Sou quinto filho, caçula extemporâneo. Meus pais , primos entre si, advêm de antigas famílias portuguesas radicadas no Brasil ainda pelo tempo da Colônia, na maior parte das raízes. No século e meio que me antecedeu, todos os tron-cos familiares indicam meus ancestrais e os colaterais situado...Continuar leitura
Sou quinto filho, caçula extemporâneo. Meus pais , primos entre si, advêm de antigas famílias portuguesas radicadas no Brasil ainda pelo tempo da Colônia, na maior parte das raízes. No século e meio que me antecedeu, todos os tron-cos familiares indicam meus ancestrais e os colaterais situados em posições socioeconômicas da média para cima. Parece que meus pais representariam um vale no gráfico que expressasse as situações sociais de meus ancestrais.
Três varões e deles me separa uma irmã, dez anos mais velha que eu, ante-cederam-me na prole de meus pais. Pela diferença de idade, só muito depois da maturidade deixei de ser – de um modo ou de outro – menos ligado a eles que eles entre si.
Meu pai
tinha curso médio, exerceu os ofícios de desenhista e montador me-cânico, um operário de qualificação intermediária nas indústrias metalúrgicas da região. Detestava a condição de empregado. Sempre que entrevia a possi-bilidade, aventurava-se em algum negócio próprio, malversando capitais de heranças, indenizações trabalhistas e raras economias nas mais diferentes empreitadas falimentares.
Minha mãe
tinha formação de magistério. Lecionava vez ou outra pelas escolas das redondezas quando a bolsa requeria – o que não era raro. Mas não tinha nenhuma vocação para o ofício de mestra. Formou-se em Turismo já madura, quando eu já havia ingressado na universidade. Mas o bacharelado não lhe serviu a outra coisa além de ao exercício – novamente – do magistério, agora no ensino técnico do ramo. Ela e eu fomos colegas no último emprego que ela teve, um dos primeiros meus: uma escola estadual em Mariana.
Meus avôs
eram médico e farmacêutico um, juiz de direito outro – assim co-mo o pai de ambos. Estes três foram internos no Seminário de nossa Senhora da Boa Morte, em Mariana, a seus tempos, mesmo lugar em que eu estudaria com muitas décadas de intervalo. Minhas avós provinham de famílias muito abastadas, ligadas ás grandes propriedades rurais, mineração aurífera e todo tipo de renda da propriedade. Nenhuma delas teve educação formal superior, mas aquelas prendas que cabiam às moças de posses a seu tempo não lhes foram negadas.
Ainda pela minha infância, meus irmãos foram saindo de casa. Saiam e depois voltavam, segundo as marés da vida lhes fossem favoráveis aqui ou alhures. Depois foram se casando, mas as idas e vindas continuaram bissextas e o lar paterno teimava em ser-lhes o porto seguro.
Este lar, de minha infância e primeira parte de minha vida adulta, foi também para mim o estaleiro de minha formação e a doca onde me abriguei a cada mau sucesso. A casa ainda está lá, quando escrevo estas linhas. Mas já não há pais nem filhos nela: está vazia e à venda. Do desmonte daquele lar os ob-jetos da infância e dos ancestrais ali acumulados tomaram outros rumos, em anemocoria de recordações latentes em coisas cuja ordem ou desordem, pro-ximidade e guarda residia um discurso que está agora perdido – exceto na memória. E para que esta memória se reconstrua surge este texto.
"A história de uma vida começa num dado lugar, num pon-to qualquer de que se guardou a lembrança e já, então, tudo era extremamente complicado. O que se tornará es-sa vida, ninguém sabe. Por isso a história é sem começo e o fim é apenas aproximadamente indicado." (Jung 1986, 7)
Estive, em passado ainda recente, envolvido na produção de um texto enfo-cando as metáforas das fases da vida ; de alguma forma, aquela produção deve ter sido caminho para essa investigação de agora; naquela oportunidade o cunho do texto era apresentar as mimeses transversais entre duas leituras contemporâneas de duas obras do século XVIII e discutir a criação estética baseada em emulações sobre As Quatro Estações, de Antonio Vivaldi. O foco era a produção um conjunto pictórico capaz de representar simultaneamente as Quatro Estações como ciclo temporal e metáfora das fases da vida. A composição pictórica integra elementos formais da iconografia antiga a elementos da linguagem plástica contemporânea. A proposta incluiu aspectos transdisciplinares entre poesia, a música e a pintura. Essa sobreposição de mimeses, além da emulação entre artes distintas, buscou compreender a transversalidade da leitura interpretativa.
Talvez nesse texto anterior estivesse a gênese da preocupação, senão autobi-ográfica propriamente, pelo menos o questionamento existencial latente de que a memória reflexiva se cobre. As mimeses sobrepostas são da mesma natureza das sociedades complexas ou múltiplas faces do indivíduo no que toca à problemática do acesso a elas ou na amplitude de matizes e respectivas possibilidades de abordagem.
Dentre as polissemias das linguagens, que busca a arte, senão a expressão emocional e intelectual por um caminho que já nem se crê mais esteja realmente distanciado da ciência? Não é o ato da criação artística totalmente especial, que torna explícito o implícito, ato de objetivação, que transforma a sensação em objeto, que realiza o potencial?Recolher