lembro daquela história que você fez”. E ele: “Ah, eu tenho os originais em casa”. Foi me mostrar. Pra mim foi uma coisa muito bacana, uma coisa muito marcante. Porque hoje, por exemplo, as pessoas não sabem o que é HQ, HQ dos anos 70, como a Cripta, Espectro. Tem uma história, era inteligente, tinham referências, às vezes tinha referências literárias, sabe? Era culto. Era cult, era underground, era muito legal, mas isso se perdeu. Pô, deve ter ainda, tem uns nichos ainda que curtem isso, mas não é como na época, que era popular. Isso era muito popular na época, nos anos 70.
P/1 – E além desse gosto pelos gibis, pelas HQs... Também pelos livros, romances, também foi crescendo nessa época?
R – O gosto pela leitura mesmo eu só desenvolvi mesmo depois da faculdade, porque até então eu não dava muita importância, eu não era leitor. Eu só vim a ser leitor depois, na faculdade, porque eu não tinha o impulso. E na faculdade tem um ou outro professor, lógico que ele joga, nem todo mundo pega, e fala: “Pô, isso aí que eu estou falando tem naquele livro”. Aí eu ia lá ler, que eu tinha os livros lá na loja do meu pai, porque aí eu já tinha saído do banco. Eu saí do banco quando eu estava no primeiro ano da faculdade, falei: “Ah, vou procurar emprego na área, estou fazendo jornalismo, vou procurar”. Só que aí tinha outro problema, eu tinha problemas, porque eu já não gostava de nada que era muito capitalista, não queria trabalhar com nada sanguinário. Depois eu percebo, procurando um emprego, que eu era mão de obra. Podia ser qualificada, especializada, intelectual, mas era mão de obra, era peão. Os salários eram poucos, parecidos com quando eu era bancário. Então eu falei: “Ah, eu sou um jornalista” – primeiro semestre – “Eu tenho que ganhar um milhão de dólares. Eu tenho que ficar na editoria” (risos). Aí meu pai: “Não, vem aqui”. Aí ele já estava com a loja: “Vem aqui, trabalhe aqui com a gente até você...”. E ele só pagava a faculdade e a condução. Eu falei: “Ah, tá bom, vou ficar aí”. Eu acabei ficando os três anos da faculdade, me acomodei, depois falei: “Quer saber, depois que me formar eu não vou procurar emprego na área”. No último ano, estava cursando o último ano, eu já tinha decidido. Eu ia terminar, sou um cara que sempre termino o que eu começo mesmo. Está indo mal, mas eu não vou colocar um ponto final nesse negócio, mesmo que seja... Não abandono. Aí eu terminei. Depois eu já estava convicto que eu queria montar um sebo. Então eu terminei em 90 minha faculdade, o último ano foi em 90, e em 91, em maio de 91 eu montei ali onde estou até hoje. Só que aí eu já tinha um pouquinho de leitura, porque durante o curso, que eu estava com ele, e na faculdade, eu fui iniciado na leitura.
P/1 – Antes de a gente entrar no seu sebo então, vamos falar do período da faculdade. De certa forma, esse período que você trabalhou na feira com seu pai te instigou a procurar o jornalismo depois? O que te levou a fazer jornalismo, você lembra?
R – Não. Não. Eu não fazia a menor ideia, nem me preocupava com isso. Uma coisa bacana que eu acho que teve na minha formação foi isso, não ter nada. “Ah, deixa rolar”. Quando eu fui fazer o vestibular eu não sabia o que eu queria, sabia que eu gostava de humanas, mas não ligava também, assim, se tivesse que fazer Engenharia. Eu não fazia a menor ideia, eu sabia que tinha que ter um emprego, porque tinha que ganhar uma grana, senão não era ninguém. Sabia que era difícil pra quem tinha diploma, pra quem não tinha então ia ser mais difícil ainda, então eu tinha que correr atrás de alguma coisa. É tipo a chave, eu preciso ter a chave, falar: “Olha, eu tenho a senha, posso entrar aí pra tentar brigar por alguma coisa?”. É mais ou menos assim. Eu sabia disso, eu tinha noção, mas quanto ao que eu era bom... É que não sou bom em nada, até hoje eu digo que não sou bom em nada. Eu não fazia a menor ideia do que eu queria ser. Eu fiz jornalismo porque simplesmente eu prestei lá pra Comunicação e passei em Comunicação. Só que eu já tinha uma queda pra Humanas, tem aquela coisa, eu sabia que era Humanas. Por exemplo, eu poderia ter feito Letras, numa boa, não ia ter problema nenhum. Como eu tinha feito Mercadologia, que seria algo próximo de Marketing, só que em nível técnico, falei: “Ah, vou fazer Comunicação, eu faço Publicidade, faço Rádio e TV, ou Jornalismo, lá eu vejo”. O primeiro ano, que é uma coisa básica e você tem acesso aos professores, aos cabeça, fala: “Nossa, isso aqui é muito legal”. Aí eu falei: “Ah, eu vou pra cá” “Ah, mas e a questão da grana?” “Ah, que grana, deixa a grana pra lá, eu quero saber de grana?” “Isso aqui é uma droga pra ganhar grana, você não vai ganhar grana com isso aqui”. Eu falei: “Mas e quem disse que quero ganhar grana? Deixa quieto, pode deixar rolar”. E eu fui me identificando com aquilo, com aquele meio. E foi muito legal.
P/1 – E esse período na faculdade, como foi? Como era seu dia-a-dia? Então era trabalhar, ir pra faculdade... Como eram os caminhos que você tomava pra conseguir fazer todas essas atividades?
R – No primeiro momento, no primeiro semestre, eu estava no banco, foi muito difícil. Porque, como eu lhe disse, eu era caixa, e o caixa tem um horário pra fechar. O banco fechava às quatro e meia da tarde, mas às vezes tinha cliente dentro, então se eu sou caixa e tem uma fila, eu tenho que dar conta da fila, eu não posso falar: “Olha, eu não atendo mais”. Aí o que eu fazia? Depois que eu fechava o caixa, tinha que zerar; se não batia o caixa você tinha que procurar a diferença ali na hora pra não ir pra frente. Se tá faltando dinheiro por alguma autenticação errada ou por algum dinheiro... Você teria que ver ali na hora e isso demanda tempo. Só que tinha um detalhe, o trem que eu pegava era o das cinco e quarenta – não sei ainda tem esse trem lá no Brás – que era o trem dos estudantes, era um trem expresso, saía de São Paulo pra Mogi direto, sem parar. Se você passasse mal, adeus, não tinha intercomunicador, não tinha celular, você morria. Depois de uma hora e dez minutos que chegava lá. Aconteceram até coisas curiosas assim, tipo, as pessoas jogavam pedra no trem quando a gente passava na região lá depois de Guaianazes. Até a gente falava: “Ah, ‘Indiaquera’, ‘Baianazes’”. A gente... Era pejorativo. Aí falavam: “Fecha os poucos vidros”. Não era vidro, era acrílico. O que tinha pra fechar a gente fechava, porque você só via as pedras batendo. As pessoas jogavam pedra, a molecada, né? A molecada, claro. Jogava pedra e às vezes eles: “Ah, acertei uma janela”. Lá dentro se pegasse na cara de alguém, eu já vi isso, é muito triste, a pessoa toda estourada, no meio do caminho e você ainda com meia hora de percurso pra chegar lá na frente, e você não tem acesso ao maquinista, era horrível isso. Porque cada composição, depois de uma composição você não tem acesso à outra. Eu não sei se ainda hoje é assim. São três vagões, aí depois você para e não tem acesso ao próximo. E não tem comunicação: “Olha, pare aí que uma pessoa foi atingida, está tendo um ataque cardíaco”. Ia assim até chegar lá. Às vezes quebrava, você não tinha acesso também, ficava parado lá duas horas: “Ah, quebrou”. Depois de duas horas, falava: “Olha, desce todo mundo e vamos no meio do mato procurar uma estrada, porque o trem quebrou”. Era uma falta de responsabilidade, uma falta de respeito. Hoje eu imagino, tomara, que não seja mais assim. Naquela época era, era triste. Eu tinha que pegar esse trem, porque se eu pegasse o outro; o outro a gente chamava de pinga-pinga, era um trem normal que ia parando em todas as estações, era o pinga-pinga. O pinga-pinga demorava muito mais, porque ele parava, até ele engrenar de novo, aí parava na próxima estação. O expresso demorava uma hora, uma hora e dez, dependendo se tinha sabão no trilho ou não, ele corria, se a coisa ia. Se você o perdesse, você teria que ir no pinga. Se eu não me engano tinha outro expresso, mas eram sete horas, sete e meia, aí você chegava muito atrasado lá. Os professores tinham noção: “Ah, o trem chegou? Beleza”. Aí depois tem o percurso da estação até o Campus. Eu estudava no Campus do Centro, depois tinha outro Campus também, dependendo da aula às vezes a gente ia para o outro Campus, que era lá perto da Umec. Mas eu estudava no Campus do Centro, nem sei se ainda existe aquele Campus. Era um prédio muito velho, umas gambiarras que eles faziam, puxava aqui, umas coisas ali. Se eu perdesse esse trem, então era muito... E se no meu caixa faltasse dinheiro, o chefe ficava lá: “Não vá embora, tem que procurar a diferença”. E eu olhando lá, eu falava: “Passa...”. Tinha que passar o cartão dele, a autorização dele. Naquela época tinha cartão? Acho que já tinha cartão, nem lembro mais. Ele tinha que autorizar pra pegar aquela diferença, transferir pra uma conta interna pra zerar o caixa. Não sei se vocês sabem como funciona um caixa de banco. Se faltar o dinheiro, tem que ter o dinheiro, tudo que recebeu tem que estar ali, se não está, não zerou, não pode fechar. Ele não deixa, a máquina não fecha. Aí pra transferir precisa da autorização do chefe, pra pegar um dinheiro de uma conta interna, jogar ali e zerar. Só que eu fico devendo pra conta interna, eu tenho que pagar se eu não encontrar depois a diferença. “Ah, foi uma autenticação errada que você fez, você autenticou 90 e eram só nove, então ficou faltando. Cadê?”. Aí no final você ia lá e arrumava a autenticação. Eu não queria ficar procurando, porque, poxa, eu ia perder o trem. Aí aquilo foi ficando muito estressante, porque eu tinha que pegar um ônibus. Eu trabalhava na Aclimação, perto do final da Rua Tamandaré, aí eu tinha que pegar um ônibus pra ir até o Brás no horário de pico, porque era horário de pico, aí tinham aqueles viadutos ali perto do Glicério, ali o pessoal que ia pegar o Minhocão, tinha que passar aquela região do Parque Dom Pedro pra poder chegar ao Brás. Então era muito trânsito e eu chegava muito atrasado, eu estava perdendo muito, aquilo já estava me desmotivando a continuar no banco. Eu já não dava importância pra carreira de banco mais nem... Eu já estava com outra cabeça, não estava nem aí o banco, o banco era uma coisa sanguinária, capitalista. Eu vou ajudar o capitalismo? Eu tenho é que explodir o capitalismo. Às vezes eu pensava: “Eu tenho que ficar aqui no capitalismo, porque é o melhor jeito de eu explodi-lo, por dentro, se eu estiver lá dentro é melhor”. Olha só as ideias. Mas é coisa de gente jovem. Quando o caixa faltava e eu não encontrava a diferença rápido, aí ficava... “Não. Não vou autorizar” – ele falava. O dia que eu discuti foi o dia que eu falei: “Então deixe tudo aí, eu vou embora”. Ele falou: “Ah, tem dinheiro aí dentro, é tudo responsabilidade sua”. Eu falei: “Aí pessoal, quem quiser roubar aqui, roube. Eu estou indo embora”. E você tem maço de dinheiro, tudo lá dentro e aquela responsabilidade é minha. Se você quiser ir ao banheiro, por exemplo, você tem que fechar tudo aquilo e eu deixei tudo aberto. Falei: “Faça a festa aí, porque o banco é rico”. E não era assim. Aí todo mundo: “Não faça isso”. Eu era muito novo ainda, eu era muito irresponsável. Eu reconheço que eu causei muito problema para aquelas pessoas, eu as colocava o tempo todo contra a parede, eu usava o argumento de que eu era uma pessoa necessária, de que era um tapa-buraco, sabia tudo. Eu era arrogante, porque eu sabia tudo, sabia tudo de tudo. Eu tinha mais tempo de casa, tinha essa coisa. A maioria dos funcionários tinha um, dois anos, eu tinha cinco anos. Muitos chefes eram pessoas que eu conheci sendo escriturário, quando eu era boy, e eu não conseguia vê-los como chefe. Eles tinham um problema sério, eles iam ao cursinho deles lá, faziam os workshops, os autoajudas que eles faziam pra tentar voltar chefe, e aquilo não valia nada pra mim porque eu desdenhava, na hora da reunião eu ficava avacalhando com eles, eu não reconhecia autoridade, eu era um problema. Eu tinha problema de insubordinação, na verdade esse era o meu problema, insubordinação, por isso que eu também não fui continuar a procurar emprego. Eu sempre fui muito insubordinado, e isso dá problema. Dentro de uma estrutura você não pode ser assim, você tem que ser mais grupo, o grupo tem que andar. E um dos motivos de que eu falei: “Ah, quer saber, eu vou ter a loja, pelo menos na loja mando eu e assim faço do jeito que eu quero”. Então é isso aí.
P/1 – E desse período da faculdade, que você já começou também a trabalhar com o seu pai? Como foi conciliar então o trabalho com o seu pai e com a faculdade?
R – Aí foi mais fácil, porque meu pai compreendia, eu falava pra ele dos horários... Então aí era mais fácil, porque eu quebrava um galhão para o meu pai. Eu tenho consciência de que eu o ajudei muito, porque ele trabalhava com livros, trabalhavam ele e o meu irmão mais novo, meu irmão ainda estava terminando o ensino médio. E eles tinham toda a experiência já mais do que eu, porque eu já estava há cinco anos no banco, então eu não entendia nada daquilo ali, de negócio, de comprar e tudo. Mas eu tinha outro tipo de conhecimento, que era o conhecimento de saber escolas, de pensamentos, tinha até uma cultura geral assim, uma coisa mais acadêmica que às vezes faltava o toque. Lógico que isso não é essência, mas também é importante, uma prova disso é que a maioria dos negócios de cultura hoje está cheio de pessoas... Muitos estão na mão de pessoas... O conhecimento acadêmico não é essencial num negócio. Ajuda, se você tiver vai bem, porque mesclar os dois... Mas não é. O mais importante mesmo é a coisa comercial mesmo, não tem jeito, o negócio é o negócio. A formação acadêmica só ajuda, é mais um tempero, mais um item, um ingrediente. Quando eu vim, os aliviou, porque eram os dois, então agora já tinham três, com outras ideias, tudo. Tanto é que isso deu condições para ele querer montar uma segunda loja. E foi nesse ambiente, nesse momento que ele começou a pensar que ele poderia crescer mais. Se você considerar o momento político, a gente não pode esquecer nunca, porque é muito importante o momento político, você tem o plano... O plano do... Depois do Tancredo?
P/1 – O Sarney.
R – Do Sarney. Que foi uma coisa assim, que desabasteceu um monte de gente. Então no período foi uma coisa difícil, ele soube lidar com isso, procurou outras formas de conseguir material. Então isso é um mérito dele, uma formação acadêmica não serviria de nada pra isso. Sem contar que eu não tinha formação acadêmica, não vamos esquecer que eu estava... A prepotência é muita. Que eu estava no primeiro semestre, que eu estava no segundo semestre, eu não era nada, mas me achava. Era mais um que estava ali pra contribuir, e de confiança dele, porque é filho. E isso o possibilitou correr atrás de um segundo ponto, a gente conseguiu. Nesse momento deslanchou a vida econômica dele, melhorou, foi então que ele adquiriu o primeiro imóvel, porque até então a gente morava de aluguel. Aí a vida deslanchou melhor. Foi melhor, melhorou pra todo mundo. Tanto é que, quando eu terminei a faculdade, eu montei o meu, que já era a terceira loja, e ele passou essa outra loja que ele tinha aberto para o meu irmão, ele negociou com o meu irmão e ficaram três aí, independentes. Mas aí os três contribuíam no progresso da família, porque a gente era solteiro, tudo, então a família como um todo também melhorou. Melhorou a qualidade de vida, a qualidade de vida de maneira geral pra todo mundo.
P/1 – E nessa segunda passagem de trabalho com o seu pai, aí sim você começou a aprender a dinâmica do trabalho, do negócio?
R – Aí sim.
P/1 – O que você aprendeu nessa época?
R – Aprendi tudo. Aprendi que o dinheiro todo que entra não é líquido, não é lucro. Às vezes, se você tem um projeto maior você vai ter que ter a paciência de não gastar nada, de segurar. Porque uma pequena empresa meio que mescla com sua vida pessoal, se você não tiver muita disciplina, você se afunda, tanto a sua vida pessoal como a empresa. Você afunda os dois, porque pra vida pessoal, nossa, é muito crédito que você tem. É como o banco, banco é a pior coisa que tem pra uma empresa, porque ele vê que você está bem, ele quer porque quer dar o dinheiro dele, fala: “Não use o seu, use o meu”. Ele é a certidão de óbito para o seu negócio. Se você for na conversa dele... Aí. às vezes você vê um gerente lá que tem que cumprir uma meta, coitado. Coitado, porque ele faz parte de uma... Ele já vem preparado pra convencê-lo com mil argumentos de que se você comprar o material tal, abastecer seu estoque, vai ser bom, vai crescer, e se você entrar naquela... Depois a nota promissória está lá assinada, você se endividou. Aí você não tem mais acesso a ele, já é outra pessoa que: “Sente aqui, vamos conversar da sua dívida”. Eu nunca entrei nessa, mas eu aprendi isso. Primeiro, o que ajudou foi a fase anterior do banco, porque eu via pessoas assim, eu cuidava do cadastro, via pessoas endividadas chorando as mágoas, que não devia ter feito aquele passo. Então tudo tem que ser devagar, com calma, com paciência, bem oriental. Quando você quer fazer uma coisa, você planeja cada passo. E ao mesmo tempo você não pode ser controlado pelo medo, porque se você for pelo medo você não faz nada. É o maldito caminho do meio, que a gente tem que acertar qual é o caminho do meio. Às vezes você foi muito pra cá, aí você volta pra cá e tenta achar, e continua em frente. Mas o meu aprendizado na parte administrativa do negócio em si, foi só no momento em que eu fiquei com ele, que eu cuidava de tudo. Até foi bom pra ele, que aliviou esse lado. Bancos eu cuidava, porque naquela época era cheque, muito cheque a maior parte. Hoje as pessoas já usam mais cartões de crédito, até internet, você usa pagamento on-line, mas naquele momento era cheque. Voltava cheque todo dia, você tem que correr atrás, ligar para as pessoas. Gerenciar... Aí você tinha aluguel, luz, problemas que surgiam, problemas na instalação e: “Ah, vamos modificar uma prateleira ali, outra ali, porque vai chegar o material tal, não tem onde colocar, vamos tirar esse material, colocar aquele outro, porque agora vai bombar isso daqui”. Essas coisas todas eu aprendi ali no empírico, ali na prática.
P/1 – E como foi a decisão de você abrir a sua própria loja? De quem partiu a ideia? Como foi?
R – Foi minha mesmo. Depois da faculdade que eu: “Pronto, cheguei ao final. E agora?”. Que epifania. Eu tinha que resolver o que eu ia fazer. Eu estudei... O que eu vou fazer? Falei: “Ah, é melhor eu ir por aqui”. Primeiro, que era muito mais negócio, do ponto de vista econômico eu ganhava muito. Não é como hoje, devo reconhecer, mas naquele momento eu tive até sorte, porque eu peguei um momento em que você não tinha internet, que não tinha internet. Eu abri a loja em 91, então o livro usado, mesmo que hoje as pessoas conheçam mais o sebo, saibam mais o que é um sebo do que naquela época... Mas aquilo vendia muito mais, por falta de opção. Ou a pessoa comprava, vamos supor hoje, cem reais lá num shopping, numa Saraiva, numa Siciliano, ou então sei lá, a pessoa ia para o sebo e pagava 30. Não tinha essa. Hoje em dia você pode procurar, pesquisar, ver: “Ah, tem uma livraria lá no Rio Grande do Sul que está fazendo a promoção do livro que eu quero”. Hoje é muito mais fácil. E isso que está decretando a queda do sebo, mas aquele momento era um momento muito bom. Tanto é que em um ano que eu tinha o sebo, eu achava assim: “Nossa, que coisa fantástica, eu vou ficar rico. Eu vou fazer o que eu quero, depois que eu tiver grana eu vou fazer o que eu quero, porque eu vou ter grana pra fazer o que eu quero”. Três anos depois eu casei, comprei minha casa. Naquela época se comprava telefone, não é como hoje. Um telefone era caríssimo, um telefone comercial era o preço de um carro zero hoje, vamos supor assim, uns 30 mil reais. Eu comprei meu telefone. Eu comprei o telefone da minha casa, que eu casei, lógico. Não foi tanto assim, eu também não fiz viagem, não tinha tudo que tinha na casa, mas eu tinha cozinha, quarto, tudo, e tudo pago, tudo que eu tinha. E olhando pra isso, falava: “Foi tudo dali que saiu isso daí”. E a loja era muito pequena, era muito rústico, o acervo era muito pouco, menos que a metade do que eu tenho hoje, estrutura nenhuma, estrutura nenhuma. Eu era um comerciante atípico, fazia coisas absurdas, hoje eu lembro, eu tinha 24 anos quando eu abri a loja, eu fazia coisas que eram absurdas, poderia ter me estrepado várias vezes. Por exemplo, numa época de situação política, de eleição, eu era de esquerda, eu fazia campanha para o PT, aí eu colocava os anúncios de jornal: “Olha, os deputados que votaram contra não sei o quê”. Eu colocava na loja: “Desgraçado. Gente não é pra votar”. A pessoa chegava, a pessoa vai comprar o livro, eu não ligava. Isso eu vendendo muito, você vê como é contraditório, eu vendendo muito não dando importância e o dinheiro entrando, eu estava bem. Aí chegava uma pessoa, naquela época tinham aqueles negócios que você empacotava as coisas naquele negócio de papel, aí você fazia o pacote. Aí a pessoa ia comprar, aí eu discutia política com todo mundo, eu discutia... Hoje eu sou mais zen, você vê, hoje eu sou zen (risos). Eu era muito... A pessoa chegava lá, quando ela chegava eu falava: “Você vai votar em quem?”. Era automático. Com coisa aqui do PCdoB, outro do PT, sabe assim? “Você vai votar em quem?” “Ah, eu vou votar no Maluf” “Você vai votar no Maluf? Que é isso, que absurdo, onde já se viu?” “É, mas o Maluf...”. Rasgava tudo o pacote: “Eu não quero dinheiro seu, vai-te embora”. Eu pegava os livros e colocava de volta na prateleira, quer dizer, era um absurdo, eu fazia isso. A pessoa chegava assim, ela ficava: “Nossa, mas o que está acontecendo?”. Eu fazia numa boa. “Não quero dinheiro de Malufista, vai-te embora daqui, é por causa de você que o Brasil tá como tá”. Mas isso não era o caso, imagina o dia-a-dia pra mim. Eu tinha amigos que iam pra loja e ficavam lá, se lá fosse um boteco ia ser lotado. Eles ficavam lá só pra ver o que ia rolar, eles falavam: “Antônio, vou ficar aqui, sempre tem uma coisa...”. Iam pessoas diferentes, como esse meu amigo que foi. E tinha dia que a loja tinha seis, sete pessoas, mas ninguém era cliente, eram pessoas amigas que estavam ali batendo papo. Aí ouvindo música, eu gosto de rock, rock progressivo. Aí colocava o som bem alto, então o telefone tocava, eu falava: “Não. Não atenda, não. Desligue. Deixe terminar essa música. Isso não é importante, o importante é o som”. E tudo isso com a loja vendendo, vendia muito. Hoje mas nem... “Pois não. Bom dia”. Nunca que era assim. Nunca. Se o sujeito entrasse e demonstrasse qualquer coisa que fosse politicamente contrária a minha opinião, eu maltratava, era um absurdo, o que eu fazia era um absurdo. Eu já tinha meus 25, 24 anos e eu ainda era meio “Durval Discos”, sabe? Aquele cara meio travado. Eu demorei pra crescer nesse ponto. A própria necessidade também falou: “Olha, está definhando a coisa, não é mais assim, agora é de outro jeito, a gente tem que tratar as pessoas melhor”. Não que eu destratava, só que eu não...
P/1 – Tratava numa boa.
R – Mantinha a minha postura, a minha postura. Mas era assim.
P/1 – Vamos falar um pouquinho sobre a loja em si agora. Então você já falou da ideia, mas e a escolha do ponto, como foi essa decisão?
R – Não teve nenhum trabalho de mercado, contador de pessoas no lugar, ver quantas pessoas passam aqui com o público, fazer pesquisa de mercado... Apesar de que eu tinha noção de tudo isso, porque eu tinha feito Mercadologia. Eu tinha noção até de fazer a escolha do ponto, noção teórica da coisa, de como fazer um levantamento. O ponto, se as pessoas iam querer, mas não foi feito nada disso. Uma coisa muito sem planejamento nenhum... Muito de decisão assim, na hora. Ali era um boteco, a pessoa já era um senhor de idade, eu fiquei sabendo que ele queria vender o bar. Eu fui lá e comprei o bar dele, na época acho que eu paguei 20 mil dólares. Na época se comprava ponto. Hoje não. Hoje está cheio de lugar pra vender. Vamos supor... Quanto tá um dólar? Uns dois e 50, por aí, não sei quanto tá. Aí eu gastei uma grana, mas eu tinha... Eu vinha acumulando, porque meu pai já pagava salário, já tinha melhorado. Você vê que no momento anterior nós tínhamos já duas lojas, ele já dividia melhor. Meu pai sempre foi um cara sensato também, não explorava, ele falava: “Não, já dá mais. Tudo”. E eu fui guardando. Pra você ter uma ideia, eu tinha comprado uma Brasília, eu tinha um carro velho. No último ano de faculdade eu ia pra faculdade (risos)... Aquele tóóóóóó, aquele barulho no meu ouvido, mas eu ia. Depois eu vendi a Brasília, comprei uma Kombi. Sabe pra quê eu tinha uma Kombi? Só pra tirar um lazer. Eu ia pra Mogi com a Kombi, aí voltava cheio de amigos. Não tinha banco atrás, as pessoas sentavam no chão. Uma vez eu fui parado pela polícia: “Sabe que você não pode fazer isso?”. Todo mundo chapado, todo mundo... Muito legal, mas é loucura, eu não faria mais nem. Fiz outras loucuras, desci a serra de Mogi duas vezes até Bertioga por dentro do mato, assim com o facão abrindo, eu e mais uns quatro, cinco amigos. Assim, não foi ideia minha, foi ideia dos doidos lá, falei: “Ah, vamos lá”. E a gente desceu, ficamos dois dias andando, andando no meio do mato. Eu lembro até que foi num momento que estava chovendo, no dia que a gente chegou. Foi à noite, a gente foi, pegamos o ônibus na rodoviária pra subir mais a serra, pra chegar ao topo, aí a gente falou para o motorista: “Pare aí que nós vamos descer”. Era de noite, no escuro, o cara: “Mas vocês vão descer aqui? Vocês vão fazer o quê? Aqui não tem nada. Não vá aí, não, tem bicho, tem cobra” “Não, nós vamos descer aqui”. Com lanterna, tudo metido à... Não tinha celular, se alguém quebrasse uma perna, se machucasse ali, não tinha. Uma loucura, loucura. Eu conto pra minha filha: “Pai, você fez isso?”. Eu falo: “Fiz”. Hoje eu não faria, mas nem que... Hoje eu não quero ir nem à Paulista porque tá tendo manifestação, eu falo: “Não. Não vamos lá, não, porque vai ter muita confusão”. E eu fiz duas vezes. Fiz duas vezes. Descemos de rapel, sem saber, sem ter noção nenhuma, pra aprender na hora. Era uma coisa de louco, coisa de jovem. Muito legal.
P/1 – Bom, apesar de não ter sido uma coisa planejada, calhou de ser um ponto numa rua comercial ali do bairro do Tucuruvi. E você já está com a loja há um tempo...
R – Vinte e um anos.
P/1 – Como está? Você transformou, de certa forma, aquela região? Como era na época que você abriu essa loja e como é hoje?
R – Olha, o Tucuruvi mudou, mas não foi mérito dele. O Tucuruvi hoje é pior do que era, comercialmente falando. Lógico que ainda tem o resto, porque o comércio de bairro ainda sobrevive. Talvez não acabe de todo, mas perto do glamour que era, vamos supor, como era o centro da cidade o glamour que era... E hoje não é, mas está lá o comércio, ainda tem. Se cochilar, ainda é um comércio muito poderoso, mas não é como era antes. Tanto é que eu sobrevivo ainda lá, mas não é no mesmo... Se eu me propuser a continuar sobrevivendo com menos, se não for pela grana: “Ah, não, eu só quero se for naquele nível que eu cheguei, eu não quero cair”. Aí então eu teria que sair, teria que parar e repensar. Mas no meu caso, específico, o sebo, eu acho que a tendência vai ser virar tudo virtual. Agora, no momento em que eu abri eu tinha um momento político-econômico acho que favorável pra mim. Se eu fosse abrir hoje, por exemplo, eu não conseguiria nada do que eu tenho hoje, iria passar muito aperto. Mas naquele momento que eu abri, era um momento propício. Eu peguei um momento de transição ainda. Parece absurdo, mas no momento em que a inflação era 80% ao mês, pra mim era ótimo. A pessoa recebia seu salário, ela tinha que gastar logo, ela ia correndo para o posto de gasolina encher o tanque, para o supermercado pra fazer a compra do mês, senão no outro dia ela não comprava o que aquele dinheiro comprava naquele momento. Então eu tinha uma tabela de preço, tenho até hoje, eu mudava minha tabela de preço uma vez por semana. Eu cheguei ao ponto de não manter o dia certo de mudar, porque as pessoas já sabiam e vinham no último dia que eu mudava. E eram correções assim, de 10%, era um absurdo. E abaixo da inflação, porque a inflação altíssima, era uma coisa também que... E você tinha que depositar o dinheiro correndo para o banco, no final do dia você ia correndo para o banco, porque no outro dia aquele dinheiro já estava desvalorizado, você colocava no over. Então o comércio do bairro foi bom, eu peguei aquele momento bom ainda, mas o Tucuruvi... Eu tava lá antes de ter o grande mercado lá, o Carrefour, que não foi bom, mas eu não vou dizer que foi culpa dele. O comércio estava modificando, não tinha loja de um real, não tinha essa invasão chinesa, depois teve, tudo. Mas no meu caso particular, eu não culpo o bairro por isso, mas você tem toda uma situação política. E o sebo também, a internet, computador, mudou tudo. Eu tenho que repensar, vai. Eu ainda tenho clientes remanescentes que ainda não estão inseridos virtualmente na informática, no tablet, não estão inseridos ainda nesse ambiente. Mas essas pessoas que estão, elas vão morrer, vão passar, e as novas já vão vir com outra ideia, eu tenho que ter noção de que o novo está vindo. E o novo, eu vou ser exótico, eu não vou ter o mesmo nível, o mesmo patamar de venda, de clientes. Aliás, dá pra perceber a olho nu a quantidade de pessoas, como vai diminuindo as pessoas. A loja lotava, a loja do jeito que era, simples, com pouco acervo. Hoje meu acervo está em torno de 35 mil itens e às vezes a gente fica uma hora sem entrar uma pessoa na loja. Então eu acho que estou fadado mesmo a virar virtual. Eu venho tocando o barco, porque eu também não quero mais saber, não é pela grana, o que tem está bom, eu não quero saber. Só se precisar mesmo, aí eu vou fazer outra coisa, mas é uma pena.
FINAL DA PARTE 1
P/1 – Estávamos falando desse período, essa transição do sebo espaço físico como local a ser frequentado e a introdução da internet, que alterou essa dinâmica do comércio de um sebo. No caso específico da Sebolândia, da sua loja, como vocês lidaram com essa transição e quais foram os resultados? Como está sendo hoje?
R – Na verdade a gente não criou nada, a gente fez o que todo o mercado livreiro está fazendo. A gente foi obrigado a fazer o que todo mundo está fazendo, oferecer o serviço pela internet, vender pela internet também. E principalmente na questão desse site que dominou, que é o Estante Virtual, que é um site que agrega vários sebos e que virou tipo uma coisa de referência. Em minha opinião, eu acho que essa coisa está fazendo um grande desfavor pra comunidade, para as pessoas. Antes de mais nada, eu sou contra, estou nisso, estou fazendo isso, mas acho que será péssimo. Desde o começo eu não queria, mas eu acabei cedendo por uma questão de continuar sobrevivendo, mas filosoficamente eu sou contra. Não é culpa dele, acabar com o sebo, mas ele vai acelerar o processo de acabar com o sebo real, físico. Você tem um espaço em que você pode ir, e pode ser tanto por lazer, ou mesmo pra você ver se acha alguma coisa diferente, ou se você realmente precisa uma coisa, de um exemplar que é fora de catálogo. Ou que você vai comprar um livro, um Casa Grande e Senzala, custa cem reais, ali no sebo você acha por 20, por 15, que é uma boa pedida, mesmo que você não quisesse, mas: “Poxa, é uma edição de 50, olha que legal. Autografada”. Às vezes acontece. Bacana. Se você tem um sebo que te dá, por exemplo: “Ah, final de semana eu vou lá no Museu da Pessoa”. É um programa cultural, é atividade cultural, a gente é carente disso, a gente tem muita atividade babaca, tem muita coisa babaca pra se fazer, ver a Ivete Sangalo lá no Ibirapuera. Isso é péssimo, você não cresce enquanto ser humano. Todas as vezes que você tem uma opção de uma coisa cultural, você se engrandece, é bacana. Eu não estou puxando a sardinha para o meu lado, mas eu sei da importância que eu tenho para aquele lugar. Eu sei que eu sou uma referência, mesmo pessoas que nunca entraram ali e, sabe: “Não, eu sei o que é o sebo, sebo é o lugar que vende livros usados”. Lá perto da minha casa... Eu nunca entrei lá, eu estou lá há 20 anos, a pessoa nunca entrou. “Ah, lá tem livros, livros”. Assim, fala livros como se fosse uma coisa que se enfeita a estante, está cheio disso ainda. Mas o filho daquela pessoa um dia pode entrar e eu não sei, eu não tenho dados pra isso, mas eu devo ter influenciado um monte de gente. Sei lá. Um dia, eu conversando sobre um livro, alguém ouviu, ou a pessoa ouvia a conversa, ou eu falei mesmo pra própria pessoa. “Ah, eu queria ler um livro legal, o que você indica?”. Falo: “Ah, vá ler Machado”. Eu só indico coisa legal, só indico coisa clássica. E aquilo que eu acho que não é bacana, antes eu dizia que não prestava, falava: “Não perde seu tempo com isso, não, pegue seu dinheiro, vá comprar um pastel, um caldo de cana, não vá gastar seu dinheiro com essa porcaria, não”. Hoje eu não digo mais, mas eu fico quieto, falo: “Ah, não sei, você gosta? Vê aí. Você já ouviu falar? Então leia pra você tirar sua opinião”. Antes eu não falava isso, antes eu falava: “Não presta, tá perdendo seu tempo”. No sebo, na questão de a gente estar caindo para o virtual, é porque, como está todo mundo indo e eu tenho a necessidade de continuar vivo, eu estou sendo obrigado a mudar minha postura, isso gradualmente. Você tem um período aí, dos últimos cinco anos, que está sendo muito drástico. Eu não queria, eu tenho até meu site. Nem vendia tanto, mas as pessoas iam, entravam no Google, digitavam. Hoje as pessoas nem entram no Google, elas já entram direto no Estante. Então quer dizer, eu estou sendo deixado de lado até... Porque me achavam pelo Google, a pessoa agora acha pelo Estante. O Estante... eu o uso, eu vivo dele, mas eu acho que ele faz um desfavor para o livreiro, o sujeito que não tem a grandeza de ver: “Não, agora eu estou vendendo mais agora pelo Estante”. Mal ele sabe que aquilo é o fim dele. Primeiro, é um bando de gente querendo... O livro é dez reais, aí o outro coloca pra vender mais barato por cinco, tem gente vendendo por um real. O que dá para o sujeito vender o negócio por um real? Não paga nem o trabalho de ele ir ao correio. Mas tem gente lá, então o que vai acontecer? Os sebos físicos ninguém mais compra. Falam: “Ah, eu vou comprar por dez reais, por cinco reais, aqui eu compro por um no Estante”. É verdade. Como cliente, está certo, você está correto, eu faria a mesma coisa. Só que do ponto de vista do sebo, ele vai se acabar, você não vai ter mais esse espaço pra você ir. Você não vai ter, não vai poder levar o seu filho: “Não, filho, eu vou te mostrar uns lugares cult, umas coisas, que são legais”. Isso vai ficar pra história, as pessoas do futuro vão ouvir isso aqui e dizer: “Ah, existiu sebo”. Não vai rolar mais. O sebo vai ser destruído por causa disso. O comércio da internet hoje terá locais só por questão que não seja comércio, por questão público-cultural. Talvez tenha lá alguma coisa: “Olha...”. Como a biblioteca. Lógico que talvez até acabe também. Eu não vou estar aqui pra ver, mas provavelmente vai ficar tudo virtual. Mas acelerou o processo, muitos sebos estão fechando. Quem tem noção da quantidade de sebos que tinha... Teve até um boom, vamos dizer, uma grande explosão de sebos nos anos 90, mas hoje até grandes estão caindo, porque não compensa. Compensa mais você comprar pela internet e é verdade mesmo. Você tem uma estrutura, eu pago folha de pagamento, luz, aluguel, não vai compensar. É melhor ter um galpão baratíssimo que fica tudo lá com as luzes apagadas, então eu vendo, vou lá... Tem um monte de coisas que eu não pago, compensa muito mais. Então eu acho que isso acelerou. E outra coisa, você conseguir material. Se você ia aos sebos negociar seus livros, você não vai fazer mais isso. Você sabe que o sebo vai te dar dez reais num livro, o livro vale 50, você fala: “Pô, eu posso vender por 20 no Estante”. Porque você, como leitor, pode vender seu livro no Estante. Eu não estou falando mal, é bom pra pessoa. Eu se fosse cliente eu acho bom, mas por outro lado isso vai acabar. Aí você fala: “Ah, mas eu pagava então por isso”. Você pagava, mas tinha um ponto de cultura. Essa estrutura, alguém se propunha a organizar uma estrutura toda dessa, administrar um sebo, era bom. Porque depois, quando você quisesse, você ia lá. Essa pessoa precisa sobreviver, como tudo que se faz na vida, mas agora você não vai ter mais isso, vai ficar para o passado. Tudo bem que as pessoas que virão não serão mais... Ia ser só por uma coisa exótica mesmo. Fazer o quê? A coisa está caminhando pra isso. O que se pode fazer?
P/1 – Pensando nisso, você não acha que pode acabar criando dois tipos de público para o sebo? O público que está meramente interessado em adquirir um livro por necessidade e o público que está interessado em frequentar um sebo como um espaço cultural. Então você não acha que esse público que está interessado em adquirir o livro, pode ficar restrito a esse comércio pela internet, mas o sebo espaço físico persistir como um espaço cultural para as pessoas que estão interessadas em trocar ideias, conversar? Você não acha que tem espaço pra isso?
R – É que comprar uma coisa... Precisa ver como a pessoa pensa em comprar uma coisa. Às vezes a experiência vai mudando a gente. Você comprar uma coisa não é meramente chegar lá, entrar lá... Eu compro coisas assim, eu compro computador, compro equipamentos eletrônicos, até livro, já comprei livro também pelo Estante Virtual de outros sebos, que eu queria ler o livro. Eu nunca tinha o livro, e de repente o sujeito estava oferecendo lá, baratinho. E era o meu caso, eu queria, me atendeu, foi ótimo pra mim, paguei baratinho, beleza, tá ótimo. O que eu falo é que comprar não é só comprar. Comprar envolve um monte de coisa, comprar envolve até a questão cultural. Às vezes eu saio da minha casa, vou lá na zona sul pra eu ver uma coisa que eu não vou comprar, não vou fazer nada, mas vai me engrandecer culturalmente. O que eu falo pra você é que ir ao sebo é um plus, é uma coisa a mais, você pode até influenciar na formação de uma pessoa, você ir ao sebo. Olhar numa tela a capa de um livro e os dados de um livro, não é a mesma coisa de você chegar numa estante e... Você nunca viu James Joyce na sua vida, você não sabe quem é, aí de repente você... Ulisses... Fala: “Nossa, Ulisses é aquele cara do Homero. Olha deve ser aquele cara do Homero”. Aí você pega, fala: “Nossa, que livro doido, não tem vírgula, não tem nada, que coisa. Ah, eu vou levá-lo”. Isso você nunca vai ter pela internet. Você pegar um livro do Machado, vamos supor, aí o sujeito abre lá o Brás Cubas e vê lá “Aos vermes que comerão...” “Nossa, que legal, deve ser legal esse livro”. Você vê, o livro sozinho conquistou essa coisa. Imagina isso pra uma criança, de você pegar o livro, de você pesquisar. É a coisa que a gente não tem na biblioteca nossa, que é aquela que fica a dona Maricota lá atrás, você não pode mexer em nada, aí você diz o que quer, ela vai lá e pega: “É esse. Fique quieto, fique aí”. Você não tem esse processo de manipulação da obra. É lógico que hoje já deve estar mudando, eu não sei, porque eu não frequento bibliotecas, eu tenho a minha vida. Mas eu sei, lá atrás do meu balcão, com a experiência que eu tenho eu fico vendo, às vezes até eu falo: “Nossa, esse momento foi importante pra essa pessoa”. Ela nem sabe, mas ela pegou aquele livro, viu aquela capa, viu a diferença do que é uma obra costurada, o que é uma obra de brochura. Eu já estou falando de outras coisas, mas que tudo isso envolve o processo de você comprar. Não é só comprar. Ah, tem a pessoa que compra. Triste da pessoa que só compra, porque eu acho que ela está perdendo um monte de outras coisas que envolvem. É como eu falo, o livro, você ler um livro, eu considero você ler um livro todo o processo. Eu estou falando pra você do livro, você já está lendo o livro, depois você vai pesquisar onde tem o livro, depois vai à livraria, vai várias vezes, tudo isso eu considero como processo de leitura do livro. E você conversou com seu amigo no bar, tomando uma cerveja, depois você foi assistir um documentário sobre o livro... Meu, isso tudo é ler o livro. Tem gente que pega o livro da primeira à última folha: “Ah, li esse livro”. O outro que nem terminou ainda, está lendo, leu muito mais do que ele, viveu aquilo, aquilo fez a diferença pra ele, assimilou, incorporou, ele tá vivendo tudo aquilo que o autor queria, ele entrou de cabeça na coisa. Então eu não separo grupos assim, eu acho que é uma coisa só, eu só acho que nós vamos perder esse outro lado. Se for pra ler assim, você pode ler num tablet, tem o texto ali. E você nunca vai sentir isso tudo que eu estou falando, colocando toda uma biblioteca dentro de um tablet, pesquisando no Google Books. Nunca, isso vai ficar perdido. É como você ouvir um vinil, vê o vinil, está com a capa do vinil na sua mão e você está ouvindo, colocou ali, está ouvindo assim: “Agora a faixa tal”. A faixa tal tá amarrada com a faixa tal. Aqui esse desenho que tá na capa, que foi uma arte gráfica, foi um puta de um negócio legal que o cara que produziu pensou junto, o cara vai ler, vai acompanhar aqui a obra, Rick Wakeman, você está ali com aquele álbum na mão, aí você vai lá e baixa pela internet: “Ah, você já ouviu esse ‘arquivo’ do Rick Wakeman?”. Diminuiu toda a obra do sujeito chamando de arquivo, não é nem: “Ôu, você viu a faixa tal do disco tal?”. Isso se perdeu. Hoje eu tenho dó das pessoas que não têm mais isso. É uma coisa a mais. Por isso que se fala assim: “Ah, a pessoa Fulano tem um puta de um conhecimento”. Mas não é. É porque ele viveu um monte de coisa e ele recebia a coisa como um todo, os trabalhos como um todo, é diferente. Hoje quando você vê uma mostra de um trabalho, uma apresentação, uma obra, mesmo que seja arte plástica, qualquer coisa, quando você vê a pessoa amarrando um monte de coisa você acha fantástico, fala: “Nossa, que ideia”. Mas tinha coisa no passado que era também, eram pequenas e estavam no seu dia-a-dia. Era automático, você já incorporava automaticamente.
P/1 – Você não acha que essa percepção que você tem desse ato de comprar um livro, de olhar um livro, de conversar sobre o livro, uma atividade lúdica cultural, é uma percepção que várias outras pessoas também vão ter e justamente por isso o sebo sempre vai ter um espaço, por mais que exista o comércio virtual? Mas justamente por essa coisa que, após aparecer esse comércio virtual, sempre envolvem pessoas que vão procurar o sebo, procuram justamente isso que você está falando?
R – Tomara. Eu acho que não. Eu acho que não por experiência. Eu tenho essa experiência desses anos todos, se eu tivesse eu poderia te dar dados estatísticos, mas eu não marquei, mas o meu dado estatístico é o numerário no final. Mas eu te falo já que não é verdade isso, não está acontecendo isso. Várias pessoas não estão procurando o sebo. Eu acho que tem algumas pessoas que vão conhecendo e ainda bem que tem alguns sebos ainda para as pessoas conhecerem. Mas não está aumentando, é ilusão pensar que está aumentando, não está aumentando. Com a internet, muitas pessoas estão conhecendo isso. Lógico, vamos supor: “Ah, esse mês vieram 50 pessoas novas que nunca vieram aqui”. Mas isso não é nada perto do antes. Não que todo mundo eram pessoas do cenário cult, da coisa underground, da coisa artística, lúdica, literária, muitos eram por necessidade mesmo, estavam perdidos ali. Mas infelizmente vai diminuir, porque o outro lado é muito mais interessante, porque é o lado do negócio. Eu acho que não vai aumentar. Eu acho que não vai aumentar e acho que o que me mantém são as pessoas que ainda vieram de outro momento. Por exemplo, eu considero assim, esse momento de agora. Eu não sou nativo desse momento, sou um visitante, vim de um momento anterior. Então eu vi a internet vindo, aí eu já não sou mais dele, já sou um visitante e pra mim as coisas vão ficando cada dia mais complicadas, mas eu continuo tentando aprender todo dia, beleza. Mas você var ter um momento em que as pessoas, a maioria das pessoas é nativa daquele momento, essas pessoas nunca serão essas... Eu ainda existo por causa dessas pessoas que são visitantes, que são turistas desse momento que nós estamos, mas infelizmente, como eu lhe disse, essas pessoas vão ficando velhas, vão morrendo. Então não tem jeito, a gente vai mudar, o novo sempre vem, não adianta a gente fugir. Ou a gente se conforma, nada de saudosismo, é negócio. Não é nenhuma profecia, eu só estou pensando “um mais um são dois”. Olha o que está acontecendo, eu tenho aquele momento que eu era assim, agora é assim, eu estou correndo... O fato de eu estar correndo atrás da internet já demonstra que aquele... Se fosse assim eu era autossuficiente sem a internet. Você concorda comigo? Agora eu já estou tentando usar, pegar um pouquinho do outro lado pra tentar somar, pra tentar ser o que eu não era ainda. Eu era muito mais antes. Então eu acho que a tendência... Pode demorar, não vou dizer quantos, porque eu não sei, não sei também o que vai acontecer daqui pra frente, pode ser que aconteça alguma coisa, eu não sei, a gente nunca sabe. Eu só estou somando “um mais um são dois”, é isso. Eu não queria. Eu quero deixar bem claro que eu não queria. Eu não me considero pessimista, não sou pessimista, mas também não sou otimista, otimista é ignorante. Quem é otimista é ignorante, que não sabe que a coisa não é assim. O otimista não sabe que a tendência... vai ficando mais velho, você vai perdendo o pique, então não tem jeito. Você pode administrar e se adaptar ao novo, esse é o grande barato, se você conseguir, isso é legal. Eu acho que eu tento fazer isso, mas eu não perco o meu senso crítico do que era, porque eu tenho dados, eu tenho essa vivência. Pra você ter uma ideia, tem gente que não sabe, o sebo, nos anos 90 no centro tinha um monte de sebo. Hoje já não tem tantos. Tem que ter olhos pra ver isso daí, chegar: “Olha aí, não se iluda. Olha quantos sebos que tinham aqui, olha hoje quantos tem. Tá acabando” “Ah, tem ainda?” “Beleza. Tem. Mas olha como está aqui, como está agora, você vai ver como está lá”. Lógico, pode acontecer alguma coisa nesse meio termo, mas...
P/1 – Falando em termos materiais então agora, essa mudança, advinda da internet, em termos materiais, que transformações ela ocorreu na sua loja espaço físico? Diminuiu o acervo, diminuiu o espaço, fez com que você cortasse funcionários? Que transformações ocorreram na sua loja com o advento da internet e do comércio virtual?
R – Depois da internet a minha loja só melhorou. A minha loja, pra você ter uma ideia... Mas isso é um problema meu, eu sou incorrigível. O que eu fiz? Eu tirei do meu. Eu continuo com dois funcionários, fiz um monte de coisas que eu não fazia no momento anterior, eu não me preocupava com tanta coisa. Eu informatizei a loja, hoje a loja é muito melhor do que era antes, muito melhor, assim, 100%, mais do que 100%. Mais agradável, melhor, o atendimento é melhor e tudo. E tudo isso eu ganhando por volta de 30% do que eu ganhava no momento que eu não fazia nada disso. É um absurdo. Qualquer comerciante patrão já fazia: “Não, vamos cortar”. Eu aluguei o lado, quebrei. A minha esposa: “Poxa, mas você vai fazer...”. Eu falei: “Não, vou fazer. Vou fazer. Não quero saber, eu vou afundar, mas eu vou fazer”. Então hoje é muito legal, eu estou na contramão, mas vai ter um momento em que eu não vou conseguir, é tipo como se eu não quisesse desistir. Eu falando isso, você fala: “Nossa, o cara tá...”. Nada. Eu estou bolando outra coisa, estou fazendo outro sistema, estou contratando outra forma de trabalhar. Estou bolando outro sistema pra modificar toda a metodologia, meus processos, que vai ser muito legal, mas infelizmente isso não vai adiantar nada daquilo outro que eu estava dizendo. É contraditório? É. Eu acho que só consigo fazer isso que eu faço porque eu não tenho a expectativa do lucro, porque só está diminuindo. O meu padrão está diminuindo, a verdade é essa. Está diminuindo, eu sinto. Mas eu não quero saber, eu vou fazer. Depois quando não der, não deu, falo: “Não deu.” “Poxa, mas por que você fez?” “Fiz porque quis”. Como diz o Jânio.
P/1 – Tem como você descrever pra gente, rapidamente, como é sua loja hoje em termos físicos, o espaço que ela ocupa, as prateleiras... Como as obras estão apresentadas, como é?
R – Bom, minha loja tem uma média de uns 150, 160 metros quadrados. Ela tem mais ou menos 35 mil obras, não é muita coisa, tem sebos por aí muito maiores. Eu fiz uma coisa assim, que eu achei bacana, que é ficar bem arejado e muito claro, tem muita lâmpada justamente pra pessoa poder... E isso dá prazer de você... Diferente do estereótipo do sebo que a maioria das pessoas tem, que o sebo é sujo, empoeirado, você tem rato, barata, é escuro, não tem como você entrar lá, então eu fujo desse padrão. Eu tenho renite alérgica, antes de mais nada, então pra isso eu tenho que limpar. Eu dedetizo todo ano a loja. Lógico que o pó tem, que eu estou na rua, então passa ônibus, tem todo aquele... Mas a gente limpa todo dia, varre todo dia, a gente faz o que eu acho que... Não sei se o mínimo que teria que fazer, tanto é que se a pessoa entra lá, muito comentário que eu recebo, eu já nem ligo mais, falam: “Nossa, isso aqui nem parece um sebo”. Porque não está dentro do estereótipo mesmo de sebo, que: “Não, sebo tem que ser...”. Isso é argumento para o vagabundo que não quer trabalhar, não quer arrumar. Você chega lá ele não olha pra você, fica fumando, está lendo jornal: “Ah, olha ali. Está ali debaixo, onde está aquele ratinho ali, ali estão os livros que você quer”. Entendeu? Está largado lá. Mas não, eu procuro distribuir não pela organização de bibliotecário, aquela acadêmica, porque o meu critério é comercial. Então eu procuro colocar na frente, às vezes não faz muito sentido, mas eu procuro aglomerar livros que tenha a mesma temática, que possam interessar para as mesmas pessoas, conforme minha experiência. E eu mudo isso o tempo todo, isso não é fixo. Conforme eu estou sentindo que está rolando uma coisa com aquele livro, aquele livro com aquele outro que citou, então a gente vai lá e coloca junto. Então não existe uma coisa fixa. Eu aprendo todo dia alguma coisa nova, a diferença de comportamento das pessoas. Eu procuro organizar pelo que as pessoas sabem mais, o primeiro nome do escritor... Nem todo mundo sabe o sobrenome, às vezes a pessoa já fala... O que é mais procurado fica na parte da frente da loja, aquilo que é raro vir alguém fica num outro local. É uma questão mesmo estratégica de comercial, porque eu nunca esqueço que é comercial, não é acadêmico. Então eu tenho que ter critérios comerciais desde a aquisição, o preço, até à exposição da coisa.
P/1 – E você comercializa livros de diversos temas, por exemplo, saúde?
R – Eu trabalho com tudo.
P/1 – Com tudo.
R – Eu não sou especializado. Primeiro que eu não tenho formação especializada e não quis também, ainda mais no local que eu estou, que não é um local de pessoas assim...
P/1 – De um público especializado.
R – De um público especializado. Não tem nenhuma universidade lá perto, é uma pena não ter. Todos esses anos não se propuseram a... Aquele bairro não é um bairro de pessoas que leem. As pessoas só leem as tranqueiras do momento, o que passou na TV na noite anterior, no Jô Soares, na Ana Maria Braga, e vai lá procurar o livro. É uma pena, mas é isso que... Eu nunca tive isso ali na loja, eu sempre fui assim, a granel mesmo, pingador. Às vezes tem clientes legais que vêm de longe pra rever, que morava ali, foi pra outro local. Não é um local intelectual, é uma pena. Não que eu acho que devia ser, mas cada um... É que eu fico vendo mais o meu público mesmo. Já tiveram momentos melhores. Já tiveram.
P/1 – E dos livros, o grosso é o quê? Romance? Qual é o tema que tem mais saída, que você mais tem na sua loja?
R – O que tem mais saída não, mas o que eu tenho mais é romance estrangeiro. Agora, o que tem um fluxo maior é romance espírita. Sem nada a falar. Sem detalhes. É uma pena.
P/1 – Pensando nisso você costuma fazer promoções? Por exemplo, tem um autor ali que não está saindo muito, mas você sabe que ele é desejado, aí você faz uma promoção. Você faz algum tipo de promoção ou algum brinde para os clientes?
R – Não faço nada. Sou contra promoção, sou contra brinde. Eu sou livreiro. Tem gente que fala: “Ah, mas você não faz promoção”. Eu falo: “Vá à loja de um real, tem promoção. Aqui eu vendo livro, você quer o livro, o livro é tanto”. Nunca fiz promoção nesses 20 anos. Nunca amontoei um monte de livros que estavam parados lá na frente e falei: “Ah, promoção, um real o quilo”. Nunca fiz isso. Nunca vou fazer. Eu vou à falência, mas aquele livro que custa dez reais, ele é dez reais, é o preço dele. Eu estou há 20 anos lá, eu tenho livros que estão ali comigo desde que eu abri. Um dia vai chegar alguém que vai querê-lo, nem que seja a barata, traça... Depois que eu morrer. Mas um dia alguém vai querê-lo, ele vai esperar a pessoa própria, a pessoa certa.
P/1 – Bom, então você atende na sua loja física e também o comércio pela internet que você também atende. Além disso, tem algum outro tipo de facilidade que você oferece, por exemplo, entregar o livro na casa do cliente, enviar pelo correio?
R – Envio pelo correio, porque o virtual, a base é o correio. Entregar eu não entrego, mas pelo correio a gente entrega. Lógico que tem gente que vê pela internet e vai à loja. As pessoas que ficam inseguras, mas depois que conhece a loja, conhece a gente, aí já ficam mais à vontade de pedir pelo correio, já se sentem mais seguras.
P/1 – E nesse comércio pela internet é o Brasil inteiro? Já atendeu gente de fora de São Paulo, de outros estados?
R – Já. Do mundo. Do mundo.
P/1 – Do mundo?
R – Do mundo. Do mundo todo.
P/1 – Teve um país mais longe, você lembra?
R – Já vendi até para o Japão. Caríssimo o envio. Mas a pessoa quer o material, eu já vendi. O mais curioso que eu vendi foi pra um sujeito da Dinamarca, que ele colecionava o Salinger.
P/1 – DoApanhador no Campo de Centeio?
R – OApanhadornoCampodeCenteio com edições de todos os países e edições diferentes. Na época era o início da internet, eu não tinha nem home page ainda, eu só tinha e-mail. Aí ele mandou e-mail dizendo que ele queria e que seu eu conseguisse qualquer edição, pra entrar em contato com ele, mandava por e-mail. E o curioso é que não tinham aqueles tradutores on-line que ajudam, então ele mandava o texto dele, eu tinha um livro lá que ia tentando ler o que ele tava dizendo ali que eu não entendia, era inglês. Alguma coisa você tira, mas você quer responder a uma pessoa, você tem que saber exatamente o que ele está dizendo. E eu consegui, mandava e-mail em português, falei: “Ah, lá ele deve ter algum recurso pra poder...”. Ele me respondeu e a transação a gente fez tudo pelo correio, eu não lembro se era dólar que ele mandou, acho que foi dólar, que eu até guardei um bom tempo só por gozação. Ele pagou muito caro, fez uma conta doida lá, que eu falei pra ele: “Olha, eu quero tantos reais. A moeda que você for mandar...”. Eu não sei se naquela época já estava começando a União Europeia, eu não lembro agora. Aí ele embrulhou com papel, colocou dentro do envelope e mandou o dinheiro por uma carta. Ele mandou a carta: “Antônio, mande pra esse endereço”. Eu mandei o livro pra ele, foi muito legal. Depois ele mandou outros e-mails. Eu perdi o contato, mas eu acho que vendi uns quatro exemplares pra ele de OApanhadornoCampodeCenteio, porque ele queria todas as edições: “Ah, no Brasil saíram dez edições”. Ele queria todas, ele colecionava. Serial killer de plantão aí que comprava o Salinger.
P/1 – Bom, pensando nisso também, hoje em dia tem alguém que cuida especificamente desse comércio virtual? Com essas dificuldades que você apresentou agora, tem alguém que cuida especificamente disso como funcionária sua ou continua sendo você, como é?
R – Eu faço. Eu faço e eles cuidam da loja. Também que eu já estou muito cansado, não aguento mais ficar de pé o dia todo. Então o que eu faço? Eu me posicionei num lugar estratégico em que eu fico olhando a loja e fico olhando eles atenderem. Então eles fazem tudo, qualquer dúvida eles se dirigem a mim e eu vou respondendo os e-mails, imprimo, dou na mão deles, eles vão lá pegar o livro, fazer todo o processo, empacota, faz a nota, tudo. E depois, quando acumula, tem um horário certo todo dia, vai ao correio levar todas as encomendas do dia. E eu só fico ali respondendo. Na verdade, a princípio era pra ser a coisa mais light, que assim eu não queria, mas está sendo muito estressante, porque esse lado está sendo o lado mais agitado, já que a loja está devagar. Então o que eu estou fazendo? Eu estou tentando diminuir o meu trabalho e fazer algumas etapas mais complicadas, que é na hora de responder direto pra pessoa. Porque aí eu tenho medo, já que a responsabilidade de tudo que foi dito é minha. Então aí eu não os deixo fazer, mas eles fazem, por exemplo, eu pego o livro, falo pra ele: “Olha, esse pedido, pegue o livro”. Eles pegam e já descrevem todo o livro: “O livro tem assinatura do cliente na terceira página, tem um carimbo da editora na primeira página, tem uma dobra no canto esquerdo da capa”. Eles já fazem tudo isso. Quando eu pego o livro, eu não preciso fazer tudo isso, eu vou olhando o livro ali rápido, mas eu já vou direto ao que ele disse. Ele já fez a pré, então acelera o meu trabalho. Mas eu acho que a tendência vai ser eu acabar deixando na mão de um deles, porque é muito estressante, muito cansativo.
P/1 – Você mencionou que está com dois funcionários agora?
R – Eu sempre tive dois funcionários, sempre tive. Mesmo quando eu era pequeno, depois a loja cresceu, mas eu continuei com dois funcionários.
P/1 – E como é o treinamento deles? Você oferece algum tipo de treinamento importante ou é uma coisa empírica?
R – Você os pega e joga lá no meio do furacão e fala: “Corre aí”. O curioso é que nesses 20 anos passaram várias pessoas por mim e três... Passaram assim, não foram vários também, que eles ficam em média de dois anos, eu nunca tive nenhum problema trabalhista com nenhum funcionário. Todos viraram meus amigos e eu acho que fui muito importante pra eles, tanto pelo meu jeito de ser, como as minhas posturas... Lógico, que eu não quis catequizar ninguém, mas três viraram bibliotecário. Três. É curioso, né? E eles estão muito bem, muito bem. Agora, minha filha quer fazer Biblioteconomia também já. É muito legal.
P/1 – A sua filha é funcionária da sua loja?
R – Ela começou agora, está começando a aprender. E o bacana é que eles vão aprendendo, porque paralelo a isso eu já pego um livro... Alguns livros eu conheço, eu já li alguns livros, aí eu digo pra eles: “Olha, esse livro é disso, disso”. Aí eles ficam até empolgado, daqui a pouco eles estão falando isso sem ter lido o livro. É muito bacana.
P/1 – E como um pré-requisito pra ser um funcionário do seu sebo, é importante a pessoa gostar de ler e entender minimamente sobre literatura, conhecer os autores?
R – Eu nunca tive nenhum critério pré-estabelecido pra contratar ninguém que eu contratei. Eu fui com a cara, falava: “Ah, vem trabalhar aí”. Eu só demiti um funcionário porque ele também não estava querendo continuar lá por outros motivos particulares. Eu nunca demiti ninguém, e todo mundo que eu contratei, na hora chegou lá... Assim, eu estava precisando. Um funcionário, por exemplo, como os meus funcionários que tiveram que sair, todos foram... Na hora que saíram assim, saíram como amigos, a gente se abraça, chora, porque ficaram todos... Muito curioso... Nesses 20 anos. Não é uma empresa normal, não é um local de trabalho convencional mesmo, a gente fica amigo. Lógico que eu brigo, grito, xingo, não tem jeito. Porque não tem aquela coisa de chefe. Fica de igual pra igual, pode chamar minha atenção, pode falar palavrão, pode fazer o que quer. Eu não sou autoritário. Quer dizer, eu sou autoritário, mas mais por questão quando a gente está discutindo, eu: “Cale a boca, eu que decido”. Mas não é nesse sentido hierárquico, que você se usa da sua autoridade pra... Eu nunca quis tirar o sangue, nunca quis tirar proveito, tanto é que todo mundo que entra eu registro. Eu registro assim, logo de cara, já registro assim. Eu fui feliz. Nunca tive problemas também. Não vou falar que é por causa de mim, que não é. Eu fui feliz, eu dei sorte, peguei pessoas legais. Todo mundo que trabalhou comigo foi muito legal, foi importante pra mim, eu aprendi com eles, porque cada um é de um jeito. Muito legal também.
P/1 – Eu gostaria de te perguntar, quais são os dias e os horários que são de maior frequência na sua loja? Se é que tem um dia, um horário específico. Alguma data que a pessoa vai mais a um sebo. Num sebo existe esse tipo de coisa?
R – Existia. Existia. Há uns dez anos eu tinha até estatística disso, o dia e a hora. Que eu marcava, isso eu marcava, fazia gráficos, sempre fui metódico, eu gostava disso. Depois eu ficava olhando, final do mês eu falava: “Tal dia vai ser isso, então vou me preparar, não vou fazer nada”. Eu utilizava esses dados. Isso é resultado do curso de Mercadologia que eu fiz. Depois eu larguei de mão, porque agora é totalmente... Até o dia... Que antigamente tinha aquela coisa: “Ah, dia de pagamento tem mais movimento”. Hoje em dia isso não gira mais. As pessoas, por exemplo, vão se valendo de cartão de crédito e depois ela paga o cartão de crédito do dia dela, então não tem mais isso, não tem mais. O horário, agora você tem um horário mais corrido na loja, que é o horário da manhã, em função dos pedidos que a gente começa a atender dos pedidos que chegaram à noite. Então você tem que limpar a loja, varrer, espanar, cuidar de tudo, ligar as máquinas, abrir o programa, conferir se está tudo funcionando direitinho, depois você tem o atendimento da manhã. Às vezes tem um livro ou outro... Que como eu não sou só virtual, eu sou o sebo físico também – que todos os sebos físicos devem ter, que trabalham com o virtual – que é o cliente que tira o livro do lugar sem a gente ver e coloca em outro, e alguém comprou, e a gente não acha o livro. Aí é um desespero, correndo, porque a pessoa já comprou, já chegou pago... Porque hoje tem esse negócio, a pessoa paga on-line, quando chega o pedido, o pedido já está pago. Aí é uma correria: “Não, tem que achar o livro, tem que achar”. Eu quero fazer de tudo pra não ter que devolver, porque isso, pra mim, mostra um pouco de desorganização, tudo, então eu quero, tipo, baixar o máximo que eu puder pra que isso não aconteça. De... O sujeito comprou o negócio e eu não tenho o negócio. Às vezes acontece, porque você tem roubo também. Além de a pessoa tirar o material do lugar, você tem a questão do roubo, porque você está aberto ao público. Às vezes acontece de estar a loja cheia de gente. Mas como isso é imprevisível também, não tem mais. Antigamente aos sábados, eram um inferno os sábados, era uma coisa de louco. Vinham pessoas com família, com criança. Aí os pais, não as crianças, mas o maior problema são os pais, que não têm a menor noção do que é aquilo, estão passeando, foram ali ao mercado: “Ah, o que é isso aqui? Vamos ver”. Não sabe nem o que é e larga as crianças lá dentro como se fosse playground, aí tem que chamar a atenção, é muito chato, falar: “Não pode fazer isso, esse livro é caro, a criança vai estragar”. Coisas que a gente está acostumado a ver, por exemplo, se você for numa livraria Cultura, as crianças estragando livros caríssimos, e eles têm instrução pra não falar nada, mas pra gente é muito difícil, porque é educação mesmo.
TROCA DE FITA
P/1 – Senhor Antônio, agora a gente vai falar um pouquinho sobre a questão da aquisição de livros. O sebo é uma coisa que envolve muita troca com o próprio cliente, às vezes o próprio cliente vai vender um livro. Mas além disso, existe alguma outra forma de você conseguir esses livros, como é? Pra você formar o seu acervo, como foi?
R – Basicamente os livros são adquiridos direto com os clientes. A maior parte do tempo você vai fazendo negócio com clientes. E livros assim, quantidade pouca, que é o que as pessoas têm, e vão oferecendo. Mas de vez em quando aparece uma pessoa que tem muito livro, por exemplo, ocorreu uma morte na família... Ou o que é mais comum, a pessoa mora numa casa, sempre teve aquilo na família e vai pra apartamento. Ou então a pessoa vai casar, aí tem aquilo, uma coleção, uma coisa que ela tinha e vai passar pra frente. Mas acontece também... Por exemplo, eu compro coisas em distribuidoras, às vezes você compra. Eu tenho os contatos, todo esse tempo você gera contatos. Aí o distribuidor, a pessoa da distribuidora liga e fala: “Olha, eu peguei um lote”. Por exemplo, na livraria, depois de um tempo... A diferença do sebo e da livraria, basicamente é isso. Se você for a uma livraria... Novo... Você vai à Saraiva, na Cultura, você tem aquele material que é recém-lançado, depois de dez anos, se aquele negócio não está bombando, se não está entre os dez mais vendidos, eles retiram aquilo, aquilo não é interessante. Manda vir o novo livro do Padre Marcelo, manda vir o novo livro da Zibia Gasparetto. Entendeu? Eles querem vender a tranqueira do momento: “Olha, vai ter um programa que vai passar especial no Fantástico só sobre esse livro, vamos encher a loja desse livro”. Você entra na loja, é tudo um livro só, o livro do Bill Gates, o livro do filme que está passando do Crepúsculo... Ah, a porcaria do momento, o que está rolando no momento, é assim que funciona. Aí você fala: “Poxa, mas todos esses anos são publicados vários livros”. E cadê os livros que eram legais? Agora ninguém mais fala do Saramago. “Cadê os livros do Saramago?” “Ah, se você quiser, faz por encomenda”. É assim. E no sebo não tem isso, no sebo você tem um livro que saiu há 50 anos, por isso que é legal o sebo, por isso que nem a livraria, nem a internet vai ter isso, você chegar ali... Lógico, se você quiser comprar, você pode comprar, mas você dar de cara com ele fisicamente, que a livraria tenta fazer também com você, só no sebo físico. Esses livros que são recolhidos vão pra distribuidora, que eles chamam de saldos, e as distribuidoras vendem para os sebos. É muito interessante. Por isso que às vezes você vai a um sebo, o sujeito tem livros novos. Por exemplo, uma época eu comprei muitos livros de uma distribuidora lá no Limão. Eles tinham um monte de livros legais do Câmara Cascudo, muito bacana, muito legal, tudo novo, uma coisa fantástica. Quando eu vi assim, eu falei assim: “Ah, eu quero todos. Eu vou levar todos”. Falei: “Nossa, muito legal”. Até hoje eu tenho, não vende. Tem gente que não sabe nem o que é aquilo. Mas aí eu vou lá, pego. Eu peguei uns livros da Simone de Beauvoir tudo novinho. Não tinha código de barras, porque era uma coisa antiga dos anos 80, mas tudo novo. É um livro velho, mas novo. Assim, antigo, mas está novo, não foi usado, já está amarelado, porque o papel já vai amarelando. Aí eu tinha cem unidades, 50 unidades de cada título, era uma coisa muito legal. Mas 80% do acervo é adquirido direto com o cliente. Poucos, em média de até 50 itens.
P/1 – E como é a sua seleção pra você comprar um livro de um cliente, o que você leva em conta?
R – Antes eu fazia o que todos os sebos fazem, eu falava pra pessoa levar lá, na hora eu via, via o que eu já tinha, o que estava sendo procurado pra eu escolher. Mas depois, com o tempo, que aquilo começou a ser muito trabalhoso, que a loja era muito cheia, tudo, aí eu não queria mais que a pessoa levasse direto lá. Tinha gente que achava ruim: “Poxa, mas todo sebo faz”. Eu comecei a colocar métodos no meu trabalho, então eu pedia pra pessoa... Eu tinha um panfleto explicativo em que a pessoa queria vender ou trocar; eu dava o panfleto pra pessoa explicando e falava. Primeiro eu falava, depois eu dava o panfleto caso ela esquecesse. Eu peço pra pessoa fazer uma relação do que tem, com calma, em casa, não colocar tudo no porta-malas, estragar o livro, pra cima e pra baixo, de sebo em sebo fazendo pesquisa. Eu falo: “Olha, faça uma lista com esses dados: título, autor, editor, ano de edição. Com esses dados eu já te digo se ele é interessante ou não pra mim. O livro tem que estar inteiro, não pode estar estragado, imagine se você compraria, se você pegaria seu livro e o leria na sua cama. Se ele estiver estragado, não, você nem coloque na lista que eu não quero. A não ser que seja um livro raro que você já saiba: ‘Não, mas é aqui é um livro de 1800’”. Ele foge, aí sim, beleza. Mas o normal, a maioria é o livro padrão. Eu peço pra pessoa fazer uma lista, peço pra pessoa mandar por e-mail, ou pra quem não tem e-mail, que a maioria já tem, levar a lista até lá. Pra você ter uma ideia, eu recebo uma média... Fazendo isso e as pessoas que ainda: “Poxa, mas eu queria trazer”. Porque elas têm preguiça de fazer a lista. Eu recebo uma média de 20 listas por dia. E tem dia que eu não consigo ver uma lista, às vezes a lista tem mil itens, é uma planilha, aí eu fico dois dias vendo aquela planilha. Por quê? Eu vejo se eu já tenho um monte no meu estoque, os livros que eu não conheço eu pesquiso, vejo quanto está nos outros sebos pelo Estante até, se você tem um monte. Vejo na livraria o novo... O Estante não é o local pra você ver. Às vezes o livro é mais caro usado. A pessoa que é desavisada, ela paga mais caro nele usado do que se for comprá-lo novo. Você coloca no Buscapé e compara. Submarino, Americanas, Cultura, às vezes é mais barato ele novo do que usado, porque como está todo mundo já indo: “Ah, vou comprar usado, aqui é mais barato”. Ela acaba fazendo um mau negócio. A pessoa tem que ver mesmo isso. Aí eu pesquiso, e só então eu faço uma proposta pra pessoa. Se ela concorda, aí eu vou ao local ou combino com ela pra trazer. Tudo pra não tumultuar, porque antes era muito ruim pra eu lidar e a culpa era minha. Porque eu falava: “Traz”. Aí eu falava: “Meu Deus, e agora? Como eu vou ver tudo isso?”. Tinha dia que a loja estava cheia de caixa e um monte de gente esperando assim pra ver. Aí eu falei: “Não. Preciso dar um basta nisso. Preciso desenvolver um jeito disso não acontecer”. Hoje eu tenho agenda: “Olha, tal dia...”. Aí a pessoa fala: “Olha, eu concordo com a avaliação que você fez, eu vou vender”. Aí eu separo os itens que eu quero, às vezes eu não quero tudo, eu falo: “Eu quero esse, esse, esse e esse. Pago tanto”. A pessoa chega e fala assim: “Tudo bem, eu quero vender. Então posso levar aí”. Eu falo: “Olha, você pode vir tal dia, tal dia, tal dia, tal hora, tal hora, tal hora. E o que é melhor?” “Poxa, mas...”. Eu falo: “É porque tal dia vai vir uma pessoa, tal hora vai vir outra”. Senão tumultua e eu dou espaço de uma hora entre uma e outra. Dependendo da quantidade eu dou duas horas, que é pra organizar, senão é muito desgastante. Aí minha vida ficou melhor, porque depois eu mesmo ficava atrapalhado, falava: “Ah, mas a culpa foi minha, eu que fiz você agendar entrevista com cinco pessoas aqui, e aí? A culpa foi sua, quem mandou você agendar?”. Então eu fiz isso.
P/1 – E no caso de você ter um livro na sua loja que está vendendo muito, por exemplo, o sucesso do momento está vendendo demais. Você procura adquirir mais esse livro pra semana que vem? Mesmo que seja em outros sebos? Como é? Ou esgotou, esgotou?
R – Não. Eu não procuro, não. Eu não procuro, não. Eu tenho um problema, tenho vários problemas psicológicos, várias patologias, um deles é esse, a raiva do que está bombando no momento. Normalmente eu fico com raiva do que está bombando. Normalmente o que está bombando é uma porcaria. Inclusive, lá na loja, não sei se você reparou, isso já me afetou tanto essas coisas... Eu tenho placas na loja, placas, folha de sulfite, que eu escrevi assim: “Leia os clássicos, só os clássicos vão dar a você a amplitude do que realmente é importante. Não leia a porcaria do momento”. Assim, as palavras: “Não leia o livro do momento, o livro do momento, provavelmente, se todo mundo está falando que ele é legal, é porque ele é uma porcaria, porque se ele fosse bom mesmo, a maioria nem ia saber”. Entendeu? É uma coisa preconceituosa, mas a prática é assim, eu quero que alguém me mostre que não é assim. É assim mesmo, normalmente o que está bombando é uma tranqueira. E eu acho difícil o que está bombando ficar daqui a cem anos, eu acho difícil aquilo vir a ser um clássico.
P/1 – Falando aí entre o que bombou e o que é clássico, tem algum livro específico, não o autor, mas um livro específico que sempre saía muito, que saiu demais e sempre tem saída?
R – Ah, tem vários livros. Tem vários livros que você pega e você os vende rápido. Os livros sobre literatura Beatnik, por exemplo, é um tipo de livro que vende. Chegou, vende. Chegou, vende. Tudo que é Beatnik é muito legal. Tudo bem que eu gosto, mas independente, tem coisas que eu gosto que ficam lá, ninguém quer saber. Às vezes uma coisa que eu gosto muito eu sou obrigado a: “Leve esse aqui. Eu dou pra você”. Eu já dei livro pra pessoa. “Leve esse aqui, leia esse aqui, que é muito legal” “Eu não tenho dinheiro” “Leve. Eu te dou”. Mas algumas coisas específicas, material de arte vende bem. De maneira geral, dentro de cada área tem o material que vende mais e tem aquele que não vende, dentro de cada área. Não é uma área. Falar: “Olha, essa área vende muito”. Não. De todas as áreas, tem o material A e o material X, todas.
P/1 – Agora falando de uma preferência sua... Qual livro é sua preferência ali, que é o seu preferido?
R – Não tem como dizer. É como você perguntar qual é minha banda de rock preferida. Eu gosto dos clássicos, eu gosto de todos os clássicos, tudo, tudo. Desde Dostoievski... Eu não li todos, li alguns. Cervantes eu gosto, eu li Ulisses, que é um livro incomum, difícil de encontrar, tudo. Li os outros também, mas assim, eu não tenho muita cultura, eu considero que eu não tenho muita cultura. É que está um pouquinho acima, se você vir por baixo, falar: “Nossa, você conhece...”. Eu leio um pouquinho. Pra você ter uma ideia, dos 23 até hoje eu nunca fiquei sem ler nada. Eu não sei quantos livros eu leio por ano, não faço a menor ideia, porque eu termino de ler um, vou lendo outro. Eu nunca me vi... Dos 23 anos pra cá, todo dia eu leio alguma coisa. Eu leio em média de 30 minutos a uma hora por dia. Então eu já li muita coisa, mas eu gosto de tanta coisa, podia falar tanta coisa assim... Tem livros fantásticos, tem livros que mudaram a minha vida. Os livros Beatniks, por exemplo, eu gosto deles, foram importantes pra mim. Até se você pegar assim, Josué de Castro, é um livro legal.HomenseCaranguejos é um puta de um livro legal, vai ser atual sempre. Até clássico, Moby Dick, é uma coisa fantástica pra mim, mexe comigo. Clarice Lispector, nossa, Clarice Lispector é uma coisa fantástica, você como moleque, você vai abrindo, é um monte de coisa legal que a gente tem. Guimarães Rosa, eu lembro como aquilo me afetou quando eu li Guimarães Rosa.Grande Sertão: Veredas... é maravilhoso. E Machado, eu gosto de Machado, os contos são legais. Você vê, não tem eu dizer pra você: “Ah, eu gosto mais desse”. Tem tanta coisa legal, ia ser injusto com os outros.
P/1 – E você gosta muito de música também, de rock.
R – Eu gosto de rock, eu gosto de MPB.
P/1 – E além de livro você comercializa também discos, CDs?
R – Eu comercializo LP e CD, e DVD também, mas não é o forte, não é o forte da loja, nunca chegou a passar 30%. O livro é o forte.
P/1 – Mas a dinâmica do comércio, da procura e da reposição é semelhante com a dos livros?
R – Semelhante. Semelhante. Eu peço lista antes, porque tem muita coisa que não é interessante. Se eu falar pra pessoa trazer, tumultua muito, aí eu perco tempo. Então eu peço relação do que tem. Mas o público, pra vinil ou esse... Essa coisa que estão falando por aí: “Ah, o vinil está voltando”. Isso não é verdade. Não é verdade. Estão tentando vender, esses aparelhos novos, estão colocando, e esses vinis que estão lançando agora... Mas quem realmente gosta de vinil, não compra um vinil... Você não vai ver um colecionador de vinil comprando um vinil novo, na Saraiva, de 200 reais. O colecionador de vinil quer comprar um Beatles in Mono que foi lançado nos anos 60, ele quer esse. Ah, lançou um novo vinil do...
P/1 – Do Restart.
R – O que é isso? Não vale nem a pena estragar o material (risos).
P/1 – Vamos falar agora dos clientes, qual é o perfil do seu público? É um público mais jovem, mais velho, como é? Estudante, profissional?
R – Eu acho que uns anos atrás, no quente, na coisa quando tinha muita gente na loja, eu fazia esse levantamento. O público médio era dos 20 aos 30, a maior parte das pessoas. Homens e mulheres assim, de igual, mudava pouca coisa dependendo do mês. Hoje eu não faço a menor ideia. Hoje eu acho que tem muito velho, tem muita gente velha que vai lá e um ou outro, que se você for considerar... Criança, por exemplo, não é comum. Às vezes vai um ou outro caso, mas estatisticamente não conta. E o público jovem vai muito mais de curiosidade, de: “Olha que legal”. Mais pelo passeio. E, às vezes, eu reparo até que vão, mas não consomem aquilo, eles vão só pra dizer: “Ah, fui lá”. Às vezes eu acho comentário em blogs, as pessoas falam: “Ah, eu fui ao Sebolândia hoje, maior legal. Tinha lá um monte de coisa legal, tinha um disco que tinha a cara que parecia com o porteiro do meu prédio”. Sabe assim umas coisas que não tinham nada a ver. E realmente não era uma pessoa pra estar ali, ele estava ali mais pelo lazer, pela festa. Hoje eu não tenho mais noção, também nem me preocupo mais com isso, acho que não vale mais a pena. É variado.
P/1 – Mas então, as exigências dos clientes de antigamente pra hoje; você acha que mudou bastante?
R – Olha, exigência? Eu percebo que as pessoas agora, a maior parte das pessoas que me sustenta, não tem mais aquele público que ia e chegava... O meu cliente legal era aquele assim... Cliente legal que eu digo é aquele cliente que me sustentava, que comprava. Ele entrava na loja, ela não vinha pra mim, entrava na loja, chegava na primeira estante, já parava e já ia olhando tudo, ele fazia aquela escaneada geral, depois ele ia lá, pegava, se tivesse um carrinho, né? Não tem o carrinho pra você colocar dentro. Hoje as pessoas assim, elas entram lá, aí parecem que têm olheira, sabe? Ela entra, vai para o balcão: “Por favor, você tem “xispeteó” dois?”. Aí você: “Tem”. Ela: “Ah, eu quero”. Aí você pega lá: “Tá aqui”. Ela vira atrás, vai embora. Ou então ela vê, você fala: “Não tem”. Ela: “Tá bom, obrigada”. Ela vira, volta e vai embora. Quer dizer, ela só está ali porque ela foi obrigada. Essa é a maior parte do meu público agora. Ainda tem aquelas que vêm, poxa... Você entrar no lugar, você já vai degustando logo na entrada, fala: “Olha que legal, tem esse aqui, olha que legal”. Até você chegar lá demora um pouquinho. Se você estiver com pressa... Claro, estou sendo injusto com algumas pessoas, que as pessoas estão com pressa, estão fazendo suas coisas. Porque você percebe, você tem uma estante cheia de livros – porque eu não coloco os livros de frente assim, eu coloco os livros pelo dorso, é muito livro, não tem espaço, só no meio que tem um mostruário. Aí a pessoa não para nem pra... Ela passa assim, sabe? Você está vendo que ela não está vendo nada, ela está olhando só o colorido da prateleira. Ai tem gente que diz: “Nossa, que bonita essa prateleira, olha quanto livro, eu queria comprar uma estante e colocar assim em casa. Não fica bom, João? Não fica bom?”. É isso que a gente tem que lidar.
P/1 – E falando agora da questão do pagamento, você mencionou a algum tempo que antigamente era muito cheque, né?
R – Dinheiro e cheque.
P/1 – E hoje em dia como é?
R – Hoje os plásticos estão tomando conta. Hoje fica meio a meio, quando não às vezes um período fica muito pagamento com cartão de crédito e débito. Antes eu fazia até um... Nos primeiros momentos eu fazia levantamento estatístico pra ver se eu entendia um tipo de comportamento, mas como era muito assim, não tem lógica. Ai eu falei: “Ah, vou ficar louco vendo isso e não vai dar em nada”. Eu gostava dos levantamentos porque eu tirava proveito deles, falava: “O que eu posso fazer então pra melhorar aqui. Ah, já que essa máquina está melhor, eu vou colocar, sei lá, uma placa lá na frente dizendo que eu aceito isso, que isso está sendo muito usado. Vou mudar então, está aqui no fundo, ninguém está vendo, eu vou colocar lá, vou parcelar”. Mas depois eu vi que é tudo besteira isso. Era só desgaste que você tinha. Era só desgaste que você tinha pra poder se iludir de que estava gerenciando a coisa. Aí eu abandonei.
P/1 – Em termos práticos você não via nenhuma diferença.
R – Não vi nenhuma diferença. Hoje, por exemplo, cheque não se aceita mais. Hoje eu não aceito mais cheque, não vale a pena você ter mais esse trabalho. Eu nem vou ao banco mais, eu pago tudo pela internet. Veja, eu reclamo, mas eu também... Eu não posso fazer nada, eu não fiz isso, as coisas é que são assim, eu não tenho culpa. Então é isso.
P/1 – Bom, você tem 21 anos de loja já e tem alguns clientes antigos que se tornaram amigos. Muitos deles, eu acredito...
R – Tenho.
P/1 – Pensando nisso, tem algum cliente assim, mais especial que tem aquela continha, que deixa pra pagar depois e tudo bem? Existe ou não a caderneta?
R – Não. Eu não tenho. Eu não tenho isso. Eu nunca tive isso. Quando eram pessoas muito próximas, eu falava: “Leva”. Eu dava. Ou então eu falava: “Depois você paga”. Mas eu não marcava em lugar nenhum. Hoje, como é tudo informatizado, se eu fizer a venda, o dinheiro tem que ter, senão não bate o caixa. Então não tem mais isso, é automático. E outra coisa, eu já nem fico mais no balcão, a maior parte do tempo quem atende são os funcionários. E isso vai encabulando as pessoas de pedirem pra pendurar. Hoje com cartão de crédito, a maioria não tem mais isso, não é comum mais ter a cadernetinha. Eu nunca tive cadernetinha. Eu tive é muito prejuízo. Eu falava: “Leva, paga quando você quiser”. Aí depois trazia de volta, sabe? “Ah, tal, você me deu pra ler”. Fazia uma “mistureba”. Muito era de raiva que eu tinha do comércio normal, do capitalismo tradicional. Depois eu tive que me organizar, acabou sendo consequência não ter mais isso por causa da outra estrutura, do jeito que está montado agora, informatizado. Fez a venda, tem que ter no caixa. Você não vai chegar para o caixa, que não tem nada com a história: “Ô, pendura aí, fala lá para o Antônio...”.
P/1 – Pensando nos problemas que um sebo enfrenta, tem muito a questão das pragas, as traças, os cupins. Como é pra você lidar com isso? Já teve algum problema sério em relação a esse tipo de coisa? Como era?
R – Cupim eu nunca tive, mas no começo eu tinha um problema com as baratas, num primeiro momento, nos primeiros anos. Depois eu entrei nos dois, três anos, aí eu vi que precisava ter uma atitude, aí eu entrei na coisa de dedetizar e nunca mais saí disso. A dedetização em média dura até um ano, então eu faço isso todo ano. Então eu não sei mais o que é isso. Eu já até perdi de mente como era isso de ter... Eu não tenho mais faz muito tempo. Bicho nenhum, porque a dedetização, até o mosquito da dengue ele pega, você sabe, né?
P/1 – Ahã.
R – Fica assim, se ele vem, ele morre onde ele encosta.
P/1 – E nesses 21 anos de loja teve alguma história muito curiosa, muito engraçada, muito pitoresca que você lembre e gostaria de dividir assim, que chame a atenção?
R – Tem um monte. Agora, pra eu lembrar. Se você perguntou, eu não vou lembrar. Eu contei um monte de coisas, mas porque vieram... Eu lembrando assim...
P/1 – Aquela do Maluf foi...
R – Ah, tem. Mas tiveram muito mais. Teve muita história. Pitoresca, engraçada, né? Eu conheci minha esposa na loja, ela começou a frequentar lá e a gente se envolveu, começou a namorar, eu a conheci... Você vê, eu estou preso ali dentro, eu conheci muita gente na loja, fiz muitos amigos, tudo. E uma coisa curiosa é isso. A minha filha cresceu lá na loja lendo gibi debaixo da banca lá.
P/1 – Sua esposa era uma cliente sua?
R – É, no primeiro momento foi. Coisa curiosa tem muita. Se eu me lembrar de alguma depois, conforme eu estiver falando eu digo. Como foi do Maluf, como foi do sujeito que compra a mesma coisa. Agora eu não...
P/1 – No seu comércio hoje em dia...
R – Uma vez um sujeito teve um “piti” dentro da loja e derrubou todos os livros no chão assim. Louco. Deu um “cinco minutos” nele, ele jogou tudo os livros no chão, foi jogo duro segurá-lo e colocá-lo pra fora. Jogou tudo no chão, ele colocava a mão atrás das prateleiras assim, jogava tudo. Ele estava com raiva de mim, eu não lembro por que, porque eu não fiz o que ele queria, eu não sei o que era. Acho que eu não fiz um negócio que ele queria. Deu assim, foi uma coisa... Deu um curto-circuito nele lá.
P/1 – E ele voltou à loja depois?
R – Não. Acho que não. Se ele voltar, eu sou um sujeito que não tenho a memória boa, não. Eu não me lembro da cara das pessoas, eu não me lembro dos nomes, não sou bom fisionomista, eu não tenho a memória assim. Se você chegar lá e falar: “Antônio, eu sou a pessoa que a gente ficou conversando de tal livro há dez anos”. Aí talvez eu lembre. Eu preciso de uma referência, a minha referência, o meu gancho são os livros, é a conversa, tudo. Agora, é bem possível que eu andando na rua, eu encontrar com você, eu não te conheça. Você fala: “Ô Antônio, eu sou do Museu”. Ai eu falo: “Ah, do Museu da Pessoa, beleza”. Mas eu não gravo nomes e eu tenho dificuldades com rostos. Os meus funcionários, eu sempre falo com eles, que eles sempre me socorrem nisso daí. A pessoa vai chegando, fala: “Antônio, aquele é seu amigo, ele comprou tal obra”. Eu falo: “Ah, beleza. Beleza. Tudo bem, João? Como você vai?”. Eu tenho dificuldade de memorizar o rosto, então, por exemplo, se essa pessoa fosse lá eu não me lembraria dela. Eu não lembraria. Só se ela falasse: “Fui eu que derrubei os livros aqui na loja aquele dia”.
P/1 – Eu lembro que quando eu fui visitá-lo na sua loja, você mencionou que seus irmãos quase todos têm sebos também.
R – Tem.
P/1 – E como é ter uma família de donos de sebo? O que você acha dessa experiência?
R – Eu acho uma coisa muito legal, muito diferente. Mas na verdade, a maioria já é casado, todos, só um que não é. Cada um tem a sua vida. E o nosso contato é de final de semana, que a gente se encontra na casa dos meus pais. Então a gente tem por costume não ficar falando de negócios, porque já é muito estressante, você pega um domingo, tudo... A gente vive, quando tem uma dica, acontece alguma coisa, aí um entra em contato com o outro por e-mail, por telefone. E às vezes uma coisa mais séria: “Olha, fique atento com isso”. Mas cada um o seu negócio é independente, não tem ligação, só o mesmo nome. O nome foi o que meu pai deu e eu registrei, inclusive, no Marcas e Patentes o nome Sebolândia. Está registrado no meu nome, mas meus irmãos todos usam, porque primeiro que o nome é do meu pai, mas ele não quis, ele: “Ah, não vou ver isso, não”. Eu falei: “Então eu vou só pra ninguém usufruir do nome”. Mas cada um tem a sua empresa, o seu CNPJ, cada um gerencia do seu jeito. Então a única coincidência é que nós somos todos irmãos.
P/1 – E pensando também em quase todo mundo ter se dedicado à atividade do sebo; é uma espécie de memória afetiva para o trabalho do seu pai, na infância de vocês, tem uma ligação direta entre uma coisa e outra?
R – Eu acho que ele meio que se sente realizado com isso. Meu pai já tem uma idade muito avançada, inclusive ele nem está aqui, ele está no Recife. Ele e a minha mãe... Ele já se aposentou, não trabalha mais, ele não tem mais condições de ficar de pé no balcão, não sabe lidar com a coisa da informática, nem passar um cartão, que ele veio de outro momento. Ele já estava velho quando estava gerenciando o negócio. Então, por exemplo, hoje ele não entende muito a... Ele até tenta, ele é um cara que gosta de aprender. Pra você ter uma ideia, ele comprou recentemente um notebook, tenta falar pelo MSN com a gente. Mas assim, ele tem muita dificuldade, porque é muita informação e você tem que estar atento com muita coisa... Não era um comércio simplesmente ali, a pessoa dava o dinheiro. Hoje tem muitos detalhes pra serem verificados no ato da compra. Muita coisa do que você faz, do que você fala, você pode ter problemas. Funcionários... Gerenciar, hoje, é muito mais complicado.
P/1 – Você que já teve essa visão, ainda tem essa visão bastante crítica do capitalismo, do comércio, como você acha que a sociedade vê o comerciante hoje?
R – Olha, às vezes eu acho que as pessoas não veem o comerciante. A maioria delas vê só o produto. Elas nem olham pra você, a não ser que você tenha alguma relação já com aquilo, ou então uma pessoa que é mais ou menos assim, que tem uma visão parecida com a sua. Mas a maioria a vê... Eu não sou o Antônio, eu sou o cara do: “Ah, dá o livro do Ágape aí” “Tá”. Vai embora, entendeu? Não tem essa coisa, eu não tenho identidade, eu sou o cara do sebo. Então a pessoa não faz noção, por exemplo, que o farmacêutico, aquele que tinha lá perto de casa, era um senhor que tinha muita informação a respeito daquilo pela experiência que ele tinha. Um sujeito que era até interessante, mas hoje, por exemplo, não tem mais isso, porque a maioria hoje está na mão de comerciantes mesmo, pessoas que... Você pode montar qualquer negócio hoje, já tem tudo coisa pronta, kits prontos. Se cochilar tem até um kit pronto de sebo. Ah, você monta o sebo, põe os livros ali, você não precisa ter familiaridade nenhuma. A verdade é essa mesma. E eu não duvido que um sujeito possa abrir um sebo hoje sem informação nenhuma e se dar melhor do que eu. É muito provável, muito possível. E eu nem sou um grande sucesso. Eu sou péssimo comerciante, eu poderia ter explorado muito mais se eu não tivesse seguido esse caminho e ter misturado algumas coisas e tudo. Então eu acho que a maioria... Eu fico vendo assim, às vezes eu paro: realmente as pessoas não veem você como uma pessoa. “Ah, é o Antônio do...”. Não. Antônio, não, é o cara do sebo. Eu tenho clientes que me chamam de Zébolândia, Zé. A loja é Sebolândia, eu não sou José, aí o cara me chama de Zébolândia, faz 20 anos que o cara me chama de Zébolândia: “E aí, Zébolândia”. Aí eu: “Tá tudo bem com você?” “Vou dar uma olhada aqui”. É assim. Eu não vejo como pejorativo, mas... (risos) É um absurdo. Por aí você vê, a maior parte das pessoas não se atém de você enquanto pessoa. Eu não tenho muita necessidade disso, mas dependendo da pessoa ela precisa mesmo. Eu falo, se chegar alguém e quiser conversar eu falo muito, mas a maior parte do tempo não dá também, porque agora eu estou envolvido com outras coisas, tudo. Mas realmente a pessoa só quer o dela: “Tá. Tá aqui. Vai-te embora”. Que diferença faz se é o Antônio que vende livro ou se é o Joaquim ali que vende tomate, é a mesma coisa, o cara: “Dá o negócio aqui que eu vou-me embora”. As pessoas querem consumir e a fila anda.
P/1 – Você já participa ou já participou de algum tipo de associação comercial, algum sindicato?
R – Não. Há um tempo eu até pensei, mas devido a pontos de vistas divergentes, aliás, o meu é divergente com tudo. Aí eu não consigo juntar um partido ali pra defender uma ideia, mas nem... Então eu já me abstenho, falo: “Deixa pra lá. Deixa o que vocês resolverem aí”. Mas lá nem é unido assim, os comerciantes de lá. Eu faço parte, mas é sindicato, Sindicato dos Lojistas de São Paulo. Hoje não dá, hoje a pessoa tem que pagar o sindicato dos sebos, tem o sindicado dos sebos e é obrigado a entrar, mas como eu sou de uma época que não tinha o sindicato dos sebos... Porque virou um bom negócio você montar um sindicato...(risos) Como não tinha, então eu faço parte dos lojistas. Mas eu nem sou atuante, nem corro atrás de nada. Pra mim isso é de menos.
P/1 – Pra finalizar a entrevista, a gente vai entrar de novo numa parte mais pessoal, tá bom? Então eu gostaria que você contasse pra gente como é seu dia-a-dia hoje, seu cotidiano.
R – Eu trabalho de segunda a sábado, a minha vida praticamente toda foi dedicada à loja, ao sebo. Desde que eu abri a loja, com 24 anos, uma coisa curiosa, eu nunca tirei férias. Pra mim não era desgastante porque eu me divertia. Hoje é desgastante fisicamente falando, mas intelectualmente, filosoficamente falando, não é. O maior problema mesmo é lidar com as contradições de coisas que você vê no dia-a-dia que você não concorda por questão de postura mesmo. Mas a minha vida toda é ali dentro, de segunda a sábado. As outras coisas que queira fazer, por exemplo, ir ao cinema, eu vou ao cinema, eu vou ao museu, vou ao teatro, alguma coisa que eu faça tem que ser à noite ou no domingo, ou então um feriado maior pra gente: “Ah, vamos ao sítio”. Tem que ser um feriado. Quem trabalha com comércio, quem não fizer isso não se dá bem. Quem trabalha com comércio está preso, é uma prisão com a porta aberta, o sujeito tem que ficar ali de prontidão. Porque o cliente não pode passar ali e ver: “Ah, tá devagar, vou fechar e abro amanhã”. O cliente passou ali, não ia entrar na loja, ele viu a loja fechada, aí amanhã ele quer um livro, está passando de ônibus e fala: “Pô, vou descer aqui. Mas e se o Sebolândia estiver fechado?”. Aí fala: “Ah, então não vou nem descer, porque às vezes eu passo lá às vezes está fechado, às vezes está aberto”. Fala: “Eu vou direto para o shopping”. Então você tem um negócio, você tem que ficar, mesmo que você fique o dia todo ali. Você se propõe das nove às 19, então você tem que ficar ali das nove às 19. “Ah, mas não entrou ninguém.”. Mas você tem que ficar com a porta aberta, a pessoa tem que ter aquilo como referência: “Não, eu vou sair da minha casa, nesse bairro, vou pegar um ônibus, vou lá”. Por quê? Porque ela está segura de que quando ela chegar lá, o sujeito vai estar lá. É assim que funciona em qualquer negócio. Você não vai sair da sua casa pra ir ao cinema se você chegar e falar: “Mas e se o cinema não estiver funcionando?”. Então o negócio, você administrar uma loja... A não ser que você tenha alguém de confiança, que você coloque lá, mas não é o meu caso. Aquilo é uma extensão minha. Parece incrível, mas é a minha vida que está ali. Eu sempre fiz isso, eu nunca trabalhei na área depois que eu me formei e não quis trabalhar, já tomei a decisão que eu não queria trabalhar pela minha própria experiência, que não era legal eu trabalhar sendo subordinado a alguém. Então hoje o meu dia-a-dia é tudo ligado à loja.
P/1 – E nessa agenda sobra espaço pra alguma atividade de lazer, pra algum hobby?
R – Hobby não, mas lazer tem. Todo domingo eu faço alguma coisa.
P/1 – E o que você faz?
R – Ontem eu fui ao cinema. Hoje, seu não viesse aqui, talvez eu fosse a outro lugar. Como eu disse pra você, eu não vim aqui ainda, mas eu vou muito a museu. Desde Transporte, do Ipiranga, eu vou a todos... Que tem da Luz, das Letras. É muito legal lá, as exposições que tem. A do Guimarães Rosa foi incrível, foi a primeira.... Não sei se você viu, se vocês viram, no Museu da...
P/1 – Língua Portuguesa.
R – Da Língua Portuguesa. Aquela exposição mesmo, a da Clarice também foi legal. A do Guimarães Rosa eu nunca tinha visto nada parecido, eu me emocionei muito, eu não queria sair de lá. Foi a melhor coisa que eu já vi relacionado a partir de uma obra. Uma obra fantástica e a exposição em si era outra coisa fantástica. Eu nem sei quem bolou, acho que foi uma mulher. Na época eu me envolvi muito com aquilo, já faz tempo, foi a primeira. Foi muito boa. Eu cheguei lá outras vezes depois pra ver a mesma exposição, comprei depois o DVD, que filmaram a exposição, saiu um livro com o DVD dentro do livro, do Guimarães Rosa, não sei se você viu a edição, que ela era toda de pano e vinha com uns fios. Era uma coisa fantástica, uma coisa boa de se consumir.
P/1 – E falando nisso, você gosta de fazer compras?
R – Não.
P/1 – Não?
R – Não. “Ah, vamos ao shopping?”. Já me dá uma taquicardia, já fico nervoso. Eu só vou pra poder ir embora, só pra ter o prazer de sair, sabe assim, você calçar um sapato apertado, ficar o dia todo com ele só pra ter aquele prazer de tirar, aahh. Compras, a melhor hora da compra é a hora que você chega em casa, a hora que você chega.
P/1 – E hoje, partindo pra um lado ainda mais pessoal... Hoje você é casado? E tem quantos filhos?
R – Eu tenho só uma menina, ela está terminando o ensino médio agora, tem 16 anos. E eu estou casado desde 93, já faz um tempinho já. E eu estou morando lá perto do... Já faz alguns anos também.
P/1 – Do Tucuruvi.
R – Perto da loja mesmo, pra facilitar a minha vida, eu devo ficar mais acomodado ainda.
P/1 – E a sua filha já começou a trabalhar com você na loja, né?
R – Começou. Começou agora, faz poucos meses, três meses, quatro meses.
P/1 – E você pensa na Sebolândia no futuro, a Sebolândia com ela, você gostaria que ela assumisse um dia?
R – Ah, eu acho que não. Eu acho que não. E ela quer, parece que ela quer fazer Biblioteconomia. Porque dentre esses outros funcionários que eu tive, uma é a minha cunhada, que trabalhou comigo, irmã da minha esposa. Ela trabalhou comigo um tempo e fez Biblioteconomia, e ela meio que influencia minha filha. E ela vendo também o ambiente, ela está optando por isso. Então não é comércio, é trabalhar com informação, com arquivo, lidar mesmo com informação. E acho que é o caminho que ela vai seguir. Não sei. Também fica a critério dela.
P/1 – Agora partindo pra um final mesmo, o que você achou de ter dado essa entrevista pra gente, de ter falado um pouquinho sobre a sua história de vida, relembrar tanta coisa?
R – Eu achei terapêutico. Gostei. Tomara que sirva pra alguém daqui a alguns anos, daqui a muitos anos, quando eu já tiver ido, alguém veja isso e fale: “Caramba, existiu esse cara?”. Eu gostei. Pra mim foi bacana. Eu não esperava que fosse assim tão descontraído, esperava que fosse uma coisa mais chata. Mas foi, pra mim, descontraído. Pra vocês, não sei se eu posso dizer o mesmo.
P/1 – E tem algum assunto, alguma coisa que a gente não abordou, não perguntou, mas que você gostaria que ficasse registrado, que você ache importante registrar?
R – Não, eu acho que a gente falou... Eu falei de tudo, mais sobre mim. Agora, pra registrar, não tenho. Eu acho que as pessoas têm que dar valor mesmo à cultura, seja ela adquirida por livro, por qualquer outra forma. Eu acho que é uma grande pena as pessoas não terem acesso e não darem importância pra isso. Que a gente tem, tem muita coisa, mas a maioria não, a maioria não aproveita.
P/1 – Então, senhor Antônio, em nome aqui do Museu da Pessoa e do SESC São Paulo, a gente agradece muito a sua participação. Muito obrigado.Recolher