Conte sua História 20 anos de Museu da Pessoa no Brasil
Depoimento de Gilberto Franco
Entrevistado por Rosana Miziara e Juliana Berssami
São Paulo, 16 de agosto de 2012
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV361
Transcrito por Priscilla Proetti (MW Transcrições)
Revisado por Joice Yumi Matsunaga
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Conte sua História 20 anos de Museu da Pessoa no Brasil
Depoimento de Gilberto Franco
Entrevistado por Rosana Miziara e Juliana Berssami
São Paulo, 16 de agosto de 2012
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV361
Transcrito por Priscilla Proetti (MW Transcrições)
Revisado por Joice Yumi Matsunaga
P/1 – Gilberto, você pode falar o seu nome, local e data de nascimento?
R – Gilberto Franco, eu nasci em São Paulo em 15 de novembro de 1957.
P/1 – Seus pais são de São Paulo?
R – Não, são italianos, ambos.
P/1 – E eles já vieram casados de lá?
R – Não, vieram jovens, em famílias separadas, meu pai com dez anos e a minha mãe com oito, nas vésperas da Segunda Guerra. Os dois eram judeus, de famílias judias. Por circunstâncias de cada uma das famílias, conseguiram fugir das leis raciais italianas um pouco antes da explosão da guerra. Então começando pela família da minha mãe, o meu avô Hugo, de Tagliacozzo, ele era um alto executivo na Pirelli, e por conta dessa posição, por assim dizer, ele teve um pouco mais de informação, do que se tinha na época, em relação ao que se estava se passando na própria Itália, e percebeu que ele tinha que sair do país por ser judeu, né, e aí ele conseguiu vir com a família pra cá como se fosse uma viagem de negócios da Pirelli. O próprio Pirelli e a família facilitaram essa vinda. Então ele veio nessa viagem e aqui ficou. Pelo lado do meu pai, eles também perceberam que a coisa estava muito difícil, e me parece que eles vieram no último navio em que foi possível essa migração, agora eu não sei se foi em 1939 mesmo ou 1938, mas foi, talvez, a última oportunidade que as pessoas tiveram de escapar. Daí as famílias se conheceram aqui através do Dante Alighieri, eles foram estudar lá...
P/1 – Os filhos foram estudar no Dante?
R – Os filhos foram estudar no Dante.
P/1 – E eles foram morar em que bairro?
R – Meu pai morou na Alameda Jaú, Jardim Paulista, e a minha mãe morou na Rua Salto, uma travessinha da Brigadeiro, lá embaixo, perto da Estados Unidos.
P/1 – E os dois se conheceram no colégio?
R – Se conheceram no colégio, ela era um pouco mais... Eu não sei exatamente, mas existia uma pequena comunidade de judeus italianos aqui no Brasil, e aí eu não sei se eles se conheceram exatamente no colégio, eu acho que as famílias se conheceram também, foi uma coisa meio misturada assim, famílias, colégio. Eu acho que a minha tia, a irmã da minha mãe, era colega de classe do meu pai, tinha algo assim. Estava tudo muito próximo, era um núcleo muito pequeno, era chamada colônia Mussolini (risos), porque eram judeus italianos que tinham conseguido fugir do Mussolini, era um nome meio engraçado, mas...
P/1 – Tinha esse nome mesmo?
R – Tinha, você já deve ter ouvido um outro depoimento com isso, não sei, ou não?
P/1 – Eu, particularmente, não.
R – Mas tinha esse nome, eu ouvi isso, alguém falar.
P/1 – Aí seu pai e a sua mãe se conheceram e se casaram?
R – Sim, eles se conheceram, o meu pai ficou muito apaixonado pela minha mãe, eu acho que ela era um pouco mais reticente, enfim, essa parte eu sei pouco, mas meu avô faleceu em 1953, eu acho que foi isso. Meu avô materno morreu subitamente, e eu acho que isso acabou meio que impulsionando o casamento deles de um jeito ou de outro. Casaram, tiveram quatro filhos, eu sou o terceiro, e foi um atrás do outro assim, ela engravidou na noite de núpcias, um ano e meio depois de nascer o meu irmão mais velho nasceu o segundo, um ano e meio depois nasço eu, e tem mais um irmão que nasceu uns cinco anos depois de mim, e cinco anos depois ela morreu, essa foi a história dela, foi muito cheia de acontecimentos, ela morreu muito jovem, né, acho que, com trinta e quatro anos, algo assim.
P/1 – E voltando um pouco, qual era a atividade do seu pai?
R – Meu pai fazia e faz até hoje... Ele é engenheiro civil, se chama Mario Franco, na profissão dele ele é muito reconhecido, ele é do “main extreme” assim, da profissão, né, ele tá com oitenta e dois anos, trabalha até hoje, ainda hoje ele é uma pessoa importante, vamos dizer assim, no trabalho dele, ele faz diferença no escritório, ele tem um escritório de cálculo estrutural. A minha mãe se formou em Biologia, depois ela fez uma pós, eu não sei exatamente em que, em Oceanografia, mas ela não chegou a trabalhar, bem, teve um monte de filho também, um atrás do outro e depois morreu muito jovem.
P/1 – E onde que eles foram morar?
R – Depois de casados foram morar um tempo na Rua Bahia, em Higienópolis e depois foram pro bairro do Sumaré, e meu pai está lá no Sumaré até hoje...
P/1 – Nessa casa, vocês...
R – A primeira casa era uma casa alugada, depois ele construiu uma casa pra ele, onde ele mora até hoje e todos os filhos tem um pouco esse apego, que acabou todo mundo morando num raio de um quilômetro mais ou menos.
P/1 – Todos moram lá?
R – Todos moram perto, eu que morava mais longe, morava a três quilômetros, aí, enfim, por circunstâncias diversas mas, que deve ter lá um fundo comum, todo mundo acabou morando muito perto...
P/1 – E sua casa de infância, essa que você morou com seus irmãos, como era?
R – A casa, a primeira de infância, era na Rua Grajaú, era uma casa que eu lembro muito pouco, era pequena, um sobrado, está de pé até hoje, e depois nos anos sessenta, convenci meu pai a construir uma casa, meu pai apesar de ser engenheiro civil, ele tem uma alma de arquiteto, e ele projetou a casa, teve uma ajuda, enfim, mas ele projetou uma casa bacana, de arquitetura moderna, ele tinha muito interesse por essa, vamos dizer, pelo que acontecia na época em arquitetura e tal, que é essa casa que ele mora até hoje. E ele fez a casa pros três filhos, né, tem um quarto pra cada um, e enquanto estava construindo a casa minha mãe engravidou de novo, do quarto filho (risos), e está lá até hoje a casa.
P/1 – Como era Sumaré quando você era pequeno?
R – Não tão diferente do que é hoje, assim, é um bairro que não se descaracterizou muito, porque ele tinha aquele... Enfim, não era sítio, mas era um desses loteamentos assim como outros que tem na cidade, tinha um pouco menos de casas, a Avenida Sumaré, por exemplo, não existia, era um brejo; inclusive, a minha tia, irmã do meu pai, morava na Avenida Sumaré, que era uma terra, assim, era um portãozinho que dava pra terra, isso eu tenho algumas fotos, de coisas desse tipo, é uma coisa que eu acho interessante. O resto do Sumaré, eram aquelas ruazinhas, tinha um pouco menos de casas, mas na essência não mudou muito aquelas ruas, as ruas mesmo não mudaram, não é um bairro que se transformou tanto.
P/1 – E quais eram suas brincadeiras de infância? Brincava com seus irmãos, com os amigos?
R – Carrinho e rolimã na rua quando eu era pequeno. Eu, meus irmãos, meus primos, a gente tinha carrinho de rolimã, e até hoje eu falo “roleimã”, mas era rolimã (risos), eu não cometo muitos erros, mas esse é um deles. E a gente descia a rua ali de carrinho, depois, eu nunca fui de futebol, sempre detestei jogar futebol, mas brincadeira de rua era isso, depois lá por 1967 assim, eu era basicamente o caçula dos irmãos e primos, né, depois nasceu meu irmão menor, mas já era uma outra... Já estava começando uma outra história. E aí eu não sei bem de onde que apareceu isso, mas a gente comprou um calhambeque (risos), que era um carro, acho que de 32, um Ford de 32. Eu não sei se a gente fez uma vaquinha, né, eu vou te falar que eu nem sei direito, eu era o menorzinho. Então eu não sei bem de onde apareceu esse calhambeque, era um carro verde, a gente chamava ele de Chicão, e tinha um chofer. Nessa época acho que minha mãe estava doente já, foi a única época que teve um motorista em casa, acho que por conta disso, não era muito o estilo da família também, que era o Flávio Negrão, era o nome dele, de fato era um negrão assim muito simpático. E ele dirigia o calhambeque pra lá e pra cá com a gente, aí um dia não tinha freio, e outras coisas que eu nem sei mais, mas isso era um pouco da minha infância, foi essa história também.
P/1 – E como era na sua casa, assim, sua mãe, seu pai, quem exercia autoridade?
R – Questão difícil, porque eu me lembro muito pouco, eu tive um apagamento de memória, apesar de que eu perdi minha mãe com dez, quase onze anos. Eu tive um borrão de memória, assim muito grande, então, eu não tenho uma memória viva, assim desse tipo de detalhe, dessa sutileza, mas com certeza... Enfim eles eram pais mais autoritários do que nós, que somos pais hoje. Assim, é diferente, não é esse temor assim, era uma coisa mais viva; mas eu sei algumas coisas entre eles, mais assim de juntar retalhos posteriores, né, do que necessariamente de lembranças. A minha mãe tinha uma personalidade muito forte, era muito inteligente, meu pai também, os dois são muito inteligentes, acredito que talvez ela, pelo que eu conheça, ou pelo que eu deduzo, eu acho que ela se empunha um pouco por essa soberania do saber, alguma coisa assim, ela era um pouco mais ousada talvez, do que ele, isso que eu estou falando, isso não são memórias, são impressões captadas...
P/1 – Ah, mas tudo forma, né, essa é a... O desafio da memória é esse.
R – É, por exemplo, essa é uma história contada pelo meu pai, muito do que eu vejo da minha mãe é através dos olhos dele, então se já subjetivo com uma pessoa, com duas é mais ainda. Mas eles eram imigrantes, de um jeito ou de outro ambas as famílias vieram pra cá, lutaram, aprenderam português, e não era um absurdo pra minha mãe voltar pra Itália, havia essa questão lá entre eles. Mas eu entendo mais ou menos isso e deduzo um pouco pelo meu próprio temperamento, né, então eu acho que ela dizia que viver no Brasil era viver com um cobertor em cima, era como se você tivesse um cobertor em cima de você, e esse era uma espécie de argumento pra voltar pra Itália, eu acho que ela tinha muita vontade de voltar pra Itália, ela sentia mais essa opressão aqui. O meu pai, por outro lado, foi se dando muito bem profissionalmente, ainda muito jovem, teve algumas conquistas profissionais e, enfim, ganhou um prêmio muito jovem, um concurso. Aliás, ele entrou no comecinho da carreira para o Edifício Peugeot na Argentina, ele entrou nesse concurso com o escritório Aflalo e Gasperini, que é um escritório bem conhecido, eles eram amigos e tal, e ele mesmo se empenhou muito nesse projeto e o tal do edifício, que era um edifício muito alto, o mais alto não sei do quê, da América Latina talvez, com uma solução estrutural muito arrojada e não sei o quê, e ganhou o concurso. Então, a partir daí, ele se tornou sócio do sócio dele hoje e começou uma carreira profissional muito... Assim, nesse sentido o Brasil estava de portas abertas, tudo por fazer, ele estava se dando bem, então acho que ele não queria muito saber de ir pra Itália, né, eu acho que eu perguntei isso e ele me falou: “É, com certeza se eu tivesse ido pra Itália, eu não teria tido a projeção que eu acabei tendo aqui no Brasil”. Eu acho isso bem revelador do momento. Ao mesmo tempo eles tinham fugido do fascismo na Itália, então eles tinham uma orientação mais de esquerda, então eles sentiam muito essa... A gente aqui, nos anos sessenta, estava sobre a ditadura e tudo mais, eu acho que isso na época seria um peso muito grande também contra, quer dizer, o Brasil era realmente, nesse sentido... Tinham essas duas facetas, né, profissionalmente eu acho que ele teve muita oportunidade de trabalho, de projeto, mas o ambiente era muito pesado realmente.
P/1 – Com quantos anos você entrou na escola?
R – Putz, sei lá, jardim... Não sei te dizer se eu entrei no pré-primário... Eu acho que entrei no pré-primário, tenho que fazer as contas, ai, acho que na época que se entrava na escola (risos), não sei te dizer.
P/1 – Em que escola você estudava?
R – Olha, a primeira escola... Naquela época São Paulo era uma cidade que você podia morar em Sumaré e estudar na Vila Mariana, era mais fácil. Eu estudei numa escola que se chamava Externato Irmã Catarina, que eu não tenho a menor ideia de onde ficava, não me lembro, depois eu estudei...
P/1 – Você ia como pra escola? Você se lembra?
R – Desse externato eu lembro pouco, eu me lembro bem do Externato Canadá, esse sim, era na Rua Teixeira da Silva, perto da Paulista, perto de um colégio estadual que existe até hoje lá, eu acho, mas a casa desse externato não existe mais, era uma casa antiga, interessante, hoje é um prédio; com muito pouca idade eu ia de ônibus pra lá, pegava o Ipiranga-Sumaré, peguei muitas vezes, era uma coisa normal você pegar um ônibus com sete anos, oito, ir sozinho, voltar, mas tinha a perua escolar também, naquele outro externato eu acho que a gente ia de perua, eram aquelas peruas escolares antigas. Então eu ia pra escola de perua escolar e depois de ônibus.
P/1 – Você gostava de ir pra escola?
R – Não sei, acho que eu não gostava e nem deixava de gostar, acho que eu ia, não me lembro assim, você tá perguntando na primeira infância, né? Não, não lembro de ter... Eu lembro da perua demorar muito pra voltar pra casa porque a gente era os últimos a ser entregues, era uma coisa demorada.
P/1 – Tem alguma professora que você lembra?
R – Do primário?
P/1 – É.
R – Eu lembro de uma professora que tinha um nome engraçado, ela se chamava Rubianita porque o pai se chamava Rubens e a mãe se chamava Anita (risos), mas eu não diria uma grande professora, não sei. Eu lembro que a diretora do Externato Canadá gostava muito de mim, não sei por quê, mas ela gostava muito de mim, inclusive, quando a minha mãe morreu ela se preocupou muito comigo, teve uma coisa muito especial de atenção, ela se chamava Dona Célia.
P/1 – Vocês tiveram alguma formação religiosa? Ou seguiam alguns hábitos da cultura judaica?
R – Não, definitivamente não, a colônia judaica italiana era um pouco mais branda do que em outros países, então o judeu italiano já era um pouco mais desencanado por definição, é o que se diz, alguém que me falou isso, eu tô falando isso de terceiros, mas eu acho que o judeu italiano era muito mais aculturado e menos segregado do que em outros países, eu já perguntei, eu gosto de perguntar... É que eu tenho que ir lá perguntar essas coisas, né, eu sou muito a favor da memória, acho que por isso eu me interessei por esse museu também, essa memória que você consegue resgatar dos pais e dos avós, dos que foram, você tem obrigação mesmo de levar pros filhos e pros netos, mas eu tenho que ir lá arrancar do meu pai porque ele é bem fechado pra esse tipo de coisa. Mas eu perguntei pra ele uma vez o quão integrado ele era, né, e quantos que eles, judeus na Itália, eram integrados na sociedade em geral, ele falou que cem por cento, ele falou que ele só tomou conhecimento de alguma estranheza, vamos dizer, em relação a esse aspecto, ou melhor, relevância, esse aspecto se tornou relevante por conta do Mussolini, essa é uma coisa que foi fabricada na Itália, diferente do que acontece na Polônia ou em outros países onde os judeus viviam, seja pela própria natureza, seja pela natureza alheia, mais segregados da sociedade, e que aí ele começou a sentir isso só a partir desse momento, começou a ter leis de segregação, teve um momento em que os judeus não podiam mais estudar, foi nesse momento que a minha avó resolveu pegar as coisas e ir embora.
P/1 – Ela voltou? A sua avó.
R – Não, todos vieram pro Brasil e ficaram, essa segregação que eu tô falando era na Itália.
P/1 – Na Itália.
R – Então, só pra não perder o fio da pergunta, os judeus italianos já eram um pouco mais desencanados, a minha avó já se declarava agnóstica... A minha mãe chegou a ter um começo de formação religiosa, e aí de repente ela se revoltou, eles diziam que a gente poderia escolher a nossa religião, e eu, na verdade, nunca segui religião nenhuma, sou bastante ateu, agnóstico, o que você quiser.
P/1 – E a comida?
R – Muito mais italiana do que judaica, eu diria que até mim, da família, zero de comida judaica, mas muito da comida italiana, do norte da Itália. A propósito, a família do meu pai era de Gênova e a família da minha mãe era de Milão, mas tinham negócios com a Líbia, com Trípoli, eu não sei bem, já tá muito distante...
P/1 – Negócios? O que eles faziam?
R – Eu acho que o meu bisavô teria alguma coisa de comércio com a Líbia, mas aí eu teria que perguntar (risos).
P/1 – E quantos anos você tinha quando a sua mãe ficou doente?
R – Tinha nove, provavelmente.
P/1 – O que ela teve?
R – Ela teve leucemia e foi muito rápido, meu pai teve a orientação, que era da época, de não revelar isso nem pra ela. Ele seguiu essa orientação dada por pessoas com quem ele se aconselhou, ou médicos, então nem ela e nem nós soubemos do que se tratava até ela morrer, então um dia ela morreu; claro, ela estava muito doente, era uma anemia, a gente não sabia o que era, não se dizia, e durou um ano mais ou menos esse sofrimento. O período em que ela ficou doente foi muito rápido e muito traumático pra todos nós, afetou todo o resto da história de todos, um pouco pela forma, um pouco pela violência da circunstância, né, e principalmente pelo fato em si, uma mãe de quatro filhos, muito jovem, foi muito duro, muito penoso.
P/1– Ela morreu em casa?
R – Estava em casa, mas eu não estava lá, a gente tinha ido pra um acampamento de férias, eu acho, depois voltamos porque ela estaria muito doente, então nós voltamos por causa disso, meus irmãos eu acho que estavam no Rio de Janeiro, tudo isso é muito nebuloso... Eu estava na casa da minha avó, supostamente porque eu estava gripado e poderia passar pra ela, e um dia me chamaram pra ir pra casa porque ela teria piorado muito, e aí meu pai falou: “Ela morreu”, e eu não tinha a menor noção de que isso pudesse acontecer, nem sabia o que era isso, nem passava pela minha cabeça, e essa foi a tônica da coisa, e a orientação, também, que o meu pai recebeu de um psicólogo que aconselhou ele foi que nós deveríamos amadurecer muito rápido, e assim foi feito, mas todo mundo ficou com muitas sequelas, assim, desse luto não vivido, né, basicamente isso. Isso se perpetuou de uma forma esquisita, virou um tabu falar dela, mencionar, compartilhar qualquer coisa que se referisse a ela, e até hoje é assim, ninguém nunca conseguiu quebrar esse tabu, sei lá do que pode se chamar. E mesmo hoje, a minha filha tem o nome da minha mãe, tem uma série de coisas que a gente tentou fazer... Desculpe.
P/1 – Imagina. Quer parar um pouquinho?
R – Não, tudo bem.
P/1 – A gente vai revivendo nessa narrativa, né?
R – É, não tem jeito. Mas essas coisas são assim, são muito presentes mesmo, ainda bem, eu fico feliz de ver que eu tô vivo ainda (risos).
P/1 – Aí, vocês continuaram morando na casa do seu pai?
R – Sim, pois é, eu não sei até que ponto essa questão da memória é uma pergunta um pouco em off, a gente se expõe muito aqui e corre o risco de expor outras pessoas também, eu não sei muito como funciona isso porque eu tô dando depoimento falando de outras pessoas... Enfim, meu pai se casou de novo rapidamente, um ano e meio depois, também foi da mesma forma, assim, foi uma solução muito técnica, vai, pra usar uma palavra (risos)... Enfim, se casou, teve mais uma filha, que hoje tem quarenta anos, minha irmã, e as coisas voltaram a normalidade dentro disso tudo que eu descrevi, voltamos a ter uma vida normal cada um à sua maneira. Eu acho que aqui não cabe muito, quer dizer, qualquer coisa que eu fale envolve uma avaliação subjetiva minha sobre outras pessoas que estão aí, e que talvez não caiba muito na história.
P/1 – E aí, na adolescência, você continuou nesse Externato Canadá ou mudou de escola?
R – Não, depois eu fui pro... Era primário, ginásio, eu fui pra uma escola na Alameda Itu, se chamava Escola Gabriela Mistral, eu fiquei um pouco lá, depois, ainda no ginásio, que não se chama mais ginásio, né, (risos), nada disso, agora é fundamental um, dois, três, sei lá o quê (risos), mas eu fui pra Escola Vocacional Luis Antonio Machado, essa é um pouco mais conhecida, tem alguns amigos meus, até hoje, que estudaram no Vocacional, você deve ter alguns amigos que estudaram no Vocacional, foi um período bem negro da minha vida, essa foi a minha Idade Média (risos)...
P/1 – Foi a Idade das Trevas?
R – Foi a Idade das Trevas porque eu era bastante diferente das pessoas, principalmente nesse Vocacional, eu era muito diferente mesmo, era bom aluno, era muito tímido, né, tinha uma mentalidade diferente daquele povo, era uma gente, sei lá, eu acho que até hoje eu talvez achasse a mesma coisa, eu chamava aqueles meninos de coco - boys, era uma turminha meio... Muita gente escrota, assim, não tinha a ver, eu era um cara mais sonhador, mais outras coisas, não tinha a ver, então eu me dei muito mal no colégio, no ginásio, nesse período, não tinha muitos amigos... Aí no meio dessa história mudou, aí já chamava oitava série, então eu fiz o primeiro, o segundo, a sétima e a oitava, aí na oitava série, lá no Vocacional, eu conheci umas pessoas legais, conheci o Rodolfo Stroeter, que ficou muito meu amigo, e que era uma pessoa mais arejada, e outras pessoas também, aí eu fiz alguns amigos e começou um pouco mais de luminosidade na minha vida.
P/1 – Você estava indo pro Renascimento...
R – É, eu estava indo pro Renascimento, e o Renascimento, assim, o Cinquecento (risos), foi a história do patinho feio, foi quando eu fui pro Equipe, eu falei: “Nossa, era disso que eu era feito”, e foi realmente assim, exatamente assim, quer dizer, na oitava série eu já tinha feito muitos amigos, já estava um pouco mais encontrando uma semelhança, encontrando, enfim... Tanto que todas essas pessoas, uma boa parte delas, que foram meu grupo, principalmente no último ano do Vocacional, muitas delas foram pro Equipe, e estão lá até hoje, foi onde eu realmente me reconheci, foi bem a história do patinho feio. Lá no Equipe essa minha maneira de ser, assim, um pouco peculiar, individual, isso era uma coisa absolutamente normal, as pessoas eram assim, tinham um frescor realmente de conhecimento, de conhecer as coisas, mas era também de personalidade, e realmente aquele era um mundo muito novo assim, e aí eu acho que muitas portas se abriram mesmo nesse momento, tanto que eu lembro que quando eu fazia terapia, eu sempre queria contar a história da minha vida a partir desse momento, nunca me interessava em nada que tinha acontecido antes. E de fato esses três anos de colegial valeram por uma vida em termos de aprendizado, de conhecimento, de relações, de vivências, de muitas coisa, né, foi um período muito criativo, sei lá, eu acho que deu as bases para o que eu fui a ser depois.
P/1 – Quais eram os programas? Pra onde vocês passeavam, o que vocês faziam?
R – Nessa época?
P/1 – Sim.
R – Cine Marachá.
P/1 – Cine Marachá ficava aonde mesmo?
R – O Cine Marachá é parte da cultura de São Paulo, ficava na Rua Augusta, mas eu não lembro mais onde, acho que virou uma coisa x lá, não sei mais, o próprio colégio Equipe oferecia muita coisa de cinema, de filmes, de shows; o MASP, nossa, como eu fui ver concerto no MASP à noite sentado naquelas laterais ali, era até mais legal sentar naquelas laterais do que nas cadeiras, cadeira era careta, eu vi muita coisa legal no MASP, muita mesmo. O que mais a gente fazia? Andava de bicicleta, ia ao Bosque do Morumbi, hoje se chama Parque Alfredo Volpi, a gente ia lá, tinham uns showzinhos, tinha festa na casa das pessoas, tinha sempre festa, quatro, cinco, seis festas, a gente ficava indo e vindo, passava a metade da noite combinando onde ia ser a festa e só a outra metade que era realmente em uma delas, depois na outra, tinha muito isso de ir na casa das pessoas.
P/1 – Você tinha namorada nessa época?
R – Eu era meio ruim de namorada, no Equipe tive uma namorada, depois tive outra, mas eu era meio ruim nessa parte (risos), eu era muito tímido, muito desengonçado, muito sem jeito pra coisa, tinha casos, né, histórias que começavam, acabavam, daí o sofrimento, era tudo muito assim, né, até a faculdade, depois, na faculdade eu tive uma namorada que foi namorada mesmo, mas isso foi lá pra frente. Eu tinha histórias assim, no colegial eu tive uma namorada que durou um mês, depois uma que durou uns dois meses, depois tinha umas paixões que não davam certo, amores platônicos, era mais pra isso assim, na faculdade que eu tive uma namorada que durou mais tempo, depois eu fui morar com uma menina, já foi tudo meio...
P/1 – Vamos voltar lá pro Equipe. Lá teve professores que te marcaram?
R – Muitos, muitos professores marcaram, vou começar pelo mais legal, o Maurício, professor de Biologia do Equipe, uma alma imensa assim, ele já morreu, tinha uma deficiência desde sempre, tinha uma perna com alguma coisa, paralisia infantil, talvez, mas eu acho que o Maurício era o maior cérebro do Equipe, ele falava coisas que... O jeito dele ensinar era muito bacana, ele ensinava você a aprender as coisas, eu lembro que sei lá o que ele explicou, era um negócio complicado, e aí ele falava assim: “Bom, à essa altura vocês devem estar fazendo duas perguntas: ‘Como e por que isso acontece?’” e embaixo ele respondia: “O como você vai aprender na faculdade e o porquê você vai ter que descobrir sozinho”. O cara ia falar isso no terceiro ano, não sei, era muito estimulante assim, o Maurício era um cara muito legal. O Agnaldo, professor de Literatura, que graças ao Facebook, reapareceu, e parece que lançou um livro ontem, eu não fui, mas foi um cara que também falou muita coisa pra gente, ensinou o que era um personagem tridimensional, um personagem que não era só de um jeito, era de vários jeitos, e tudo isso era muito bacana. Tem muitos professores do Equipe, a Ana Maria Belluzzo, é uma pessoa que tá por aí até hoje, ela foi minha professora de artes no Equipe, ela me incentivou muito em muitas coisas, ela falou que eu devia fazer Arquitetura, depois eu entrei na faculdade, ela me deu aula de História da Arte, ocasionalmente eu vejo ela por aí, faz tempo, mas... Ela fazia uns experimentos nas aulas do Equipe, de artes, era uma coisa, sabe, pegar você e te botar lá pra fazer umas coisas, as pessoas faziam, todo mundo tinha uma pulsão de criatividade, os professores, isso contagiou muita gente no Equipe, era uma coisa muito forte lá. Tinha o professor Raimundo de História, tinha o Gilson Rampazzo, de Redação, esse é famoso porque ele inventou a matéria de Redação na escola, não existia, ele obrigava as pessoas a escrever. Não é que obrigava, mas ele punha as pessoas em situações que elas eram obrigadas a dar uma resposta escrita pra uma determinada circunstância, e eu, pelo menos, me beneficiei porque eu aprendi a escrever, ele me ajudou muito a gostar da comunicação por escrita, verbal, seja lá como for, eu acho que tá bom, teriam outros, mas esses foram os mais marcantes.
P/1 – No colégio você teve essa professora que falou que você devia fazer Arquitetura porque você já manifestava essa vocação?
R – Eu não lembro bem que conta ela fez, tinha aquela angústia do terceiro ano, né, de escolher...
P/1 – Seu pai tinha alguma expectativa? Te pressionou pra alguma coisa?
R – Não, o meu pai tinha lá os statesman dele: “Façam o que vocês quiserem fazer, mas façam isso muito bem feito”. Ele falava isso e o pior é que deu certo, eu levei isso a sério, de um jeito ou de outro, e o meu pai, por ser engenheiro e por ter essa relação com a Construção Civil, de certa forma, acabou me, influenciando, eu acho que o olhar dele sobre a arquitetura e sobre a arte acabou me ajudando nesse sentido. Já a Ana Belluzzo, eu acho que teve um dia, eu não sei por quê, eu fiz uma... Isso que eu me lembro, é meio difuso, mas eu inventei de fazer uma cidade de giz, eu acho que eu fiz isso meio no sufoco, na correria, tinha que entregar algum trabalho que eu não lembro o que era, e eu peguei e colei os gizes de várias alturas e cores e fiz uma cidade de giz, e aí eu queria pôr ela num aquário, mas não tinha um aquário pra pôr, aí eu peguei um pirex e colei, era uma madeira balsa e um pirex, e ela ficou deslumbrada com aquele trabalho, achou aquilo muito legal e tal, eu acho que me incentivou muito; um dia eu peguei um pedaço de um tijolo baiano, ele tem aqueles sulcos, né, até hoje eu não entendo porque ela achou isso (risos), mas eu peguei e pintei com guache os sulcos, com uma cor azul, e falei: “Isso aqui é uma horta”, e ela achou aquilo... Eu não sei porque ela achou aquilo uma síntese, um dia eu vou perguntar pra ela porque ela gostou tanto daquilo (risos), mas me incentivou muito. Ah, não, teve um outro trabalho, esse era legal de verdade mesmo, esse eu até, um dia, queria fazer de novo, eu peguei um cano de PVC, desses de esgoto, era uma conexão de cano, descobri uma lente, uma lupa, que tinha exatamente o mesmo diâmetro dele, e a lupa, aí precisa entender um pouquinho de ótica, aí eu já tinha um pouco dessa coisa de ótica, de gostar, porque olhando pela lupa num determinado comprimento, você tinha que focalizar aquilo como se aquilo tivesse no infinito, então qualquer coisa que você colocasse ali à essa distância da lupa, você enxergaria como sendo infinito. Aí eu peguei um papelão preto, cortei um monte de furinho, colei um celofane azul na frente, aí peguei uma figura, também de papelão, fiz uns recortes aleatórios, como se fosse uma forma qualquer, e botei numa outra peça desse mesmo cano que encaixava
ali e
girava, então quando você olhava aquilo contra a luz, aos seus olhos aquilo estava no infinito, eram estrelas, e quando você girava assim, elas piscavam, aquilo também foi a coisa mais bonita que eu fiz na vida (risos), nem lembrava disso, acho que eu vou fazer outro um dia. Você olhava e realmente era um céu estrelado que piscava, era lindo, era bonito mesmo, e a Ana ficou alucinada com esse negócio, e achou legal. Não sei por que ela fez essas contas e achou que eu devia fazer Arquitetura, não lembro porque ela falava, mas de fato eu fui fazer, ou porque eu já gostava de iluminação, essa parte é legal, eu fazia vários shows, desses showzinhos do Equipe que eram organizados pelo Serginho Groisman...
P/1 – Você é bem dessa época, dos showzinhos?
R – Totalmente, e em vários desses shows fui eu quem fiz a iluminação, se você não se importar eu conto essa parte (risos).
P/1 – Por favor.
R – Eu... Putz, desde quando começou isso? Essa loucura, assim, por luz, eu tenho desde os catorze anos, talvez, um dia eu fui numa loja de ferragem, comprei um monte de lâmpada colorida, e eu ficava experimentando sei lá o que com as lâmpadas, aí – essa é uma parte curiosa, pelo menos eu gosto de contar (risos) –, eu já tinha feito algumas improvisações de iluminação pra coisas escolares assim, e um dia eu fui parar num grupo amador alternativo de teatro de Guarulhos, era um cara, nunca mais ouvi falar desse cara, ele se chamava Boanerges, ele era totalmente gay (risos), ele falava: “Meu nome já começa com boa”. Era um cara totalmente maluco, mas esse Boanerges e uma outra moça chamada Berenice, que era uma professora, eu sei lá por quê, eles resolveram montar um grupo de teatro, isso é totalmente anos setenta, eles convidavam as pessoas pra montar uma peça de teatro itinerante, e o mote disso existir é porque eles queriam tirar a pessoa de frente da televisão no domingo, tinha esse viés político, então eles montaram esse grupo. Tinha esse Boanerges, a Berenice, um cara chamado Jamil, depois eu sei que ele foi pra ECA, não sei o sobrenome dele, mas ele deve estar aí ainda, eu que não sei mais quem é ele, não lembro o que cada um fazia, mas o fato é que eles montaram Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes, que tem aquele filme, né, Orfeu de Carnaval, mas é baseado nessa peça, e aí por causa da Berenice: “Ó, a gente tem um grupo de teatro que ta montando essa peça, você quer fazer a iluminação da peça?”. Eu falei: “Quero”. Eu não lembro como a gente chegou nisso, não sei da onde vinha a verba, não sei se cobrava ingresso, mas a minha condição foi assim: “Eu monto um equipamento de iluminação caseiro e depois esse equipamento fica pra mim”. E o equipamento de iluminação caseiro era farol de fusca, que naquele tempo o farol de fusca era uma parábola, assim, era uma coisa separada, montado num negócio de alumínio que eu comprei lá, montei tudo, e agora é doideira mesmo, e os filtros coloridos eram feitos com – talvez as pessoas não se lembrem que isso existiu –, era folha de gelatina Oetker. Você lembra que isso existiu? Eu tingi aquela folha de gelatina com anilina de todas as cores possíveis e colava elas assim, e elas não derretiam, pelo contrário, elas ficavam duras com o calor, então eu coloquei na frente daquilo e montei dez refletores desses, comprei um transformador de voltagem, desse tamanho, pesava uns vinte quilos, pra transformar em doze volts, que era a tensão do farol do carro, e mais uma mesa de luz que era um monte de interruptores desses de parede ligados num pedaço de madeira assim, de carpintaria mesmo, e com esse aparato eu acompanhei, durante alguns meses, esse grupo de teatro. Eu estava no colegial, pelos colégios, na periferia de São Paulo, em Guarulhos, Caraguatatuba a gente foi uma vez, doideira, não sei como eu fui me meter... Todo fim de semana a gente ia, foi uma experiência... Não, sei, parece que não sou eu contando assim, porque parece tão distante da realidade... E a peça, era todo mundo de esquerda assim, né, então eram fundamentos de Grotowski, que era aquela coisa que você resumia numa calça ali e um caixote, não sei, alguém inventou essa expressão (risos), mas o cenário da peça, que eu não sei quem inventou, era uns pontaletes de obra montados formando como se fosse um andaime, e tudo acontecia nesses intervalos entre uma coisa e outra, assim, um aparecia, o outro aparecia, sei lá, por sorte minha, porque era, talvez, a única coisa que dava pra iluminar com aquela coisa porque ele dava uns fachos ultra-concentrados, mas era lindo. A cor violeta por exemplo, tinha uma cena que tinha a cor violeta, eu comprava um negócio que eu nem sei existe ainda, se chamava violeta de genciana, eu tingia a gelatina com aquele violeta e dava uma cor maravilhosa, um violeta profundo, era uma certa hora do Orfeu que aparecia a dama da noite, não lembro, ela ficava iluminada com aquele facho violeta, devia ser uma coisa totalmente capenga, mas eu me lembro como uma coisa linda assim. Então por conta desse mequetrefe que eu montei lá, com o passar dos anos eu fui modernizando ele, e lá no Equipe não tinha equipamento de luz, eu levei lá pro Equipe, fiz show do Macalé, fiz show sei lá de quem, teve uma vez que eu fiz show do Rodolfo Stroeter, da Lucinha Turnbull e o Péricles Cavalcanti, eles fizeram um show lá e me chamaram pra... Ai passavam as músicas e eu tinha que pensar, fazer um projeto de como ia ser a luz, chamava O Bandolim, o show, e fiz vários shows, não me lembro de mais nomes das pessoas, não cheguei a fazer, assim, de Gilberto Gil, mas eu acho que o Arrigo Barnabé, aí já era na faculdade, Tom Zé talvez, eu acho que era tudo com é, Arrigo Barnabé, Tom Zé, Macalé (risos). E eu fui modernizando, depois isso foi parar no auditório da FAU, eu fiz uns dois shows lá na FAU também, depois um cara lá passou a mão no equipamento, sei lá, foi triste o fim, a gente caiu na realidade brasileira, mas até que isso durou, eu gostava muito dessa coisa de iluminação, talvez por isso, também, que eu fui fazer Arquitetura. Nossa, que viagem (risos).
P/1 – Aí você decidiu prestar vestibular pra Arquitetura? Você fez cursinho ou foi direto?
R – Prestei vestibular, não fiz cursinho, eu estudei no Equipe, ralei pra caramba no Equipe mesmo, passei muito por causa de redação, daí a minha gratidão ao Gilson, tem uma prova de aptidão pra entrar na FAU, que é o desenho, né, e eu não era bom em desenho, apesar de gostar muito de arte e tal, sei lá, eu acho que era mesmo muito peculiar, eu gostava de desenhar cenas noturnas, e era um drama porque tem que pintar tudo de preto e depois clarear. E no vestibular foi um drama porque era muito difícil a prova, eram três negócios, eu comecei a pintar, nem fui muito bem na prova de aptidão, acho que eu acabei passando por
redação, Física, sei lá, outras coisas.
P/1 – E como foi esse período na FAU?
R – Quando eu entrei na FAU... Muita gente entrou na FAU, isso vai parecer um pouco pretensioso, mas espero que não pareça (risos), muita gente entrou na FAU e se deslumbrou com tudo aquilo, realmente era um ambiente muito liberal, muito propício a criatividade, a muitas coisas, só que eu estava vindo do Equipe, então eu achei tudo careta, achei tudo, assim, na verdade eu mergulhei num oceano, já que a gente tá usando metáforas, né? Eu entrei lá em 1977, em março, abril, teve uma imensa greve, interminável, e eu não sabia muito o que fazer, aquilo tudo pra mim era um horizonte, uma coisa muito branca, aos olhos de hoje, do que eu sei da vida hoje, eu acho que eu tive uma depressão, pelo menos no primeiro semestre, com aquelas greves que não terminavam, e eu não sabia bem o que eu estava fazendo ali, porque quando eu estava no colégio era aquela pulsão por si só, quando eu estava no terceiro ano tinha aquele objetivo claro de entrar na faculdade, e eu me dediquei àquilo, eu acho que eu não ia mais às festas, eu fiquei lá no último semestre e aí entrei, mas eu era um moleque, eu era totalmente despreparado pra qualquer questão da vida prática, eu não achava que eu estava estudando pra ter uma profissão, pra trabalhar, pra ter dinheiro, pra sobreviver, pra ter uma família, pra ter filhos, não existia isso pra mim. Eu estava lá porque eu tinha entrado na FAU e ia fazer Arquitetura, e cinco anos era um tempo absolutamente vasto, aqueles professores, cada um falava uma coisa, eu realmente, no começo, eu não me entendi muito, assim, ao mesmo tempo eu gostava muito de algumas matérias, algumas coisas me interessavam, mas aí, claro, depois eu fui me encontrando lá, as coisas foram acontecendo, eu comecei a gostar da Arquitetura propriamente dita.
P/1 – Que parte da Arquitetura você gostava mais?
R – Olha, eu gostava muito de História da Arte, que não é exatamente Arquitetura, mas gostava muito da História da Arquitetura também, Iluminação eu acabei me interessando por razões óbvias, eu já estava nesse negócio, e lá num período tardio, sei lá, no terceiro, quarto, quinto ano, teve a volta dos professores caçados, porque os professores tinham sido caçados na ditadura, o Artigas, o Paulo Mendes da Rocha, Jon Maitrejean, e a orientação, bom, você fez História na USP, deve ser assim até hoje, era tudo muito de esquerda, então essa orientação prejudicava muito o aprendizado da matéria, do conteúdo assim, e lá pelo quarto ano eu comecei a perceber: “Olha, a gente tá aqui pra aprender Arquitetura também, não estamos aqui só pra fazer política”, e começou a ter um movimento nesse sentido, e com a volta desses professores se retomou muitos conceitos da Arquitetura Moderna e do fazer arquitetura como um gesto importante pra sociedade, enfim,
tudo aquilo começou a fazer mais sentido, e aí eu comecei a me interessar pela Arquitetura Paulista, fui conhecer o que o Artigas tinha feito, o Paulo Mendes da Rocha, Joaquim Guedes, enfim, outros, o que se havia produzido de Arquitetura, entrei em um grupo que visitava residências, a gente fez várias visitas, mais pro final eu tinha um interesse maior por Arquitetura, mas a verdade mesmo é que eu não sabia projetar, eu consegui passar pela FAU me dando muito bem em muitas matérias, mas se me dessem um programa: “Agora faz o seu projeto”, eu não sabia fazer, no último ano eu fiz um projeto com o Artigas, que eu quis ser orientando dele, então eu consegui desenvolver pelo menos uma coisa mais conceitual, discutia muito, era bem pouco prático, e o discurso prevalecia sobre o desenho, que é o mal que até hoje atola a FAU USP pelo que eu conheço, o discurso se sobrepõe à prática do desenho, então você faz um negócio lá e você precisa de dezoito laudos pra explicar porque fez aquilo. Mas eu acabei aprendendo, talvez não a projetar, mas a apreciar a Arquitetura, no olhar, então, claro que um pouco de conceito você pode ter, mas enfim, é muito mais você olhar, você entender a linguagem dos materiais, do espaço, principalmente do espaço, e não das palavras que você diz pra explicar aquele espaço...
P/1 – Nesse momento você não trabalhava ainda, o seu pai te dava dinheiro?
R – Dava, eu vivi de mesada até bem tarde, eu não era um cara descolado de ganhar a minha grana e tal, eu nunca fui... Aí eu fui trabalhar como estagiário num escritório de iluminação em 1980, e aí comecei a ganhar um dinheiro como estagiário, que acrescentou com a mesada, mas nunca fui muito assim...
P/1 – E esse estágio foi a sua primeira experiência, assim, fora o que você já tinha feito de iluminação pras peças de teatro?
R – Não era um trabalho muito profissional, o pouco que eu ganhei disso, eu sempre ganhava em equipamento, eu sempre repetia essa fórmula aí, aí eu fui comprando dimmers pra aquele refletor, depois modernizei, fiz umas capas, tudo o que eu ganhei foi virando aqueles refletores, pena que não tem um raio de uma foto disso, não tem nada mesmo. Aí, mas uma vez um amigo meu me convenceu a fazer uma espécie de summer job, que era uma pesquisa de mercado, aí eu fui me meter lá, era J. Walter Thompson, aí a gente ia na rua entrevistar donos de automóveis pra perguntar sobre marcas de gasolina. Bom, foi um fracasso completo. Eu fiz um monte de entrevistas, depois todas foram repugnadas porque tinham alguma falha na metodologia (risos), não era muito pra minha aptidão isso daí, eu fui como estagiário mesmo, e não sabia nada, de iluminação eu sabia, luz, ótica...
P/1 – Que escritório era?
R – Era o escritório de uma profissional que trabalha até hoje, se chamava Esther Stiller, e ela por sua vez, era continuação de um escritório anterior de um outro arquiteto que faleceu muito jovem que se chamava Lívio Levi, que era o pioneiro dessa história no Brasil. Enquanto eu estava na faculdade não me passava pela cabeça que eu iria ter uma profissão relacionada com o meu saber em iluminação, né, eu achava que esse tal Livio Levi tinha morrido e não tinha mais ninguém que fizesse, e um dia meu pai me falou dessa pessoa que fazia iluminação, eu estava bem naquela fase de procurar um estágio, é uma fase bem de choque de realidade, né: “Ai, vou trabalhar num escritório”. Eu achava esquisita essa ideia de ficar trancado dentro de um escritório trabalhando, eu era muito, assim, achava que a gente tinha que ficar ao ar livre, que eu não ia me adaptar nunca, eu era totalmente sonhador, acho que eu viajava mesmo, e aí fui lá, levei um monte de cacarecos que eu tinha feito, e comecei a trabalhar como estagiário. Eu tinha essa facilidade com ótica, tinha um conhecimento porque eu gostava desse assunto, já tinha feito muitas experiências, e foi um pouco baseado nisso que eu fui trabalhar lá nesse escritório, e era muito, assim, o que a faculdade tinha me dado de conhecimento prático mesmo, era muito pouco, não necessariamente... Era uma combinação de fatores, eu acho que a FAU é uma faculdade que dá muito espaço pra você ser o que você quiser, mesmo que isso signifique você não aprender Arquitetura, é possível você acabar se formando de um jeito ou de outro passando pelas coisas. Então eu tinha zero de experiência, assim, menos do que eu preciso que os meus estagiários tenham hoje pra contratá-los (risos). Acho que era uma realidade diferente também, né, mas na realidade eu só fiz isso na minha vida, eu praticamente tive um único emprego, assim, tive uma única atividade profissional que era relacionada com projetos de iluminação, eu sempre fui um light designer como profissional, seja como estagiário, depois eu comecei a lidar com os projetos, acabei aprendendo Arquitetura na prática do trabalho, porque o meu trabalho é uma espécie de camada que você põe em cima da Arquitetura, e ele envolve um conhecimento multidisciplinar, que eu acho que isso sim tem muito a ver comigo, isso é realmente o que eu acho legal nesse trabalho porque você precisa de um conhecimento técnico, vamos dizer, científico, né, e ao mesmo tempo é um olhar, é um desenho que você tá fazendo em cima de um desenho que uma outra pessoa fez. Se você olhar do ponto de vista artístico da coisa, o arquiteto pensou um edifício com um espaço, com uma certa forma, atribui um caráter àquilo tudo, e você vai criar uma camada em cima daquilo que é um diálogo sobre este caráter, que pode ser neutro, pode ter uma personalidade, pode distorcer, você manipula em cima daquilo, né, então, agora pulando completamente, a minha... E claro que essa manifestação que você faz em cima de uma outra coisa que já existe, ela também é uma manifestação, de um jeito ou de outro ela vai ter algum tipo de personalidade, e eu acho que a minha personalidade nessa atuação, a minha linha de trabalho, vamos dizer assim, é muito respeitosa, ela é muito ligada ao respeito com aquilo que está proposto, que está feito. Não que necessariamente precise ser assim, mas é muito a minha linha de trabalho. Eu gosto de compreender aquilo que tá lá e propor uma coisa que, de alguma forma, acrescente ou realce o valor que aquilo já tem, isso tá um pouco relacionado com a minha atitude de vida no geral, eu acho que eu tendo a perceber um ambiente, um espaço, o que está se passando, e ali, em função daquele contexto, eu gosto de respeitar os contextos das coisas. Enfim, esse trabalho de iluminação, na verdade, acabou dando muito certo, pelo menos em termos de realização profissional, porque não se fazia, era uma profissão que praticamente não existia, dentro desse escritório… Claro que já existia algumas coisas, existia uma estrutura, clientes, já existia, mas eu praticamente ajudei a desenvolver e a tornar real, e dar forma pra profissão. A iluminação arquitetônica no Brasil acabou passando por mim, assim, ela de certa forma, se confundia um pouco com a minha história, porque a gente foi criando, foi criando um mercado, clientes, a gente acabou ajudando a moldar a profissão.
P/1– Depois desse estágio você foi pra onde?
R – Depois desse estágio eu continuei nesse mesmo escritório como arquiteto, depois como coordenador, e depois me tornei sócio dessa arquiteta. A gente trabalhou juntos até 1997, foram vários anos. Depois a gente teve conflitos de interesses, cada um queria uma coisa. Ela queria uma coisa muito diferente do que eu queria. Eu acho que eu estava precisando de ar, de espaço, aí eu abri outro escritório com outro arquiteto, que foi o Carlos Fortes, com quem eu trabalhei até três meses atrás. Ficamos quinze anos juntos, e agora ele resolveu que ele queria uma outra coisa também. A gente estava querendo tomar rumos diferentes, e agora eu tô sozinho, eu comecei um novo escritório, e tô achando muito legal poder recomeçar, eu acho que tá me dando muito frescor.
P/1 – Quando você estava nesse escritório, como foi essa carreira, de você começar como estagiário e chegar a sócio do escritório? Foram os trabalhos que você foi desenvolvendo?
R – É, porque era uma estrutura muito pequena e eu rapidamente me tornei uma peça importante da história, assim, eu comecei a ter responsabilidades grandes sobre os projetos que passavam, enfim, comecei a ser autor dos projetos. Então houve um determinado momento em que eu acho que eu fui lá e falei, eu não sou muito de tomar atitudes, mas nesse momento eu tomei: “Olha, eu gostaria muito de ser sócio”. Eu acho que aconteceu algum incidente que denotou alguma fragilidade, eu não me lembro exatamente, mas houve o momento que essa oportunidade apareceu, e aí eu falei: “Olha, eu gostaria de ser seu sócio, eu acho que é justo pelo trabalho que eu tô fazendo aqui e tal”, e aí ela topou, eu acho que eu comecei com uma parcela, depois mudou, basicamente eu acho que eu adquiri cotas da empresa pagando com o trabalho, foi um acordo como se faz normalmente nesse tipo de situação.
P/1 – Quais foram os principais trabalhos, que você se lembra, que marcaram esse período nesse escritório?
R – Naquele período foi um trabalho que foi publicado em um livro recentemente agora, eu vou até comprar o livro, ainda não comprei o livro (risos). O trabalho mais marcante naquela época, em termos poéticos, foi A Casa dos Padres Claretianos, em Brodowski, que é perto de onde nasceu Portinari. É um prédio, uma arquitetura feita com tijolo estrutural, é meio difícil pra quem não é do ramo, mas digamos que tem uma influência do Gaudí. Então é um edifício absolutamente poético na sua concepção, uma arquitetura, assim, que era encantadora na época que os arquitetos foram lá e apresentaram, e eu dei uma resposta, que na época, eu acho que foi à altura, eu acho que, realmente, pros recursos da época e pra linguagem, que também muda. Eu acho que dentro daquela linguagem dos anos 80 e dentro dos recursos que tinha, eu acho que eu dei uma resposta à altura da poesia que era esse trabalho. É difícil explicar sem entrar numa coisa técnica, mas era toda uma coisa construída com tijolos que iam se entrelaçando e eles mesmos se estruturavam sem a necessidade de vigas, de pilares, como a arquitetura romana, era assim, só que no século vinte. E quando eu apresentei o trabalho, o projeto era do Affonso Risi, eu me lembro de ter dito uma coisa assim: “Vocês não fizeram esse desafio de fazer uma coisa usando materiais totalmente diferentes? Eu também quero fazer isso com a luz”. E foi feito, isso na época era uma inovação, foi feito com luz fluorescente, essa mesma luz que você hoje acha horrível, só que era uma lâmpada especial. Na época ninguém conhecia aquilo, uma tonalidade amarela. Então eu lancei aquela luz amarelinha nos tijolos, aquilo ressaltava os tijolos. Eu quero comprar o livro porque eu queria ver de novo aquilo. Isso tudo faz trinta anos, né, foi publicado na época, foi muito legal, foi um marco em termos de trabalho poético. Em termos de trabalho técnico foram os edifícios do Citibank, aqui de São Paulo, na Paulista. Vocês devem conhecer. Era um prédio, na época, de uma arquitetura pós-moderna, Gasperini também, a Aflalo e Gasperini, aí eu acho que não era mais estagiário, já era colaborador, mas eu desenvolvi muita coisa. Teve muita inovação que a gente fez, coisas que não se faziam em iluminação, que pra desenvolver as questões técnicas do prédio a gente propôs. E também o Citibank do Rio, que foi anterior. Esse foi logo que eu entrei no escritório. A Esther me perguntou: “Você entende ótica?”. “Claro, claro que entendo.” “Você acha que seria capaz de desenhar uma luminária com refletor especial pra um determinado facho de luz que eles precisam nesse edifício?” “Claro que sim.” Que era um projeto que veio dos Estados Unidos, e eles usavam uma luminária que, na verdade, não passa dessa coisa banal que você tá vendo aí, só que ela não existia naquela época, ela é banal agora, não existia ainda aqui no Brasil. Ela tinha que jogar a luz assim num facho aberto, aí eu passei meses estudando, eu usava uns barbantinhos pra desenhar as parábolas, as elipses dos refletores que eu queria. Então esse projeto do Citibank foi muito marcante. Esse primeiro por ter sido o meu conhecimento de estagiário que não sabia nada de porra nenhuma, e de repente serviu para as luminárias de um grande empreendimento que foi feito e está lá até hoje no centro do Rio. Então foi muito marcante. E esse outro do Citibank São Paulo, uma arquitetura nova, diferente, e pra qual a gente deu soluções técnicas com coisas que se tornaram absolutamente banais, mas foi o primeiro projeto em que se usou uma lâmpada de vapor metálico pra uso interno. Ninguém vai entender nada do que eu tô falando (risos), mas eu desenhei uma luminária pra isso, a gente colocou a luminária lá, era um pé direito de doze metros, era a única coisa capaz de iluminar aquele pé direito de doze metros, e deve estar lá até hoje. E era um prédio muito bonito, marcante, enfim. E outra coisa que foi muito marcante profissionalmente dessa época foi que eu aprendi a desenhar luminárias e principalmente desenhar refletores de luminárias, não era design de luminárias, essa coisa italiana, assim, da forma, nisso eu nunca fui lá grande coisa mesmo, apesar de saber apreciar, saber julgar e tudo. Mas eu aprendi, e inventei quase, técnicas de desenhar refletores pra essas luminárias que a gente embute no teto, de forma que a luz fosse pra onde eu queria que ela fosse, e não pra qualquer lugar, como a maioria das luminárias que eram feitas na época e que são feitas até hoje. E esse conhecimento realmente foi muito específico, muito próprio, a minha trajetória, nesse sentido, foi muito individual, muito fechada, dentro de um planeta, planeta eu (risos), assim, naquela época principalmente, né, então eu acho que daquela
época foram essas coisas. O desenho de luminária... Tem luminárias que até hoje que são vendidas, e que resultam de um desenho que eu fiz lá atrás, nos anos oitenta, e eu nunca ganhei dinheiro com isso. Até hoje, eu nunca fui muito bom em ganhar dinheiro, eu sempre fui muito bom pra inventar essas traquitanas, não tanto a meu favor assim, mas é isso.
P/1 – Aí você saiu desse escritório, foi pra outro, arrumou outro sócio, ficou quinze anos...
R – Aí eu mudei, foi em 1997, a gente começou de novo aqui no Jardins, no mesmo lugar onde eu tô até hoje. Tinha uma diferença de idade muito grande entre mim e a minha antiga sócia, e de personalidade também. Assim, éramos muito o oposto. Ela sempre foi uma pessoa muito assertiva e determinada, e eu sempre fui muito cuidadoso, respeitoso. E eu acho que essa disparidade de personalidades num certo ponto me atrapalhava. Eu acho que, realmente, eu queria conquistar uma outra coisa. Com esse meu sócio foi muito diferente, a gente era muito mais de igual pra igual, nesse período de quinze anos a gente acabou se tornando, vamos dizer, no mundo do light design, que é um mundinho pequeno principalmente aqui no Brasil, nós nos tornamos uma das referências. Nosso escritório é um dos poucos escritórios que as pessoas procuram quando precisam de um projeto de iluminação. E agora eu tô começando uma nova fase, e o meu sócio também, porque eu acho que tanto quanto um se cansou do outro, o outro se cansou do um, mas enfim, agora eu tô tendo a oportunidade de vender conceitos, profissionais principalmente, assim, de atuação profissional, né, quero pôr em prática... Toda vez que uma pessoa sai, é engraçado, a empresa fica outra. Agora é uma outra empresa, mesmo sendo eu mesmo, mesmo sendo a mesma pessoa, e eu acho que agora eu quero fazer a minha profissão exatamente com a minha cara, vou tentar, estou me propondo a fazer isso, e eu acho que isso tá me dando um sentido de renovação que é muito bom. Na verdade eu tô muito feliz de estar recomeçando.
P/1 – Nesse outro escritório, que trabalhos te deram prazer realizar, ou que marcaram?
R – Desse escritório com o Carlos?
P/1 – Com o Carlos.
R – Ah, o the best foi a Estação da Luz. Esse foi o trabalho, talvez, mais importante, por todas as razões. Primeiro simplesmente por ser a Estação da Luz. Segundo porque o trabalho ficou bom, realmente ficou bonito, aquela fachada ficou bonita mesmo, ela tem muito a minha cara. Eu gosto de falar que é um projeto respeitoso com a Arquitetura, e é mesmo, nem todo mundo faz assim a iluminação. Vocês haverão de ver quanta coisa colorida que tem, essa não é a minha praia, a minha praia é aquela arquitetura, nós vamos valorizar isso, a iluminação é o instrumento pra você ver com prazer aquilo que está lá, então esse trabalho foi muito bom porque ele deu muito impacto, foi muito reconhecido, muito legal de fazer, ficou bom. Graças a ele eu tive o incentivo de participar de uma premiação internacional de Light Design. Participamos e ganhamos um prêmio com esse trabalho, e através desse prêmio, através disso, eu tomei contato com uma associação internacional de iluminação e aí isso me abriu, assim, o tal cobertor (risos) saiu de uma vez da minha vida, conheci um monte de gente, me enfronhei com eles. Fui convidado pra concorrer a uma eleição de diretor dessa associação, concorri, ganhei, fui eleito, fiquei dois anos participando da mesa diretora, aprendi pra caramba. Depois, eles gostaram, me convidaram pra concorrer de novo, concorri, ganhei de novo, fiquei mais dois anos. Então esse projeto da Estação da Luz acabou sendo um dos estopins pra mudar completamente a minha posição dentro desse mercado, não mercado no sentido do... Nesse universo, vai, não estamos falando de ganhar grana, não é isso, mas dentro desse universo de iluminação eu me tornei uma pessoa conhecida, gostada, respeitada, sei lá, e aprendi muita coisa também, desse período a Estação da Luz é de longe o que mais acabou alavancando isso.
P/1 – Tem algum outro projeto? Tem milhares, né?
R – Tem, tem bastante, mas aí já vira... Não sei, quando chega muito perto já parece que eu tô fazendo propaganda, né? Tem o MAC no prédio do DETRAN que vai ficar pronto agora, que tá bem legal, que a gente vai fotografar agora. Ah, tem muito projeto, eu fiz muita coisa legal, eu tive oportunidade de fazer muito projeto bacana, eu me sinto agora, talvez, mais capacitado até pra usufruir dessa oportunidades. Eu me sinto um pouco mais calmo agora pra isso, mais tranquilo. Eu sempre fui um cara muito ansioso, muito angustiado, isso sempre permeou, então assim.. Até no Palácio do Itamaraty, em 1986, de repente eu estava lá fazendo o jardim central, uma coisa linda assim, maravilhosa, foi uma coisa também muito marcante, eu era superjovem e de repente estava lá mexendo num projeto do Oscar Niemeyer. Era na época do Sarney. E assim do nada, de repente, eu estava lá na sala do ministro das Relações Exteriores explicando não sei o quê, todo mundo ouvindo, e aquela diplomacia toda, eu me sentia... mas ao mesmo tempo eu era um cara todo inseguro, meu carro era todo lesado, vivia quebrando, sei lá, então eu sempre vivi muito descompassado nessa coisa, acho que agora eu tô um pouco mais normal (risos).
P/1 – Quando você conheceu a sua mulher? Como você conheceu?
R – Há vinte anos, ela era amiga da minha irmã, essa mais nova, e a gente se conheceu, acho que, no Guarujá. Eu estava saindo de um relacionamento turbulento, alguma coisa assim. Ela é muito mais nova do que eu, eu tinha trinta e cinco e ela vinte e um, e a gente se conheceu no Guarujá, numa circunstância que parecia muito improvável porque a gente era muito diferente, né? Eu tinha passado por um monte de coisas e ela não, superjovem, vinda de um meio diferente no meu. A gente era muito diferente, aí nos conhecemos, começamos a namorar, enfim, e nessa época não me passava pela cabeça essa coisa de casar, ter filhos, constituir uma família, ter um carro, uma piscina, sabe, eu não tô fazendo pouco caso, eu não vivia desse jeito mesmo, não tinha muito essa coisa. Eu não vim com isso de fábrica (risos), não vim mesmo, e tanto que no começo a gente estava namorando e ela falou: “Vamos casar?”. E eu fiquei completamente paralisado, eu tinha saído de uma história enrolada, antes também tinha vivido outra história enrolada, sempre foi tudo meio enrolado, e isso também, tanto que eu enrolei, até que um dia a gente casou, foi em dois mil e alguma coisa, 2001 talvez.
P/1 – Você já tinha saído da casa do seu pai?
R – Há muito tempo.
P/1 – Você foi morar sozinho quando?
R – Então, eu fui morar sozinho. Bom, essa parte é toda atrapalhada assim. Eu fui morar sozinho em 1992, que eu já tinha lá alguma grana, já estava me virando, e eu fui morar com a amiga de não sei quem, tipo assim, dividir. Não deu trinta segundos e eu já estava completamente apaixonado pela guria, que era lá do Sul, e a gente morava junto, e eu apaixonado e não sei o quê. E a gente começou a namorar, ficamos um tempo juntos, puxa, essa parte é bem espinhosa, e ela era superintelectual, superinteligente, uma pessoa completamente cerebral, fazia Letras na USP, e aí ela, lá pelas tantas – e o pior é que eu ajudei–, ela conseguiu uma bolsa pra fazer um doutorado da França, e foi pra lá. Ela ia ficar um ano, aí ela conseguiu uma prorrogação da bolsa e ficou mais... Na verdade, ela nunca mais voltou, né, e a gente ficou um tempão namorando à distância, foi um momento muito terrível da minha vida porque eu acho que eu sou muito suscetível, muito maleável, ou muito flexível, ou sei lá o quê... Mas eu fiquei segurando aquela coisa que ia se esvaindo, sabe, e eu ficava segurando de todo jeito, e eu acho que a gente ficou mais tempo com ela lá do que o tempo que a gente ficou juntos aqui, não sei, mas foi uma coisa quase que equivalente assim, foi até os anos noventa mais ou menos. Aí chegou uma hora que eu não aguentei mais, aí eu comecei a namorar uma outra moça aqui. Enfim, mas foi um período complicado, se for contar a história foi meio ao contrário, né, primeiro a gente foi morar junto, depois começou a namorar (risos), depois ela foi viajar, se tivesse contado a história ao contrário: “Ela veio da França, depois começamos a namorar, aí fomos morar juntos” (risos). Mas foi uma história do avesso, enquanto eu estava com ela a gente nunca pensou em ter filhos, nem eu e nem ela, e ela mora na França até hoje. Enfim, esse primeiro relacionamento pós-faculdade foi muito marcante porque eu me esgarcei muito com esse negócio da França. Enfim, a gente queria ser diferente, eu acho que eu entrava muito na onda das pessoas, assim, eu sofri pra caramba, de verdade. Esse meu relacionamento de hoje, pulando um outro que teve, se não, não vai ter fim, mas esse relacionamento de hoje já tem vinte anos. Eu tô com a Dani há vinte anos. A gente se atraiu muito por ser diferente, acho que muito porque eu estava muito esgotado, eu estava com o coração cansado de sofrer (risos), relacionamentos muito abertos, muito ciúme, essa coisa de estar aqui, estar lá, tem uma história, tem outra história, e rolo, eu acho que esse relacionamento foi uma, eu não sabia disso, mas acabou sendo uma procura por estabilidade, por uma tranquilidade maior, por um Oásis assim, enfim, acho que eu sofria muito.
P/1 – E aí você e a Dani tiveram filhos?
R – A gente demorou muito, porque realmente ela tinha uma visão muito diferente da minha, assim, em relação à vida. Realmente ela queria casar e ter filhos, e eu, não era por causa desse estereótipo do homem, porque o homem não sei o quê, talvez um pouco, mas eu era muito focado na profissão, e eu talvez fosse um cara muito hedonista, assim, e eu acho que eu sempre tive muita dificuldade com a ideia de futuro. Tentando dar um pouco de cor pra isso, eu acho que hoje eu tô um pouco melhor nisso, mas eu realmente nunca fui uma pessoa capaz de enxergar o futuro, de fazer projetos, de ter projetos de vida, de comprar uma casa à prestação por vinte anos, de comprar um terreno e fazer um negócio, sei lá. Usando a metáfora, é como se fosse tudo muito escuro e eu tivesse uma lanterninha que dava pra enxergar aquele momento, e o resto sempre foi uma escuridão pra mim, eu sempre enxerguei dessa forma, não sei por quê, mas era assim. Então: “Vamos casar?”, sempre me dava uma coisa... Mas aos poucos eu fui melhorando (risos), demorou, mas um belo dia, que foi em 2001, provavelmente, no dia 11 de dezembro de 2001, vai lá que seja essa data, mas enfim, a gente casou, fez uma cerimônia lá de casamento, e eu nunca... Assim, ter filhos, então, eu tinha muito medo de não gostar dos filhos, até o momento que eu fui perdendo esse medo. E aí quando a Dani engravidou eu fiquei feliz, fiquei com muito medo, assim, mas entrei na história, isso foi em 2003, a gente já estava há muitos anos juntos, eu acho que ela sempre me amou muito, porque pra aguentar um cara desse, que não se decide (risos). E eu acho que eu amei muito o amor dela por mim, eu acho que foi a cola de tudo, assim, eu acho que eu devo realmente a ela o fato de estarmos juntos até hoje, porque apesar de nós sermos realmente muito diferentes
sobre muitos aspectos, de famílias diferentes, de origens diferentes, eu acho que ela teve um jeito de olhar pra mim, de gostar de mim, que eu acho que foi como se fosse, assim, pra sempre, né? Então a gente teve a Gabriela. Ela, um belo dia falou que queria que a Gabriela tivesse o nome da minha mãe,
nem era uma coisa que foi certa desde o início, mas acabou sendo um gesto político, até pra família assim, e eu me tornei um pai superamoroso; quando ela engravidou de novo eu fiquei paralisado porque toda aquela coisa de... Eu estava achando que a gente ia conseguir ter uma casa de campo em algum lugar, sabe, a Gabriela estava começando a crescer, a sair da casca, aí ela engravidou de novo. Eu tive de novo aquele pânico, e na verdade eu adoro o Pedrinho também. Então eu me tornei aquele cara casado, com uma família, enfim, me tornei um cara normal. Tive toda essa trajetória de como me tornar uma pessoa normal em cinquenta e quatro anos (risos). Essa foi a história da minha vida, em resumo. Que absurdo, né, um profissional liberal... Só falta ganhar dinheiro agora pra poder fazer alguma coisa diferente. Eu não sou muito talentoso nessa parte não, eu sou super-reconhecido profissionalmente, tenho nome no mercado e tal, mas ganhar dinheiro de verdade mesmo, não é nada que a gente não tenha que acordar e trabalhar nove horas por dia, produzir diariamente a coisa que você vai fazer, mas é isso, a trajetória de um sujeito normal.
P/1 – Então, vamos falar dos seus avós?
R – Vamos, por que eu voltei nesse tema? Porque sempre que eu passava nesse Museu da Pessoa, e que eu nem te conhecia, eu pensava: “Será que esse é um lugar em que eu posso falar dos meus avós?”. Não sei por quê, eu pensava isso, eu dou muito valor a essa coisa da memória porque quem vai saber depois, as coisas não estão escritas, né, e tinham algumas coisas que... Só pra tentar organizar um pouco, o que eu sei do meu avô Hugo, ele morreu antes da gente nascer, era através da minha avó Nélia, mãe da minha mãe, e ele, ao contrário de mim, ele era um administrador, ele era um cara supercompetente pra dinheiro, pra essas coisas (risos), ele era diretor financeiro da Pirelli, e teve muito apoio dos Pirelli pra vir pra cá, como eu já tinha dito, eles chegaram aqui e ninguém falava nada de português. Isso deve ser muito louco, né, essa experiência eu só sei narrar, mas é engraçado imaginar uma família que desembarca aqui com um padrão de vida superalto que tinha lá na Itália, deixando tudo pra trás, e vindo pra um país que era o Brasil nos anos trinta, né, e ele foi trabalhar com o Matarazzo, com o Conde, eu acho, não sei exatamente se tinha vários Matarazzos, eu tenho uma fita com um filme que eu fiz com essas camerazinhas da minha avó contando a história do meu avô desembarcando aqui e a relação com o Matarazzo, como foi, e aí eu pergunto, interessaria essa fita em si, ou só interessa eu aqui contando?
P/1 – Os dois.
R – Uma das coisas que ela falava, eu não sei o quanto isso é publicável ou não, mas eu sempre achei que aquilo era uma matéria interessante, meu avô, segundo a minha avó, ele não se adaptou às práticas contábeis lesivas do Matarazzo, que ele estava acostumado a fazer uma contabilidade, digamos assim, honesta, então ele foi trabalhar no Matarazzo e ficou horrorizado, eu não sei exatamente com o quê, mas isso é contado, tá lá na fita que ele não se conformou com as práticas porque eram desleais, eram um monte de coisas, e recentemente alguém lançou um livro sobre o tal Matarazzo, e teve um auê, acho que fazem uns dois, três anos, e tudo isso que estão falando dele, não é nada disso, sei lá, eu não tô exatamente interessado em botar a boca no trombone, mesmo porque, sei lá, acho que não vale a pena, mas por outro lado eu lembro que eu até ficava, assim, incitando a minha avó a falar mais porque aquilo realmente me pareceu um material interessante. Mas o fato é que eles tinham muita diferença cultural mesmo com o Brasil daquela época, então essa é uma das coisas que eu achei que seria interessante contar. Seria interessante se eu conseguisse trazer a minha tia aqui pra contar como era a realidade nesse Brasil, na verdade eu falei anos trinta, mas era nos anos quarenta, né, eu acho que seria muito rico; as duas famílias saíram de uma vida, relativamente, confortável e vieram pra um país estranho, com uma língua estranha, eu acho que tudo era muito marcante... Mas eu acho que eu até já saí um pouco do clima da história.
P/1 – Não, está totalmente integrado. E hoje quais são os seus maiores sonhos?
R – Putz, que sacanagem, eu falei que eu não sou um cara de sonhos, ela deve estar tentando me convencer a comprar um apartamento (risos). Bom, eu tenho um sonho em relação ao meu trabalho. Eu queria fazer uma empresa bacana baseada na qualidade do trabalho, baseada no... Eu acho que eu tenho esse sonho um pouco vaidoso de ser um ótimo profissional, talvez seja um pouco por vaidade que eu queira isso, né, ser um puta cara, o melhor cara de design de iluminação. Eu acho que eu tenho um pouco disso, eu tenho um pouco mais de ambição material, eu queria transformar meu escritório em uma empresa de forma que ela realmente pudesse me fazer trabalhar um pouquinho menos e não ser tudo tão à
risca. Em relação... A perspectiva dos filhos, me deu uma dimensão diferente do mundo porque eu acho que eu só depois de ter filhos visualizei a minha finitude, assim, como uma... Não sei, eu acho que era uma coisa impensável, assim: “Eu vou morrer um dia”. Eu não sou um cara de pensar na morte, na minha decadência física, mas se você quer saber, eu sou meio ruim de sonho, eu não sou muito bom nesse departamento não, eu acho que esse talvez seja o meu maior problema, é o maior problema da minha vida, me falta sonhos, eu acho que aquela coisa da lanterninha que eu falei ainda sou muito eu, né, porque senão eu ia falar: “Eu quero ter uma casa na praia, quero conhecer a Índia...”, sei lá, eu sou ruim pra isso, nesse ponto eu não sou muito bom não.
P/1 – Gilberto, o que você achou dessa experiência de dar esse depoimento?
R – Eu achei muito legal, achei muito legal como catarse pra mim, surpreendente, né, eu não sei o quanto essas catarses são úteis pra terceiros, ou se o que se extrai disso é mais a parte histórica, não sei, claro, é um processo que você entra nele e não tem muita escolha, você vai falando meio numa torrente, né, mas
às vezes eu fico pensando como memória, como registro, saindo um pouco fora de mim mesmo, não sei, tenho muitas curiosidades que são mais impessoais que talvez fossem interessantes como registro mesmo, como essa coisa da Avenida Sumaré que era uma rua de terra, como os táxis-melão, vocês talvez nem saibam o que é isso, mas eu me lembro que quando eu era pequeno os táxis eram aqueles carros em forma de melão, preto, não tinha carro comum. Então são coisas assim, os postes de rua eram com uma lâmpada incandescente, meio fraquinha, não sei, tem coisas que são lembranças de cada um que não são necessariamente pessoais, mas que talvez num museu como esse ajudassem a reconstruir aquela coisa da vida privada, né, a história da vida privada, eu acho que o mais legal desse depoimento é poder dar acesso a coisas que só estão na cabeça das pessoas, e que deveriam estar num museu imaginário. Esse, se vocês conseguirem uma maneira de catalogar isso e alguém for pesquisar como era um táxi nos anos sessenta, vai descobrir através disso, pode ser uma coisa muito... Eu tô dando um exemplo idiota, mas... Porque ninguém vai ter paciência de ouvir um depoimento desse, de três horas, nem eu mesmo vou ter, mas se isso estiver tabulado de um jeito, não sei se a ideia é essa, mas pra mim, pessoalmente, foi muito legal, só tenho a elogiar.
P/1 – Muito bonita a sua entrevista, eu queria agradecer em nome do Museu.
R – Obrigado.Recolher