Museu da Pessoa

A São Paulo da minha época...

autoria: Museu da Pessoa personagem: Walter Macedo

Projeto: Conte sua história 20 anos do Museu da Pessoa no Brasil
Entrevistado por Rosana Miziara, Olívia Paradas e Nádia Corsi
Depoimento de Valter Macedo
São Paulo, 22 de Março de 2012.
Realização Museu da Pessoa
Depoimento PCSH_HV329
Transcrito por Cristiana Sousa / MW Transcrições (Mariana Wolff)
Revisado por Paula Bonfatti e Teresa de Carvalho Magalhães


P/1 – Senhor Valter, vou começar pedindo para o senhor falar seu nome, local e data de nascimento.

R – Valter Macedo. Nasci na Rua Francisca Júlia, número 91, Santana, hoje é o bairro Santa Terezinha. A minha data de nascimento é quatro de agosto de 1934.


P/1 – O senhor é paulistano mesmo?

R – Paulistano mesmo.

P/1 – Os seus pais são de São Paulo?

R – Meu pai é de São Paulo, mas nasceu em São José do Rio Pardo e minha mãe nasceu em São Paulo, Lapa, capital.

P/1 – E seus avós?

R – Meus avós por parte de pai eram mineiros, Antônio dos Anjos Macedo e Mariquinha dos Anjos Macedo, e por parte de mãe espanhóis, vindos da Espanha em 1888 aproximadamente, Ramon Rojas e Encarnação Rojas. Vieram para o Brasil crianças, depois conheceram-se aqui, casaram-se e meu avô trabalhou na SPR, hoje é Santos – Jundiaí, São Paulo Railway.

P/1 – E seus avós, os dois maternos vieram da Espanha e vieram a se conhecer aqui no Brasil?

R – Vieram no mesmo navio.

P/1 – Ah!

R – Então, se conheceram praticamente

crianças e depois acabaram se encontrando mais tarde e se casando

P/1 – E seus avós paternos vieram para São Paulo?

R – Os paternos moraram em São José do Rio Pardo por muitos anos. Depois de um certo tempo o meu avô ficou viúvo e se mudou para Santos, e a vovó Mariquinha morava aqui em São Paulo, faleceu, e o resto da história dela eu não sei direito.

P/1 – Que atividades desenvolviam os paternos?

R – Meu avô paterno era, naquela época, guarda livros e a avó não, eram prendas domésticas e maternas. Meu avô Ramon era pintor de paredes, ele trabalhou na estação da Luz justamente em uma época em que incendiou a estação. Isso na outra vez, porque incendiou agora em mil novecentos e pouco também, mas foi na outra vez. Aí ele foi contratado e tem muita história deles, inclusive o primeiro vagão de madeira eu tenho uma foto.

P/1 – É mesmo?

R – É, a estação da Luz quando ainda tinha bonde a burro, tenho também uma foto e outras coisas mais, ele aposentou-se na SPR.

P/1 – E o seu avô guardador de livros? O senhor pode falar um pouco o que é esse ofício, guardador de livros?

R – É o contador hoje, era o guarda livros naquela época, hoje é o contador. Ele trabalhou, teve escritório em São José do Rio Pardo e depois com a idade parou de trabalhar, faleceu com noventa e seis anos de idade.

P/1 – Puxa!

R – Minha avó materna também, com noventa e seis.

P/1 – E você sabe como o seu pai e a sua mãe se conheceram?

R – Não sei, isso realmente não sei.

P/1 – Aí eles casaram e foram morar em Santana?

R – É, casaram-se e foram morar na Francisca Júlia. Nessa época ele já trabalhava na Gloriosa Força Pública que hoje é a Polícia Militar né, ele trabalhava no departamento de engenharia. Depois comprou um terreno na Rua Conselheiro Moreira de Barros, construiu uma casinha e nessa época ele trabalhava na escola de aspirantes a oficial da força pública, que são os cadetes né, no bairro de Barro Branco, lá perto de Tremembé. Ele trabalhava na engenharia e ele foi um dos mestres de obra daquele prédio. Tanto é que eu me lembro bem que o trenzinho da Cantareira passava em Santa Terezinha, saía da Rua Cantareira, passava em Santa Terezinha e ia pro Barro Branco que ia até a Cantareira mesmo né? Lembro-me ainda que quando o trem chegava na estação o maquinista apitava né, e ele descia as escadas da Rua Iguape, descia correndo e o trem parava no meio do caminho para ele subir. Eu sei porque várias vezes eu fui com ele (risos). A escadinha ainda existe até hoje, é pegada a Igreja Santa Terezinha, lá em Santana.

P/1 – O senhor tem mais irmãos, irmãs?

R – Eu tenho. O primeiro filho de Marçal, que era meu pai, e Olga, foi Décio, mas faleceu logo depois de nascer. Depois eu nasci e tive uma irmã quatro anos mais nova do que eu, Vilma Macedo, que depois casou-se também, teve filhos e depois faleceu. Interessante, o meu avô paterno faleceu, eu falei noventa mas não, agora que eu lembrei, ele faleceu com cento e dois anos, a mulher dele que faleceu com noventa e cinco, a vovó Mariquinha. Meu pai, filho do Antônio dos Anjos, faleceu com trinta e seis anos e minha irmã, a Vilma, com vinte e seis anos. Vê como não tem ligação nada, uma coisa com a outra não é?!

P/1 – É... E como é que era a casa, o senhor lembra da casa? Como que era, conta.

R – Lembro-me porque eu era criança mesmo e ajudava, meu pai fez um carrinho e eu ajudava. Enchia de areia, punha uma pá de areia e eu levava pro fundo e tal. Era um terreno de dez por vinte e oito aproximadamente, na Conselheiro Moreira de Barros, o número antigo acho que era cento e noventa e dois, hoje é mil duzentos e oitenta e quatro. A casa existe até hoje, está do jeitinho que ele construiu, até uns enfeites de gesso na frente estão preservados. Esses enfeites eu lembro-me bem quando ele fez e colocou lá. A casa foi construída aos poucos, tudo na base de mutirão, soldados da força pública e outros cabos, sargentos, que eles eram muito unidos naquela época, naquela época meu pai era cabo. Eles se reuniam aos sábados e domingos e faziam aquele mutirão para a construção. Ele fez uma casa com um porão, com dois quartos, sala, cozinha, banheiro e em cima mais a parte principal, que é ao nível da rua, um quarto, sala, cozinha, banheiro e uma saída pros fundos. Lá tinha um quintal, lá eles fizeram uma horta. Depois ele veio a falecer, eu tinha oito anos, aí eu praticamente nem conheci direito meu pai. Minha mãe sim, minha mãe faleceu com noventa e cinco anos.

P/1 – Como é que era a convivência na sua casa, quem que exercia a autoridade? Seu pai, sua mãe, pelo o que o senhor se lembra até ele ser vivo?

R – Tem um outro detalhe, quando o meu pai faleceu, se não me falha a memória, foi no mês de outubro de 1942. Em dezembro faleceu o meu avô, pai de minha mãe e minha avó ficou morando sozinha na Penha. E o que ela fez? Ela vendeu a casa lá e mudou-se com a minha mãe para Santa Terezinha, ficaram as duas morando juntas e uma ajudava a outra. A minha avó passou a receber uma pensão da SPR e minha mãe recebia uma pensão do Estado, da Força Pública. As duas se cotizavam tal, e foram vivendo. Mesmo assim, a minha mãe trabalhava para fora, eu lembro-me de uma ocasião, não lembro o nome da firma agora, ela costurou luvas, luvas eram costuradas a mão, era na Rua Consolação a fábrica e também ela pegava saquinhos para colar do Pudim Cabeça Branca (risos), que era ali na Avenida Tiradentes. Tinha o saquinho interno, que é daquele papel que não pega umidade, e o externo. Então, nós tínhamos uma missão, elas, eu e minha irmã, todos os dias tínhamos que dar uma parte daquilo pronto, senão não saia para brincar, não saia para nada. Era para ajudar no orçamento da casa, mas tudo isso foi alegria, foi bom, foi ensinamento.

P/1 – E educação religiosa? Você teve algum tipo de formação religiosa?

R – Sim, aquilo que eu lhe falei agora há pouco. Logo que meu pai faleceu, no mesmo ano, eles já haviam me colocado no Externato Santa Terezinha, hoje é Colégio Salesiano. O Externato Santa Terezinha era uma chácara que era chamada Chácara dos Padres, lá em Santa Terezinha, não sei se vocês conhecem o bairro?

P/1 – Conheço.

R – A Chácara dos Padres pertence ao Liceu Coração de Jesus, ao Salesiano. Então, essa chácara era para os alunos internos do Coração de Jesus, que naquela época também era separado. Não era unissex, era só homem, só masculino, e aos domingos eles levavam algumas classes de aluno para passar os domingos lá na chácara do Jóquei. Do Coração de Jesus até lá, devem dar uns quatro, cinco quilômetros. Então, eles iam a pé e voltavam a pé, todos fardados, com uma farda cáqui, porque tinha uma farda cáqui para dias comuns, todos os alunos do Salesiano eram iguais e a farda branca que era para dias de gala, dia de festividades. Eles iam a pé e voltavam a pé, marchando com uma fanfarra, tocando e tudo. Lá trocavam a roupa e ficavam à vontade. Tinha um grande salão onde eles faziam teatro, entre os alunos mesmo, tinham três campos de futebol, uma piscina, uma horta muito grande. É do Salesiano, ainda existe o colégio, só que está tudo modificado né, a igreja só que continua igual. Eles passavam o domingo ali e durante a semana era o externato onde nós estudávamos. Eu sempre fui católico apostólico romano, meus pais também, minha família toda e aí depois de certo tempo eles acharam que eu devia, eu até cito hoje que era um pouquinho modismo colocar os filhos em colégio interno. Não sei se vocês já ouviram falar nisso, teve uma época, lá pelos anos quarenta mais ou menos, que era bonito ter todos em colégio interno, então minha mãe me convenceu. Eu tinha uma certa vocação, achava bonito, achava bom, achava útil também e me colocaram em um colégio interno em Lorena, eu fiquei dois meses no Liceu Coração de Jesus, me embarcaram para Lorena, para Escola Agrícola São Vicente de Paula. Depois dali eu fui transferido para Lorena mesmo, pro Colégio São Joaquim e um ano depois me transferiram para Lavrinhas, pro Colégio São Manuel.

P/1 – Sempre em colégio interno?

R – Sempre em colégio interno. Fiquei aproximadamente três anos, três anos e meio só em colégio interno e só estudando e trabalhando.

P/1 – Que lembranças que você tem, como é que era a rotina?

R – Maravilhoso, pelo menos esse que eu estudei, o Colégio Salesiano foi muito bom para minha vida, foi ótimo mesmo e eu não sei, eu sou até suspeito a falar, mas eu admiro muito um padre, um correto, porque todo lugar tem também um safardana né? Um padre sabe um pouco de tudo, tudo que é área que você imagina, um padre sabe um pouco. Eles ensinam agricultura, eles ensinam tudo para gente. Foram anos muito bons, muita disciplina, só que naquela época ainda eles colocavam, não era lavagem cerebral, de jeito nenhum, mas era uma maneira que eles ensinavam para gente. Fora do colégio era um mundo e lá dentro era outro, e isso é lógico que uma criança de dez, doze, treze, catorze anos, assimila como sendo um fato e na realidade não é isso, graças à Deus. Depois de certo tempo, eu me dava bem lá e tudo, graças à Deus tinha boas notas. Ainda há pouco eu te falei de documentos que eu joguei fora, de slides, tudo. Eu tinha boletins mensais, fim de ano, não sei com o que eu me aborreci, rasguei tudo e joguei fora. Eram os boletins e graças à Deus todos eles eram ótimos, com louvor, tinha muita alegria disso e muito orgulho. Aí me aborreci no colégio e achei que não era para mim.

P/1 – Por que você se aborreceu? O quê te aborreceu?

R – Celibato, eu achei que não dava para mim, eu sentia coisas fora do normal (risos) e falei: “Não, acho que é melhor lá fora” e não que eu tivesse aborrecimento com os Salesianos, com os padres, ótimos professores, ótimos amigos, mas eu achei que celibatário, até hoje eu combato isso, sempre achei que o catolicismo perdeu muito com isso. Se a gente lê a história, nós tivemos papas guerreiros, papas com sete, quinze, oito mulheres, sei lá, não conheço bem a história, mas um pouco que eu li existe isso. Por que agora o padre não pode casar? Eu comento até com todos, o padre não pode casar, ele bebe bem, come bem, dorme bem, é inteligente, tem uma saúde de ferro, porque o padre em geral não bebe cachaça, ele bebe um vinho do bom, nem que não seja o dele, dos amigos, dos religiosos, eles vão jantar em lugares bons, é um touro, correto? Não é um pingaiada da vida aí que tem quatro, cinco filhos e abandona. Um padre seria, para mim, no meu modo de ver, um ótimo chefe de família, entende? Não estou dizendo que todos, mas acho que a maior parte seria um ótimo chefe de família. Mediante a isso eu saí.

P/1 – Com quantos anos o senhor saiu?

R – Eu saí de lá com catorze anos. Saí, um mês depois já estava trabalhando, minha mãe já arrumou um serviço para mim. Eu lembro-me até hoje, era a Ótica Foto Central, na Avenida São João, número quarenta e cinco. Era embaixo onde era o Snooker Taco de Ouro, pertinho do Banco do Estado, aquele prédio em frente do Banco do Brasil, eu vi construir desde o alicerce. Trabalhei ali e como eu te falei antes, dez meses, onze meses, conforme a época eles mandavam a gente embora para não passar de um ano. Se passasse de um ano criava, naquela época eu não sei que título eles davam, uma certa estabilidade que não poderia dispensar mais o funcionário, aí eles eram obrigados a arcar com o pagamento durante o serviço militar. Então, de catorze a dezoito anos era um sofrimento, enquanto não se liberava do serviço militar era ali, aqui, acolá, tanto é que eu trabalhei em uns oito serviços. Eu chegava em casa e: “Fui mandado embora” (risos), mas só que tinha uma coisa, você saía de uma firma e se você batesse na firma do lado tinha emprego.

P/1 – Mas o senhor continuou estudando ou não?

R – Bom, voltando ao assunto do emprego. Então, eu trabalhei ali, trabalhei depois no Michael Eça de Salum que fica na Rua Pajé, número trinta e três, terceiro andar, sala trinta e três. Depois trabalhei no Clube de Regatas Tietê, produtos Contact, e por fim, tem mais uma firma aí… Ah, Serraria Queiroz, depois eu acabei trabalhando no Jóquei Clube de São Paulo. Aí eu fiz um curso de enfermagem.

P/1 – A gente vai chegar aí, deixa eu só voltar um pouquinho lá para trás. O senhor quando começou a trabalhar com catorze anos parou de estudar?

R – Parei.

P/1 – Aí não estudou mais?

R – Não tinha condições financeiras, os colégios eram caros.

P/1 – Entendi. O senhor lembra das brincadeiras de infância?

R – Nossa Senhora, de todas. Ainda ontem rasguei uns papéis que eu tenho lá, que eu fiz, mas eu li em um e-mail todas essas brincadeiras, então acabei desprezando porque todo mundo conhece. Hoje em dia se você conta pros jovens, eles vão dizer que a gente era mariquinha e não era nada disso (risos). A gente brincava muito com as meninas na rua e eram brincadeiras de passa anel, de roda cantando, os meninos tinham uma brincadeira também que era uma lata de óleo que a gente furava na frente, enchia de gravetos, punha fogo e era uma lanterna. Bola também, futebol, bolinha de gude, tinha um triângulo e a gente jogava a bolinha no triângulo, tinha outro que eram buraquinhos, eram cinco, seis buraquinhos. Um monte de brincadeiras, mas essas brincadeiras estão todas em e-mail já, e o que mais? Ah, e de correr né, pique, pega-pega, aquela boca do forno, tudo isso. À noite a gente saía, a gente era abusado, a molecada, isso já com catorze, quinze, dezesseis anos, a gente saía e ia brincar na linha do trem com essas tais “lanternas” porque era escuro toda a vida, onde passava o trem da Cantareira né? Depois teve uma ocasião, porque ali existia a Chácara dos Padres e a Chácara das Freiras, que era em cima na Conselheiro Moreira de Barros, que pegava desde a Rua dos Peregrinos até o Lauzane Paulista e o Mandaqui, era uma Chácara só, de umas irmãs de caridade e era toda cercada. Ali a gente entrava para roubar umas frutas, pêra, caqui, o que aparecia a gente pegava. Aí depois venderam essa chácara, lotearam, hoje é o bairro Santa Terezinha, mas antes de lotear, tinha na esquina ali da Peregrinos com a Conselheiro Moreira de Barros, ali era exatamente a divisa onde começava a Estrada do Bispo, que ia lá para Cachoeirinha. Naquele terreno, iam circos ótimos ali, então a gente se divertia muito com o circo porque só tinha um cinema em Santana, que era o Cine Hollywood. Primeiro o Colon, depois o Hollywood, mas era muito difícil para gente ir em cinema porque era caro, precisava ir de terno e gravata, era complicado, então a gente ia mais no circo. Aí depois com mais idade, chegou a época dos bailinhos, das matinês, carnaval, minha mãe em todo carnaval, desde que éramos pequenos, sempre nos fantasiava.

P/1 – Você lembra das fantasias que você usava?

R – Lembro.

P/1 – Do que era?

R – Ah! Ainda no outro dia eu passei pro Facebook algumas. Minha irmã de holandesa, se não me engano, e eu acho que de turco (risos), vai ver que é por causa do meu nariz. Umas primas maiores de idade nos levavam nos bailes das matinês em um clube em Santana, na Alfredo Pujol. Chamava-se Tatu Clube e era uma farra, uma diversão, mas era um carnaval diferente, um carnaval santo (risos). Não tinha bagunça, não tinha droga, não tinha briga, nada disso. Era confete, serpentina e a lança perfume que praticamente toda criança, que os pais acabavam comparando pelo menos uma lança perfume, que era o brinquedo da época, e confete e serpentina que depois de um tempo começaram a aparecer outros objetos até mais agressivos, aquela época era só isso. Ah, e tinha os Cordões de Rua, os Cordões eram maravilhosos. Inclusive, o principal era na Avenida São João. O povo todinho saía dos bairros, de toda a periferia, porque naquela época os bairros também eram pouco, eram Brás, Lapa, Pinheiros, Santana, Vila Mariana, depois virou subdistrito e hoje é esse colosso que a gente conhece, mas o carnaval de rua era muito bom. Os bairros também faziam concursos né, faziam aqueles desfiles, todo mundo fantasiado, brincando, era uma brincadeira sadia do povo, não tinha maldade, nada disso. Sempre tinha um pingaiada (risos), isso é normal né?

P/1 – E os bailinhos onde é que eram?

R – Aí os bailinhos já com mais idade, com dezesseis, dezessete, dezoito anos. Sempre algum dos amigos tinha uma casa com uma sala maior, então colocava lá uma vitrola, naquela época começou a ser lançado o vinil né, antes tinha aquele acetato, que eram duas músicas, uma de cada lado, depois foi lançado o vinil. Aí a gente ia pros bailes para dançar, Fox, Foxtrot, Valsa, alguns eram metidos a dançar Tango, essa músicas mais antigas.

P/1 – Você gostava de dançar?

R – Eu sempre gostei muito, eu e minha esposa. Aí chegou a época dos boleros, aí então a gente se deliciava com os boleros e meus tios mais idosos, eles gostavam de Valsa, de Maxixe, aquelas danças antigas né? Então eles falavam que a gente era tudo viadinho, tudo isso aí é viadinho dançando Bolero (risos) e o Bolero era a dança da moda. É como hoje eu vejo essas danças modernas aí, até o Rock eu aceitei, depois dali já comecei a achar esquisito, pela idade, é lógico, é da moda, só que não entra na cabeça, quer dizer, não é que não entra na cabeça, eu aceito, tudo bem, a juventude tem seus direitos, mas eu participar? De jeito algum! Antes a gente dançava agarradinho, com o rosto colado, hoje não, hoje é cada um para um lado, sei lá, vocês conhecem mais do que eu, eu não aceito esse tipo de baile. Naquela época mesmo, o que existia de bom mesmo em relação a baile, eram os bailes de formatura. Não existia um colégio, uma faculdade que não fizesse um belo baile de formatura. Nós tínhamos vários salões, um dos principais era o Clube Homs, na Paulista, que tem até hoje. Tinha o Trocadero, depois fizeram o CMTC Clube no Ibirapuera, o Floresta também tinha um salão muito pequeno, mas também tinha. O Tietê tinha um ginásio também, aí quatrocentas pessoas, existe até hoje e outros clubes mais. Os bailes de formatura eram muito bons.

P/1 – O senhor lembra de alguma música que tenha marcado o senhor?

R – Ah, muitas! Voltando um pouquinho pros bailes de formatura, era obrigatório ter convite (risos), então você não conseguia convite de todos colégios. O que a gente fazia? Eu não tinha smoking, eu tinha summer, você já ouviu falar né?

P/1 – Não.

R – É a calça preta e o paletó branco, hoje parece garçom (risos). Então, tinha summer e a gravata borboleta, então, eu embrulhava o paletó, ia com a camisa sem a gravata e pegava o bonde para Avenida Paulista. Descia ali atrás daqueles salões e ia atrás de alguma árvore ali escondido (risos), punha o summer, a gravata, atravessa e ficava na porta do salão. Aí quando parava um carro com os pais da formanda, aí você se dava bem, marmanjo, tchau. Quando era uma moça a gente chegava perto: “O senhor me daria licença de conversar? Eu esqueci meu convite em casa, podia fazer um favor de deixar entrar com vocês? Desculpe, a formanda eu não conheço mas conheço o pessoal do colégio...”. Tudo mentira (risos), sempre arrumava algum bonzinho que: “Não, não, vamos embora!”, tinha convite sobrando né, e a gente entrava dessa maneira. Aí dentro do salão, é lógico, tudo duro, pobre (risos), não tinha mesa, não tinha nada né, ficava em volta e tal, ficava paquerando a moça. Aí quando elas davam um sinal de que iam aceitar dançar, a gente ia na mesa e pedia licença pros pais: “Posso dançar com a jovem?”. Não falava filha porque de repente era tia né?, “Posso pedir para jovem dançar?”, aí eles permitiam e a gente saía dançando. Era um sacrifício (risos) porque os vestido eram longos e tinha a roda de arame em baixo, no meio, em cima, a gente tropeçava no arame (risos) e não podia colar o rosto quase. Era meio a distância, mas mesmo assim a gente se dava bem e aí quando a moça dançava bem e gostava de dançar com a gente, aí a gente ficava repetitivo né? Quando não, a gente deixava de lado. A gente tinha muito cuidado em tirar uma moça para não ser desprezado, ser desprezado acho que até hoje, chama-se tábua, “Levou a tábua” (risos), aí os colegas ficavam tirando sarro da gente, caçoando né, então a gente tinha muito cuidado. Naquela época uma grande orquestra que, por coincidência, depois o maestro era irmão de um vizinho da minha esposa Terezinha, ali no Ipiranga, era o Osmar Milani, mas a principal orquestra era o Silvio Mazzuca. O Silvio Mazzuca pegava trechos de óperas e transformava em Samba, em Bolero, era uma maravilha. Então eram eles dois, Orlando Ferre, vários conjuntos, tinham alguns que vinham do Rio, a maioria era de São Paulo, mas muitos vinham do Rio, boas orquestras, eram orquestras mesmo! Cada um inventava uma maneira diferente de tocar, cada um inventava um modo de alegrar o povo, mas eram bailes maravilhosos. A bebida da gente era o mais barato, era… eu não lembro, aquela bebida verde, é bitter… era gin-tônica, só que o gin-tônica já era um pouco mais caro, então a gente sempre tomava alguma coisa mais em conta, mas a gente não saía embriagado. Alguns lá ficavam mais alegrões, mas de um modo geral não.

P/1 – Tinha alguma música que te marcou e que você saiba cantar?

R – Não, se eu cantar eu desafino uma orquestra inteira (risos), nem na quarta voz. Agora, música eu adoro. Tanto é que por coincidência meus filhos neste natal me deram um presente que eu adorei, me deram um ingresso para assistir o André Rieu que virá aqui em Maio, se não me engano. Eles foram um dos primeiros a comprar o ingresso para mim e para minha esposa Terezinha. Agora, músicas tem milhões, nossa, tem música que não acaba mais. Como eu te falei, eu cheguei a ter dois mil e quinhentos discos daqueles de duas músicas, tinha mais ou menos oitocentos LPs, vendi seiscentos e ainda tenho uns trezentos em casa e não tem onde guardar, não tem onde pôr. Agora, o que eu tenho também é uma coleção de livros lá, que se até alguns interessar para vocês eu posso trazê-los, livros que eu não uso mais, falando de comércio, coisas assim. Músicas até hoje eu gosto, eu adoro música.

P/1 – O senhor lembra da sua primeira namorada?

R – Na realidade a minha primeira namorada mesmo é a minha esposa, foi praticamente só ela. Teve um flerte com uma, com outra, mas namorada mesmo, fixa, foi só ela.

P/1 – E quando você conheceu ela?

R – Eu conheci ela em minha casa, ela foi nos visitar com a família porque a minha esposa é minha sobrinha, meu sogro é meu irmão, a minha sogra é a minha cunhada (risos), já entendeu?

P/1 – Não (risos).

R – Meu cunhado é meu sobrinho, a minha esposa é a minha sobrinha também. É o seguinte, deixa eu simplificar senão vai alongar muito.

P/1 – Conta com quantos anos também (risos).

R – É que minha mãe casou-se em segundas núpcias, ela era viúva de Marçaal Macedo e casou-se com Anacleto Silva. Anacleto Silva tinha alguns filhos, entre eles Mário Silva e o Mário foi com a Eni nos visitar em Santa Terezinha e levou os filhos que eram: a Terezinha, a Margarida e Paulo, ali eu conheci a família. Na hora que eles iam embora, eram umas nove e meia, dez horas, eu estava de saída para ir para um baile de carnaval no Tietê. Eu não estava fantasiado nem nada, mas estava com uma camisa esporte, lança perfume, confetes e essas coisas eu comparava no salão quando eu queria. Então saí junto com eles, pegamos o ônibus ali em Santa Terezinha, eu desci na porta do Tietê, porque o ônibus ia até a Cásper Líbero, onde era a Rádio Gazeta, e dali eles iam embora para o Ipiranga, onde eles moravam. Eu desci no Tietê e ficamos nos conhecendo e eu queria conhecê-los melhor. Eles moravam no Ipiranga, em uma travessa da Dom Pedro, na Rua Jorge Moreira, então eu inventei de ensinar o irmãozinho delas a jogar dominó, eu queria vê-las. Aí fui para lá e passei o dia com eles, fiquei conhecendo bem e comecei a namorar a Terezinha.

P/1 – Quantos anos você tinha?

R – Eu tinha de dezoito para dezenove anos. Aí em outro dia eu fui para lá, fiquei com eles o dia todo e depois de um ano mais ou menos de namoro, mais ou menos, mas era só flerte, ia uma vez ou outra. A Terezinha tem uma prima-irmã que era maestrina e solista de piano e naquela época ela também dançava música espanhola e flamenco, e teve um show na Rádio Cultura, não era televisão, na Avenida São João, e eu fui assistir com elas e na volta nos apresentamos como namorados oficiais. Aí chegando em casa eu falei para o meu irmão que eu queria namorar a minha sobrinha (risos), falei pro meu sogro né, futuro sogro. Eles aceitaram e aí comecei a namorar. Entre namoro e noivado foram três anos, eu fiz o serviço militar e depois nos casamos. Nos casamos no dia sete de setembro de 1957, fazem cinquenta e quatro anos, oito meses e alguns dias. Agora em setembro completaremos cinquenta e cinco anos de casados, as bodas de ouro já foram feitas, fizemos um almoço e uma missa.

P/1 – Nesse período todo o senhor já trabalhava? Começou com catorze e não parou mais?

R – Sim, nessa época eu já tinha um emprego muito bom.

P/1 – Esse era do Jóquei já, não?

R – Não, antes eu trabalhei na Duperial.

P/1 – E como é que foi lá?

R – Além de trabalhar na Duperial eu já tinha um bico no Mappin, porque a Duperial era no sétimo andar do prédio onde era o Mappin antigamente. Hoje é Casas Bahia, parece, em frente ao Teatro Municipal. Eu trabalhava ali e jogava bola ao cesto, basquetebol, então eu fui convidado pelo Mappin para jogar para eles, ganhando um cachê, mas não era registrado nem nada porque era um time do Palmeiras que jogava ali pro Mappin, e eu também fui jogar para eles. Eu não era craque, mas dava as minhas cacetadas. A Duperial tinha um time de basquete muito bom, jogava até um rapaz que foi campeão mundial, o João Marque Neto, outro que era pai do Cadu, um rapaz também que jogava com a gente, era um time muito bom. Nós fomos campeões do SESC por oito anos seguidos, de todas as chaves, e o Campeonato da Gazeta Esportiva nós ganhamos também, um dois ou três. Aí eu comecei, além de jogar, a apitar jogos também, depois de casado eu continuei apitando jogos.

TROCA DE FITA

R – A Duperial eram firmas que eram unidas, eram Imperial Indústrias Químicas e DuPont do Brasil. A DuPont até hoje…

P/1 – De reló...

R – Não, fabrica de dinamite, fio de condução, é uma química. Aí eles separaram-se, a DuPont tem fábrica de explosivos até hoje, ali perto de Santo André, como é que é? Guarapuava, não, me foge o nome. Eu sei que de vez em quando uma perua me levava lá para pegar documentos, trazer de volta, porque eu comecei nessa firma, Duperial, como office boy, depois fui promovido, passei a ser arquivista e sempre jogando bola com a turma. Tinha um fato interessante ali, além do ordenado eu ganhava um dinheirinho bom. Na hora do almoço todo mundo saía para almoçar, era uma hora de almoço, eu não ia almoçar, eu saía da firma ali, da praça Ramos, corria até a 25 de Março. A 25 de Março tinha movimento, mas não que nem hoje que é essa loucura, e naquela época saíram umas giletes, chamavam Wilkinson, uma gilete comum fazia duas barbas e jogava no lixo, essa Wilkinson fazia oito, dez barbas, então valia a pena, era um pouco mais cara mas valia a pena. Eu trazia caixas e caixas de gilete e vendia pro pessoal da Duperial, pros funcionários, empregados, porque o nosso escritório era o sétimo andar inteirinho, devia ter uns oitenta funcionários só ali. Então uma vez por semana eu ia lá buscar gilete, quando chegava acabava com tudo. Eu sempre fui cavador com essas coisas, nunca fiquei dependendo só do salário. Aí depois eu comecei a vender meias Aço, não sei se você já ouviu falar?

P/1 – Já.

R – A Aço e depois saiu meia Acinho, aqui na Lapa, e acabei fazendo amizade com o filho do dono, Sérgio, e ele me fornecia as meias. Às vezes mandava levar lá na Duperial, também, chegava aquelas caixas de meias e na mesma hora acabava tudo (risos), foi uma época boa. Na Duperial tinha esse time de basquete e os rapazes que jogavam eram todos mais idosos do que eu, que nem o Zezinho, o Zé Marque, o Dado, agora lembrei o nome, o pai do Cadu é o Dado, todos eles já eram bem mais idosos, Moacyr. O Moacyr jogava no Palmeiras, tudo profissional de basquete na época, de bola ao cesto, mas profissional que naquela época não ganhava nada não, a gente só tinha o calção e a camisa e o resto a gente comprava tudo, meia, tênis, eles não forneciam nada para gente, o esporte amador sempre foi desprestigiado. Aí eu passei a tomar conta do time, eu que organizava, eu ia fazer as inscrições no SESC, voltava, cuidava dos uniformes, mandava lavar, eu fiquei sendo gerente da equipe e íamos jogar. Aí sempre alguém tinha um carro, a gente ia de carro, voltava de carro, foi uma época muito boa, fiz muitos conhecidos. Aí me animei e fui fazer um curso de árbitro, nós jogávamos também em uma equipe que era na Rua São Caetano, que era o Mauá Star Clube e o diretor do time, o diretor e o dono, seu Deoclides Mendes Ferreira era professor de árbitros. Ele sempre foi ligado a Federação Paulista de Basquete e ao SESC, aí um dia, eu apitava os jogos do primeiro time, eu jogava no segundo e apitava o do primeiro, tinham jogos muito bons, eram todas equipes boas. Aí eu apitava, fui aprendendo, e ele me convidou para fazer o curso. Eu fiz o curso, eu com vinte anos de idade já era juiz de basquetebol, tenho diploma até hoje, eu fiz o juiz mais novo que teve na Federação Paulista.

P/1 – Que jogos você apitou?

R – Ah apitei muitos, Campeonato Paulista, alguns jogos, jogos abertos no interior foram um monte, não lembro em quantas cidades eu fui. Inclusive uma delas, até eu tenho um aborrecimento hoje, foi em Ribeirão Preto, inauguração do Ginásio Cava do Bosque, foi um jogo que se fez entre o Paulistano e a Seleção de Ribeirão Preto. Há pouco tempo eles completaram cinquenta anos de fundação do ginásio e a prefeitura, os vereadores, tinham decidido dar uma lembrança, fazer uma festa para todos que ainda estão vivos e que participaram daquela época e aí por fim o prefeito cortou tudo. O prefeito é esse ministro que roubou e que o empregado o acusou, bom, não lembro. Acabou que não ganhamos essa lembrança, esse prêmio. No interior apitei jogos paulistas, universitário também, em várias cidades. Apitei jogos do Campeonato Paulista e naquela época tinham muitos jogos, não vou recordar de todos, era MackMed, Mackenzie Medicina, tinha um outro que era Faculdade de Engenharia ali na Tiradentes com outras faculdades, era uma disputa entre eles e depois os campeões iam fazer a final no Pacaembu, no ginásio do Pacaembu que era um dos melhores na ocasião. Depois é que apareceu o Sírio, o Tênis Clube, mas o Pacaembu era o melhor ginásio e o do Ibirapuera nem existia, depois é que veio o do Ibirapuera. Eu apitei muitos jogos, ganhei muito dinheiro com isso.

P/1 – Você apitava jogos e continuava trabalhando?

R – Antes disso eu saí da Duperial, saía porque eu era para ser promovido a vendedor de explosivos e era a mesma coisa que receber o dinheiro e mais nada, era só anotar pedido. Não sei o que houve lá que a diretoria resolveu dar o cargo que seria para mim para outra pessoa, o outro ficou feliz e eu me aborreci. Eu tinha um capitalzinho guardado, com aquele dinheirinho todo que eu guardava, eu então comprei um armazém, em Santa Terezinha, na Rua Itaici, número dezesseis. Um detalhe, aquele dinheiro que eu vendia aqueles artigos todos, eu dobrava as notas e guardava em caixas de fósforo e depois deixava na gaveta, não fechava a gaveta, nunca mexeram em nada, nem os faxineiros, nada, nunca. Quando eu peguei o meu dinheirinho estava tudo guardado ali, não tinha conta em banco, abrir conta em banco aquela época é...

P/1 – Tudo em caixinha de fósforo?

R – Todo dobradinho em caixinha de fósforo, um monte (risos). Eu não fumava, eu pegava a caixa dos outros. Nunca fumei, graças a Deus. Aí abri um armazém, quando acabei de abrir o armazém, oito meses depois, quase um ano depois, o senhor Jânio da Silva Quadros, foi um prefeito de São Paulo, Deus que o tenha em um mau lugar (risos), ele tirou uma feira que existia na porta do armazém as terças e sábados. Essa feira era uma feira grande, até hoje é, só que não é mais na Rua Itaici, é na Rua Marechal Hermes da Fonseca, que é pertinho da escola de aprendiz de oficiais do exército. Ele tirou a feira dali e para mim foi um prejuízo muito grande porque as feiras de terça-feira eram normais, então eu dava para eles aperitivos, vinho que eu comparava em Caldas, é uma cidadezinha perto de Poços de Caldas, vai ver que vocês conhecem, um vinho muito bom, um vinho do Serrano, vinho Adamastor, que eu mesmo engarrafava. Eu dava vinho para eles e cachaça, cachaça que eu ia buscar na Dutra, agora é represa, alagaram a cidade, depois eu lembro. Eles em compensação quando terminava a feira, um queijo daqueles grandes faixa azul, sobrava um pouquinho menos de um quarto, eles não levavam embora, eles davam para mim. Eles cortavam um presunto, sobrava um pedaço, eles davam para mim. Sobrava meio quilo, um quilo de linguiça, eles não levavam, ficava tudo comigo, eu tinha um lucro fabuloso com isso. Verduras e legumes, eles iam no meu quintal, eles precisavam dos caixotes, deixavam tudo separado em um cimentado que eu tinha. Eu recolhia tudo, lavava direitinho, vendia pros fregueses ali e se custasse um real na feira, eu vendia por dez centavos, só para desencalhar. Para mim era lucro livre, não me dava trabalho nenhum. Então ali eu vendia vinho engarrafado por mim, cachaça engarrafada por mim, carvão ensacado por nós, tinha empregado e tudo e tinha um porão que eu alugava para um artista de circo, de teatro, era o Mori, ele era da dupla Anqui e Mori, era o Anquito e ele. Ele morou ali e me ajudava a pagar aluguel e tudo, então quando eu casei eu mudei para lá e já apitava jogos. Então eu trabalhava de dia no armazém, descansava um pouco de manhã, a Terezinha ficava no balcão, quando era lá pelas dez horas eu assumia e de tarde, seis horas, seis e meia, saía para apitar jogos e depois voltava de madrugada.

P/1 – O senhor já tinha filhos nessa época?

R – Não, nossos filhos nasceram depois. Quando já tínhamos três anos de casados nasceu o primeiro filho, aí já nasceu no Ipiranga porque aí eu tive que fechar o armazém, baixei as portas para não ir a falência.

P/1 – Por quê?

R –

Porque não tinha mais capital para girar, perdi freguesia, não tinha como ganhar dinheiro mais. Uma outra coisa que o Jânio fez, que eu ia esquecendo desse detalhe importante, todas as principais praças públicas do bairro ele mandou montar tudo com o dinheiro da prefeitura, umas barracas de madeira e lona, chamava-se Coap e nessas barracas eles vendiam, arroz, feijão, batata, tudo, inclusive bebidas, só que as bebidas sem gelo. Então digamos eu vendia uma cerveja no armazém ou gelada ou sem gelo, no dinheiro de hoje vamos dizer quatro, ou cinco reais, aproximadamente. Lá naquele depósito eles comparavam com abatimento, com um preço melhor do que as fábricas vendiam para nós porque eles tiravam os impostos e vendiam por dois reais. Quem ia comprar cerveja de nós? Ninguém. Arroz, feijão, custa dois reais o quilo? Eles vendiam por um real e vinte, só que o deles era tudo a dinheiro e nosso era tudo marcado na caderneta para pagar tudo no final do mês. Chegou uma época que os clientes pediam dinheiro emprestado para nós, a gente emprestava sempre, para ir comprar lá na Coap, porque ele montou as barracas por conta da prefeitura, não pagava imposto nenhum, não pagava aluguel, luz e água de graça, ele mandava ligar a luz e a água e ninguém pagava nada! Isso tudo era campanha para governador e presidente da República, mas na época ninguém imaginava. Depois é que foram ver, política é sempre assim, depois que você vai descobrir o que aconteceu. Isso aí prejudicou muitos comerciantes, até hoje tem uma padaria lá que é dos mesmos proprietários, padaria Magda, esse homem sofreu também e quase fechou a padaria de tanto que o Jânio prejudicou o povo todo com esse negócio da Coap. Aí eu saí de lá e um primo meu, tinha um primo que era veterinário, Doutor José Torre Hojas e me arrumou um serviço no Jóquei Clube, aí eu me mudei pro Ipiranga, para casa do meu sogro. Eu não tinha casa, eu não tinha onde morar e com minha mãe já morava a minha avó e minha irmã, que havia se casado e morava também com a minha mãe, então não tinha lugar para mim. Então me mudei pro Ipiranga, continuei apitando jogos e trabalhando no Jóquei, só que para mim era difícil porque eu entrava no Jóquei às seis horas da manhã, apitava jogos até vinte e três horas, chegava em casa meia noite, saía de casa às quatro e meia para entrar no Jóquei às seis. Era uma correria e não tinha ônibus, só bonde. Os poucos ônibus que tinham, que saíam do Anhangabaú, as passagens eram muito caras e eram de hora em hora, só tinha que pegar o bonde mesmo. Descia no Largo de Pinheiros, não sei se vocês conhecem? E do Largo de Pinheiros ia até o Jóquei bater o cartão aqui em baixo, depois lá para Raia na Cidade Jardim. Tudo a pé, a pé e no trote porque senão não dava tempo. Aí no Jóquei eu fui bem, continuei com os meus trambiques (risos). Eu morava no Ipiranga e ali tem a fábrica de chapéus Ramenzoni e vizinho nosso era um rapaz que era gerente lá, então ele me vendia chapéus com defeito, mas defeito imperceptível, você pegava, olhava, e não achava nada e naquela época todo mundo usava chapéu, todos.

P/1 – No Jóquei né?!

R – Não, no Brasil...

P/1 – Era moda?

R – No mundo. No Brasil principalmente, todos usavam. Tem fotos que não tem uma pessoa sem chapéu e guarda-chuva, não tem, não existe. Eu levava duas caixas de chapéu, chegava na portaria e quando chegava acabava na hora. Não tinha carro, não tinha como alugar um carro porque era muito caro, então era todo dia carregando chapéu. Aí continuei trabalhando no Jóquei e depois de um certo tempo eu tive essa chance, fiz o curso de enfermagem na USP, aqui nas Clínicas.

P/1 – Antes desse curso você fazia o que no Jóquei?

R – No Jóquei já no serviço veterinário porque eu já estava fazendo o curso de Enfermagem na USP, então já comecei a trabalhar como enfermeiro veterinário. Depois, fiz aquele cursinho que eu te falei, que o presidente do Jóquei exigiu, e quem me arrumou tudo foi o Doutor Adelino de Almeida Prado, irmão do presidente, e quem me colocou depois para morar na chácara, quem arrumou tudo, foi o Doutor Fernando Pereira Lima, que era muito amigo do nosso diretor, professor da Faculdade de Engenharia, Doutor Marcelo Moura Campos. Aí continuei trabalhando no Jóquei e acabei arrumando uma casa para morar na Vila Sônia, me mudei de lá para cá, nessas alturas já tinham nascido os dois filhos. Nasceram na Maternidade do SESC, na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, que era o Hospital João Daudt Oliveira, que hoje tem um outro nome, no Jardim Paulista. Aí me mudei para Vila Sônia, fiquei um ano e meio pagando aluguel, depois consegui uma casa na Chácara do Jóquei, por intermédio do Doutor Fernando Pereira Lima, e aí morei vinte anos na casa da Chácara do Jóquei Clube de São Paulo até me aposentar. Me aposentei por conveniência, me aposentei moço, mas porque naquela época da Ditadura o Governo começou a ameaçar que a gente só poderia se aposentar com sessenta anos, e aquelas leis todas, e eu tinha estabilidade, depois acabou a estabilidade e passou a ser fundo de garantia, uma coisa assim. Eu tinha estabilidade, então fiz um acordo com o Jóquei e me aposentei, comprei uma casa na Vila Sônia mesmo, onde eu moro hoje, e estamos felizes até hoje.

P/1 – No Jóquei você já trabalhava na área veterinária antes de concluir esse curso na Universidade de São Paulo, de enfermagem? O que você fazia?

R – Enfermeiro veterinário.

P/1 – Mas desde o começo?

R – Desde o começo, desde o primeiro dia em que eu entrei lá porque eu já tinha feito o curso.

P/1 – Você cuidava dos cavalos?

R – Só dos cavalos.

P/1 – Como é que era, o que você fazia?

R – Maravilhoso, eu adorava. Adoro cavalinho até hoje, cachorro é bom na casa dos outros, cachorro e gato, na minha não (risos). Cavalo é uma maravilha, um espetáculo! Eu fazia tudo com os cavalos, eu trabalhei em todos os setores ali, graças a Deus. Inclusive, tem um carrinho ali, que depois que derruba o cavalo para cirurgia, os veterinários lá bolaram fazer um carrinho, aquele carrinho quem montou ele no fim fui eu. Eu fui comprar as rodas na Rua Francisco de Abreu aí os carpinteiros que fizeram, mas muitas ideias foram minhas. Eu trabalhei na Chácara do Jóquei quando me mudei para, porque antes eu trabalhava na Raia e quando saía da Raia, às nove horas, eu passava no serviço veterinário, pegava o material para colher sangue, para fazer curativos e ia para a Chácara do Jóquei, lá no Ferreira. Uma peruazinha do Jóquei me levava, eu chegava lá nove e meia, dez horas, ficava até meio dia, meio dia e meio, aí o motorista ficava me esperando, fazia tudo o que tinha que fazer e o que dava tempo. Olhava a boca dos cavalos, extraía dente, grosava, fazia o que tinha que fazer, tirava sangue, curativos, alguns ultrassons também e aí descia pro Jóquei. Aí descia pro Jóquei e já era uma hora, eu saía do serviço à uma hora, entrava às seis e saía à uma. Aí eu ia para casa, almoçava, comia alguma coisa e dormia seis, sete horas da noite para depois à noite apitar os jogos. Então, me mudei para Chácara, passei a trabalhar só na Chácara. Saí da Raia, não trabalhei mais nas raias, nem nas corridas, porque a gente fazia plantão também nas corridas, como eventuais, para reforçar o salário, e nas corridas era complicado porque não podia faltar. Se faltasse perdia a vaga e entrava o último da fila e você tinha que esperar novamente uma outra vaga, que era muito concorrido aquele serviço porque eram plantões bem pagos, uma chega muito boa. Tanto é que muita gente mobiliou a casa com o dinheiro das corridas, com o dinheiro desses plantões. Aí trabalhando nas corridas estava bem, estava ganhando bem, já tinha um ordenado bom, depois nas corridas ganhando aquele plantão foi melhorando. Quando de repente quem aparece nas corridas? Jânio da Silva Quadros, o mesmo que tirou a feira lá, aí ele já era governador, acabou com as corridas, atrasou corrida de cavalos duzentos anos no Brasil. Ele foi um dos que acabou com a corrida de cavalo no Brasil.

P/1 – Por quê ele acabou?

R – Porque ele proibiu corrida, não podia correr mais, só aos domingos. Tinha corrida na sexta, no sábado, no domingo, na segunda. Tinha São Vicente, tinha Campinas, Paraná, um monte. O Jóquei Clube de São Paulo só podia ter corrida aos domingos, aí não dava, o Jóquei Clube começou a perder dinheiro, a mandar funcionário embora, funcionários que tinham comprado objetos à prestação tiveram que devolver. O Jânio Quadros outra vez no meu caminho (risos). Vocês acho que não lembram, vocês são muito jovens, até a roupa nossa, ele queria que todo mundo usasse roupa igual, uma roupa que ele inventou que chamava-se Slack, uma calça de boca larga, um blusão de mangas curtas com um botão na frente e todos de uma cor só, cáqui. Ele queria que todo o povo usasse só isso. Mulher do seu jeito assim, prendia, ia para cadeia (risos). Maiô ele queria que usasse até aqui, nas mulheres, nossa ele inventou cada coisa, esse homem, vocês não imaginam, foi terrível! Aí na Presidência da República, depois de sete meses, tiraram ele de lá, aí graças a Deus nos livramos, mas aí veio a Ditadura, aí vocês sabem tanto quanto eu. Aliás, na Ditadura eu não tenho queixas, para mim foi uma época espetacular, trocava de carro todo ano, comprei terreno, comprei casa, construí uma outra, tinha dinheiro guardado, eu tinha um carro, minha esposa tinha outro, meu filho tinha outro, ganhava-se dinheiro. Mataram gente, mataram quem? Mataram bandido, quem está no Governo hoje? Quem combateu a Ditadura, Lula e Sarney, é essa turma. Sarney é dono de metade do nordeste, ele e a família dele, são eles que estão no Governo hoje. Palocci, aquele prefeito de Ribeirão Preto que eu falei, que cortou de dar uma medalha para nós na inauguração do ginásio, que é outro que já foi Ministro duas vezes e foi mandado embora. Agora está nas mãos da Dilma, a Dilma é uma maravilha né, parece que está indo bem, vamos ver, tomara que vá, ela já matou gente também, ela é danada né? É quente.

P/1 – Tem algum episódio marcante do Jóquei, algum caso para contar de tratamento de cavalo?

R – Ah, tem muitos.

P/1 – Conta para gente uns!

R – Um que não me sai da cabeça. No Jóquei existem vários setores, tem as arquibancadas que antigamente lotavam todas, não tinha vaga para ninguém, era obrigado a ir de terno e gravata. Hoje se você for de bermuda lá, eles dão graças a Deus que você foi e ainda te pagam um chope. Ali existem as arquibancadas, depois o Paddock e o Tattersall. O Paddock é onde ficam os jóqueis, que nem fosse um chapéu de cavalo, ali é que ficam os repórteres e os jóqueis ali esperando a hora do páreo. Embaixo tem as balanças e alguns comissários de corrida e em frente o picadeiro, onde eles caminham os cavalos pro público ficar apreciando, e do lado o Tattersall. O Tattersall é onde têm as cocheiras que os cavalos ficam alojados uma hora antes de correr o páreo. Ali passa o veterinário e o enfermeiro examinando os cavalos, vendo se não tem doença, toma a pressão, a temperatura, tudo que é tipo de exame para o atleta estar bem para correr. Depois, esse mesmo veterinário e enfermeiro vão revezando porque são muitos páreos, vão assistir no Cânter, que é onde passam os cavalos trotando, para ver se não está mancando nem nada, e depois pegam a perua e vão para fita de largada. Vai o starting gate, que é o que dá a largada, o veterinário, o enfermeiro e uma ambulância pros jóqueis. Quando os cavalos largam para correr sai a ambulância e em seguida sai a perua da veterinária. Se caía algum cavalo já para e toma a providência na hora. Em uma dessas corridas, um caso, como eu falei, muito marcante, caiu um cavalo exatamente em frente à primeira arquibancada, aquilo era lotado, não tinha lugar para ninguém, hoje você vai lá e dá até dó porque não tem ninguém no Jóquei. O cavalo caiu e fraturou a perna, mas fraturou, esmigalhou mesmo, fratura completa, aí o veterinário chegou e autorizou a sacrificar. Eu ia sacrificar o animal, era uma seringa de cinquenta cc e a gente sacrificava com Contensi, Contensi é um produto à base de Curare, que na verdade é um anestésico geral, mas que em grande quantidade acaba causando óbito. Então, eu preparando a seringa, o público olhando, de repente um camarada ali tirou um revólver e apontou para mim, era uma distância de cinco metros: “Se você matar o cavalo eu te mato, seu desgraçado!”, e nós todos trabalhávamos de avental: “ Se você matar o cavalo eu mato vocês também!”. Foi uma correria, joguei a seringa do lado (risos), aí veio a ambulância, deram um jeito lá, taparam, puseram o cavalo em cima do carro, arrastaram vivo mesmo e depois sacrificamos, não tinha jeito, o cavalo não tinha cura. Aí nós tivemos a ideia e eu ajudei também, graças a Deus, de fazer um biombo para ninguém ver a gente sacrificar o animal, porque na realidade para quem não conhece, quem não está vendo, é doloroso, é triste, seja que animal for. Que nem eu falei agora a pouco para vocês, cachorro, gato, na casa dos outros é bonito, papagaio, mas eu fico horrorizado com o tratamento que dão para os animais, a judiação. Ontem ainda eu vi um programa na televisão, não lembro o canal, leão, tigres, onças que vieram aqui pro Zoológico, que judiação, os animais tão maltratados, não sei se vocês tiveram a oportunidade de assistir. Eu gosto muito de todos os animais, agora, o cavalo é um dos que eu mais gosto, se bem que também ajudou a criar a minha família e me criou até hoje.
Uma outra passagem que nós tivemos, triste também, como eu falei, eu entrava de madrugada ali na Raia. Ali na Raia, ali na época, nós olhávamos do outro lado do Jóquei, na Marginal, em Pinheiros, que não existia, era só o Rio Pinheiros e tudo cheio de espinheiros. Do outro lado não tinha uma casa, era só mato, chegamos a pegar ali um grau abaixo de zero, de madrugada, era terrível o frio ali, tudo descampado né? Uma dessas madrugadas em que eu estava entrando para trabalhar, quando eu ia passando na beira da Raia, eu vi um movimento lá. Gente parada, ambulância, um jóquei, era o R. Oguim, pai de um outro jóquei, que não sei, deve estar vivo até hoje, J. R. Oguim. Ele caiu do cavalo e o cavalo pisou na cabeça dele, morreu na hora. É outro caso que foi triste, mas tem muitos casos, mas graças a Deus foi tudo bem. Salvamos, nós veterinários salvamos muitos cavalos. Hoje em dia, por exemplo, uma fratura só se for muito grande, senão têm cura, a medicina adiantou muito, principalmente na parte óssea. Hoje é um espetáculo, até com a gente, com o ser humano, é muito bom.

P/1 – O senhor apostava nos cavalos?

R – Eu? Apostei, apostei muitas vezes, mas eu primeiro não tinha capital, segundo sempre levava um pouquinho de dinheiro, não levava muito, mas naquela época a gente recebia o plantão na hora. Olha como o Jóquei Clube sempre foi muito honesto, por isso que eu admito falarem mal de qualquer um, do Jóquei Clube não! Pode falar de diretor, de chefe, de colega, de tudo, menos do Jóquei. Então, a gente recebia o plantão, mas como eu trabalhava nas cocheiras, não é que existisse uma barbada ou que exista uma barbada, ou que tenha um roubo, que um cavalo corre mal pro outro ganhar, isso sempre teve e acredito que sempre haverá uma coisa assim, porque honestidade, sinceridade geral, não existe. Como eu falo, a unanimidade para mim é burra (risos). Então sempre tinha algum golpe, eu nunca fui atrás de golpe, nem nada, o que eu via? Eu via movimento nas cocheiras onde os cavalos estavam alojados. para fazer exame médico ali no Tattersall, os cavalos ficavam ali, então, quando você via um cavalo, vinha o proprietário, a mulher, o filho, o tio, a prima, a família toda e aí você vê o treinador, ressabiado, para lá e para cá, aí você vai, acompanha o cavalo. Então eu cheguei a acertar, eu mais ganhei do que perdi, jogava pouco, mas cheguei a acertar uma boa quantia ali. Inclusive uma delas, quando eu cheguei em casa, eu tirei o dinheiro do bolso, joguei na cama, chamei a Terezinha e ela: “Valter, o que foi? Você roubou alguém?” (risos). Nós tínhamos uma viagem marcada e até adiamos a viagem para poder comprar roupas e tal (risos). Tem, tem muitos casos, muita história. Existe um animal ali, um cavalo dentro da Raia, que fica todos os páreos, em cima fica um jóquei, é um cotejador. Cotejador é aquele que só trabalha os cavalos. Ele fica com uma farda, calça branca, blusa vermelha, com um boné de jóquei, e quando escapa algum cavalo ele corre atrás para pegar esse cavalo para ele não se machucar, porque os cavalos em geral quando escapam, eles acabam se arrebentando nas cercas. Lá onde eu morava, na Chácara do Jóquei, uma vez um cavalo escapou do picadeiro, que estava aprendendo a fazer curva, bateu na cerca e espetou um pau assim no peito. Ficou estraçalhado lá, justo onde era a minha garagem, a minha ducha, e muitos casos, muitos acidentes, muitas coisas assim. Também tem uma coisa, o Jóquei teve muitas coisas alegres. O Jóquei teve muitas passagens, ótimas, ruins, boas. Teve época que você chegava ali na região, na Teodoro Sampaio, loja mesmo só tinha na Teodoro, o resto era tudo outras coisas, você ia comprar numa loja, iam fazer a ficha: “Onde o senhor trabalha?”, “No Jóquei Clube”, “Ah, não! Jóquei aqui nós não vendemos!”, de tão mal vistos que a gente era. Porque tinha gente que não pagava direito, porque o dinheiro era curto, ou era mal pagador, sei lá! Em compensação, teve outras épocas que você chegava na loja: “Onde o senhor trabalha?”, “No Jóquei Clube”, chama o gerente e: “Olha, dá a loja para ele, anota o nome dele e só, mais nada!”. A gente tinha um moral lá que eu vou te contar, era incrível! Você estava perguntando sobre o que? Desculpe.

P/1 – O senhor estava falando do Jóquei e eu perguntei: “Em que ano o senhor teve o seu primeiro filho?”.

R – O meu primeiro filho, o Marçal Macedo Neto, que era o nome de meu pai, nasceu no dia 20 de julho de 1959 e o outro, o Valter Macedo Filho, nasceu no dia 16 de novembro de 1960. Hoje eles estão um com cinquenta e dois e o outro com cinquenta e um. Depois, tem um outro filho meu, que é o Marcelo Ferreira Rojas, que esse eu adotei. Ele é filho de um primo-irmão meu que a esposa faleceu, ele ficou doente e faleceu também e o menino, que tinha quatro anos, ficou com o avô. Morava na casa de uma tia em Santa Terezinha, na Conselheiro Moreira de Barros, lá moravam as minhas sobrinhas que não tinham pai e mãe, minha irmã faleceu e o esposo também. Lá também morava esse menino, o Marcelo. Aí eles não tinham como cuidar do menino, eles fizeram uma reunião, ele tinha duas irmãs também, então um irmão foi para uma família, outra foi para a outra e o Marcelo, o meu tio-avô Dario, que era avô do Marcelo falou: “Ele fica só se for para tu”. Até ele usou um termo que eu não me esqueço nunca, ele falava desse jeito, ele era filho de espanhol né? “Ele fica só se for com você”, comigo e com a Terezinha, aí eu falei: “Então está bom, eu vou ver isso aí”. Então eu voltei para casa, reuni eu, a Terezinha e outros dois filhos que já eram mocinhos, eles aceitaram, porque eu não iria fazer nada com alguém contra né? Então, no outro dia eu fui lá, trouxe o Marcelo para casa e ele viveu comigo até se casar. Então, casou-se, tenho uma neta, ele teve uma filhinha. O Marçal tem um filho de dezenove anos, que está estudando no Mackenzie, e o Valter tem outro, que é o Pedro, que tem quinze anos e estuda na Escola da Vila, não sei se vocês já ouviram falar? É um colégio muito bom que tem aqui na travessa da Corifeu de Azevedo Marques e outro lá no Ferreira. O outro não pratica esporte, só no Futebol Clube, que ele vai lá jogar bola ao cesto e essas coisas. O outro não, ele jogava handebol no colégio, na Escola da Vila, e por fim o professor deles achou que ele tinha condições e levou ele para jogar no Pinheiros. Aí ele começou a jogar no Pinheiros, o Pinheiros foi campeão paulista e ele foi convocado para Seleção Paulista, foi campeão na Seleção Paulista de Handebol. Depois eles foram disputar o Campeonato Brasileiro, eles foram vice-campeões brasileiros, esse é um orgulho que a gente tem também!

TROCA DE FITA

R – O Marcelo tem uma filha que chama-se Bianca, que hoje deve estar com catorze, quinze anos.

P/1 – Como é o seu cotidiano hoje, o que o senhor faz?

R – Hoje? Ah, boa pergunta! Quando chegou a época da ditadura, não lembro quem era o presidente, não lembro quem foi que deu a ideia de acabar com a estabilidade. Quem já havia trabalhado com a estabilidade não podia ser mandado embora de jeito algum, eles pretendiam acabar e aposentar-se só com cinquenta e cinco, sessenta anos de idade e com trinta e cinco de serviço. Eu tinha, na ocasião, trinta e dois anos de serviço e quarenta e seis de idade, eu falei: “Eu vou esperar até sessenta para poder me aposentar?”. O meu ordenado do serviço veterinário, graças a Deus só era menor do que os veterinários, aqueles mais antigos, mas do resto era um dos bons salários, que na realidade era ridículo, mas eu tinha o salário, casa de graça, nunca paguei água, luz, telefone. Tinha dia que eu chegava em casa e tinha um cara pintando a parede lá, eu perguntei: “Mas o que você está fazendo?”, “Ah, eu vim pintar”, mas não precisava. Queimava uma lâmpada eles iam lá e trocavam a lâmpada, nunca fiz nada, foi uma grande economia, me ajudou muito. Aí eu fiz um acordo com o Jóquei, muitos colegas meus da época que já tinham estabilidade fizeram um acordo. O Jóquei vinha e não oferecia 100%, oferecia 60, 70%, era oferta e procura, eu acabei aceitando uma das propostas deles. Eles me deram uma indenização, eu juntei com o fundo de garantia, férias, 13º salário, com tudo o que eu tinha direito e acabei comparando essa casa onde eu moro até hoje, na Vila Sônia, bendita Vila Sônia (risos). É um bairro muito bom, um local muito bom, tanto é que o Estádio do Morumbi é em Vila Sônia, não sei se vocês sabiam? Não é Morumbi ali, ali é Vila Sônia, Morumbi não existe. Existe Jardim Leonor, porque aquilo foi doado pela dona Leonor Mendes de Barros, a esposa do Ademar Pereira de Barros, que era governador. Então, eu me aposentei, comprei essa casa e me mudei da Chácara. Imagine só, nunca paguei aluguel, tinha toda a mordomia, mas puxa, eu ia ficar lá trabalhando e de repente a lei vinha para sessenta anos, como veio, eu ficaria amarrado. Alguns colegas nossos infelizmente não aceitaram, estão hoje, a gente chama de senado, por quê? Porque eles não fazem nada e ganham dinheiro, ganham o ordenado, mas não fazem nada, senador. Então, alguns não aceitaram e hoje dá dó, eles têm direito a receber hoje um milhão de reais, mas eles têm setenta, oitenta anos de idade, eles vão viver mais trinta, até cento e dez? Somando tudo, o Jóquei não gasta cem mil com eles, vai pagar um milhão para eles? De jeito nenhum! O Jóquei falou: “Bom, vocês ficam aí, eu vou te pagando todo mês e pronto, acabou.” Hoje estão todos idosos, alguns até precisam ir lá de vez em quando para bater o cartão, para que isso? Eu me aposentei, acabou, não fiz mais nada, aí é mentira, eu fiz muito! Passeei bastante com a minha esposa, nossa, fiz muita coisa e trabalhei, não deixei de trabalhar! Eu sempre digo para todo mundo que nunca mais trabalhei, não é verdade, eu sempre trabalhei. Logo depois que me aposentei eu comecei a trabalhar em uma imobiliária ali perto de casa, não deixei de faturar um pouco. Depois apareceu uma prima que fabricava anéis de formatura, comecei a trabalhar com ela. Naquela ocasião, anéis de formatura, o aluno que não tivesse anel de formatura não era formado, você deve se lembrar. Hoje não, hoje anel de formatura é um perigo. Vendi muitos anéis de formatura durante dez anos, depois comprei um terreno no Embu-Guaçu, um loteamento que tinha lá, fui olhar o terreno era trinta por trinta e seis e eu falei: “Puxa, um terreno com trinta de frente? Isso não existe, é uma chacrinha né?”, aí eu acabei comparando o terreno. Aí, levei um pedreiro lá e fiz um baldrame para construir um quarto, cozinha e banheiro, porque é na beira da Represa Guarapiranga, faz divisa, um condomínio fechado, Morada dos Colibris. Aí começamos a construir esse baldrame, aí um belo dia eu peguei a Terezinha e fomos dar uma volta no condomínio porque eu não conhecia nada, só vinha por aquela entrada que não tinha uma casa. Cada palacete que tinha lá dentro, eu falei: “Onde eu vim amarrar o meu burro aqui?” (risos), me dei mal: “O que eu vou fazer aqui, no meio dessa gente rica ?”. Pela casa você via que era gente de bem, pelo menos financeiramente. Aí melhorei, comecei a construir uma casa melhor, afinal de contas eu acabei construindo uma das boas casas ali dentro, uma das maiores, 250 metros quadrados, uma garagem de 80 metros quadrados, com churrasqueira, um minicampo de futebol, uma casa de hóspedes, um local para piscina, pomar, reservatório de água de 20 mil litros. Ficou uma chacrinha legal, só piscina que eu não fiz para não virar clube, porque todo final de semana alguém da família estava lá. Aí os netos e os filhos foram crescendo, casando, começaram a desistir, eu infelizmente fiquei doente, tive um infarto, fui curado do infarto e uma semana depois tive arritmia, aí quase morri, morri seis vezes e voltei né, ia e voltava. Aí me internaram no hospital de Embu-Guaçu, me trataram muito bem, dali me levaram para USP, em Itapecerica, que não deve nada as Clínicas, é maravilhoso também, aí passei lá à noite e me deram aquele choque com desfibrilador e aí me internaram no INCOR. Eu me trato no INCOR até, aí me colocaram esse aparelho aqui, dá para ver aqui, um aparelhinho que chama-se desfibrilador, só que é grande, era, hoje é deste tamanhinho. Aqui tem um fio que liga no coração e é o que salva a vida da gente, já me salvou três vezes, já levei três choques, dá um choque terrível na gente, você nem sente dor. Eu lembro que eu dou um grito sempre e joga a gente para algum lado, mas já me salvou três vezes. Me trato no INCOR uma vez por mês, a cada dois meses faço os exames, tomo oito medicamentos por dia, isso de dia, de noite tomo a cervejinha (risos), como um churrasquinho de vez em quando e aí vendi a chácara. Vendi a chácara e mudei outra vez para Vila Sônia, porque eu havia alugado a casa ali, graças à Deus que eu não vendi, tem uma churrascaria ali perto, é a Búfalo Branco, antigamente era Ponteio Três, na Avenida Professor Francisco Morato, vocês conhecem? Onde tem a entrada pro estádio, Jorge João Saad. Ah! Onde será a estação da linha quatro amarela, estação Morumbi – São Paulo Futebol Clube. Sempre fui sócio do São Paulo, estou com quarenta e nove anos de sócio, ano que vem eu completo cinquenta. Frequentei muito o clube, fui campeão paulista de bola ao cesto pelo São Paulo, meus filhos frequentam até hoje, moro pertinho, como eu falei, dá para ir a pé. O local é muito bom, em frente tem o Shopping Butantã, depois tem um Extra, um Walmart, um Pão de Açúcar, é uma região muito boa mesmo. Tem corredor de ônibus, tem ônibus para todo lugar, estou muito bem na Vila Sônia, graças a Deus. Como eu estava falando, eu aluguei a casa pro dono da churrascaria, o Moacyr, ele morou ali durante um ano mais ou menos e depois deixou a casa pros empregados, aí acabaram com a casa, detonaram tudo. Ê gauchada suja!

P/1 – Se o senhor tivesse que mudar alguma na sua trajetória de vida, o senhor mudaria?

R – Na trajetória? Eu talvez fosse procurar para pelo menos ter um diploma, mas não podia, não tinha diploma para entrar em faculdade, não provava nada, então por isso que eu também relaxei com os estudos. Financeiramente no começo eu não pude e depois, sem ter como provar que eu já havia estudado, também relaxei, deixei para lá. Fiz esse curso e nunca fui buscar o certificado, está lá no Governo, esse de enfermagem eu nunca fui buscar. Não, acho que não mudaria não. Criamos bem nossos filhos, acreditamos nós, talvez eles não achem, mas acho que acham sim porque não largam da gente, estão sempre com a gente.

P/1 – Senhor Valter e qual que é o seu maior sonho hoje?

R – Hoje?

P/1 – É, tem algum grande sonho?

R – Viver e se possível ajudar os mais jovens que eu e se algum idoso também precisar, mas ajudar algum idoso que eu vai ser difícil, porque eles sabem mais que eu (risos).

P/1 – E o que o senhor achou da experiência de dar esse depoimento aqui pro Museu da Pessoa? De vir aqui contar a sua história?

R – Ah, como eu falei de início, para mim foi uma surpresa agradabilíssima. Agradeço muito o meu filho Valter Macedo Filho que me indicou aqui, eles me ajudam muito. Inclusive, tem uma passagem muito interessante, muita gente até caçoa de mim. Um belo dia eles chegaram lá com um computador e me obrigaram a aprender alguma coisa e eu falei: “Eu não quero isso aí, não vou saber lidar com isso!” (risos). No entanto eu me divirto muito no computador, faço as minhas coisas, procuro as minhas coisas, como eu te falei, eu tenho Facebook, só que não está completo porque eu não sei fazer direito. Tanto é que um dos meus netos, o Gabriel, filho do Marçal, o mais velho, era para ir hoje em casa para organizar algumas coisas que eu tenho separadas, algumas histórias que eu contei e uma gravação, e está tudo misturado, então ele vai lá para acertar tudo. Ele ou o Marçal, mas o Marçal não tem tempo porque ele trabalha na PRODESP, entra às oito da manhã e sai às cinco da tarde, é correria né? Mas eu fiquei muito contente, agradeço a atenção de vocês todos e tomara que outras pessoas também venham expor aqui sua vida, suas coisas boas e ruins talvez. Eu sinceramente não tenho o que reclamar da vida, acredito, é lógico, que muita gente tem que reclamar de mim, agora eu, de ninguém. Todo mundo sempre foi muito bom comigo, muito justo, sempre fui muito feliz e tenho uma esposa que é uma Santa Terezinha, uma maravilha, ela que me dirigiu a vida toda, que educou os nossos filhos, um espetáculo de mulher, pena que vocês não a conhecem ainda, mas não faltará ocasião. Terezinha Isique Silva Macedo. Fico muito agradecido a vocês todos pela atenção e se precisar de alguma coisa que esteja ao meu alcance, estarei sempre às ordens.

P/1 – Eu queria agradecer em nome do Museu da Pessoa. Obrigada!

R – Obrigado eu!

FINAL DA ENTREVISTA