P1 – Boa tarde. Eu queria que você começasse falando seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Boa tarde. Meu nome Ana Maria Soares de Salles Mariano, embora todo mundo me conheça como apenas como Ana Salles. Eu nasci em Itapetininga em 1946, no dia 8 de novembro.
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P1 – Boa tarde. Eu queria que você começasse falando seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Boa tarde. Meu nome Ana Maria Soares de Salles Mariano, embora todo mundo me conheça como apenas como Ana Salles. Eu nasci em Itapetininga em 1946, no dia 8 de novembro.
P1 – Como é o nome dos seus pais e o que eles faziam?
R – Meu pai Alberto de Almeida Salles e minha mãe Maria Munhoz Soares de Salles. Meu pai era ferroviário, ele é do século dezoito, desculpe, do século dezenove, nem tanto assim; ele nasceu em 1890. Entrou para a Sorocabana em 2004, ou seja, no início do século vinte, quando ferrovia e telégrafo, que era a especialidade dele, eram assim alta tecnologia. Ele ia na frente abrindo os pontos de telégrafo nos lugares onde depois o trem ia chegar. Sempre teve esse espírito desbravador de quem quer conhecer lugares novos e que passou muito para mim. Minha mãe era professora primária, absolutamente apaixonada pelo magistério e muito exigente, uma professora conhecida e reconhecida na cidade; tanto que hoje tem uma escola com o nome dela, uma escola da prefeitura de Itapetininga em que homenagearam a minha mãe, puseram o nome dela. Uma professora que, realmente, alfabetizou gerações. Então é isso. O que mais?
P1 – E seus avós, tem alguma lembrança deles?
R – Tenho, dos meus avós maternos. Meus avós paternos eu não conheci porque quando eu nasci meu pai já tinha quase sessenta anos, então os pais já não estavam vivos. Meus avós maternos são João Soares Leite e minha avó Henriqueta Munhoz Soares. A Henriqueta era descendente de espanhóis, super brava, e o João Leite era um avô que sempre tinha bala de mel no bolso do paletó para gente chupar. Os netos já chegavam direto com a mão no bolso do vô. Me lembro perfeitamente da casinha onde eles moravam, foi a casa em que eu nasci, porque naquela época dificilmente as pessoas iam pro hospital, só quando complicava o parto para ir pro hospital. Minha mãe foi dar a luz na casa da mãe, que era uma coisa que acontecia. Então eu nasci na casa dos meus avós maternos. Inclusive, minha mãe sempre diz que eu nasci dia sete de novembro e meu pai registrou dia oito, mas ele diz que quando o médico saiu do quarto e contou para ele que eu tinha nascido já era oito. Então eu nasci em torno da meia-noite do dia sete para o dia oito. Para não dar briga eu sempre tive dois aniversários, um no dia sete e um no dia oito. Dia sete eu comemorava fora de casa, com meus amigos, e dia oito era dia da família comemorar. No trabalho eu faço a mesma coisa, dia sete eu comemoro e dia oito eu comemoro em casa, porque sempre os dois discutiam isso na época do meu aniversário, se era sete ou se era oito. Me lembro bem dos meus avós, minha avó teve uma influência grande em mim porque era muito religiosa, rezava o tempo todo, eu lembro dela com os aventais e com um terço no bolso; e no quintal dela tinha muita flor que ela plantava, que era para levar para a igreja. Então eu certamente acompanhei minha avó, não tenho uma lembrança clara disso, mas certamente acompanhei ela nessas coisas de ir à igreja levar flor, rezar junto, aprender a rezar. Ela contava muita história de santa, eu achava que ia ser santa, quem sabe um dia. Ela punha pedra no sapato para andar para fazer sacrifício. Tive uma fase de formação bastante religiosa. E meu avô era ateu, então isso dava uma média boa de convívio, porque ele sempre estava brincando e caçoando das coisas que ela fazia, sempre diminuindo. Ela queria que eu fosse estudar no colégio de freira e ele chamava as freiras de papo branco, porque tinha aquele hábito com uma coisa branca aqui, não queria que eu fosse para um colégio de freira. Enfim, eu convivi bastante na minha infância com os avós e com os primos também, que eram da mesma idade que eu. A cidade do interior propiciava muito isso. Todas as tardezinhas nós íamos à casa dos meus avós depois do jantar. Todo mundo jantava às seis da tarde e, terminado o jantar, todos se reuniam na casa da vó. E na frente ficavam as crianças brincando na calçada, os mais velhos conversando lá dentro, criança não entrava em conversa de adulto. Uma conversinha de meia hora, uma brincadeirinha de meia hora, sete horas da noite, sete e meia, oito horas estava todo mundo voltando para casa, mas todo dia a família se encontrava. Então isso criava laços entre primos, o que é muito difícil hoje, né, no tipo de convivência que se tem. E mesmo entre vizinhos porque, claro, as crianças eram as crianças daquela rua, então você fazia um grupo grande de brincadeiras. Isso falando dos meus avós. Voltando, na minha própria família, meu pai tinha seis filhos quando casou com minha mãe, ele era viúvo, bem mais velho que ela, quase vinte anos mais velho que ela. Um dos filhos dele, o filho mais velho, tinha a idade da minha mãe, porque ele teve o primeiro filho com dezenove anos e a última filha nasceu quando ele tinha sessenta e quatro, portanto a diferença de idade entre os filhos era enorme; de dezenove para sessenta e quatro são mais de quarenta anos de diferença de um filho para o outro. Nós sempre nos demos muito bem. A mamãe era viúva também, já tinha ficado viúva há muitos anos quando conheceu meu pai, ela ficou viúva com vinte e oito anos, tinha uma filha, a Giselda. Minha mãe assumiu o luto total, o marido morreu com trinta e três anos na época em que todo mundo morria de tuberculose, foi um trauma muito grande para ela; então ela nunca mais tirou preto. Quando meu pai a conheceu, porque ela tomava o trem para ir dar aula num lugarzinho perto de Itapetininga, ela estava toda de preto e ele achou aquilo um mistério, uma coisa maravilhosa e se apaixonou pela viúva que andava de preto. Super moça, tinha trinta e poucos anos. No fim casaram. Ele mesmo não ficou viúvo nem... ficou viúvo um ano. Ela ficou viúva muitos anos. Aí casaram-se, ele com seis filhos e ela com um, já eram sete. Depois eu nasci e depois mais uma filha, que é minha irmã mais nova. Então, ao todo, nove filhos. Nessa época, quando eu nasci, os filhos mais velhos do meu pai já estavam todos casados, eu convivi com eles muito, mas não morando na mesma casa, já estavam morando em outros lugares, trabalhando fora, etc. Então minha convivência maior foi com minha irmã Giselda, que é filha da minha mãe, e com a Maria José, que é a mais nova; as três é que convivíamos mais de perto. E com as minhas sobrinhas, porque meus irmãos tinham filhos da minha idade e mais velhos que eu. Eu tinha uma sobrinha que era um ano mais velha e que foi muito minha companheira de baile, de festa… Um sobrinho também que era um pouco mais velho que eu e que também levava à festas, etc. Ele adorava contar para os amigos que eu era tia, falava: “Ih, eu tenho que sair com a tia hoje, com a minha tia.” Eles achavam que ele ia levar uma tia mais velha para os bailes, aí chegava e era eu, que era muito mais nova ainda que eles, enfim. Era uma família muito diferente e que, por conta do modo como meu pai conduzia uma família, pela afetividade que ele sempre teve com todo mundo, ele criou um ambiente de amizade muito grande; nunca teve disputa, briga, nada, era uma coisa muito gostosa de conviver. Para mim foi um prazer ter uma família assim.
P1 – Você estava falando um pouquinho da casa do seu pai, perto da Sorocabana. Você lembra como era essa casa? Conta um pouquinho era.
R – A Sorocabana dava pros empregados... A estrada de ferro Sorocabana era uma grande empregadora no Estado de São Paulo. Nas cidades do interior, que tinham estações de trem, ela construía na rua próxima à estação uma fileira de casas dos seus empregados; ia desde o guarda noturno até o engenheiro, todos moravam na mesma rua e as casas, claro, tinham uma diferença de tamanho em função do cargo. Tamanho de jardim, número de quartos, etc. Era uma rua inteira, que ainda hoje se chama Alfredo Maia, que era a rua das casas da Sorocabana; então eu morei lá. Eu só nasci na casa da minha avó porque no dia de nascer minha mãe foi para lá, mas eu vivi o começo da minha infância nessa casa da Alfredo Maia, escutando o barulho do trem. À época meu pai sempre falava que, antes das leis trabalhistas, não existia isso de horário de trabalho, dia de trabalho: era só trabalho, não tinha férias, nada disso. Ele sempre morou perto da estação, ou quando não, na própria estação. Tinha que atender todos os trens que passassem. Não existia horário, se às quatro da manhã tinha um trem, às quatro da manhã ele tinha que estar lá; depois o outro era às oito, então ele podia ir para casa, descansar e voltar. Depois o outro era às duas, enfim. Não existia essa interrupção, de oito às dezoito, não existia essa organização, que só veio depois com as leis trabalhistas. Daí essa facilidade, inclusive, do empregado morar junto da empresa em que ele trabalhava, porque estava à disposição. A gente ouvia todos os trens. Eu cresci muito dentro de trem. Mamãe dava aula numa escola onde precisava ir de trem, numa cidadezinha próxima, e eu muitas vezes fui junto porque eu tinha uma pajem que cuidava de mim enquanto ela dava aula. Então ia eu, a pajem e ela até a estaçãozinha, ela ia dar a aula dela e eu ficava brincando no sítio, sei lá, junto com a pajem. Dessa forma ela supervisionava, controlava um pouco a história. Essas casas da Sorocabana me marcaram muito por esse tipo de relação social que se estabelecia, não só entre a empresa e o empregado, como entre as pessoas que trabalhavam nessa mesma empresa.
P1 – Nessa rua tinha outras crianças com quem você brincava, filhos dos outros empregados? Você lembra as brincadeiras que vocês faziam?
R – Tinha, tinha muita criança. Eu tinha um balanço que, até há poucos anos eu passei nesta casa e vi, ainda existia, um “balanção” de madeira, com estrutura; como esses brinquedos que tem hoje, de madeira, mas muito mais rústico, grandão e que continua lá na casa. Nós brincávamos de muita coisa. De brincadeira de rua, de pular corda, de esconde-esconde, mas que valia entrar em tudo quanto era quintal, brincadeiras... eu tive muita limitação de brincadeira por conta, primeiro da autoridade da minha mãe, porque ela não deixava metade das coisas que todo mundo fazia; e segundo pela idade do meu pai, porque não eram pais que levavam para coisas muito diferentes porque eles já eram mais velhos. Em compensação acho que tive coisas que eu fiz na vida que acho que nenhuma criança fez, porque, por exemplo, eu queria muito empinar pipa, só que empinar significava correr atrás de pipa e meu pai não tinha mais condição de fazer isso. Então, como eu empinava? Minhas pipas eram as mais bonitas, que iam mais alto. Naquela época tinha matadouro dentro de cidade; então toda cidadezinha tinha corvo, tinha muito corvo, muito urubu por causa do cheiro que ficava dos matadouros. Acho que eles jogavam as coisas, talvez facilmente, assim. Nós tínhamos uma área no fundo de casa, que era mais alta, e ele fazia bolo de carne, enchia de pimenta; a gente fazia a pipa, levava horas lá fazendo a pipa. Daí ele amarrava a minha pipa, o cordão nesse bolo de carne e punha em cima da mureta. Aquele cheiro da carne, isso era rapidinho que alguma ave buscava, o urubu pegava e saía voando; e quando ele sentia a pimenta ele subia, ele voava muito alto. Então a minha pipa ia lá para cima, né? Eu não sei fazer movimento de empinar pipa, mas que as minhas pipas iam lá para cima, iam. Então eu tive uma infância assim, com brincadeiras adaptadas por ele, para as condições que ele tinha de uma pessoa mais velha, preguiçosa já, que não estava afim de sair correndo atrás de pipa, mas que fazia companhia.
P1 – Você contou um pouquinho da praça da cidade, da escola. Queria que você contasse um pouco sobre Itapetininga.
R – Ah, sim. Bom, depois que ele se aposentou nós saímos dessa casa da Alfredo Maia, isso foi por volta dos meus cinco anos de idade, fomos morar no centro da cidade. Essa casa onde nós moramos vai fazer cem anos agora, ano que vem; essa continua da família, eu até deveria ter trazido fotografia. É uma casa grande, gostosa, bem antiga, com quintal. Ele sempre fez questão que a casa tivesse quintal onde a gente pudesse brincar. Eu estudava na escola pública do lugar, que era o Instituto de Educação Peixoto Gomide. Itapetininga era a terra das escolas porque... Essa escola foi a primeira do interior, uma escola normal, que foi fundada junto com a Caetano de Campos. É uma escola tombada, inclusive, pelo Patrimônio Histórico, hoje está preservada; era bastante próxima da minha casa. Eu estudei lá. Eu falei para você da praça. O que que a gente fazia no interior, nessa época? Primeiro, estudar muito, eu adorava estudar, estava sempre envolvida em todos os cursos que a cidade oferecesse; e também namorar, passear, dançar. O clube da cidade, o Venâncio Aires, é um clube tradicional que tinha baile uma vez por mês. Na época a gente não tinha barzinho, não se saía à noite para ir a um barzinho; ou você saía porque tinha um baile, uma festa, ou no máximo você ia tomar um sorvete na rua e dar uma volta, paquerar. Aí tinha a praça onde as pessoas circulavam. Tinha toda uma estrutura esse passeio na praça, o giro. No giro central ficavam as pessoas, digamos, da classe mais alta da cidade; depois a classe média, depois a periferia. Era absolutamente dividida, mas óbvio que você não tinha consciência disso, você tinha a impressão de que convivia com todos da cidade e que não havia preconceitos sociais e que não havia separação de classes. Ao contrário, quando você analisa o giro, era total separação. A parte central, em volta de uma fonte, eram os rapazes, as moças no outro círculo, em sentido contrário; depois vinham outros rapazes, outras moças e outros rapazes e outras moças. Assim sucessivamente, a praça toda, em três conjuntos de moças e rapazes. Aí você ficava girando e cada vez que você encontrava com aquele que você estava olhando, você trocava um olhar, era isso. E assim você girava ali uma hora, normalmente entre sete e oito horas da noite, oito e meia no giro. Fazia um excelente exercício e com o maior prazer. E de salto alto ainda, de bico fino e saltinho fino, como agora usam de novo, andando ali em volta da praça. E os bailes do Venâncio Aires que tinham orquestras muito boas que iam para lá. As cidades do interior, nessa época, também tinham grandes orquestras, Itapetininga tinha uma orquestra muito boa, então havia sempre bailes como todo o requinte de baile mesmo.
P1 – Só antes de falar dos bailes, dessa parte mais da sua adolescência, eu queria voltar ainda para escola, com alguma lembrança marcante, algum professor marcante, alguma coisa da escola.
R – Então, eu sempre me envolvi muito com a escola. Eu tenho que falar que fui aluna da minha mãe, senão isso seria uma injustiça. Ela fazia questão, mudava a gente de escola no terceiro ano primário para ser aluno dela, porque ela ficou especialista em terceiro ano, que era o ano que começava uma série de informações importantes de matemática e ela achava que ela sabia dar como ninguém; então fazia a gente ser aluno dela. Ele era exigentíssima, foi a professora que mais me judiou na vida, me pôs fora da classe no segundo mês de aula porque eu estava conversando, me botou para fora da sala. Isso é uma coisa que eu não me esqueço porque eu sempre tive curiosidade em saber com é que era o banheiro dos homens; eu nunca tinha entrado em banheiro de homem. Então, quando ela me pôs para fora da classe, a primeira coisa que eu pensei: “Não vai ter ninguém no recreio, eu posso entrar no banheiro dos meninos.” Eu desci correndo as escadas, fui lá pro recreio, entrei no banheiro, olhei, vi aqueles mictórios, achei aquilo tudo um horror. Saí correndo para ninguém me pegar. O que eu me lembro dessa história dela ter me mandado embora foi isso, não lembro nem o motivo real dela ter me mandado, mas de eu ter conseguido entrar no banheiro de homem, no banheiro masculino. Bom, do Instituto Peixoto Gomide eu tive grandes professores. Me lembro especialmente de um professor de matemática, professor Salem, que era uma pessoa detestada por noventa e nove por cento dos alunos e que gostava de humilhar, de espezinhar. Ele cismou comigo no início, me deixou para fora da sala várias vezes na entrada. A gente voltava do intervalo de aula e ele ficava na porta. Quando chegava uma certa altura ele parava e falava: “Agora eu vou entrar e vocês não entram mais.” Aqueles que depois que ele dissesse “agora sou eu” ficavam para fora. A despeito disso a gente, obviamente, continuava no recreio, no intervalo e chegava correndo; então sempre algum sobrava. Eu sempre sobrava. Aí ele começou a ficar implicando comigo. Deu uma prova... A primeira prova dele todo mundo ficava com medo porque ele fazia provas muito difíceis, só que eu tinha feito... Eu estudei toda a matéria, embora tendo ficado para fora várias vezes da aula. Eu fui a aluna que teve a melhor nota na prova. Depois daí ele começou a me ver com outros olhos, e no fim se tornou um grande amigo, a ponto de, quando eu resolvi fazer normal, que minha família queria que eu fizesse, ele até foi procurar meu pai, porque que eu não ia fazer científico, porque ele queria que eu estudasse matemática. Aquela época tinha ainda o clássico, o científico e o normal. Se você ia para letras, direito, fazia clássico. Científico se fosse pras áreas de engenharia, medicina, etc. E normal para ser professor primário. Para os meus pais era fundamental que as filhas fizessem normal porque tinha um diploma ao fim disso e podia daí, se quisesse casar, já tinha um emprego. A filosofia do meu pai era a seguinte: “Filha minha não casa desempregada. Se o seu noivo estiver desempregado o problema é dele, ele vai ter que dar um jeito na vida. Agora, filha minha não casa desempregada, porque eu não quero que o marido venha depois não deixar trabalhar.” Ele achava que era fundamental que a mulher fosse independente. Então, para evitar que a gente quisesse casar antes da hora, fazia normal para ter um diploma e poder trabalhar.
P1 – Entendi. Já indo um pouco para essa época da juventude. Quando começaram as paqueras, ir aos bailes? Quando começou a sair sozinha? Conta um pouquinho dessa parte.
R – Bom, sempre gostei muito de namorar. Com meu primeiro namorado, que é com quem eu me casei depois de muitos anos, eu comecei a namorar com catorze anos. Era comum na época, quer dizer, não existia esse negócio de ficar com alguém. Se você dançava três músicas seguidas no baile com a mesma pessoa você estava namorando, não tinha alternativa. Não existia isso de você ficar e depois não sabe mais, nunca mais viu; não existia. Ainda mais numa cidade pequena, então você começa a flertar, como se dizia na época, com alguém, e os outros rapazes todos sabiam que ela era flerte de fulano de tal, ninguém mais olhava. Depois que você começava a namorar também, era a namorada de fulano. Eram muito diferentes as relações estabelecidas. Eu namorei o meu marido, o Zé Roberto, dos catorze anos até os quinze e pouco, mais de um ano. Aí a família dele mudou para São Paulo. Ele veio embora e, claro, daí logo começou a ter problema porque eu queria ir em baile, eu queria sair, eu queria dançar; eu ia para baile e ninguém me tirava porque eu era namorada dele, ele estava fora mas eu era namorada dele. A não ser meus primos que dançavam comigo, ninguém dançava. Aí eu... Minha irmã mais velha sempre foi muito envolvida com Rotary Clube, com a sociedade mesmo, organização de desfiles de moda; e me punha em tudo isso, o que eu detestava. Eu era tímida para essas coisas e ela fazia questão. Isso começou a dar as brigas entre eu e meu namorado. E acabamos por nos separar porque não dava para eu estar lá e ele aqui e eu querendo estar nas festas, nos bailes, desfilando, etc. A sociedade da época permitia um tipo de afeto entre as pessoas, de proximidade, entre os pais dos amigos, os pais das colegas; porque todos iam juntos nesses bailes, as famílias iam pros bailes. E meus pais não, exatamente porque eram mais velhos, então eu sempre acabava indo com meus primos, com a minha irmã; eles não iam acompanhar. No Venâncio Aires, então, tinham as mesas, tinha uma frisa em cima, alta, onde ficavam algumas pessoas, que iam só para observar, só para assistir; e as mesas onde ficavam os casais com os filhos que iam dançar. Os casais também dançavam, etc. Era um salão pequeno, hoje a gente avalia. Esse clube foi reformado. O que era o salão, a gente vê hoje, quer dizer, é mínimo, mas para gente era enorme, fizemos muitos bailes maravilhosos ali. Que mais dessa idade?
P1 – Tem algum baile, algum evento que te marcou especialmente?
R – Eu acho que eram muito marcantes as formaturas porque, por exemplo, eu sempre fui de comissão de festa, então a gente vinha para São Paulo contratar orquestra. Na formatura de colegial eu lembro de vir com as minhas amigas, nós éramos da comissão de formatura. Pegamos um ônibus, viemos todas para cá para fazer o contrato com a orquestra que ia pro nosso baile. Dilermando Reis e sua orquestra. A orquestra era grande e precisava até fazer uma avance no palco do clube porque senão não cabia a orquestra. Era famoso, você ter uma formatura era uma coisa que as pessoas todas iam, da região, das cidadezinhas de perto, baile de formatura com a orquestra tal. Eu não sei como cabia naquele salão todas as pessoas que iam pros bailes de formatura. E toda a aprontação que existia, porque você tinha que comprar o tecido para o vestido aqui em São Paulo, numa costureira que ia fazer. Então, essas coisas davam para cada evento um tempo muito maior, não era uma coisa que você sai, vai para uma festa e vem. Não, você tinha um tempo em que você escolhia o figurino, você vinha para São Paulo ou para Sorocaba, que era uma cidade bem maior, comprar tecido, sapato. Aí a costureira ia fazer a roupa e você experimentava duas, três vezes a mesma roupa. Então você curtia aquela festa, a aprontação para a festa durante um tempão. Às vezes o vestido era bordado, muitas vezes a gente bordava o vestido, ou uma tia. Eu tinha duas tias que gostavam de bordar e que bordavam o vestido de ir para festa. Daí você fica curtindo que ela tá bordando, você vai ver, vai lá na casa dela para ver como tá ficando… Então era uma aprontação enorme para uma festa de quinze anos, uma festa de formatura de ginásio, de formatura de colegial, como se fosse uma grande... Um término de uma grande etapa.
P1 – E as músicas? Tem alguma música específica que te marcou, algum cantor?
R – Tive duas fases de música. Primeiro as músicas americanas, Glenn Miller, todas as coisas que Frank Sinatra cantava, todas as canções que, obviamente, embalaram bailes e mais bailes por esse mundo. Depois eu peguei a bossa nova. O início da bossa nova, isso eu me lembro muito bem, eu estudava piano, como todas as meninas educadas da época, tinha que aprender piano. Aí surgiu o violão. Eu fiz amizade com uma menina que era daqui de São Paulo e que foi para lá nas férias, ela tocava violão, tocava bossa nova; então eu também quis um violão e também quis aprender a tocar bossa nova. Aí, óbvio, era Chico Buarque, todo o pessoal da bossa nova, que teve uma influência muito grande. Essa já é a fase que eu vim para São Paulo; logo depois disso eu já vim fazer vestibular, vim morar aqui. E tive a oportunidade de conviver com todos os festivais, ir aos festivais, todas as brigas que aconteciam, o que a gente torcia; quer dizer, era quase como torcida de futebol.
P2 – Você falou da vinda para São Paulo para contratar banda. Como que era, para uma pessoa do interior, vir à São Paulo, que era a capital, naquela época?
R – Olha, primeiro que a própria viagem já era longa. Pra você ter ideia, quando eu vinha de trem para São Paulo, levava de seis a sete horas. Itapetininga está a cento e setenta quilômetros daqui. Eu tinha o hábito de vir por conta do meu pai porque eu não pagava na Sorocabana, eu tinha a minha carteirinha da Sorocabana desde tenra idade, desde um ano de idade; então eu podia viajar de trem sem pagar. Viajei muito, onde a Sorocabana ia eu fui. Então eu tinha o hábito de vir à São Paulo, tinha irmãs que moravam aqui, mas muitas das minha amigas não. A gente, para vir para uma coisa, era um acontecimento. Vir, primeiro, só entre jovens, com endereço, um medo enorme de andar pela cidade, de errar o lugar onde tinha de ir. Imagine pegar táxi, nem pensar. Tinha que andar mesmo, de ônibus ou a pé, para ir no escritório. Eu lembro que a gente foi num escritório, decerto do produtor, e depois fomos almoçar num restaurante perto do que era a rodoviária antiga, que é perto da Sala São Paulo, por ali. Aquela rodoviária que agora vai virar um novo teatro. Fomos almoçar, imagine, sentar num restaurante, almoçar sozinhas, isso era muito emocionante. E ver mesmo aquele movimento todo da cidade. Eu sempre me encantei, eu sempre quis vir embora para São Paulo. Minha irmã mais velha, por exemplo, foi estudar em Campinas, eu tinha irmãos lá, mas eu sempre quis vir para São Paulo. Mas era uma emoção, sem dúvida, era um universo completamente outro.
P1 – Esses lugares onde vocês iam fazer compras eram pelo centro? Você tem algumas outras lembranças do centro?
R – Tenho, tenho. Quando você vinha comprar aqui, tecido e sapato, era rua do Arouche, que era entre o Arouche e a Praça da República. A rua do Arouche tinha lojas muito finas de tecido, tecelagem francesa, asson... não vou lembrar agora os nomes, mas eram lojas finíssimas de tecido. Também tinham lojas de calçados, depois houve uma época, inclusive, em que a rua do Arouche ficou só de calçados. Era o centro da cidade. Já depois, na minha época de faculdade, era a rua Augusta, o centro começava a ficar mais popularizado e comércio mais fino era rua Augusta, que era também a rua de se passear. O footing era rua Augusta, então no sábado todo mundo ia passear na rua Augusta.
P1 – Entendi. Só voltando um pouquinho, antes de você vir morar em São Paulo. Você trabalhou lá em Itapetininga antes de fazer faculdade?
R – Legal sua pergunta, até porque me lembra uma coisa que eu... Comecei muito cedo. Eu tinha dezesseis anos e... Bom, no final do ginásio eu já comecei a dar umas aulas particulares, exatamente porque eu gostava muito de matemática, então andei dando umas aulinhas de matemática para umas crianças que tinham dificuldade, mas em casa, os meninos iam, ou eu ia à casa deles, enfim. Depois... Eu comecei a fazer inglês muito cedo, lá mesmo em Itapetininga, e quando eu estava no segundo colegial me convidaram para dar aula na própria escola em que eu estudava, na União Cultural. Por volta dos dezesseis anos eu comecei a trabalhar, a dar aulas lá. Foi meu primeiro emprego, me lembro perfeitamente de trabalhar lá, era para mim uma honra, se eu precisasse pagar para continuar… Se eu precisasse pagar eu pagaria para realizar o trabalho, porque era muito gostoso poder ser professora. Eram classes de adultos, tudo gente mais velha que eu e eu achava aquilo maravilhoso, gostava de fazer. Me lembro que eu trabalhei muito com música em inglês porque eu gostava das músicas; os alunos também gostavam porque eu trazia músicas para eles ouvirem, traduzir, etc. Enfim, comecei bem cedo. Quando eu vim para São Paulo eu só não trabalhei o primeiro semestre do primeiro ano da faculdade; no segundo semestre eu já estava trabalhando, também dando aula de inglês num cursinho para vestibular.
P1 – Quando você veio para São Paulo como é que foi? Onde você morou? O que mudou, principalmente, na sua vida?
R – Eu vim para cá, eu tinha uma prima que havia feito faculdade aqui, estava terminando e morava numa pensão, num pensionato de moças. Àquela época tinha alguns pensionatos na avenida Angélica, porque a USP era na Maria Antônia, ali em Higienópolis, tinha o Mackenzie… Então aquela região é cheia de escolas, era comum na avenida Angélica ter pensionatos, mas pensionatos que eram organizados por freiras. Eu não queria vir morar num pensionato de freira, como eu já falei para vocês do meu pai que era... Minha mãe talvez preferisse que eu viesse prum pensionato de freiras, mas meu pai, já um pouco mais aberto, achava que tinha uma regra que era horrorosa: se você não chegasse às dez os portões fechavam, então você ficava na rua. Isso ele achava um absurdo, um limite que cria até um problema, um perigo. Então eu fui morar num pensionato na avenida Angélica, mas que não era de freira, era uma senhora, dona Dulce, que dava pensão para algumas jovens; acho que eram umas dez pessoas que moravam. Eram quartos duplos e só de moças que estavam estudando em São Paulo. Foi uma coisa muito gostosa de morar num grupo de jovens.
P1 – Tem histórias que você lembra desse pensionato, de quem morava com você?
R – Muitas. Quem dormia no mesmo quarto que eu... Ah, tem uma história interessante, que eu trouxe de Itapetininga uma japonesa, que era a melhor aluna do normal, era a primeira aluna em tudo lá, e que nunca tinha saído de Itapetininga. Como ela ficou sabendo que eu vinha para São Paulo e ela queria estudar, ela foi me procurar para pedir para vir junto porque ela não tinha coragem de vir sozinha para estudar aqui. Então tudo que eu fui arrumar para mim eu fui arrumar para ela também. Ela veio morar no mesmo pensionato que eu, fizemos o cursinho da USP. O cursinho da USP era de dezembro a fevereiro: em fevereiro você prestava vestibular, eram dois meses de cursinho e prestava vestibular. Ela veio fazer, entrou na USP, eu entrei na PUC e fui fazer Letras, ela foi fazer Pedagogia. Essa japonesa, que chamava Mitsue, ela nunca tinha usado chuveiro, por exemplo, a casa dela ainda tinha os hábitos japoneses do banho no ofurô, na tina aquecida, os hábitos eram completamente diferentes. Ela arrumava a cama dela com outro modo de arrumar a cama, ela fazia umas orações, fazia meditação, coisa que ninguém na época ouvia falar. Ela fazia meditação e depois dava uns gritos, umas coisas. Ela me fez explicar para todo mundo no pensionato, para que todo mundo recebesse o modo como ela agia, entendesse. A gente ia a pé pro cursinho, mas depois, quando foi para fazer vestibular, para ir pro exame, eu me lembro dela pedir para gente dividir um táxi porque ela passava mal no ônibus e ela não queria passar mal no dia do exame. Então era falta de hábito dela de tomar um ônibus, uma coisa coletiva, com muita gente, ela passava mal. Então a gente foi de táxi prestar vestibular porque assim ela evitava esse...
P1 – E como era a vida na PUC? Só um minutinho que a gente tem que trocar a fita.
P1 – Bom a gente estava falando do vestibular. Só para voltar um pouquinho: como foi a reação dos seus pais quando você contou que tinha passado na PUC? Como foi essa entrada na faculdade? Você lembra do primeiro dia de aula? Conta um pouquinho desse começo.
R – Então, como eu resolvi fazer Letras e... Naquela época o vestibular tinha exame escrito e oral, então, por exemplo, Letras tinha Latim, exame escrito e exame oral, tradução, inglês, português, etc. Claro, eu não tinha base, tive latim no primeiro ano do ginásio, que seria a quinta série de hoje, sexto ano de hoje, mas não fiz clássico, então não sabia. Vim estudar latim nos dois meses de cursinho. Fui muito mal no escrito, eu tinha certeza que eu não ia conseguir entrar. E no exame oral o professor que me examinou, o professor Leone, era um professor da PUC, italiano, que dava aula de grego, de latim, era um poço de cultura, de conhecimento, conhecia muito literatura antiga, dava aula de literatura comparada, mas eu não o conhecia. Ele era uma pessoa, a primeira impressão que me deu, muito amável, um velhinho muito amável, então eu fiquei muito à vontade no exame. E caiu um poema de Catulo, eu não me esqueço disso, porque eu li o poema e eu consegui entender o poema inteirinho, como se eu tivesse tido uma iluminação (risos). E traduzi. Traduzi apaixonadamente o poema porque era muito lírico, era lindo. Quando eu terminei ele me cumprimentou e achou linda a tradução que eu fiz, foi uma sintonia. Eu saí do exame e falava: “Gente, isso foi um espírito que baixou em mim (risos), não é possível.” Eu tive dez no oral e, com isso, eu consegui a vaga, porque senão eu teria sido reprovada, tinha tido uma nota muito baixa no escrito, mas no oral foi brilhante. Aí entrei para PUC e fiz universidade no final dos anos 1960, que é exatamente uma fase de grande revolução na universidade. Primeiro, porque nós estávamos em plena ditadura militar, estar na universidade significava estar no movimento estudantil, estar fazendo passeatas, estar em assembleias, estar, claro, estudando muito a política brasileira, participando dos debates, foi um momento muito intenso de vida universitária. A cada passeata, obviamente, no interior os pais ficavam rezando, né, mas a gente estava em todas as coisas, eu participei bastante da vida universitária. Nessa época o TUCA era também ali o início do teatro na PUC, começou em 1965. Os anos em que eu estudei, 1968... 1967 eu entrei. Era uma fase onde tinha muitas peças de estudantes, o teatro era um espaço revolucionário. Depois, a própria universidade começava a discutir a democratização da estrutura universitária, então a reforma universitária, a eleição da primeira reitora eleita pelo voto direto, e que era uma mulher. Então todas essas coisas fizeram com que a vida universitária fosse muito intensa. Eu me envolvi muito com a história da PUC. Eu sempre brinco que com certeza ajudei a construir essa história, porque eu não tenho dúvida, estive realmente, integralmente na vida universitária nesses anos em que estive lá; não só dentro da sala de aula, dando aula, mas envolvida nos movimentos e nas crises, nas assembleias, enfim.
P1 – Conta um pouquinho mais dessa parte do movimento estudantil. Teve uma assembleia que você lembra? Alguma manifestação que aconteceu alguma coisa?
R – Bem nesse período... porque, em 1968, com o AI5, tudo se fecha, né? Tudo que você fazia, ouvir uma música do Roberto Carlos, era um ato contra a ditadura. Do Roberto Carlos... Desculpe, do Chico Buarque. Ao contrário, do Roberto Carlos a gente não queria, porque o Roberto Carlos era pró sistema, estava ali, cantando, bonitinho, sem fazer nenhuma contestação. Já toda a ala da MPB vinha com a contestação ao sistema, as letras que eram proibidas, os shows proibidos. Então, só de você fazer parte de um show desse você já se sentia fazendo uma revolução, era uma coisa de política você assistir um show, principalmente se ele tinha sido censurado. Você assistir um peça que estava proibida? Isso era realmente muito importante. E lutava. As pessoas não tinham medo de ir porque estava a polícia na frente, as pessoas iam, lotavam os teatros, lotavam os shows. Nessa época o teatro da PUC se tornou um espaço de música brasileira. Elis Regina, Chico Buarque, Gal, Caetano, todos eles se apresentaram lá, era efervescente ali o movimento. Depois disso, mesmo já nos anos 1970, já não teve mais tanta movimentação nesse sentido, porque se começou a ter muitos estudantes sumidos, muitos líderes presos, muita gente no exílio, vários professores fora… Então claro que existia um medo maior de enfrentar polícia. Mesmo assim, nós tínhamos dentro da universidade uma capacidade de organização política, de contestação muito grande, tanto é que a universidade foi invadida pelo Erasmo Dias. Eu estava nesse dia da assembleia quando aconteceu.
P1 – Conta como foi.
R – Foi em 1977. Primeiro a PUC já havia feito algumas desobediências civis, tinha recebido SBPC que a ditadura havia proibido. Não podia ter a reunião da Sociedade Brasileira para o Apoio à Ciência, que era a SBPC, que deveria acontecer na USP. Como a USP era pública o governo proibiu e não entra. A PUC abriu as portas e a SBPC foi lá. A reunião da UNE foi na PUC, então a PUC estava cutucando muito. Aí estava uma reunião da UNE na frente do TUCA, eram muitos estudantes, então eles se reuniram na calçada mesmo, lotou tudo aquilo e nos degraus do teatro é que as pessoas falavam. E dentro da universidade, no auditório maior, os professores estavam reunidos em assembleia. E aí o Erasmo Dias invadiu a universidade. Ele cercou primeiro todo o quarteirão com bombeiros, caminhões de bombeiros e polícia e invadiu mesmo. Quando começaram a jogar bomba de gás lacrimogêneo todos os estudantes correram para dentro da universidade, daí ficou todo mundo fechado. Aí ele foi retirando as pessoas em fila indiana, soldado dos dois lados e a gente passava no meio daquela fileira de soldados. À frente da PUC tinha um terreno enorme onde era um estacionamento, do outro lado da rua. Esse estacionamento ele esvaziou e prendeu todo mundo dentro do estacionamento, todo mundo sentado no chão; todos os que estavam na PUC estavam em movimentos proibidos, ou estavam numa reunião da UNE ou estavam numa assembleia, coisas proibidas. Enquanto nós estávamos sentados, isso foi madrugada adentro, eles foram fichando as pessoas e um grupo de soldados ainda vistoriava a universidade e destruía. Pra vocês terem uma ideia eles quebraram mimeógrafos, que eram… Hoje a gente faz xerox dos textos de professor, antigamente se fazia cópia por mimeógrafo, tinha que datilografar num carbono específico, uma folha específica e que daí você rodava numa máquina com álcool e saía as cópias. Panfletos políticos eram feitos assim, ter um mimeógrafo poderia significar ter a intenção de fazer política; então eles destruíram os mimeógrafos. Destruíram coisas, assim, idiotas; muita coisa foi jogada, rasgada, enfim, foi uma coisa tenebrosa o que aconteceu. É inesquecível essa invasão do Erasmo Dias. Junto ali tinham professoras gestantes, tinham pessoas mais velhas, todo mundo sendo tratado do mesmo jeito, gritos, ele no megafone gritando: “Vocês estão todos presos. Aqui quem vos fala é o Coronel Erasmo Dias.” E você tinha a impressão que os caminhões dos bombeiros iam jogar jatos d’água, todo um aparato bélico enorme, uma coisa horrível. Foi um enfrentamento ali muito significativo da reitora da época, que era a Nadir Gouvêa Kfouri, ela foi a primeira mulher que foi reitora no Brasil. E o primeiro reitor eleito pela própria universidade. Então ela tinha uma força política muito grande, de apoio e tudo, e ela enfrentou o Erasmo Dias. Isso a gente tem fotos na PUC muito interessantes, porque você vê a expressão dela. Ela era uma mulher magrinha, pequenininha, mas a expressão dela de autoridade, de enfrentamento é uma coisa incrível. Mas vários ônibus ali saíram com jovens presos. Quase todos os jovens que não eram alunos da PUC saíram dali presos porque estavam lá para fazer baderna, como dizia Erasmo Dias. Sem dúvida esses movimentos marcam muito, mas só para mostrar o que significou isso: isso foi um final de semana, uma sexta-feira, qualquer coisa assim. Na segunda-feira foi chamada outra assembleia. Eu acho que foi a maior assembleia que eu já vi. Todo mundo foi. Mesmo aqueles reticentes, que não iam, que tinham medo, todo mundo foi. Era uma coisa assim: “Não é possível a gente deixar esse Brasil continuar desse jeito, com esse autoritarismo, esse abuso do poder, etc.” Então, ao invés dessa invasão do Erasmo colocar um medo e arrefecer o movimento, foi ao contrário, foi um estimulador. Inclusive fez com que muitos pais, que falavam pros filhos: “Não se meta nisso.”, dissessem: “Não, a gente tem mesmo que fazer alguma coisa, não pode, isso é um absurdo.” Então todo mundo entrou no movimento com outra força.
P1 – Entendi. Um pouquinho ainda na PUC, quando você estava contando que passou de estudante a professora, que você ajudava essa professora que te chamou.
R – Ah, sim. No último ano eu fui monitora de uma professora da PUC, Lucrécia Ferrara, aí coincidiu o meu último ano com a reforma universitária, aumento de vagas, democratização da universidade. Aí vários professores precisavam ser contratados e eu fui uma delas. Comecei a pós-graduação e já fui contratada, portanto, em 1970, eu terminei em 1969, em março de 1970 eu estava contratada pela PUC e comecei a dar aula. Não só lá, nessa época eu dava aula no Fernão Dias Paes, que era uma escola do Estado aqui em Pinheiros. Como sempre, professor ganhava mal, mas no estado, naquela época ganhava bem melhor do que hoje. Então a gente mantinha o estado e dava aula na faculdade porque tinha interesse em pesquisa, tinha interesse em continuar lá, mas a faculdade pagava muito mal, não dava para abandonar o segundo grau. Eu só fui abandonar mais tarde quando tive o meu primeiro filho, aí não dava para ter dois trabalhos, etc.
P1 – Conta um pouquinho, você falou que você namorou, seu primeiro namorado foi seu marido. Como vocês se reencontraram, como foi?
R – Então, eu contei que ele veio morar em São Paulo e por isso o namoro se desfez. Quando eu vim estudar aqui, nesse pensionato que eu morei, ele tinha amizade com alguém do pensionato que eu já nem me lembro mais qual das meninas. E eu o reencontrei por isso, porque eles saíam, o grupo saía junto, ele passava lá e saíam todos juntos. Eu, obviamente, não, porque eu era ex-namorada; mas depois acabamos nos reencontrando. Teve um movimento aqui em São Paulo dos estudantes de Itapetininga, que era “Amigos de Itapetininga”, qualquer coisa assim, que se reuniam aqui, enfim. Nessas reuniões eu reencontrei o Zé Roberto e daí começamos outra vez. Eu tinha um namorado que estava lá, agora eu estava aqui e o namorado lá (risos). Acabamos brigando. Nesse meio de tempo teve uma coisa muito importante na minha vida, eu fui para Inglaterra. Como eu dava aula inglês aqui também, tudo, eu sempre tive muita vontade de ir para Inglaterra. Obviamente não para os Estados Unidos, por conta das próprias posições políticas assumidas na época. Aí surgiu uma oportunidade, eu tinha uma amiga que ia pelo “Convivência Internacional”, que você ficava na casa de uma família. Fizemos todas as histórias lá, os exames que tinha que fazer, de língua. Conseguimos e eu fui para Warrington, Inglaterra, cidadezinha ao lado de Liverpool. Foi por pouco tempo, eu fiquei dois meses e depois fiquei mais um mês viajando, enfim, mas marcou muito a minha juventude. Primeiro por ser isso de você ir para um país estrangeiro e viver na casa de uma pessoa com outros hábitos, outro modo de ver a vida. E eu tive uma oportunidade incrível porque eu fui morar com uma mulher que era viúva, e ela me escolheu porque eu era filha de viúvos; a gente fazia todo um preenchimento de ficha, etc. Ela era uma pessoa excepcional que acabou muito minha amiga até o fim da vida. Fiquei na casa da Jessie dois meses para aprender inglês, ela tinha uma lojinha, uma bomboniere; tipo uma bomboniere, charutaria, sei lá. Eu ficava ajudando e com isso eu aprendia o dinheiro, aprendia que na época o inglês usava uma moeda dificílima porque não era decimal, então era complicadíssimo de fazer troco, mas isso tudo fazia parte do aprendizado da língua. E frequentava escolas, principalmente escolas de primeiro e segundo grau porque eu tinha interesse de ser professora e conhecer metodologias, etc. Então isso foi um estágio, não foi um curso que eu fui fazer lá. Conheci muita gente com as quais fiz amizades e que até se prolongaram depois. Quando eu vim embora continuei me correspondendo sempre com a Jessie, ela veio me ver quando eu tive a minha segunda filha e depois veio outra vez quando eu já estava com os três. Ela dizia que ela era a minha mãe inglesa. Quando minha mãe morreu, na semana seguinte eu recebi uma carta e estranhei, porque era uma carta da Inglaterra e não era assinada por ela; e quem se correspondia comigo era ela. Era uma sobrinha dela avisando que ela tinha morrido. Ela morreu na mesma semana que a minha mãe, eu até falava que eu perdi as duas de uma vez só. Claro que era uma pessoa com a qual eu tinha uma afinidade grande e eu tinha uma dificuldade de comunicação, meu inglês nunca foi tão fluente que eu pudesse me expressar como eu gostaria com ela. Ela sempre brincava que eu acordava em português porque quando ela no meu quarto eu falava em português com ela, não tinha jeito, toda vez (risos). Então essas coisas marcam. Foi uma coisa curta na minha vida, mas muito intenso esse contato. Eu também fui à casa dela outras vezes. Eu fui uma vez só, levei meu marido lá uma vez; e depois meus três foram fazer cursos de inglês na Inglaterra pertinho da casa da Jessie, numa cidadezinha pequena que eu conheci lá na época e que achava maravilhosa. Descobri que tinha uma boa escola de inglês e que não ia quase brasileiros, porque não adianta você ir fazer um curso de inglês fora com brasileiro junto; senão não fala inglês mesmo (risos). E no fim eles iam nos finais de semana para casa dela, cada um no seu tempo, cada um foi numa época, mas todos diziam que era como se voltassem à casa da avó. Foi muito interessante essa afinidade criada. E como o meu marido nunca teve oportunidade de fazer isso antes, nunca teve interesse nem nada, há não muitos anos eu inventei de ir com ele morar numa casa de uma família nos Estados Unidos para fazer um curso de inglês. “Agora a gente pode ser mais mole, não precisa ser aquela coisa que a gente quis com as crianças, na Inglaterra. Pode ser nos Estados Unidos. Vamos para Califórnia!” Fomos para San Diego, ficávamos na casa de uma senhora e a gente fazia só meio período de aula; não era para também se matar, dava para passear. Ela chegava do trabalho a tarde e a gente estava fazendo lição e tomando vinho e ela falava: “O que eu faço? Eu recebo estudante sempre aqui, mas nunca recebi assim, que chego em casa e estão tomando vinho para fazer lição! Que que eu digo? Qual a minha responsabilidade?” (risos) Foi uma experiência interessante também, ele curtiu muito de passar por ela, de viver do jeito... tomando ônibus, não tinha carro, tomando ônibus para ir para a escola estudar. Na escola a gente fazia questão de não ficar juntos, cada um tinha seu grupo, fazia o lanche com seus amigos para poder se entrosar. Claro que nós éramos os mais velhos, ninguém da nossa idade. Fizemos todas as excursões com todo mundo, foi muito, muito bom. É uma coisa que eu tenho visto voltar agora a acontecer, que é uma forma muito mais barata de se viajar e muito mais real também de se viver um país, porque você fica na casa da pessoa. Tem pessoas que recebem por muito pouco, quer dizer, é simplesmente uma ajuda de custo, porque você tem custos, né, que você dá para pessoa. E tem uma troca, você compreende o outro lado. Quer dizer, qual é... A gente fala do americano, como é que ele é. Como é a vida dele? Como é que essa mulher, por exemplo, vivia? A máquina de lavar roupa não era o último tipo, era a primeira que ela teve, ela sempre teve a mesma, era uma máquina de mais de vinte anos, a secadora idem. A gente faz aquela ideia de uma sociedade que joga muito lixo fora. Não, ela tinha um cuidado de preservação das coisas, o cuidado com lixo orgânico. Enfim, todas essas coisas que nós ainda não estávamos vivendo aqui já eram muito cotidiano. Então você começa a... acho que morar junto com alguém fora do país faz você ver as diferenciações e não constituir um povo, assim: “Os americanos são assim, os ingleses são assim, os franceses são assim.” Não, são pessoas e tem, obviamente, diferenças entre elas, dependendo da sua vida, suas condições de vida, etc.
P1 – Você falou dessas duas viagens muito marcantes, da Inglaterra e dos Estados Unidos. Tem alguma outra viagem, ou aqui mesmo pelo Brasil, que marcou a sua trajetória?
R – Olha, talvez porque meu pai gostava... Pode ligar um pouquinho o ar? Estou morrendo de calor (risos). Meu pai gostava disso, de viajar, que eu já te contei. Eu sempre curti qualquer viagem, eu brinco sempre que para mim ir até São Roque já pode ser um passeio. Eu gosto de viajar, eu gosto de olhar, eu gosto de conhecer pessoas, então eu conheci muita coisa do Brasil que eu acho que foi marcante demais para mim. Me lembro de pequena quando foi a primeira vez que eu atravessei as fronteiras do Estado de São Paulo e o Paraná. Meu pai acordava a gente de madrugada, no trem, para dizer: “Olha, agora vai atravessar a fronteira”. Então tem um marco de travessia da fronteira, isso existe na estrada, existe um postezinho lá que é o marco e que ninguém nem presta atenção, mas ele fazia a gente acordar de madrugada para saber: “Agora estamos entrando no Paraná.” Essa noção espacial e de conhecimento de um outro lugar acho que eu curti sempre, seja indo para Curitiba, que era a grande distância que a gente fazia… Depois, uma outra grande viagem marcante na minha vida, a gente foi pro Rio de Janeiro, eu devia ter uns catorze anos, com a minha irmã, que tinha nove. Nós duas sozinhas, num ônibus, meu pai nos colocou aqui em São Paulo e meu primo ia nos esperar no Rio. E vejam, isso eu estou falando de um homem que, se eu tinha catorze, ele já tinha setenta e tantos. E sempre foi assim, sempre a gente viajou, ele sempre estimulou. A minha preocupação, quando foi chegando o Rio, que eu fui vendo o tamanho do Rio, que não era uma Itapetininga, eu pensava: “E se ele não estiver lá quando chegar o ônibus? Para onde eu vou?” A ideia de você telefonar para sua família não existia, não tinha essa coisa de: “Vou ligar para não sei quem.” Não, meu primo nem tinha telefone na casa dele. E graças a Deus ele estava lá me esperando. O Rio foi, para mim, é o Rio contado pelo Jeferson e pelo Ralf, esses meus dois primos, mas principalmente pelo Jeferson, que faleceu esse mês. Já estava com setenta e tantos anos, era médico, psiquiatra; na época era estudante de medicina ainda, quando eu fui para lá. Já era casado, estava no final da faculdade e casou, tinha um filhinho. Imagina, apartamento pequenininho, ele começando a vida e nós duas indo passar as férias lá. E tinha o outro primo, irmão dele, que era solteiro e que saía com a gente para fazer os passeios. O Jeferson, ele podia contar coisa, por exemplo, o Largo do Boticário, no Rio, que é uma coisa linda, realmente, mas se você for lá hoje não é metade do que era quando o Jeferson contava, porque ele contava uma história de uma moça que o namorado que ela amava morreu, ou era o contrário, não sei. Acho que era o moço, porque ela chorava e aquelas rosas que tinham lá naquele largo, aquelas flores nasceram das lágrimas que caíam quando ela chorava. Então eu acreditava em todas as histórias dele, aquilo... Todos os lugares do Rio foram tendo para mim um sabor muito diferente. Ir para a ilha, que daí tinha toda a história do romance do Macedo, e aí ele recuperava a história, sabe? Em todos os lugares tinha alguma coisa que ele criava romance, não me esqueço disso. Uma vez ele chegou em casa, devia ser quase meia-noite, e eu acordei quando ele entrou porque eu dormia na sala do apartamento. Ele estava chegando de um plantão e falou: “Ah, que bom que você acordou. Você vai tomar sorvete no arpoador, põe uma roupa. Você vai ver que lindo que é o Rio de noite.” E daí nós fomos no arpoador tomar sorvete à meia-noite. E aquela iluminação do Rio, aquelas coisas. E as histórias que ele contava do arpoador, blábláblá. Era um sabor muito especial, ele deixou para mim um Rio que não há outro. Que está nas músicas de bossa-nova, nas letras. Eu recupero essa imagem do Rio muito nas letras de música, que pegam o Rio de uma determinada época, idílico, sem todos os problemas sociais que hoje o Rio vive. Para contar algumas, senão eu fico dez dias contando (risos).
P2 – A gente está indo e voltando e tudo mais. Você falou dos filhos. Como foi a experiência de ser mãe?
R – Eu queria muito ser mãe. Eu tive muita ligação com os meus sobrinhos, demais, disputava meus sobrinhos com a minha irmã, com a mãe deles, então eu queria muito ter filhos. Eu tive o meu primeiro filho em 1975, eu já estava trabalhando, era professora da PUC, etc. É o Beto. Foi uma experiência maravilhosa. Ao mesmo tempo eu experimentei uma sensação de insegurança, o primeiro filho é uma sensação de insegurança monstruosa, porque parece que tudo pode acontecer com aquela criança e você não vai dar conta. Se a criança chora você está do lado e se não chora você vai ver se não chorou porque “será que morreu no berço?” (risos). Você vai, põe o dedo, vê está respirando. É uma coisa de você achar que tem que dar conta de uma vida e que depende absolutamente em tudo da sua providência, mas foi uma experiência muito gostosa. Logo depois, quando o Beto tinha um ano eu estava grávida da Adriana, gostei tanto da experiência que tive logo em seguida a Adriana. E depois veio a Fafá, quando a Adriana estava com três anos. O Beto e a Adriana... Durante um certo tempo eu estava com um casal, achava que um casal estava de bom tamanho, com um monte de trabalho, fazendo mestrado, aquela confusão de vida, etc. E de repente fiquei grávida da Fafá, da Fabíola, inesperadamente realmente, levei um susto, falei: “Meu deus, como vou dar conta? Você sai na rua com dois, mas onde é que o terceiro fica? Que mão você segura?” Mas foi muito bom ter os três, cada um é absolutamente diferente do outro. O Beto trabalha com informática, trabalha com gestão do conhecimento, trabalha à distância. Fez a opção de morar no interior, mora em Itapetininga, já tem um filho que é o meu neto querido, o Breno. A Adriana está grávida. A Adriana fez Ciências Sociais, trabalha com responsabilidade social empresarial e está grávida agora do primeiro filho. E a Fafá, a Fabíola, fez artes do corpo e fez artes plásticas, durante muito tempo trabalhou com circo, fazia muitos aéreos, para o terror da mãe dela, mas sempre fez artes plásticas também, sempre pintou. E agora hoje em dia ela está mais voltada pras artes plásticas, parou um pouco com o circo. Faz coisas de malabares ainda, mas não mais aqueles aéreos, está mais agora nessa área visual. São os três. Do meu marido eu não falei. Meu marido é economista, já está aposentado e ele trabalhou muito com marketing, o que fez eu aprender até bastante de marketing, que me fez também me envolver muito com gestão. Foi quando eu fui passando da sala de aula para gestão da cultura na universidade, foi muito influência das coisas que eu lia junto com ele, assistia com ele em palestras e tudo. A gente teve um marco na nossa vida a dois muito grande. Ele teve um câncer, já há quinze anos, mas foi um câncer muito sério de intestino. Durante um ano ele ficou, assim, sem saber se dava certo o tratamento ou não, foi um período muito duro, mas que ensinou muito para a gente. Dizem que a pessoa que sobrevive a um câncer passa por um ponto de mutação, e realmente é, acho que a gente aprendeu muito. Desde o primeiro dia a gente abriu para todo mundo que era câncer, os filhos sabiam, os amigos sabiam, fomos tratar no Hospital do Câncer. As pessoas acham que não pode... Agora até nem falam mais “do Câncer”, porque as pessoas tinham preconceito de se identificar, de mostrar que tinham a doença. Eu acho que para nós foi importante porque pudemos enfrentar o câncer mesmo, enfrentar com todas as forças que tinham que ser enfrentadas. E com muito companheirismo de todo mundo, os amigos ficaram presentes, eu continuei fazendo muita reunião na minha casa, jantar, pápápá, para todo mundo estar lá. Acho que isso deu muita força para todos nós, porque realmente não é fácil de enfrentar, você tem a sensação de que está recebendo uma sentença e não um diagnóstico. E ele foi muito feliz na cirurgia, fez uma colostomia, teve que tirar uma parte grande do intestino, mas sobreviveu, tá aí, ótimo, saudável. Ele tem um sítio, hoje ele trabalha com isso, ele cria porcos para experimentação científica, cria mini-pigs. São porcos pequenos porque, como eles não crescem muito, são mais fáceis de serem usados para experimentação científica. Normalmente você tem que acompanhar o desenvolvimento de alguma doença, de alguma coisa, e se o porco fica muito grande fica muito difícil do cientista acompanhar. Então, ele tem essa atividade e hoje está curado do que teve, do câncer, não tem sequela. A não ser que convive com uma colostomia, que é aquela bolsa. Existia também todo um mito disso tudo para nós. E ele teve um trabalho interessante depois. Como ele ficou muito bem, ele é super elegante, tudo, no Hospital do Câncer chamavam ele para ir conversar com os pacientes que iam fazer a cirurgia para mostrar que não era nada daquilo, que ele continuou a ter vida normal, que ninguém vê, que ele está vestido, ninguém sabe. Hoje tem outras técnicas, ele usa um sistema de irrigação que o intestino funciona só no momento em que ele faz a irrigação, então ele passa o dia normal, sem problema nenhum, come, bebe de tudo. Isso foi muito importante para muita gente que ele conheceu, que ele foi falar, porque as pessoas acham que acabou a vida ali, né: “Não vou mais conseguir ter uma vida normal.” Inclusive esse curso que a gente foi fazer nos Estados Unidos foi depois da cirurgia dele; fomos, moramos na casa da família, sem problema nenhum, não tem nenhuma restrição, nada. Acho que para ele foi bastante significativo o “ver a vida” depois de uma chacoalhada dessa.
P1 – Você está falando do seu marido, mas a gente não falou do seu casamento. Casou lá em Itapetininga?
R – Não, casei aqui.
P1 - Casou em São Paulo? Como é que foi?
P2 – Onde foi?
P1 – Onde foi? Quem que foi?
R – Então, meu casamento, em 1972 eu me casei, então eu estava no auge do movimento estudantil, etc e tal. Eu não queria que fosse casamento, casamento na igreja e tal, não queria. Então comecei achando que não ia ser isso, que a gente ia fazer uma coisinha simples, casar no civil. Só que tinha uma expectativa familiar, tanto do lado dele quanto do meu e... “Como assim?” Não existia esse negócio de morar com o namorado, não existia isso, era uma coisa fora de cogitação para minha mãe e para dele também. Aí: “Então vamos fazer direitinho, vamos casar na igreja, mas vamos fazer aqui em São Paulo porque aí a gente faz mais simples.” Itapetininga tinha que convidar a cidade inteira: “Então vamos fazer aqui.” Bom, daí vai crescendo a história. Eu não ia fazer um vestido de noiva, ia fazer um vestido simplesinho, não sei o que. No fim chegou num ponto que eu disse: “Quer saber? Agora estamos nisso e então vai ser com tudo, com tudo o que tem direito!” (risos) A gente casou na igreja do Perpétuo Socorro, fizemos festa e tudo. Só que eu não quis que o vestido fosse muito caro, o vestido de noiva, então era um vestido de camponesa, tinha um lencinho só amarrado na cabeça, um vestido simplesinho comprido. Eu me lembro que os meus filhos, olhando o álbum, morriam de rir da minha roupa de noiva porque achavam esquisitíssimo: “Mãe, o que é aquilo? Parece uma coisa de leãozinho que você está vestindo.” Porque tinha umas coisas que nem pétala de flor, assim, né. Falei: “Olha, acho que devia ter sido tradicional de uma vez, com véu e grinalda e pronto.” Não dá para você fazer meio-termo nessas coisas. Imagina que na época eu estava fazendo um curso com Décio Pignatari, eu não me esqueço porque eu fiz um seminário dele na quarta-feira e eu me casava no sábado. Imagina que eu ia contar pro Décio Pignatari que eu ia casar sábado, eu estava com a cabeça na lua, eu não queria nem preparar seminário, mas era uma coisa tão ridícula dizer isso. Foi assim, no meio de um preconceito e ao mesmo tempo curtindo porque depois que você entra na jogada você curte o casamento, a festa, tudo. Pros meus pais foi bastante importante, principalmente; pros meus pais, pros pais dele, isso de ter o casamento na igreja, enfim.
P2 – Pro seu pai, mesmo sendo ateu?
R – Não, o meu avô é que era ateu.
P2 – Ah tá, desculpa.
R – O meu pai não era ateu. Não era muito de igreja, mas era religioso. Minha mãe era mais religiosa. Meu avô, quando eu casei, já não existia mais.
P1 – Seus irmãos também vieram morar em São Paulo, saíram de Itapetininga, ou eles continuam lá?
R – Não, a única que mora aqui sou eu. Meus irmãos, os mais velhos, dos seis do meu pai, só uma está viva, os outros cinco já morreram. Eles eram todos muito próximos de idade, então foi meio que cartinhas de baralho que vão caindo porque todos muito próximos, todo mundo foi indo. Então eu tenho uma irmã que já está com noventa e dois anos e que mora perto de Jundiaí, em Itupeva; a filha também mora lá. Tem uma irmã mais nova que eu que mora em Campinas, é médica, foi professora da Unicamp, é dermatologista em Campinas. E a minha irmã Giselda voltou a Itapetininga recentemente, voltou a morar lá, está viúva. Uma das filhas mora lá e ela voltou para Itapê. Então Itapetininga tem essa coisa de vai e vem, alguns vem, depois vão. Tem sempre uma conexão com a cidade.
P1 – Entendi. Tem que trocar a fita de novo.
P1 – Então, você falou que está morando agora aqui pertinho, na Heitor. Vocês foram para lá, criaram os filhos nesse apartamento?
R – Quando eu me casei eu fui morar em Pinheiros, na Fradique Coutinho, que eu dava aula na Fernão Dias, então era muito pertinho, ia a pé. Mas era um apartamento pequenininho, então, assim que eu fiquei grávida do Beto eu comecei a procurar outro apartamento. E fomos para Heitor Penteado. Primeiro alugamos um apartamento lá e depois, com o tempo, acabamos comprando no mesmo prédio um apartamento; e lá ficamos. Portanto eu moro nesse prédio desde 1975.
P1 – E como é que era o bairro, o entorno em 1975? Como vai se modificando?
R – A avenida já era uma avenida bastante movimentada e que só aumentou o movimento, mas eu tenho sorte que meu apartamento é de fundo e dá para uma região que é zona um, que tem muita árvore, só casas. Esse pedacinho continua igualzinho desde então, não houve mudanças ali. Há muitas coisas do entorno, quer dizer, a mesma farmácia continua com o mesmo farmacêutico, a cabeleireira, que tem ali embaixo é a mesma, o Pão de Açúcar. Então tem várias coisas daquele pedacinho que são os mesmos. E a população do prédio foi envelhecendo junto porque, obviamente muita gente sai, há mudanças, mas há um grupo grande ali de pessoas que compraram esse apartamento quando foi construído; e que os filhos casaram, saíram, etc. e os casais continuam. Então é uma população bastante envelhecida, mas que, por isso mesmo, também você conhece as pessoas, estão ali junto, é um ambiente agradável, embora tenham vários apartamentos que são de locação, que são pessoas que às vezes mudam, você nem conhece. Foi muito bom ter ido morar ali porque era um ponto próximo da PUC para mim, as minhas crianças estudaram no Vera Cruz, que é no Alto de Pinheiros, então a minha casa ficava no meio, entre o meu trabalho e a escola das crianças. Para ir e voltar, buscar, aquela fase de criança pequena que você roda quilômetros indo levar para escola e cada hora é um que vai e que vem, e vai trabalhar e volta. Essa fase o magistério foi muito importante porque você pode organizar as aulas de forma a atender os filhos, então, por exemplo, pega aula a noite quando o marido está em casa, você sai mais tranquila. Deu para ter férias junto com os filhos porque os filhos têm férias na escola e você tem férias. Nesse ponto é por isso que tanta mulher foi pro Magistério, porque realmente é uma profissão que é mais fácil de se adequar à ligação da mulher com os próprios filhos, com a casa.
P1 – Eu não perguntei da sua escolha pela faculdade de Letras. Como foi isso?
R – Na verdade foi decorrência do inglês porque, como eu comecei a fazer inglês, comecei a dar aulas de inglês, aí fui me interessando e vim motivada pelo inglês. No fim, durante a faculdade é que o que mais me despertou foi a literatura e eu acabei enveredando pela literatura; mas foi a experiência com o curso de inglês de Itapetininga que me trouxe para Letras.
P1 – A gente tinha falado do teatro TUCA, de como você se aproximou dessa parte de gerência. Como isso aconteceu?
R – Desde o começo na PUC eu fiz muita atividade cultural. Eu fui coordenadora do Ciclo Básico, que foi também uma coisa muito importante na PUC. A gente fazia muita atividade coletiva com os alunos, seja cinema, levando filmes que não passavam mais no cinema porque eram proibidos, fazendo exposições de pintura, fotografia, etc. Então eu sempre gostei muito de fazer esse tipo de atividade. Até que surgiu a possibilidade da PUC fazer um convênio com a Atlantic na área de vídeo e eu fui para essa área, eu criei a primeira videoteca universitária, que foi com verba da Atlantic, que não existe mais. A Companhia Atlantic de Petróleo tinha um diretor presidente que era apaixonado por vídeo, então ele resolveu fazer todo o marketing da empresa ligado a produção de vídeo. Foi nisso que nasceu essa videoteca. A videoteca tinha um espaço, na entrada da biblioteca, um espaço livre onde eu fazia exposições. Por conta disso eu fui me ligando muito aos eventos todos da PUC, acabei indo assessorar a reitoria nessa área de eventos e aí o reitor me chamou quando o TUCA entrou em reforma em 2003, para assumir o retorno.
O TUCA foi incendiado nessas ações criminosas da época da ditadura, além da invasão da PUC, teve o incêndio do TUCA em 1984. Esse incêndio destruiu o teatro. O teatro foi mais ou menos recuperado, para continuar existindo, com dinheiro levantado de doações, os músicos faziam shows ao ar livre, sem teto, para arrecadar dinheiro. Os artistas plásticos doavam obras para fazer leilões; se reconstituiu, mas, assim, era telha vã, não tinha teto, parede e cadeirinha de plástico. Dessa forma o TUCA sobreviveu do fim dos anos 1980 até o ano 2002, com grandes espetáculos e com muita coisa boa que aconteceu lá. Aí é que se conseguiu verba… Aí houve um tombamento do TUCA pelo CONDEPHAAT e, como patrimônio histórico, se entrou com um pedido, pela lei Rouanet, para poder captar verba, um projeto. Aí captou-se a verba suficiente para reformá-lo. Então eu comecei para... Durante a reforma do TUCA eu já assumi e fiz algumas coisas. Fiz primeiro, para fechar as portas do teatro, uma exposição histórica, depois fiz uma visita monitorada pelos artistas. Vários artistas foram contratados e todo mundo tinha que estar vestido com capacete, etc., porque no meio da obra, ainda o teatro em obras, fizemos visitas monitoradas, que foi uma experiência muito interessante também. Daí, em 2003 foi a inauguração e eu assumi a Superintendência. Prometi para o meu marido que eu ia ficar um ano só. Estou lá até hoje (risos) Eu dizia para ele: “Eu sei, fim de semana, teatro, a gente tem que ir de vez em quando pelo menos. É um ano só.” Mas teatro é uma coisa, assim, que te cativa, que te puxa, não te faz sair mais. Realmente eu tenho um prazer enorme em trabalhar lá. Além de toda a tradição, o TUCA é um teatro dentro da universidade, então não é um teatro que acontece nos finais de semana, acontece todo dia alguma coisa porque todos os eventos da universidade acontecem lá. Então é muito vivo, muito dinâmico, enfim.
P1 – Hoje, além do TUCA, que outras atividades você faz?
R – Continuo coordenando a videoteca da PUC, tem outra professora que trabalha comigo lá, principalmente a parte de exposições, agora é ela quem faz, eu não faço mais. Na videoteca, nesse momento, o meu desafio é organizar... A gente é depositária de uma coleção importante de vídeo da Associação Brasileira de Vídeo Popular. A ABVP, quando fechou, não tinha mais espaço e acabou doando todo o acervo para videoteca da PUC. E agora o meu desafio é organizar esse acervo, digitalizar para poder disponibilizar esse acervo. Ele pega a produção dos anos 1980, 1990 de vídeo, que está ligado aos movimentos populares, tem muita coisa boa; e que vai se perder, está tudo em VHS. Então é um desafio aí, agora.
P1 – Bom, acho que indo mais para uma parte conclusiva, se você não quiser acrescentar mais alguma coisa. Queria saber como foi contar a sua história aqui pro Museu.
R – Olha, desde o convite, é uma coisa muito interessante que acontece. A primeira coisa, quando você me falou, eu pensei: “O que eu vou contar? Que história é essa, a minha? Que interesse tem a minha história?”, depois me passou assim: “Nossa, a minha história tem que ser muito interessante para mim. Como que não é interessante a minha história para mim mesma? Eu tenho que achar interessante.”; depois: “O que da minha história? Que coisas eu vou contar numa entrevista?” Claro que eu vou deixar muita coisa de fora e eu queria amadurecer muita coisa do que seria o que eu fosse contar aqui. Só que é um processo meio terapêutico isso porque você começa a tentar fazer essa seleção e montagem narrativa e fala: “Não, não é por aí.” E é muito interessante porque aqui foi completamente diferente. Vieram coisas, imagine, lembrar da avó Henriqueta, do avô João Leite, da bala de mel. Coisas que eu não tinha pensado em dizer. Talvez se eu tivesse um pouco mais de tempo para ir para Itapê, para pegar as fotografias também mais marcantes, podia ter trazido coisas também mais históricas mesmo, e que eu deixei de lado. Mas é muito interessante esse trabalho aqui.
P1 – Então é isso. Muito obrigada.
R – De nada, imagine, foi um prazer. Eu não sei se isso acontece, mas é impossível planejar.Recolher